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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.19 no.2 Rio de Janeiro dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Significados atribuídos pelo residente recém-ingresso na Residência Multiprofissional em Saúde

 

On the meanings attributed by newly assigned resident in Multidisciplinary Residency in Health

 

 

Jamile Luz Morais1,I; Airle Miranda Souza2,II

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo
II
Universidade Federal do Pará

 

 


RESUMO

Objetiva-se compreender os significados atribuídos por residentes recém ingressos na Residência Multiprofissional, identificando os ganhos e perdas advindos desta inserção, considerando que a entrada em um Programa desta ordem configura-se como um evento significativo, suscitando novas experiências. Participaram deste estudo oito residentes multiprofissionais, de ambos os sexos, matriculados no Programa, independente de sua formação acadêmica e área de atuação (Oncologia e Saúde do idoso) e que ingressaram no programa no ano 2011. Como instrumento, elegeu-se um roteiro de entrevista semi-estruturado, constituído de duas partes: a primeira, contendo os dados sócio-demográficos; a segunda, abordando os sentimentos e percepções acerca de suas inserções no Programa. Os dados foram tratados através da freqüência de respostas, seguida da análise de conteúdo. Conclui-se que o significado da Residência centra-se na possibilidade de qualificação profissional e pessoal, pois o ganho da experiência técnica, institucional e relacional foi um tripé que influenciou na escolha deste caminho depois da graduação.

Palavras-chave: residentes; significados; saúde.


ABSTRACT

The objective is to understand the meanings attributed by recently admitted residents in the Multidisciplinary Residency, identifying gains and losses resulting from this integration, considering that the entry into a program of this order appears as a significant event, giving rise to new experiences. Participants were eight multidisciplinary residents of both sexes enrolled in the program, regardless of their academic background and area of expertise (Oncology and Health of the elderly) and who joined the program in 2011. As an instrument, was elected a questionnaire for a semi-structured interview, consisting of two parts: the first containing the socio-demographic data; the second, addressing the feelings and perceptions about their insertion in the program. The data were analyzed by frequency of responses, followed by content analysis. We conclude that the meaning of the residence focuses on the possibility of professional and personal qualification, since the gains in technical, institutional and relational expertise was a tripod that influenced the choice for this path after graduation.

Keywords: residents; meanings; health.


 

 

Introdução

Concebida como uma modalidade de formação profissional em nível de pós-graduação lato sensu, a Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) fundamenta-se na metodologia de ensino chamada "educação em serviço", caracterizada pela formação no próprio contexto de trabalho, pois se baseia na perspectiva de que a aprendizagem acontece no fazer da prática profissional.

ARMS encontra seu nascedouro no Movimento da Reforma Sanitária e na Consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Este movimento nasce em contraposição ao modelo médico hegemônico existente até então que, sustentado na concepção biologicista de doença e na negação dos determinantes sociais de saúde, pautava-se em uma abordagem reducionista do conhecimento, caracterizado como massificador, passivo e hospitalocêntrico, posto que visava a super especialização e a educação superior elitizada, baseada na subordinação do ensino à pesquisa, na mercantilização e na privatização da medicina.

Consta em Feuerwerker (1998) que, enquanto modalidade de formação, as residências em saúde existem no Brasil desde a década de 40. Na década posterior, houve um crescente aumento e a consolidação desta modalidade na área médica, instituindo-se como uma alternativa de pós-graduação restrita desse campo. Este fato contribuiu para a posse do termo "residência" por parte da medicina, salientando que embora várias profissões se utilizem dessa expressão para apontar o conjunto de saberes e poderes, há uma apropriação deste substantivo pela categoria médica, a partir do decreto 80.281/77 e da Lei 6.932/81, que define a Residência Médica como uma modalidade de ensino destinada a médicos.

