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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021

 

ARTIGO

 

O coronavírus como analisador das práticas de poder na atualidade

 

The coronavirus as an analyst of practices of power today

 

El coronavírus como analisador de las prácticas de poder en la actualidad

 

 

Guilherme Augusto Souza PradoI; José Sterza JustoII

IProfessor Adjunto no curso de Psicologia Professor Colaborador do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, (UFDPar - PI) Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) / guispra@gmail.com
IILivre-Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP-Campus de Assis) / sterzajusto@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A pandemia de Covid-19 revolve e faz emergir diversos problemas novos e antigos transformando-se num potente analisador da atualidade. O presente ensaio aborda as estratégias de exercício do poder sobre a vida e a morte mobilizadas pelas ações de enfrentamento da crise sanitária e seus desdobramentos políticos que pautam os vários modos de gestão da sociedade. Nosso objetivo é problematizar a situação atual usando dados epidemiológicos e estatísticas estatais e de organizações internacionais, notícias da grande imprensa, colocando em cena medidas de governos, ações e políticas públicas adotadas no período de pandemia no Brasil, contrastando-o com o cenário internacional. Como resultados de uma abordagem crítica pelo prisma da genealogia dos poderes e da esquizoanálise acerca da constituição ético-política das práticas de saber-poder, expomos seus efeitos disciplinares, biopolíticos e necropolíticos em suas relações com o autoritarismo brasileiro.

Palavras-chave: Bionecropolítica; Genealogia do poder; Coronavírus; Política; Brasil.


ABSTRACT

The Covid-19 pandemic raises several new and old problems, transforming itself into a powerful analyzer of our present time. This essay addresses the different strategies of power over life and death mobilized by actions to face the health crisis and its unfolding in politics and different manners to manage the society. Our objective is to problematize the current situation using epidemiological data and statistics from state and international organizations and news from the mainstream media to look over government measures, public actions adopted during the pandemic period in Brazil and in the international scenario. As results of a critical approach that uses genealogy of power and schizoanalysis to focus the ethical-political constitution of knowledge-power practices, we expose its disciplinary, biopolitical and necropolitical effects in its relations with Brazilian authoritarianism.

Keywords: Biopolitics and necropolitics; Genealogy of power; Coronavirus; Policy; Brazil.


RESUMEN

La pandemia de Covid-19 plantea varios problemas nuevos o no, transformándose en un poderoso analizador de la actualidad. Este ensayo aborda las diferentes estrategias de poder sobre la vida y la muerte movilizadas por el enfrentamiento de la crisis sanitaria y sus desarrollos políticos que guían los modos de gestión de la sociedad. Nuestro objetivo es problematizar la situación actual utilizando datos y estadísticas epidemiológicas de organizaciones estatales e internacionales y noticias evidenciando las medidas gubernamentales, acciones y políticas públicas adoptadas durante la pandemia en Brasil y en el mundo. Como resultado de una análisis genealogíca y esquizoanálitica sobre la constitución ético-política de las prácticas de conocimiento-poder, exponemos sus efectos disciplinarios, biopolíticos y necropolíticos en sus relaciones con el autoritarismo brasileño.

Palabras clave: Biopolítica y necropolítica; Genealogía del poder; Coronavirus; Política; Brasil.


 

 

Introdução

Como a Covid-19, uma doença causada por um vírus, pode provocar tamanha desordem e instabilidade? Como interfere na economia, na política, nas relações sociais e nos modos de subjetivação em escala mundial, transformando-se num potente e fecundo analisador das relações entre poder, política e constituição de verdades no contemporâneo?

Dentre tantas questões que a pandemia de coronavírus levanta, destacamos certas estratégias de poder e políticas de gestão da vida e produção de realidade ativadas para enfrentamento da crise e suas repercussões. As estratégias, às vezes conflitantes, decorrem de jogos de poder ainda mais acirrados no conjunto da sociedade quando certa normalidade, estabelecida pela acomodação das relações entre forças concorrentes, é desestabilizada e a disputa entre elas se intensifica.

