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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.14 no.1 Rio de Janeiro jun. 2011
ARTIGOS
Dificuldades emocionais vivenciadas pelos médicos intensivistas da unidade de terapia - adulto de um hospital geral privado
Emotional distress faced by adult intensive care unit physicians of a private general hospital
Ana Carolina M. Staniscia*; Lígia Pereira**; Carina Pirró Alves Guimarães***; Patrícia Lebensold Mekler****; Fernanda Rezende*****
Hospital Sepaco
RESUMO
A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é um ambiente com características estressantes, tanto na sua constituição física quanto nas conseqüências subjetivas geradas pela sua lógica própria de criação e funcionamento. Durante o período de trabalho ou no pós-plantão, os médicos possuem geralmente sintomatologia física. Tendo que enfrentar as dificuldades apresentadas pelo ambiente da UTI, ele pode sofrer reações psicológicas negativas, prejudicando assim seu objetivo maior: prestar uma assistência de qualidade aos clientes. Objetivo: Identificar as dificuldades emocionais vivenciadas pelos médicos intensivistas na UTI Adulto de um hospital geral. Método: Foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas com 18 médicos da UTI adultos. A análise dos resultados seguiu o método da análise do discurso, proposto por Minayo (2002). Resultados: Podemos observar que dentre as dificuldades emocionais relatadas pelos médicos, apresentam-se mais evidentes: excesso de responsabilidades, dificuldades na aceitação da morte e dificuldades em lidar com os pacientes e familiares Conclusão: A despeito de toda a formação científica, na prática médica o profissional depara-se com um aspecto presente e inevitável, que é o emocional. No contexto atual percebe-se a dificuldade da população estudada em se submeter ao próprio cuidado e a possibilidade de um trabalho relacionado à psicologia.
Palavras-chave: Dificuldades emocionais, UTI adulto, Médicos.
ABSTRACT
The Intensive Care Unit (ICU) is a stressful environment in the subjective consequences generated by its own logic of creation and functioning within the general hospital, where emergencies are transformed into routine. During the period of employment or post-shift, doctors generally have physical symptoms. In addition to that doctors who face difficulties presented by the ICU setting may suffer negative psychological reactions, thus impairing its ultimate objective: to provide proper assistance to patients. Objective: To identify the emotional distress experienced by physicians in Adult ICU at a general hospital. Method: Individual and semi-structured interviews were conducted with 18 physicians in adult ICU. The analysis followed the method of discourse analysis, proposed by Minayo (2002). Results: From the results we can observe that among the emotional difficulties reported by physicians are: excessive responsibilities, difficulties in accepting the death, and difficulties in dealing with patients and relatives. Conclusion: The importance of interpersonal abilities during the training of health professionals should be valued since professional medical practice is facing an inevitable aspect, which is the emotional. In the present context it is perceived difficulty of the study population into submitting to their own care and the possibility of a psychological intervention.
Keywords: Emotional distress; Adult ICU; Doctors.
Introdução
O ambiente hospitalar é composto por diferentes áreas que têm sua descrição física e administrativa singulares, sendo potencialmente geradoras de dificuldades emocionais diversas, tanto para os profissionais, quanto para os pacientes e familiares. A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é um ambiente com características estressantes, tanto na sua constituição física quanto nas conseqüências subjetivas onde as emergências são transformadas em rotina. Segundo Leite e Vila (2005) devido a essa constante expectativa de situações de emergência, da alta complexidade tecnológica e da concentração de pacientes graves, o ambiente de trabalho nesta unidade caracteriza-se como sendo gerador de uma atmosfera emocionalmente comprometida, tanto para os profissionais como para os pacientes e seus familiares. A escassez de recursos materiais (leitos e equipamentos), de recursos humanos e a tomada de decisões conflitantes relacionadas com a seleção dos pacientes que serão atendidos são situações que criam tensão entre os profissionais e, em geral, influenciam negativamente, a qualidade da assistência prestada aos clientes (Leite; Vila, 2005).
O doente internado na UTI é sempre um paciente grave e em risco, o fantasma da morte ou da seqüela está sempre presente. Diante da morte é evidente a relutância dos profissionais em aceitá-la como parte do processo vital, como verdade conhecida e irrefutável e não decorrente de falha do tratamento, sendo uma causa para possíveis dificuldades emocionais (Leite; Vila, 2005). De acordo com Biaggi (2001), o relacionamento médico-familia na UTI é considerado difícil, ou mesmo um complicador, podendo ser conflituoso e mobilizando o profissional de modo desconfortável, principalmente durante o boletim médico. Segundo a população estudada pelo autor, o médico intensivista não tem em seu repertório de formação, direcionamento ou treino para lidar com as questões familiares e principalmente, os plantonistas possuem ritmo de trabalho, que não favorece o estabelecimento de um vínculo com o familiar do paciente internado em UTI. Além disso, segundo, Soares, Terzi e Piva (2007) alguns médicos no meio de trabalho brasileiro são de certa forma pressionados por lei sobre a possibilidade de suspender cuidados vitais em pacientes terminais. Assim, decisões sobre os cuidados oferecidos a pacientes sem perspectiva de cura, a necessidade de comunicar esse estado de terminalidade aos familiares, a interferência da família sobre as medidas tomadas para o paciente são influenciadas por este receio legal potencialmente gerando sofrimento e maior distancianmento dos familiares e do paciente. A família sofre um impacto muito grande ao ter um de seus membros internado em uma UTI e, neste caso, a comunicação torna-se relevante para a satisfação familiar e uma melhor compreensão do momento que tal família vive (Fumis, 2004). O que torna o prognóstico mais difícil de ser compreendido é a relutância médica, o temor da revelação, a fala ambígua com o desejo de proteger o paciente e família (Fumis, 2004).