Entretanto, com a implementação do SUS, surgiu em 1988 a necessidade de se atribuir importância ao ideal da integralidade da atenção. Nesse panorama, a saúde deixa de ser vista apenas como ausência de doença para ser concebida como decorrência das condições de vida e trabalho. Posteriormente, reafirmou-se a necessidade de consolidar o SUS, com todos os seus princípios e objetivos, atentando à importância da ação interdisciplinar no âmbito da saúde e o reconhecimento imprescindível das ações realizadas pelos diferentes profissionais de nível superior, marcando um avanço neste campo, especialmente com relação à hegemonia do modelo médicohegemônico existente até então. Como fruto deste contexto social e político, a RMS é regulamentada no ano de 2005 através da Lei nº 11. 129, sancionada pelo Presidente da República no dia 30 de Junho, o qual implantou, no âmbito do Ministério da Educação, a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (Ministério da Saúde, 2006).

No entanto, apesar da lei que ampara as RMS tenha surgido de modo a superar o paradigma de saúde dominante, Silva (2010) afirma que sua instituição não aconteceu sem resistência, pontuando que as reações contra as residências multiprofissionais aconteceram em meio a um receio do campo médico que a residência médica sofresse nova orientação (Silva, 2010, p. 55). Por outro lado, mesmo com as reações contrárias à RMS, em seu caráter político, esta emerge como produto de uma política empenhada em cumprir metas formuladas pela saúde coletiva no Brasil, agora, sob a ótica da atenção integral, biopsicossocial. Dessa maneira, ancorado na noção de integralidade, o SUS legitima não só as RMS, mas também os Programas de Residência em Área Profissional da Saúde, ambos caracterizados como modos de educação profissional de caráter multiprofissional e interdisciplinar, criadas com o intuito de evitar a fragmentação do conhecimento e do cuidado em saúde (Ceccim, 2005).

Nessa perspectiva, o Ministério da Saúde vem apoiando as Residências Multiprofissionais desde 2002, através do projeto de financiamento para impulsionar a implantação dos pólos de capacitação, formação e educação permanente de Recursos Humanos em saúde, o ReforSUS. Este, ao conferir caráter inovador aos Programas de Residência Multiprofissional, proporcionou a inclusão de catorze categorias profissionais da saúde, dentre as quais estão psicólogos, assistentes sociais, biólogos, biomédicos, profissionais de educação física, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, médicos veterinários, nutricionistas, odontólogos e terapeutas ocupacionais (Ministério da Saúde, 2006).

Esta modalidade de operar tem por finalidade a formação coletiva inserida no mesmo campo de trabalho, sem, contudo, deixar de priorizar e respeitar os núcleos específicos de saberes de cada profissão. Os profissionais procuram atuar nos três níveis de atenção à saúde, atentando não somente à recuperação e reabilitação do paciente, mas também à educação em saúde como forma de promoção e prevenção. Nesse sentido, as formações acadêmicas procuram se entrecruzar na assistência ao paciente e, partindo de um olhar biopsicossocial, promovem e programam ações de educação em saúde.

Em contrapartida, o ingresso em um curso desta natureza oportuniza mudanças marcantes na vida do residente, exigindo adaptação funcional a este momento singular. Para Souza (2008), toda mudança provoca uma perda a qual traz, invariavelmente, perdas secundárias, diante das quais é necessário viver o luto e elaborá-lo. Assim, o residente, ao adentrar no Programa para assumir uma oportunidade de aperfeiçoamento profissional, além de deixar a condição do ser estudante, vê-se diante de uma responsabilidade que, na maioria das vezes, não se coloca definida, pois, mesmo sendo um profissional formado, ainda se encontra sob observação e supervisão. Isso quer dizer que, na busca da produção de conhecimento e desenvolvimento profissional, vários aspectos podem atravessar o ser Residente, dentre os quais, destaca Bonet (1999), está a tensão estruturante que coloca esses indivíduos numa posição dividida entre o que devem saber e o que sentem ao fazer. "Saber e sentir" (Bonet, 1999, p. 125), para o referido autor, são fenômenos dessa tensão que os subsidiam e da qual padecem na direção tanto de uma produção de conhecimento como também no exercício da prática profissional. Diante disso e da existência de significativas modificações no cotidiano desses profissionais, faz-se necessário que possamos perguntar: qual o significado do ingresso na RMS? O que é ser residente?