A pandemia do coronavírus desestabiliza, ainda que momentaneamente, o funcionamento da economia e da política, ao colapsar os sistemas de saúde, desordenando as relações e as organizações internacionais, despertando novos tipos de confrontos ao revirar o cotidiano dos relacionamentos sociais e afetivos e dos modos e estilos de vida. Com isso, ela acaba por atingir as relações de poder e saber na legitimação das ações de enfrentamento da pandemia em questão. Resta saber até que ponto tais reviravoltas e medidas excepcionais adotadas vão prevalecer no embate político e quais, passada a crise, poderão se instituir como paradigma de uma outra sociedade que poderá se delinear, seja engendrando diferenciações ou cristalizando ainda mais esquemas anteriores à pandemia.

Como têm funcionado algumas das estratégias políticas de poder-saber centrais acionadas no enfrentamento à Covid-19? Quais ações e racionalidades acabam operando e quais seus efeitos na ordem do dia no Brasil? Partindo dessas indagações, temos como objetivo refletir sobre algumas das especificidades dos modos de enfrentamento ao coronavírus, das estratégias de poder colocadas em causa com eles e de suas consequências para os modos de organização do diagrama de poder e político do contemporâneo, especialmente no Brasil.

 

Sobre o Método

Para tentar delinear os modos de combate à Covid-19 que estão se despontando no Brasil e em outros países e percorrer suas relações com diferentes estratégias de poder recorremos a dados epidemiológicos e estatísticas divulgados por órgãos do governo federal e estaduais, organizações internacionais, notícias divulgadas pela grande imprensa, produções acadêmicas feitas no calor do momento, medidas de governo e políticas públicas adotadas durante a pandemia em curso. Tais informações foram selecionadas de acordo com o foco da pesquisa e analisadas a partir da literatura crítica de matriz foucaultiana e esquizoanalítica acerca da constituição ético-política das práticas de saber-poder e dos processos de subjetivação.

Dessa forma, metodologicamente, o presente artigo constitui um ensaio, uma forma de produção de conhecimento relativamente antiga, bastante usada nas ciências sociais e na filosofia, muito útil especialmente quando se trata de focalizar fenômenos ou acontecimentos emergentes e atuais (Meneghetti, 2011). O ensaio tem cunho reflexivo e interpretativo e procedimentos flexíveis, do ponto de vista formal, sobretudo quanto ao seu corpus, caracteristicamente constituído por uma variedade e multiplicidade de fontes selecionadas por conveniência e pertinência com o tema e a abordagem que fazemos da pandemia de Covid-19.

 

Saber-poder e o problema da gestão da multiplicidade da vida em tempos de Pandemia

Pretendendo lançar um olhar crítico às estratégias e jogos de saber-poder que se atualizam no contexto desta pandemia sob o aspecto de gestão das vidas e do morrer, levantamos pontos cruciais que reverberam em interferências e atravessamentos para os modos de exercício de poder contemporâneos e as diversas políticas de produção de realidade.

Para tanto, recorremos às noções de soberania, disciplina, biopolítica e necropolítica a fim de caracterizar as formas de organização da multiplicidade das relações políticas numa sociedade. Elas se sobrepõem em seus distintos modos de estabelecer pontos de implantação de coordenadas e trajetórias laterais, hierárquicas ou piramidais. No esquema da soberania, o poder emana radialmente de um ponto único superior encarnado no déspota, para combater o mal que simboliza a desordem e a instabilidade. Ela é paradigmaticamente ilustrada no modelo da lepra de separação radical através da exclusão do outro (Foucault, 2008).

Gilles Deleuze e Félix Guattari (2011) ressaltam, por sua vez, que as formações despóticas têm como objeto um território, sobre o qual se institui a sociedade, que tende a se confundir com o próprio déspota, fazendo dele o elo direto entre Deus e o povo e a encarnação do Estado-nação e daquilo que lhe diz respeito. Tal formação político-social paranoica é alimentada pela representação negativa do outro, uma vez que opera primordialmente por filiação direta - como o déspota e seus burocratas ou o messias e seus filhos e discípulos - marcando divisões estritas e rigorosas entre dentro e fora. Posto isto, hoje, à despeito das evidências que atentam contra toda forma de divisão estrita entre virulentos culpados e possíveis vítimas inocentes, ou entre infectados e virtuais curados, observamos uma retomada das formas de exercício de poder soberano, quando o consideramos como política de conhecer e fazer o real.