Em outras ocasiões, o contato médico-paciente é, ao contrário, muito mais intenso que nas internações em outras partes do hospital, dado que o médico só sai da a UTI, na medida em que outro médico o substitua. Vinte quatro horas ao dia o paciente tem médico e todo staff da terapia à sua disposição. Segundo Biaggi (2001), durante o período de trabalho ou no pós-plantão, os médicos possuem geralmente sintomatologia física. Pode-se inferir que estas condições de desgaste poderiam repercutir em outros momentos, ou no próprio contexto da UTI, nas relações intra ou extra-sistema, durante o período de trabalho, ou posteriormente, inferindo na vida pessoal do intensivista. Com esta premissa, tendo como base os dados discutidos na introdução sobre o ambiente da UTI e as relações que o permeiam, é relevante compreender aspectos da realidade vivenciada pela equipe médica que atua em terapia intensiva.
Objetivo
O objetivo do estudo foi identificar as possíveis dificuldades emocionais vivenciadas pelos médicos intensivistas na Unidade de Terapia Intensiva Adulto de um Hospital Geral da cidade de São Paulo.
Casuística e Método
Casuística
O hospital geral em questão possui 151 leitos, ja sua UTI-adulto, local onde se deu o presente estudo, é composta por 40 leitos, possui cinco médicos diaristas e 15 médicos plantonistas. Cada médico é responsável por dez leitos da UTI.
Método
Pelo fato de esta pesquisa buscar investigar implicações na subjetividade dos médicos que trabalham na UTI, optou-se, aqui, pela realização de pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa se preocupa com o nível de realidade que não pode ser quantificado. Busca compreender o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, os quais não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (Minayo, 2002).
A pesquisa que lida com pessoas, segundo Minayo (2002) trabalha com sujeitos construídos teoricamente como objetos de estudo. No ambiente de trabalho fazem parte de uma relação de intersubjetividade, de interação social com o pesquisador, daí resultando um produto novo e confrontante tanto com a realidade concreta como com as hipóteses e pressupostos teóricos, num processo mais amplo de construção de conhecimento.
Para tanto, foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas com 18 médicos intensivistas da UTI de adultos deste hospital, entre eles médicos diaristas, plantonistas que trabalhavam durante o dia, à noite e no final de semana no intuito de obter uma amostra mais fidedigna da população geral deste ambiente.
O período de coleta de dados foi de dois meses a partir da aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Santa Catarina, São Paulo-SP e obedeceu aos princípios éticos, preconizados pelas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos - Resolução 196/96 do Ministério da Saúde.
O tamanho da amostra na pesquisa qualitativa varia dependendo das perguntas de pesquisa e o método de análise. No método utilizado no presente estudo, a análise das respostas coletadas mostra que em média 12 a 18 participantes fornecem informações suficientes para a saturação do campo teórico. De modo que, isto é alcançado quando os achados se tornam repetitivos considerando as perguntas de interesse, quando nenhum tema novo emerge destas respostas e assim, o aprimoramento do campo teórico é mínimo (Strauss e Corbin, 1990).
A entrevista semi-estruturada foi constituída de seis itens:
1 – Qual a sua idade? Há quanto tempo está formado? Há quanto tempo trabalha em U.T.I.? Qual a sua especialidade médica?
2 - Como é para você ser médico de uma UTI? Quais as características de seu trabalho?
3 - Quais as dificuldades que você enfrenta no ambiente de trabalho dentro deste hospital? Por quê?
4 - Você já enfrentou situações, em qualquer momento da sua carreira, em que suscitaram emoções difíceis de lidar? Qual foi sua atitude nesse momento?
5 - Quais as situações com pacientes e seus familiares vivenciadas em U.T.I. que podem ser classificadas como "situações-problema" para você? Como você lida com elas?
6 - Você sente / sentiu necessidade de um espaço para refletir sobre as situações extremosas que ocorrem na U.T.I.?
Cada profissional foi entrevistado individualmente e respondeu verbalmente às questões. As respostas foram transcritas de imediato ao longo da entrevista.
Mediante a entrevista, segundo Minayo (2002), podem ser obtidos dados de duas naturezas: (a) os que se referem a fatos que o pesquisador pode chamar de "objetivos" ou "concretos" e (b) os que se referem diretamente ao indivíduo entrevistado, isto é, suas atitudes, valores, opiniões. São informações ao nível mais profundo da realidade, denominados de subjetivos. Esses dois tipos de dados devem ser levados em consideração em uma pesquisa qualitativa e serão relevantes à discussão que a pesquisa proporcionará.
A análise dos resultados seguiu o método da análise do discurso, proposto por Minayo (2002). De acordo com a autora, a fase de análise das informações tem por objetivo estabelecer uma compreensão dos dados coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e/ou responder as questões formuladas e ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando com o contexto cultural da qual faz parte.
A análise do material deve levar em conta o contexto sócio-histórico do grupo social que faz parte da pesquisa, o que constitui o marco teórico-fundamental para a análise. Esse marco tem de estar presente durante todo o processo de pesquisa e também no momento interpretativo (Minayo, 2002).
Na etapa de análise do material, seguiram-se os seguintes passos, ainda de acordo com Minayo (2002): a) ordenação dos dados - reúnem-se todos os dados obtidos no trabalho de campo e realiza-se a análise das entrevistas; b) classificação dos dados - procede-se à leitura exaustiva e repetida do material obtido para estabelecer questões importantes e construir as categorias empíricas do estudo; c) análise final – relacionam-se os dados aos referenciais teóricos da pesquisa, procurando elucidar a pergunta de investigação.
Após essa primeira classificação, faz-se seu enxugamento por temas mais relevantes, o que permite refazer e refinar o movimento classificatório. É necessário partir do caos aparente das informações recolhidas através das entrevistas e fazer delas uma revelação, uma possibilidade de compreensão, além de ser uma expressão da visão social dos entrevistados que pertencem a um segmento social (Minayo, 2002).