Face ao exposto, este estudo visa compreender os significados atribuídos por profissionais recém-ingressos no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde, identificando os ganhos e perdas advindos desta inserção, considerando que a entrada em um Programa desta ordem, configura-se como um evento significativo, suscitando novas experiências.

 

Método

Participaram deste estudo oito residentes multiprofissionais, de ambos os sexos, regularmente matriculados no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde de um Hospital Universitário, independente de sua formação acadêmica e área de atuação (Oncologia ou Saúde do idoso) e que ingressaram no programa no ano 2011. Vale destacar que, quando da apresentação do Projeto ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da instituição, prevíamos a participação de 28 residentes (número total de ingressos em 2011), mas nem todos aceitaram participar do estudo, o que não o inviabilizou, visto que nosso interesse esteve voltado à singularidade de cada profissional.

Como critério de inclusão, consideramos o fator tempo de ingresso na RMS, estipulando que as entrevistas fossem realizadas em um prazo de no máximo cinco (5) meses depois da inserção do residente na instituição, justamente por conceber que o período proposto seja um momento de mudanças e instabilidade, atentando à recente entrada no programa e suas implicações. Com relação ao critério de exclusão, não participaram da pesquisa os residentes que, ao lerem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), não concordaram em participar do estudo.

Foi elaborado um roteiro de entrevista semi-estruturado constituído por duas partes: a primeira, contendo os dados sócio-demográficos dos sujeitos como idade, estado civil, filhos, naturalidade, Estado e município em que residiam antes do ingresso na RMS, entre outros; e a segunda, abordando os sentimentos e percepções acerca de suas inserções na RMS, seguidas do significado do ser residente e dos ganhos e perdas envolvidos no processo de inserção. Os dados quantitativos foram analisados por meio da frequência das respostas utilizando o programa Excel, enquanto os dados qualitativos foram submetidos à análise de conteúdo proposta por Bardin (1979/1995), sendo identificadas as unidades temáticas. O material resultante foi analisado em três fases distintas: (1) Pré-análise, na qual foi realizada a "leitura flutuante" do material num contato exaustivo com os dados, até atingir uma "impregnação" desse conteúdo; (2) Análise, onde os dados foram recortados e compilados de acordo com os conteúdos, a partir das unidades de significado (categorias e sub-categorias) definidos após a coleta dos dados; (3) Síntese, sendo realizado um retorno ao texto e efetivação das análises. No critério de categorização, destacou-se o critério semântico, classificados por temáticas, divididas em três (3), a saber: o significado da RMS, ganhos e perdas e ser residente.

Faz-se necessário salientar que este estudo foi elaborado conforme as normas vigentes na resolução 196 de outubro de 1996. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ensino e Pesquisa (CEP) da instituição onde foi desenvolvido (protocolo nº 1000/11), não apresentando, portanto, risco aos participantes, na medida em que foi realizado em local que segue rigidamente as normas do referido Comitê. O sigilo e a identidade dos participantes foram mantidos, assim como os dados demonstrados são aqueles que possuem vinculação direta à temática pesquisada. Ao respeitar o período-limite proposto para a realização desta pesquisa, a coleta de dados ocorreu no mês de junho, em uma sala reservada pela instituição.