O princípio político da soberania faz com que os diversos operadores do Estado operem sob a prerrogativa de um "modelo de unidade política, um princípio de organização racional, a personificação da ideia universal e um símbolo de moralidade" (Mbembe, 2018, p. 36). O que propicia com que ontem e hoje a paranoia soberana se dedique aos melindres de fabulação do mesmo e do outro, base de seus negacionismos (Mbembe, 2017). Tal reatividade paranoica a toda sorte de oposição ou abalo do status quo é também apontada por Bucci (2015) como uma característica da ditadura civil-militar brasileira - a qual responde por um curioso paralelo de dissimulação de uma situação epidêmica de meningite nos anos 1970.

Na história brasileira das epidemias é fato corrente a negação do fato ou da sua gravidade por parte das autoridades do Estado soberano. No caso da febre amarela em meados do século XIX, houve uma lacuna de quatro meses entre a notificação da chegada de um navio com pessoas padecendo de febre perniciosa até as medidas apressadas de quarentena na capital do império, o Rio de Janeiro (Chalhoub, 2017). Entretanto, ressaltemos que as duas linhas do raciocínio epidemiológico da época eram insuficientes. A teoria do contágio funcionava para a varíola, cujo contágio se dá diretamente desde uma pessoa infectada. Por outro lado, a matriz dos miasmas até admitia uma correlação entre a ocorrência de chuvas e o adoecimento, mas não conseguia estabelecer um nexo causal necessário para subsidiar uma intervenção pública, não sendo capaz de identificar os mecanismos de transmissão patogênica, ou sequer se ela estava relacionada à formação de poças, à poeira levantada pela chuva, aos maus ares ou aos mosquitos. Com isso, tínhamos uma lacuna na qual a separação estrita do outro, tido como negativo, estrangeiro ou doente, seja pelo menos colocada entre parênteses, uma vez que não há como isolar-se das chuvas ou do ar.

No contexto do coronavírus, entretanto, há um borrão de fronteiras entre pessoas transmissoras, em risco e imunes. Passados mais de três meses após a declaração da situação de pandemia mundial em março de 2020, Fernando Reinach (2020) compila uma série de dados importantes para o enfrentamento da pandemia, como a fração de 20% dos infectados que precisam do hospital, sendo que destes 6% precisam de assistência intensivista, 2-3% são entubadas e a taxa padrão de 1% que acaba morrendo. Aos poucos, os profissionais estão sabendo melhor como lidar com as diferentes manifestações da doença e que tipo de procedimento usar. Entretanto, não sabemos com exatidão quantas e quais são as pessoas infectadas e assintomáticas (que contabilizam 40% dos infectados) que podem transmitir o vírus e se as pessoas que se curaram estão imunizadas para ao resto da vida. Mas sabemos que os sintomas começam a se manifestar quando a carga viral está elevada, porém, o pico da transmissão ocorre na véspera ou mesmo dois ou três dias antes da manifestação dos sintomas (He et al., 2020). Além disso, temos indícios que a alta exposição e a carga viral interferem na manifestação da doença, pois profissionais de saúde que foram contaminados em contato direto com doentes de Covid-19 apresentam sintomas mais graves que a população geral. O agravamento é devido às condições de trabalho e a agudeza da situação ou à alta carga viral a que estão expostos? É provável que ambos. Pois ainda não se sabe se a carga viral aumenta a capacidade de transmissão viral e a gravidade do adoecimento. Por outro prisma, no plano geopolítico, as tentativas de fechamento de fronteiras de países ou regiões falharam copiosamente ao redor do mundo.

Entretanto, se as ações de administração do espaço social do contato através de exclusão fracassaram, a política administrativa da multiplicidade e da diferença - enquanto forma de forjar efeitos de sentido e verdade - ainda ganha fôlego nas formas simbólicas da exclusão do outro e do estrangeiro, fundadas em concepções do mal que exploram as paranoias de defesa contra o outro, reconhecido como signo de ameaça e perigo. No final de janeiro, na Itália, um dos primeiros países a cancelar os voos da China - e que se tornou um dos epicentros mundiais da pandemia -, o conservatório de Santa Cecília em Roma suspendeu estudantes orientais das aulas, mesmo aqueles que nunca haviam pisado na Ásia (G1, 2020). Seguindo a linha de exclusão simbólico-política do outro, o presidente dos EUA, Donald Trump, insiste em chamar o novo coronavírus de "vírus chinês" (Estadão, 2020) em sua missão de culpar a OMS pela situação mundial, fazendo autopropaganda da sua nada eficaz medida de impedir os voos da China (BBC, 2020a; Veja, 2020) e reagindo com represálias à entidade global ao passo em que se vitimiza paranoicamente afirmando que a China faz de tudo contra sua reeleição.