A análise final deve se dirigir para uma vinculação estratégica com a realidade. É necessário chegar a conclusões do trabalho com pistas e indicações que possam servir de fundamento para propostas de planejamento e avaliação, revisão de conceitos, transformação de relações, dentre outras possibilidades (Minayo, 2002).
Resultados
Análise das Entrevistas
A partir das respostas dos médicos diante das questões pudemos observar a recorrência de alguns temas, os quais destacamos abaixo. Em geral foi possível notar semelhanças nas respostas dos médicos, principalmente no que se referia à estrutura do serviço e dificuldades em relação à característica do trabalho de um médico. A análise inicia-se a partir da segunda questão, tendo em vista que a primeira refere-se aos dados do entrevistado. Abaixo da categoria seguem sub-categorias que são diferentes aspectos de um tema que serão posteriormente discutidos. Para exemplificar de forma mais clara seguem algumas falas dos médicos abaixo das subcategorias.
Questão 2 - Como é para você ser médico de uma UTI? Quais as características de seu trabalho?
Aspectos positivos do trabalho
– Resultado em pouco tempo
– Concretude da sua intervenção
– Rapidez e urgência do momento e intervenções
– Atendimento de emergência
– Possibilidade de intervenções invasivas que levem a um resultado rápido
– Não existir imposição na conduta do médico por parte dos pacientes e dos familiares
– Maior suporte da equipe
– Possibilidade de bom vínculo com familiares
"Existem pacientes com um cuidado diferenciado, intensivo; pacientes mais graves, onde se raciocina mais, surgem coisas novas, sempre há coisas diferentes, mais empolgantes. O paciente chega grave e sai bem..."
"Na UTI você tem recurso e equipe que ajudam você a aperfeiçoar seu trabalho, é possível fazer um trabalho melhor."
Ganhos do local de trabalho
– Fuga do Pronto Socorro (PS)
– Menor contato com familiar
– Variabilidade de casos
– Gratidão
– Boa fonte de renda
– Conforto
– Interessante
– Desafiante
"Todo paciente operado vai para UTI; na especialização faz-se muito plantão como forma de completar o salário, acabamos gostando do trabalho, mas é mais uma questão salarial."
"...em Pronto Socorro acaba sendo muito estressante, por ter que lidar com famílias em choque...em UTI...se trabalha mais fechado...Aqui as famílias ficam bem tensas, mas não é tanta pressão como no PS, aqui você pode realizar seu trabalho com mais calma."
Aspectos negativos do trabalho
– Lidar com a gravidade do paciente
– Necessidade de lidar com o fim da vida
– Necessidade de adaptação
– Alta intensidade das emoções
– Estressante
– Carga horária extensa
– Falta de resposta da equipe
– Grande responsabilidade
"Uma das características do trabalho em U.T.I. é que o clima é pesado em todos os ambientes. A equipe também pode não dar respaldo. É difícil a quantidade de horas..."
"Uma das características do trabalho em U.T.I. é o estresse. É a ponta da cadeia do estresse para o médico. O paciente sempre grave, pode desestabilizar a qualquer momento, pode vir a falecer."
Questão 3 - Quais as dificuldades que você enfrenta no ambiente de trabalho dentro deste hospital? Por quê?
Estrutura do Serviço
– Características do ambiente
– Falta de velocidade da resposta da equipe interdisciplinar
– Relacionamento com a equipe interdisciplinar
– Rotatividade dos médicos
– Comunicação com a equipe interdisciplinar
– Pouca disponibilidade de medicamentos
– Avaliação mal feita dos colegas médicos
– Baixa remuneração
– Não continuidade do tratamento por um mesmo médico
"As dificuldades enfrentadas no ambiente de trabalho se referem à falta de velocidade das respostas da equipe que acompanha conjuntamente cada caso. Acredito que se houvesse uma sistematização do trabalho em equipe ajudaria o desenvolvimento do quadro clínico do paciente."
"Uma das dificuldades na U.T.I. é a característica física da U.T.I. que é ruim, as cores, a distribuição."
Características do Trabalho em U.T.I. e com pacientes graves
– Ausência da relação médico-paciente devido à impossibilidade gerada pelo quadro clínico
– Alta carga horária
– Morte do paciente
– Sentimento de impotência diante da morte do paciente
– Dificuldade de obter resultados devido ao quadro clínico do paciente
– Desgaste emocional por lidar com pacientes graves e com evoluções negativas
"Aqui uma das dificuldades é lidar com paciente grave, é um ambiente hostil, com muitos funcionários."
"Cada perda de paciente é uma impotência e muita cobrança pessoal. Aqui acaba tendo essa frustração."
Características da necessidade de lidar com familiares de pacientes
– Horário de visita dos familiares
– Questionamento dos familiares
– Agressividade dos familiares
– Falta de reconhecimento do trabalho do médico por parte dos familiares
"O horário de visita dos familiares é muito estressante, porque a família questiona a sua conduta, eles não têm conhecimento sobre medicina e querem interferir na conduta médica. É estressante, porque é uma situação em que precisa ficar "contornando", se explicando".
"Uma das dificuldades aqui é lidar com a família de pacientes muito graves, que você sabe que irá morrer você ainda tenta investir."
Na questão a seguir, as respostas dos participantes foram categorizadas de acordo com sua primeira parte (questão 4 a) e sua segunda parte (questão 4 b).
Questão 4 a - Você já enfrentou situações, em qualquer momento da sua carreira, em que suscitaram emoções difíceis de lidar?
Situações e emoções relacionadas a características da família e pacientes
– Lidar com empatia com a família e paciente
– Lidar com família angustiada
– Lidar com histórias tristes dos pacientes
– Lidar com a perda de pacientes jovens
– Lidar com o prolongamento do sofrimento do paciente e do familiar
"Outra situação foi um velhinho que não morria, estava com muita ansiedade, porque queria que ele morresse logo, não agüentava mais ver aquilo. E ele morreu com a família junto dele..."