 

Resultados e Discussão

Caracterizando esse grupo, observa-se que todos são adultos jovens, naturais do Estado onde cursam a RMS, solteiros e sem filhos. Considerando os residentes que possuem como município de origem regiões fora da capital, tem-se que, do total da amostra, estes são representados por 40%, sendo que 70% deles moram atualmente com sua família de origem e os outros 30% moram sozinhos. Com relação à graduação, 40% são graduados em enfermagem, 40% em psicologia, 10% em terapia ocupacional e 10% em fisioterapia. No que se refere ao tempo de graduação, verifica-se que 50% possuem de dois a três anos de formado, 30% menos de um ano, 10% de um a dois anos e 10% mais de um ano. Sobre a área de concentração, nota-se que 70% integram a equipe de Saúde do Idoso e 30% de Oncologia.

A RMS como oportunidade de qualificação profissional e pessoal

Ao serem questionados sobre o significado da RMS, os residentes refletiram sobre o modo como vêem, sentem e percebem a experiência de ingressar no Programa. Observou-se que 100% deles atribuem a ela uma oportunidade de aperfeiçoamento profissional, enquanto que 80% desse total apontaram a RMS também como um espaço de qualificação pessoal.

As expectativas nutridas com relação à RMS corroboram com o próprio objetivo desta modalidade de pós-graduação, a qual visa capacitar profissionais de saúde nas suas mais variadas áreas de saber a partir do diálogo constante entre a teoria e a prática. Verificamos que ao optar pela RMS e não por outra modalidade de especialização profissional, o residente pretende dar continuidade a sua trajetória por meio da "educação em serviço" que, ao se basear no "aprender fazendo e pensando sobre", esta modalidade de educação rompe com o automatismo da prática rotineira, oportunizando a introjeção de mecanismos subjetivos, os quais não estão nos livros, mas na própria experiência que, segundo Larossa (2002), trata-se de algo que nos passa, que nos acontece e que nos toca.

Atuar e ao mesmo tempo estudar, pesquisar e conhecer em conjunto com outros profissionais, sejam eles residentes, tutores ou preceptores, possibilita que o residente aprenda a manejar situações, desenvolvendo habilidades e competências necessárias ao exercício profissional, ao trabalho em equipe e desenvolvimento pessoal. Um dos entrevistados salienta: "É uma conquista poder participar da Residência Multiprofissional. Vejo-a como uma forma de enriquecimento pessoal, profissional, adquirindo mais experiência e sentindo-me mais segura em minhas habilidades, nos procedimentos e com as boas relações interpessoais com a equipe de enfermagem que trabalho, inclusive com a equipe da Residência".

A resposta desse participante, a qual vai ao encontro da maioria das respostas dos entrevistados (80%), reflete que a busca pela RMS não se justifica apenas pela qualificação profissional, mas também pessoal, na medida em que se inserir em uma equipe multiprofissional coloca o residente diante de limitações teóricas, técnicas e relacionais. Enxergar e perceber que precisa do outro profissional para fazer um bom trabalho exige do residente determinadas habilidades sociais as quais só se pode adquirir em um mundo de relações e através do compartilhamento.

É necessário salientar que a expressão "interdisciplinar", mesmo marcando sua diferença com relação ao termo "multidisciplinar" (prefixo presente na palavra "multiprofissional") impõe, no ideal da RMS, um modelo a ser seguido. O termo "interdisciplinaridade" é definido como:

Ações conjuntas, integradas e inter-relacionadas, de profissionais de diferentes procedências quanto à área básica do conhecimento. Implica a tomada de decisão acerca das condutas profissionais, levando em conta os aspectos relativo às diversas disciplinas, vale dizer, as diversas dimensões da vida humana, de seu estudo e da intervenção profissional (Zannon, 1993, p.16).

Seguindo a prerrogativa do autor e por meio de relatos de experiências sobre as RMS pelo Brasil, podemos considerar que, embora o trabalho interdisciplinar seja uma práxis em desenvolvimento, oposta à fragmentação entre os profissionais de diversos campos de conhecimento, há uma atitude interdisciplinar por parte dos profissionais residentes, no sentido de criar alternativas para atuar no inter, isto é, entre uma profissão e outra.