Seguindo a política paranoica de separação estrita entre dentro e fora, durante a pandemia, as deportações de imigrantes não pararam nos EUA. Elas se somam à empreitada eleitoreira de Trump de invenção do outro latino que se opõe ao American citzen. Com isso, o presidente estadunidense suspendeu temporariamente a entrada e a permanência de estrangeiros familiares de cidadãos ou residentes permanentes nos Estados Unidos e interrompeu o processamento das autorizações de residência permanente. Segundo sua polícia migratória, tais medidas impedem que de 114 mil a 660 mil pessoas entrem no mercado de trabalho dos EUA, preocupação da base eleitoral de Trump (Sanches, 2020).

Triste e preocupante paranoia de uma potência amedrontada pelo fantasma de seu declínio e perda do seu mando no mundo, que busca dissimular o enfraquecimento de sua soberania com espetáculos xenofóbicos de perseguição, prisão e deportação de fragilizados imigrantes. Soberania xenófoba que ganha eco em países menos destacados na geopolítica internacional. A Hungria, se antecipando à crise sanitária causada pelo coronavírus, permite ao ultradireitista xenófobo Orbán governar por decreto ao ampliar indefinidamente o estado de alarme nacional. Logo, o chefe do executivo húngaro se apressa em reiterar um discurso de campanha, que a pior ameaça do mundo ocidental civilizado - ao qual pertence seu país do leste europeu - é, segundo seus próprios termos, a "onda planejada de massas migratórias de invasores ​​do Oriente Médio e a África" (DefesaTV, 2020). Na Itália, o ultraconservador Salvini aproveita a situação pandêmica para reiterar a paranoia xenófoba contra africanos, disseminando medo contra imigrantes que aportaram de navio ao sul do país, embora todos tivessem testado negativo antes mesmo de serem submetidos à quarentena (Verdú, 2020).

As estratégias despóticas da soberania dependem da representação negativa do outro, criado projetivamente como encarnação do mal a fim de preservar a representação de si mesmo como encarnação do bem e fonte da verdade (Deleuze & Guattari, 2011). Logo, a certeza do déspota de que fala pelo povo, sua convicção de que encarna a representação da vontade do povo e que Deus fala através dele e de suas ações tem suas raízes na fabulação projetiva do outro como mal que deve ser identificado, isolado, combatido e destruído. Do outro lado desta sobrecodificação (atribuição imposta desde um plano supostamente superior), temos o polo positivado dos chamados cidadãos de bem. Assim, a operação despótica de fustigar e manipular processos psicológicos paranoides implica na invenção da realidade dicotômica do bem e do mal, colocando-as a serviço da manutenção do status quo, conveniente à acomodação de seu regime de poder e soberania.

No Brasil, parece que o nepotismo é a muleta desse tipo de despotismo, sonho inconfessável do governante de tendências autoritárias, que se crê a encarnação da vontade do povo, do messianismo divino e do seu próprio arbítrio imposto como força de lei, como se a constituição fosse a encarnação de sua vontade soberana (Carvalho, 2020). Seu desvario paranoico se alimenta do imaginário salvacionista, que o alça ao posto de vítima de um sistema e, em último caso, de uma sociedade vista degradada, e se associa ao seu torpor de ódio contra a vida e o que é livre, reforçando práticas de racismo e segregação. A despeito de seu familismo obsceno, culpa o outro (qualquer um que se diferencie de sua figura tosca) pela infração e pela corrupção, numa estratégia contagiante de adoecimento indissociável de uma bizarra "estrutura permissiva: que eu possa enganar, roubar, degolar, matar! mas em nome da ordem social, e que papai-mamãe se orgulhem de mim" (Deleuze & Guattari, 2011, p. 357).