"Sempre tem uma família angustiada, tem mais histórias de tristeza, estamos envoltos em coisas tristes e isso acaba sobressaindo."
Situações e emoções reflexivas do médico/a
– Lidar com o sentimento de impotência
– Lidar com grande responsabilidade sozinho
– Lidar com a expectativa pessoal
– Lidar com o sentimento de culpa
"Dificuldades na UTI acontecem mais quando você tem um paciente que você espera que evolua de uma forma e ele não responde; essas evoluções negativas marcam e são muito frustrantes."
"Situações em que sinto que errei, poderia ter feito mais, situações em que ocorre uma convivência maior com o doente e trouxe um laço de amizade, nessas situações a perda deles me deixa abalado."
Situações e emoções relacionadas a características do trabalho em UTI
– Lidar com a urgência
– Lidar com a expectativa da equipe multidisciplinar
"Aqui a qualquer momento, o paciente pode desestabilizar...Você tem também que lidar com a equipe que está trabalhando com você, eles também podem cobrar mais investimento no paciente e você precisa explicar pra eles."
Questão 4 b - Qual foi sua atitude nesse momento?
Enfrentamento voltado para a emoção
– Não fala como lida com situações difíceis
– Ser forte
– Provocar distanciamento afetivo do paciente e de sua família
– Provocar distanciamento afetivo de seus próprios sentimentos
– Desejar o fim da situação
"Depois as emoções passam, outro dia é outro dia. Um impacto disso é deixar o médico frio para que não se envolva, é preciso deixar uma distância para conseguir ajudar o paciente."
Enfrentamento voltado para a ação
– Expressão dos sentimentos
– Aceitação dos limites
– Buscar ser mais assertivo com os familiares
– Realização de uma avaliação sobre sua atuação
– Aprender com as dificuldades
– Realização de uma reflexão sobre a vida
– Utilização da religião como apoio
"A U.T.I. é a toalha fria, você vai assimilando as angústias aos poucos, com o tempo. Depois você tem o "insight" de que não vai resolver 100% o problema do doente, acaba dando um conforto para a família, mostrando que o doente está bem assistido, o familiar precisa saber mais disso do que se ele vai morrer ou não"
"Depois de uma morte, fico me perguntando o que poderia ter sido feito para que não ocorresse o óbito. Outras pessoas põem culpa demais nos médicos."
Questão 5a - Quais as situações com pacientes e seus familiares vivenciadas em U.T.I. que podem ser classificadas como "situações-problema" para você? Como você lida com elas?
Relação dos familiares com o paciente
– Não haver aceitação dos familiares em relação à finitude do paciente
– Não haver aceitação dos familiares em relação ao quadro clínico do paciente
"A família nunca está preparada para a morte, todos querem que você seja herói. A dificuldade é isso: Informar para a gravidade da situação."
"Uma das dificuldades com famílias são com aquelas famílias que têm dificuldade em escutar o que você fala, ficam insistindo pra você falar que o paciente vai ficar bem. Um exemplo foi uma filha de um paciente que estava há muito tempo internado na U.T.I. e quando falei que ele era um paciente grave, ela ficava perguntando se ele iria ficar bem, então eu repetia que ele era um paciente grave."
Relação dos médicos com os familiares
– Questionamento / Não aceitação da conduta médica
– Dificuldade de comunicar a gravidade do caso
– Rotatividade dos familiares nos horários de visita
– Falta de preparo para relacionar-se com a família
– Divergência de opinião entre o médico e a família em relação ao paciente
– Agressividade dos familiares
– Culpabilização do médico por parte da família em relação a uma evolução negativa ou morte do paciente
– Descontentamento da família em relação ao médico
– Desejo da família em prolongar a vida/internação do paciente sem perspectiva de cura
"A agressividade dos familiares é uma dificuldade no trabalho."
"Não gosto de familiares, tem familiar que encrenca. Por exemplo, um familiar que é leigo em medicina e "fuça" demais, aí vem querendo questionar e não é bom."
"A dificuldade mais recente que tive com familiares de paciente foi querer manter o paciente internado e a família querer levá-lo embora."
Estrutura do serviço
– Ausência de médicos diaristas
– Rotatividade dos médicos
– Não horizontalidade da conduta médica
"Nessa U.T.I. há uma dificuldade com a administração dos médicos, está muito solto. Deveria haver um diarista para cada 10 leitos e aqui não é assim, isso torna mais difícil o contato com as famílias. As famílias que não têm um médico diarista ficam mais prejudicadas, tanto na comunicação, quanto na melhora do paciente, porque com um diarista o paciente acaba sendo melhor conduzido também."
"É mais difícil quando um paciente fica um longo período de tempo no hospital, porque dá margem ao conflito de informação entre os diferentes médicos. Existe a possibilidade dos médicos dar informações diferentes, existe a possibilidade dos familiares interpretarem de formas diferentes o que eles escutam dos médicos e existe a possibilidade de virem familiares diferentes, o que aumenta a chance de um conflito de informações ou interpretações."
Questão 5b - Como você lida com elas?
Formas de lidar com as dificuldades com os familiares
– Aprendizagem ocorre no dia-a-dia
– Desenvolvimento de uma empatia tanto com o paciente, quanto com o familiar
– Imposição de limites para os familiares
– Disponibilização de tempo para conversar com o familiar
– Atuação em equipe
– Compartilhamento das dificuldades com outros colegas
– Evitação da comunicação com os familiares
– Evidenciamento do envolvimento com o caso pra a família do paciente
"Eu lido com os familiares da seguinte forma: Falo somente o necessário e pronto. Se pudessem nem falava com eles."