Através de um documento criado pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, intitulado "Residência Multiprofissional em Saúde: experiências, avanços e desafios", são identificadas diretrizes em favor de uma prática interdisciplinar a partir do relato de 22 programas de Residência Multiprofissional em Saúde em diversos Estados do Brasil (Ministério da Saúde, 2006). Sob outra perspectiva, não podemos esquecer que a RMS, ainda nova no Brasil, coloca-se como um desafio, visto que seu caráter "multi" impõe-se na nova rede de ensino como uma proposta que não está dada, mas sim construída e constituída pela experiência.

Para outro participante, a RMS também significa investimento de energia em direção ao profissionalismo: "Investimento de energia (inclusive as reservas) em algo que pessoas leigas no assunto igualam como mordomia (receber para estudar). Não, Residência Multiprofissional é estudo, como também exercício de profissionalismo e excelente oportunidade para se desenvolver, aprendendo sobre si mesmo (seus potenciais e desprazeres) e sobre o outro (atuação profissional e administração de conflitos)". Nas suas palavras, a RMS seria aquilo que possibilita um aprendizado a respeito do outro. Existe um esforço de trabalho interdisciplinar, o que segundo Iamamoto (2002), não reduz as competências e habilidades específicas de cada profissão, exigindo, ao contrário, maior delicadeza em seu trato.

Isto posto, pontuamos que a RMS, mais do que qualificar tecnicamente os profissionais de saúde, forma profissionais capazes de pensar criticamente na sua práxis, por meio não somente dos livros e da teoria, como também através do desenvolvimento de habilidades pessoais no intuito de reconhecer e solucionar problemas que, por ventura, surjam no processo do pensar e fazer.

Ganhos e perdas: ganha-se experiência técnica e pessoal, perde-se qualidade de vida

No que tange aos ganhos e perdas vivenciados quando do ingresso na RMS, foi observado que 100% dessa amostra faz referência a ambos, assim como às mudanças no cotidiano de vida. Em primeiro lugar, é mister salientar que toda escolha implica estresse, perdas e ganhos. Decidir por um caminho profissional gera automaticamente uma situação de conflito, o que envolve ansiedade, medo, angústia, dentre outros sentimentos. Não se pode esquecer que os participantes, uma vez na idade jovem adulta (20 aos 35 anos), segundo Erikson (1968/1972), também se encontram em um período de transição: deixam de ser estudantes para serem profissionais, com maiores responsabilidades pessoais e sociais. Esta transição leva o sujeito a vivenciar . inerentemente um processo de luto, o qual se constitui de maneira particular, uma vez que é influenciado por vários fatores, especialmente sociais, psicológicos e culturais. Sobre o luto, ressalta-se: "Trata-se de um processo por ser uma experiência que não se coloca estaticamente em dado momento da vida (...) é um processo particular" (Franco, 2008, p. 398).

É possível identificar que cada residente, à sua maneira, ainda que com alguma semelhança por compartilhar a mesma situação, vivencia o processo de luto à medida que experiencia a perda daquilo que lhe era mais prazeroso ou daquilo com que tinha mais contato. Segundo Corrêa (2009, p. 25) "o ato de realizar uma atividade pode promover mudanças de atitudes, pensamentos e até sentimentos", demandando do indivíduo que troca de atividade ocupacional certo trabalho de elaboração psíquica, onde ele deverá re(significar) sua nova posição social e subjetiva, ajustando-se a ela.

Paralelamente, do mesmo modo em que a atividade humana organiza a vida do indivíduo, a mudança de ocupação exige uma reorganização concreta e subjetiva. Enquanto um participante relaciona as perdas em decorrência de seu ingresso na residência às "horas de sono, saídas noturnas nos dias da semana, energia para estudar, férias em julho, programas diurnos", outro cita, entre as perdas, o "desgaste diário e o contato frequente com a família". Assim, é perceptível um gasto de energia considerável para reorganizar o aspecto ocupacional, objetivo e subjetivo, o que nos conduz a afirmar que o ingresso na RMS também provoca perdas secundárias.