Do outro lado das Américas, Trump nos mostra uma mescla peculiar de soberania com disciplina em dois regimes de medo atualizados na agonia neoliberal (Massumi, 2020). Um, projetivo-agressivo, que opera com a sobrecodificação do vírus personificado como vírus chinês que ataca a unidade dos EUA, que precisa ser defendido. Raciocínio eminentemente paranoico que se atrela à racionalidade do regime imunitário-defensivo que atua na individualização extrema do "faça o melhor que puder ou cumpra sua parte", mesmo que ela seja... morrer; como veremos adiante. Neste caso, a imunização que daria salvaguarda e garantiria a manutenção da ordem e do posto do país se opõe à saúde das pessoas.

Questão em que a biopolítica se articula com a soberania política e a disciplina dos corpos individuais - afinal o que se busca? Uma normalidade referente à situação (de soberania) político-econômica do país ou uma normalização da situação de saúde dos seus cidadãos, que só pode ser efetivada através de mecanismos disciplinares de controle espaço-temporal dos corpos individuais?

Em contraposição a tal clamor por uma idealizada normalidade, as medidas disciplinares adotadas pelo governo chinês, como o confinamento obrigatório drástico, foram elogiadas por autoridades e relatórios da OMS, que chegam a sugerir que o país serve de referência mundial para o contingenciamento do coronavírus. Mesma posição adotada acerca das medidas draconianas tomadas na Coreia do Sul, elogiadas nestes termos pelo chefe do Programa de Emergências de Saúde da OMS, como decisões táticas e precisas, interferindo no âmbito da liberdade de movimento e de quarentena forçada (Alessi, 2020). Além disso, a Coreia adotou uma política de diagnósticos massivo e aleatório, a fim de testar e conhecer o status sorológico do maior número possível de pessoas. O que só foi possível com uma mobilização da biopolítica estatal que fez com que empresas locais convertessem sua planta produtiva para garantir os kits de diagnóstico, produzindo cerca de 100.000 unidades por dia.

Na geopolítica da Covid-19, temos situações realmente incomuns e outras nem tanto, mas cujo movimento desacomoda os jogos de poder hegemonicamente instituídos. Um estudo de projeção da London School of Hygiene and Tropical Medicine dá indícios que confirmam que países mais ricos, com população mais envelhecida, serão mais afetados que os países pobres com população comparativamente mais jovem (Davies et al., 2020).

Concomitantemente, vemos líderes de países com tendências autocráticas ou democracias fragilizadas se valendo da pandemia como prerrogativa para fragilizar as instituições democráticas a fim de alimentar sua paranoia despótica soberana e recrudescer a censura e a eventual caça àqueles que entende como inimigos - estrangeiros ou a oposição.

Entre uma e outra questão de desarranjo e reacomodação de soberania, observamos que algumas técnicas disciplinares encontram respaldo, reforço ou mesmo viabilidade em articulação a estratégias biopolíticas e de controle remoto. A vigilância total e quase sem restrições justificada no temor ao vírus é potencialmente muito perigosa para as democracias. Combinada ao uso massivo dos dispositivos de tecnologia móvel, que foram utilizados em massa pelos governos chinês e coreano para traçar os movimentos dos infectados e seus familiares, elas alcançam patamares que desconhecemos os limites. A Covid-19 pode estar sendo utilizada como cortina de fumaça para flexibilizar o acesso a dados remotos na internet e dispositivos eletrônicos assim como aconteceu com a ameaça de terrorismo pós setembro de 2001 (Costa, 2004). Em países com valores democráticos razoavelmente consolidados, da Itália, Espanha e Inglaterra ao Canadá, independentemente da orientação ideológica, diversos governos estão concentrando medidas de controle biopolítico mais apuradas de seus cidadãos.

Por um lado, a biopolítica opera (com seus saberes-poderes) em conjunção ao Estado municiando o fortalecimento de sua soberania ao gerir o corpo social da população como vida biológica no intuito de inventar um povo de acordo com a raça adequada para povoar o futuro da nação e dirigir os destinos da humanidade. Visão correlata à sua preocupação com a circulação e a imunização dessa massa populacional. Por outro, o problema da modulação e do aprofundamento da gestão de uma multiplicidade aberta em permanente movimento está na base dos dispositivos e das sociedades de segurança e sua preocupação com a produção de efeitos estatísticos sobre a população (Foucault, 2008).