"O interesse da família nem sempre é o seu, isso é difícil, mas é preciso entender o lado do paciente, não adianta ‘bater de frente."
Questão 6 - Você sente / sentiu necessidade de um espaço para refletir sobre as situações estremosas que ocorrem na U.T.I.?
Reconhecimento da necessidade de um espaço para reflexão para
– Preparo
– Suporte
– Reflexão
– Orientação
– Expressão
– Comunicação com a equipe
– Sentimento de necessidade de aprovação dos outros
– "Burn-out"
– Olhar para o lado espiritual
"Acho necessário um espaço para refletir, porque o médico se torna pessimista ao longo da rotina com as frustrações do trabalho."
"Um espaço sempre é interessante. Fazemos psicoterapia com colegas médicos, os médicos querem sempre ser aprovados, então pedimos a opinião para outros colegas para afirmação."
"Sim, precisa de um espaço para pensar, raciocinar, olhar para o lado mais espiritual. Assim como há capela para os familiares, não só para pensar em Deus, mas para refletir, seria bom ter um espaço para nós, porque não se pode levar o trabalho levianamente."
Não necessidade de um espaço para a reflexão
– Característica pessoal de conseguir separar os problemas do trabalho de sua vida
– Busca de apoio em pessoas próximas que não pertençam ao ambiente hospitalar
– Falta da realização de necessidades anteriores a essa como o lazer e o descanso
"Acho que um espaço para reflexão seria bom, mas por mim mesmo, por minha personalidade não precisaria, porque consigo separar o trabalho das outras coisas e nunca entrei em conflito fora do ambiente de trabalho por causa do trabalho."
"Um espaço… a parte profissional não chega a me trazer um desequilíbrio a ponto de eu precisar de um espaço para reflexão. Eu tenho o apoio de colegas e de pessoas íntimas e acho que por isso não precisaria de um acompanhamento com psicólogo."
Dentre os que reconheceram a necessidade de um espaço para reflexão, houve o relato de dificuldades que impossibilitariam a existência desse espaço.
Dificuldade para a obtenção do espaço
– Aceitação de outra liderança que não ele mesmo
– Perfil egocêntrico dos médicos
– Cultura brasileira de introspecção
– Falta de tempo
– Sobrecarga de trabalho
– Não reconhecimento oficial (de um superior) da validade do espaço
"Acho que não vai haver esse espaço, porque acaba sobrecarregando os colegas. Depende da filosofia do hospital e da visão do chefe. Acho que seria bom, mas iria depender do chefe."
"Acho que os médicos terão muita resistência."
"Acredito que aqui, dentro do hospital, seria muito difícil existir esse espaço para um grupo de médicos, porque seria difícil alguém para liderar. Seria preciso um Deus dos Deuses para ser o chefe dos médicos o que é muito difícil."
Discussão
A importância tanto dos aspectos teóricos quanto dos aspectos interpessoais durante a formação do profissional de saúde deve ser valorizada. A despeito de toda a formação científica, na prática médica o profissional depara-se com um aspecto presente e inevitável, que é o emocional (Meleiro, 2000). A partir dos resultados podemos observar que muitos médicos falaram sobre a grande responsabilidade que têm sobre um paciente e quanto isso lhe traz dificuldades, pois se sentem sozinhos, sem alguém para compartilhar tal sobrecarga. Isto mostra que as adversidades vivenciadas se relacionam à característica da rotina de um médico, não sendo relatadas situações atípicas (fora do cotidiano) como difíceis; a maior parte das dificuldades aparece relacionada ao cotidiano.
Diante de questões difíceis ou até temas que são tabus para a sociedade é que se dá o dia-a-dia de um médico. A fronteira entre a vida e a morte no contexto médico muitas vezes beira o transcendental e nem sempre pode ser balizada pelos parâmetros da ética médica. O direito de morrer e o de viver, no mundo moderno, quase sempre afligem a classe médica no enfrentamento de sua prática cotidiana, com situações limite, como a questão do aborto e da eutanásia (Meleiro, 2000).
O início da carreira médica, para alguns médicos, foi mencionado na pesquisa como aquele de maior impacto emocional diante das dificuldades vivenciadas no ambiente de trabalho com pacientes e familiares. Meleiro (2000) discute em seu livro como os primeiros encontros do médico em formação com seus pacientes estão associados ansiedades, incertezas e constrangimentos que muitas vezes se cristalizam impedindo um adequado desenvolvimento da comunicação verbal e não-verbal entre médico e paciente. Alguns médicos puderam falar sobre a rotina estressante que têm, sendo que chegam a passar mais de cinco dias sem voltar para a própria casa. Tal postura esta associada a um afastamento de outros tipos de relações sociais e acarreta diversos sofrimentos, comprometendo a competência do profissional. Porém o ambiente hospitalar proporciona um reconhecimento positivo de tal comportamento, podendo muitas vezes, o profissional ser visto como alguém "dedicado", "esforçado". Dessa forma, gera ainda uma maior dificuldade para o médico de expor alguma dificuldade ou sofrimento. Isso também pôde ser expresso por alguns entrevistados, quando ouviam perguntas sobre sua vida além do hospital e então naquele momento percebiam que não faziam quase nada além de trabalhar, o que nos mostra que nem há espaço para terem consciência de que apenas trabalham. Tal comportamento era mais comum entre os médicos mais jovens que também referem um sentimento de solidão logo que se formam, pois não possuem um espaço para compartilhar as dificuldades com outros colegas.
O médico exerce um papel social adquirido, no qual se destacam, pela ordem, a competência técnica, a universalidade, a especificidade funcional, a neutralidade afetiva e a orientação à coletividade. A grandiosidade pode ser reforçada pelo respeito indiferenciado dos pacientes. Ser necessário ao paciente permite às pessoas com auto-estima abalada encontrar um espaço que permita ter o paciente como uma muleta. Saber que uma pessoa é médica faz com que a comunidade a trate com maior deferência. O desprendimento emocional e a negação de sua vulnerabilidade pessoal são incentivados pela Escola Médica. Como conseqüência, esses fatores poderão gerar uma distorção na dinâmica médico x paciente: a de ajudar o necessitado por necessitar do impotente (Meleiro, 2000).