Sob outro olhar, os ganhos atribuídos pelos participantes apontam para uma preocupação típica desta fase de desenvolvimento jovem-adulta: a colocação profissional. Para um participante, os ganhos se vinculam à "evolução profissional e aumento de poder aquisitivo". Ascender a uma nova posição e reconhecimento social por meio da qualificação e experiência técnica e pessoal: essa é a motivação mais marcante da amostra estudada no que se refere aos ganhos recebidos a partir do ingresso na RMS.

Ser residente é desenvolver-se pessoalmente

No que concerne à questão levantada sobre "o que é ser residente", verificamos que o aspecto marcante entre os entrevistados girou em torno do desenvolvimento pessoal, elemento apontado em 100% das respostas, as quais se destacam: residente é ser "paciente e vencedor"; "evoluir do lado de quem sofre"; "trabalhar, aprender e pesquisar, tudo em 24 horas"; "privar-se de muitas coisas", "gostar do que faz"; "ter uma grande recompensa, que é um sorriso, um abraço de um paciente ou familiar"; "ser responsável, paciente, disponível, ter sede de conhecimento".

Sugere-se que tais respostas denotam não só o que se espera do residente, mas também como ele é percebido. Novamente, observamos a importância de se considerar os fatores de desenvolvimento pessoal que a experiência de ingressar na RMS ocasiona. As características demonstradas pelos residentes refletem de alguma forma o que o mercado de trabalho – mais especificamente, o SUS – exige do profissional de saúde. Dito de outro modo, exige-se um profissional modelo ou, como nos diz De Campos citado por Dallegrave (2008), verdadeiros Role-models. O autor aponta este termo a fim de assinalar o contexto das Residências em Medicina Preventiva e Social e, ao tocar na RMS, afirma que esta terá como responsabilidade formar profissionais de ponta, que exerçam o papel de Role-models. Esta expressão, a qual traduzida para o português significa "modelo-exemplar", sinaliza a idéia de que o residente deve ser "padrão", tendo em vista ter que agregar várias destas características apresentadas pelos participantes ou, como expressa na resposta de um dos participantes: "trabalhar, aprender, ensinar, pesquisar, tudo em 24 horas" e, ainda assim, "ser resiliente", o que, conforme Souza (2006) significa ser um indivíduo capaz de se regenerar, de se adaptar às situações novas.

De acordo com Souza (2006), o termo "resiliência" é originário da física e foi incorporado ao campo das ciências da saúde para designar uma qualidade do ser humano, sendo definida como "a capacidade de regeneração, adaptação e flexibilidade, qualidades estas atribuídas a pessoas que conseguiam se recuperar de doenças, e outras situações traumáticas, abruptas ou duradouras" (Souza, 2006, p. 21). Ora, se o residente deve ser resiliente, isso nos leva a considerar a RMS uma etapa significativa no ciclo de vida, exigindo adaptações, pois mesmo que tenha sido uma escolha, o ingresso no Programa, como vimos anteriormente, envolve perdas e, por conseguinte, convoca o sujeito a se readaptar e a (re)significar sua nova condição: a de ser residente. Contudo, como padronizar características pessoais em um Programa de Residência que é Multiprofissional? Não teria cada profissão estilos peculiares?