A reflexão acerca daquilo que é adequado e apropriado ao acolhimento do paciente e sua família é dificultada pelo isolamento social proporcionado pela profissão. Tal isolamento surge já no início da carreira médica, quando o treinamento exige que eles fiquem a maior parte de suas horas dentro de ambientes médicos, restringindo assim, suas oportunidades de exposição a mentores maduros numa perspectiva adequada dentro da sociedade como um todo (Meleiro, 2000).
Questões como essas geram certo sofrimento psíquico ao médico que, muitas vezes, nem o percebe, pois não há espaço para isso dentro da rotina de um médico. Alguns dos entrevistados relataram que em sua formação médica não possuem nenhum tipo de aprendizado a respeito dos sentimentos e emoções que são possíveis de relacionarem-se aos seus pacientes e familiares que os acompanham. Foi possível notar certo estranhamento por alguns médicos quando ouviam perguntas sobre as dificuldades emocionais deles próprios, pois parece haver certo distanciamento dos próprios sentimentos a fim de lidar com a sua prática.
Algumas falas dos médicos são exemplos do quanto às características do seu trabalho como a presença da morte, a alta carga horária, falta de outros vínculos sociais além do hospital, a relação com os familiares dos pacientes geram sentimentos difíceis de lidar, que ficam guardados com eles mesmos, até pela existência de uma pressão externa de outros colegas de profissão. Nota-se a partir das falas que a própria rotina gera sofrimento ao médico, independentemente da existência de uma "situação-problema".
Muitas vezes, as formas de lidar com as dificuldades são de afastamento da situação. Diversas vezes, os médicos falaram do quanto acabam tornando-se "frios emocionalmente" e o quanto isso é difícil em seus outros tipos de relação que não a de trabalho. Outro tipo de afastamento do próprio sofrimento ocorre quando o profissional não pode olhar para a sua rotina e não chega a perceber o quanto trabalha, nem o motivo de somente estar em hospitais. Muitas vezes, a grande carga de trabalho pode vir como um mecanismo de afastamento de si mesmo, pois contribui para que a pessoa "não tenha tempo" de pensar sobre sua vida.
Abdo (1992) citado por Meleiro (2000), p. 76, a esse respeito diz:
Apesar dos conhecimentos teóricos, da prática e da capacidade de racionalizar adquiridos ao longo dos anos de profissão, o médico não consegue se proteger de todo contra a angústia oriunda do contato com determinados pacientes. A formulação médica não deixa lugar para a dúvida ou o impasse. Os profissionais são preparados para salvar, curar, aliviar ou, no mínimo, confortar. Nesse processo, passam a conviver com a dor, o infortúnio e a doença, ‘sem envolvimento’; atitude sine qua non para o exercício da profissão, mas que os afasta também de si próprios
Diante de uma rotina em que é comum a morte pode haver questionamentos sobre a vida. Muitos pacientes à beira da mo vivem dilemas do que viveram se aproveitaram ou não a própria vida. É comum que os pacientes sintam que "desperdiçaram" muito tempo trabalhando ou deixando de fazer o que gostariam. Tal pensamento pode ser muito angustiante para qualquer que esteja próximo a essas pessoas, pois inevitavelmente ocorre um questionamento sobre a sua própria vida. Diante de tantos sentimentos, reflexões potencialmente geradoras de angustia, os médicos podem reagir ou afastando-se disso ou negando a existência de um grande sofrimento. Botega (2006) ressalta que o médico não consegue ser continente das idéias angustiantes que o acometem, então as projeta, automática e inconscientemente. A supervisão médica ao longo da formação do médico é vista como a principal favorecedora de espaço para que o médico entre em contato com seus sentimentos e apreenda recursos para enfrentá-los (Meleiro, 2000).
A relação com a família do paciente também gera sofrimento para o médico. De acordo com Biaggi (2001), o relacionamento médico-família na UTI é considerado difícil e ou mesmo um complicador, podendo ser conflituoso e mobilizando o profissional de modo desconfortável, principalmente durante o boletim médico. Segundo os participantes, o médico intensivista não tem, em seu repertório de formação, direcionamento ou treino para lidar com as questões familiares e principalmente, os plantonistas possuem ritmo de trabalho, que não favorece o estabelecimento de um vínculo com o familiar do paciente internado, o que pode vir a acarretar sofrimento e grande carga de estresse tanto aos médicos intensivistas quanto aos familiares de pacientes internado em Unidades de Terapia Intensiva.
Durante as entrevistas foi possível notar que a dificuldade na relação com os familiares se dá na falta de compreensão dos possíveis sentimentos suscitados nos familiares que vivem uma possível perda de alguém querido. Além disso, surgiu também a dificuldade que poderia ser suprida por certa técnica, ou estudo de como comunicar uma notícia que é ruim para o outro, por exemplo, a morte do paciente. Foi possível notar que alguns médicos consideram que lidam ou parecem lidar naturalmente com a morte e aceitam a morte do paciente, porém têm dificuldade para estabelecerem a diferença entre o que é a morte de um paciente e o que é a morte de um parente, pois muitas vezes exigem um comportamento de aceitação por parte da família, não conseguindo compreender que não é fácil para todos aceitarem a morte de alguém de que gostam.
O paciente que recebe um diagnóstico passa por uma severa crise, que desencadeia várias reações, tais como, negação, culpa e raiva. Algumas vezes, comportamentos inadequados tais como: falta às consultas, agressão velada. O paciente passa a culpar o médico e manifesta grandes expectativas em relação ao tratamento, favorecendo iatropatogenias. O médico reage a tudo isso da mesma maneira emocional: irritação com o paciente, desejo de satisfazer as grandes expectativas dos pacientes, culpa, frustração e impotência (Meleiro, 2000).
Além disso, uma das dificuldades na relação com a família se dá quando há uma grande exigência dos familiares sobre o médico. É possível notar que em algumas situações a exigência é do médico para com ele mesmo. Nesse caso existem duas possibilidades: Quando há um resultado positivo, o paciente melhora ou se cura, todo o reconhecimento é para o médico que pode ter um ganho narcísico ao receber diversos agradecimentos dos familiares, porém quando há um resultado negativo ocorre uma grande culpabilização de si próprio, gerando um sofrimento que, em geral, não é compartilhado. Durante as entrevistas diversas vezes houve o relato da sensação de fracasso, o que possivelmente se relaciona à dificuldade de compartilhar as situações difíceis e as conquistas dentro do ambiente hospitalar que é extremamente competitivo.
Diante das dificuldades do trabalho do médico foi possível perceber a forma como ocorre o enfrentamento das dificuldades. Em nenhum momento algum profissional falou sobre o aprendizado para enfrentar a relação com a família de um paciente durante o curso de medicina e foi possível perceber que cada um desenvolve uma forma pessoal de lidar com a própria dificuldade. Alguns procuram focar-se em seus sentimentos, procurando não se desestabilizarem emocionalmente com as dificuldades. É possível supor que haja uma repressão de seus sentimentos, o que naturalmente trará algum tipo de conseqüência negativa.
Durante as entrevistas foi muito comum ouvir sobre a "frieza" do médico, geralmente a fim de evitar o contato com o sofrimento do paciente e dos familiares. Alguns médicos puderam falar sobre a naturalização do sofrimento humano como negativo, pois retira o lugar de dor e deixa o médico mais insensível. O vínculo com o paciente é referido por Biaggi (2001) como extremamente significativo, como um aspecto de relevância para a valorização da tarefa frente ao paciente. Porém, nem sempre este vínculo é considerado como tal, sendo que a impossibilidade também pode ser uma forma de enfrentamento das difíceis condições do paciente, aliviando o peso da tarefa, e minimizando as frustrações (como a morte do paciente) que poderiam ocorrer, frente às questões mais inexoráveis.
Como mencionado na introdução (Biaggi, 2001), os intensivistas apresentam uma importante dificuldade em lidar com o óbito do paciente. Este é referido muitas vezes como um grande estressor, que não pode ser refletido visto ser um complicador para a continuidade do trabalho, equivalente a uma força impeditiva que pode comprometer o andamento das tarefas frente aos outros pacientes, observando-se que alguns mecanismos de defesa, no sentido de evitar um contato maior com a morte, emergem como um suporte de enfrentamento para o cotidiano. Pode-se dizer que este afastamento repercute diretamente na postura que adotam com os familiares e pacientes.
A respeito de a prática clínica endurecer a postura médica para as especificidades de seus pacientes, tem início no começo da carreira do jovem médico. As características deste profissional em formação são cristalizadas de modo que ele deixa de se moldar às novas situações. Algumas falas exemplificam tal comportamento.
"Depois as emoções passam, outro dia é outro dia. Um impacto disso é deixar o médico frio para que não se envolva, é preciso deixar uma distância para conseguir ajudar o paciente."
Kaufman (1988), citado por Meleiro (2000), salienta que a visão de saúde e doença é freqüentemente oferecida ao aluno médico de maneira organicista, não valorizando o homem com vida psíquica e isolando-o de seu contexto social. Além disso, a visão organicista peca até mesmo em oferecer uma unidade física à abordagem do homem, sobrepondo a esta a visão de um agregado de órgãos e sistemas independentes. Assim o estudante de medicina aprende a negar o lado emocional do paciente e consequentemente também o seu próprio, "ignora a própria dor, desconforto e exaustão".
Em psicologia, o estresse é relacionado ao cumprimento de tarefas de responsabilidade, a reações a eventos inesperados e a situações de expectativa e de contato com o novo. Lazarus (1976) citado por Botega (2006) diz que de acordo com modelos cognitivos do comportamento, as pessoas podem ser divididas em duas grandes categorias na maneira como enfrentam (coping) as situações que podem gerar estresse: "orientados para o problema" ou "orientados para a emoção" (p. 49).
As primeiras, ao lidarem com situações de estresse, tenderão a buscar informações, trocar idéias com médicos, amigos, grupos de auto-ajuda, ou de pessoas que tiveram experiências parecidas a fim de alterarem suas concepções. Tudo isto com finalidade de reassumirem o controle de suas vidas, tornando as conseqüências daquela situação mais toleráveis.
As segundas estarão mais preocupadas em lidar com suas emoções, reduzindo-lhes o impacto. Terão mais dificuldades para se focalizar em alternativas cognitivas. Esses pacientes responderão mais "emocionalmente", usarão mais mecanismos de defesa, sentirão mais desesperança, desamparo e depressão, necessitando de estratégias de apoio psicológico, de amigos e da equipe assistencial, isto é, buscarão se defender destes sentimentos através dos outros, necessitando desta maneira de mais cuidados tanto da equipe, quanto de sua família ou amigos.
O incessante conflito entre o interesse pessoal e o altruísmo permeando a atuação médica favorece também muitos problemas psicológicos aos médicos e às suas famílias, que são fomentados pela inabilidade do médico de lidar com esse paradoxo. A necessidade de ganho financeiro pode favorecer sentimentos conflituosos de culpa, estresse, depressão, abuso de drogas e suicídio mecanismos mais voltados para a amenização das emoções vivenciadas (Meleiro, 2000).