Para Ceccim (2005, p. 3) -, "a residência multiprofissional e não apenas médica (...) não anula os saberes da profissão médica ou das demais profissões, antes os reconhece em unidade para a qualificação das práticas e extensão de saberes". Nesse sentido, observamos a existência de um perfil único, padrão e exemplar no tocante à qualificação como um todo. Porém, concomitantemente, notamos características singulares no modo do "ser residente", as quais variam conforme a escolha profissional. Identificamos, por exemplo, a emergência de um perfil que leve em consideração o lado humanoafetivo na fala de um residente em oncologia. Para este, ser residente é "embarcar numa jornada de vida e de morte, evoluindo ao lado de quem sofre, evoluindo ao lado de quem sofre as mesmas agruras". Figueiredo e Bifulco (2008) discutem essa questão ao ressaltarem a dimensão do cuidar e das atitudes humanas na assistência ao paciente oncológico ao afirmarem:

A dimensão do cuidado com o paciente oncológico caracterizase pela preponderância do cuidar sobre o curar; exige atitudes humanas, não apenas analíticas, compreensíveis e essencialmente científicas; ver não somente a doença, mas o que existe de sadio no paciente (Figueiredo & Bifulco, 2008, p. 373).

Identificamos, por parte de outro residente entrevistado, a importância atribuída às atitudes humanas e à experiência pessoal, quando afirma que, para ele, ser residente é "ter uma grande recompensa, que é um sorriso, ou um abraço de um paciente ou familiar". Verifica-se que vinculado ao "Ser Residente" existe uma vivência importante de se considerar, pois envolve a forma como elas são experienciadas na teoria e na prática (Barros, 2010). Isto nos leva a pensar que mais do que a técnica a ser aplicada no paciente, o que reflete ser residente para este profissional é o momento exato do vivido por ele expressado. Assim, considerando as palavras de Barros (2010, p. 24): "A formação de um profissional de saúde não se esgota no mero aprendizado de competências e habilidades de ordem técnica, mas inclui também o manejo de situações de ordem intersubjetiva".

 

Considerações Finais

Através da pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva com os residentes recém-ingressos na RMS, verificamos que o significado desta para os participantes centra-se na possibilidade de qualificação não somente profissional, mas também pessoal.

O ganho da experiência técnica, institucional e relacional foi um tripé que influenciou consideravelmente a escolha deste caminho depois da graduação, a considerar que a RMS, ao englobar atividades teóricas e práticas, oportunizam um aprendizado significativo, isto é, uma aprendizagem que é construída em uma relação seja ela preceptor-residente, tutor-residente, residente-paciente, residente-residentes. Não à toa podemos dizer que o método norteador da RMS, a "Educação em Serviço", pauta-se justamente nessa perspectiva: a de aprender fazendo e sentindo. Mesmo sendo supervisionado, o aprendiz-residente desenrola-se como o personagem principal no processo de aprendizagem, ele é ativo e não passivo, ao contrário do que acontece na denominada "educação bancária" (Fonseca, 1995).

De posse disso, vemos que a opção pela residência representa a oportunidade de exercitar os passos da construção de um conhecimento baseado no sentir, no perceber, no compreender, no definir, no argumentar, no discutir e no transformar (Fonseca, 1995), por meio de uma relação e que por isso envolve sempre mais de um. Para Ausubel (1982), a aprendizagem significativa depende da disposição do aluno em buscar o conhecimento, predispondo-se a sentir a experiência, produzindo um argumento crítico e estando disposto a desconstruir o instituído.

A guisa de conclusão, considerando a expressão "residente" como aquele que ingressa e cursa num Programa de Residência, assinalamos a literalidade deste termo, posto que ser residente indica o fato de residir em um lugar não só de construção de conhecimento técnico-profissional, como também de vivência e de trabalho junto a outros profissionais, de aprender com os próprios pacientes e, em um movimento de introspecção, consigo mesmo. É possível dizer que o aprendizado do residente, entre ganhos e perdas, é também um aprendizado para a vida. Ser residente é estar em desenvolvimento.

 

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1 Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará. Especialização (residência multiprofissional em saúde (oncologia). Atualmente, doutoranda do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: jamile.luz.morais@gmail.com
2 Professora Adjunta da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Pará. Psicóloga pela Universidade Federal do Pará. E-mail: airlemiranda@gmail.com

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