Os mecanismos de enfrentamento de situações difíceis ora relacionaram-se a uma postura mais ativa diante da situação estressora, ora com estratégias que visam administrar a emoção vivenciada. Alguns médicos apresentavam a reflexão como um mecanismo positivo de enfrentamento. Isso possibilita ao profissional uma modificação de sua conduta ao invés de um enrijecimento. Foi muito raro entrevistar algum médico que se permitisse ter sentimentos durante a prática médica e conseguir expressá-los. Tal comportamento contribui para diversos aspectos de sua vida, tanto profissional quanto pessoal. Algumas falas dos médicos refletem a forma como lidam com uma situação difícil.
É fundamental esclarecer à classe médica a respeito dos problemas da identidade médica, bem como a necessidade da existência de um espaço aberto, desvinculado das atividades profissionais, para serem continentes as muitas experiências emocionais (Meleiro, 2000). Muitos médicos relataram o desejo de expressarem-se, de poderem refletir sobre si mesmos e sobre sua prática, além de nesse espaço haver a possibilidade de estabelecerem um vínculo maior com os membros da equipe para que haja uma comunicação entre eles favorável ao paciente. Algumas falas dos médicos nos mostram claramente tal desejo.
Segundo Biaggi (2001), durante o período de trabalho ou no pós-plantão, os médicos possuem geralmente sintomatologia física. Alguns relatam um controle auto-imposto frente à tarefa. Pode-se inferir que estas condições de desgaste poderiam repercutir em outros momentos, ou no próprio contexto da UTI, nas relações intra ou extra-sistema, durante o período de trabalho, ou posteriormente, inferindo na vida pessoal do intensivista. Tendo este médico que enfrentar as dificuldades apresentadas pelo ambiente da UTI, ele pode sofrer reações psicológicas negativas, prejudicando assim seu objetivo maior: prestar uma assistência de qualidade aos clientes.
Todas essas questões podem ser trabalhadas em um ambiente que proporcione um espaço aberto, sem críticas para a expressão de sentimentos e de dificuldades vivenciados pelos médicos. A partir disso, é possível a troca de experiências, o compartilhamento de sofrimentos gerando aprendizado e suavizando o peso que cada médico carrega sobre suas costas. Tal espaço é de fundamental importância para o aprimoramento da prática médica e para a qualidade de vida dos médicos, já que o médico é em essência um ser humano que atua em diversos espaços (relacionamentos sociais, vida amorosa, carreira profissional...), sendo que todas essas áreas estão relacionadas, pois ele é um só.
Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um Deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar só, estaremos na companhia do mundo todo. (Campbell, 1979; p. 131)
Conclusões
Diante de todo o trabalho e entrevistas realizadas é possível notar a grande importância e necessidade de um espaço para reflexão. Seria muito interessante uma continuidade a esse trabalho que pensasse em propostas viáveis para esse tipo de espaço. Certamente haveria, para isso, a necessidade desse espaço ser algo reconhecido pela instituição como importante.
É necessário pensar o quão reconhecido, dentro de um ambiente hospitalar, é o valor do pensamento, da reflexão juntamente com a ação. É possível perceber que para os médicos, a sua prática volta-se, muitas vezes, para a ação que ocupa um lugar de maior valor em detrimento da reflexão. De fato, existem benefícios em trabalhar neste serviço, seja por características da população que o utiliza ou mesmo por razões financeiras.
No entanto, evidenciamos que o local de trabalho e características deste é também fonte de muito sofrimento. O qual, ao que parece, não é trabalhado de forma sistemática. Deste modo, não podemos dizer que há formas de enfrentamento favorável adotadas pelos médicos ao lidarem com suas dificuldades, dado que a reflexão sobre isso é pouco presente ou conflitante acerca de sua presença.
No contexto atual percebe-se a dificuldade da população estudada em se submeter ao próprio cuidado, seja por dificuldade em lidar com liderança interdisciplinar, seja pela crença de que é incorreto cuidar de quem oferece cuidados a outras pessoas. No entanto pudemos entender que concomitante a necessidade da técnica está presentes a necessidade de lidar com importantes cargas emocionais num mesmo ambiente de trabalho.
O ato heróico associado ao feito médico de cuidar, doar-se ao objetivo de curar pessoas de modo humanizado é dissociado da compreensão de que para isto se faz necessário humanizar-se como profissional. Para isso reconhecer suas necessidades intrinsecamente ligadas às características da pessoa como ser humano dotado de emoções e história social.
Um espaço organizado com essa função poderia, no mínimo, ajudá-los a analisarem se eles têm recursos psicológicos para enfrentar suas dificuldades. Além disso, percebemos o quanto a atuação dos colegas é percebida como falha, no sentido de oferecer acolhimento adequado ao paciente e sua família no momento da internação. O que sugere, que a falta de preparo psicológico de alguns colegas, pelo menos, é fonte de prejuízo da qualidade do trabalho que os médicos oferecem.
Referências
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Endereço para correspondência
Ana Carolina M. Staniscia
E-mail: anacarolinastaniscia@yahoo.com.br
* Hospital Sepaco, Psicóloga da UTI Neonatal e Pediátrica e da Maternidade.
** Psicóloga clínica e Psicanalista. E-mail: ligiapereira03@yahoo.com.br
*** Hospital Sepaco, Coordenadora do Departamento de Psicologia Hospitalar. - Sócia-Gestora, Psicocare, Centro de Psicologia Clínico-Hospitalar. - Professora, Universidade São Marcos. E-mail: carina.guimaraes@terra.com.br
**** Hospital Sepaco, Coordenadora do Departamento de Psicologia Hospitalar. Sócia-Gestora, Psicocare - Centro de Psicologia Clínico-Hospitalar. E-mail: plmekler@gmail.com
***** Hospital Sepaco, Psicóloga e Supervisora do estágio em Psicologia Hospitalar. E-mail: nandarezende@gmail.com