Posto isto, é interessante notar que em tempos de coronavírus nos EUA, a maconha é considerada item essencial pelas autoridades de alguns municípios e estados sob a prerrogativa de ser um medicamento importante para parte da população (Lewin, 2020). Entretanto, como não há distinção rigorosa para a compra e o consumo terapêutico ou recreativo, surge uma questão: a maconha funcionaria como paliativo para reforçar a quarentena e o distanciamento social, para reconfortar e anestesiar, deixando os quarentenados disciplinadamente dóceis em seu confinamento: confortably numb, confortavelmente entorpecido como a canção do Pink Floyd em um cenário distópico do tipo exposto por Aldous Huxley (1980) em Admirável mundo novo? Por um lado, há não só leniência, como certa ação programática, de incentivo ou pelo menos de reiteração do uso de substâncias psicoativas, por outro, há medidas proibicionistas até para o álcool, droga com grande apelo social e lobby empresarial. Biopolíticas em curto-circuito?

A coibição da venda de bebidas alcóolicas está mais relacionada ao seu caráter de sociabilidade - a justificativa é que pessoas estariam se aglomerando em torno do consumo de álcool (G1 Tocantins, 2020) - do que a uma preocupação explícita com os efeitos da bebida sobre as pessoas. Curioso em ambos os casos, teríamos razões de ordem biopolítica (os efeitos de remédio ou veneno sobre o corpo, biologicamente considerado) e disciplinares (relacionado a circulação dos corpos, como objetivo administrativo), mas as justificativas que vigoram são as dos efeitos terapêuticos da maconha e do apelo gregário do álcool. Com isto, vemos que não há curto-circuito, mas potencialização dos efeitos políticos sobre os corpos dos indivíduos e das populações na operacionalização e redistribuição sem constrangimentos de ações contraditórias em estratégias de dispositivos disciplinares e biopolíticas (Foucault, 2005).

Noutro âmbito, é incontestável o sucesso dos mecanismos de vigilância por reconhecimento facial, geolocalização dos aparelhos celulares e do cartão de crédito em países onde se considera bem-sucedido o contingenciamento - China e Coreia do Sul. A testagem em massa da população atrelada ao rastreamento e uso desses dados pessoais propicia uma expansão sem precedentes dos dispositivos biopolíticos e de controle, permitindo mapear o paradeiro de pessoas contaminadas, assim como alertar para potenciais contaminados se testarem e se isolarem. As tecnologias de contact tracing servem para identificar possíveis novos casos de infecção e traçar mapas de calor, heat zones que sinalizam áreas com grande número de infectados ou de aumento de novos casos. No Brasil, empresas analisam a geolocalização da população de maneira agregada e anônima gerando mapas de calor utéis para monitorar os percentuais de aderência ou flexibilização das medidas de isolamento e distanciamento sociais de quarentena (Schreiber, 2020).

O recém empossado governo da Eslováquia está rastreando os celulares dos infectados por Covid-19 colocados em quarentena, enquanto na Polônia, quem chega do exterior é que acaba monitorado através de aplicativo de celular em sua quarentena, algo parecido com os sinais verde, amarelo e vermelho do WeChat do governo chinês. Na Europa, estão buscando alternativas menos invasivas de monitoramento através dos celulares, por bluetooth, por exemplo. Mas na Bélgica, a lei de proteção contra ameaças à saúde pública e à vida permite às autoridades requererem conversas telefônicas dos infectados. O que vemos, afinal, são tecnologias, mecanismos e políticas de controle da vida penetrando o cotidiano atual altamente informatizado-comunicacional, como no rastreamento do movimento em marcha em lugares como Itália, Áustria e Bélgica (Sahuquillo, Blanco, & Liy, 2020).

Não obstante, em países com tendências autocráticas, a biopolítica tem a mesma direção de controle em defesa da vida biologicamente considerada e das condutas individuais. Na Rússia, além do escrutínio maciço, foram aprovadas medidas de defesa contra notícias falsas sobre o vírus, medidas adotadas também na Sérvia e na Turquia, e que serve como pretexto para uma caça às bruxas da oposição e o incremento da perseguição aos meios de comunicação independentes. De maneira mais evidente, como na Hungria, o partido de Netanyahu em Israel se vale da emergência sanitária para emperrar os processos democráticos e a atuação da oposição, maioria no parlamento. Quem vive sob jurisprudência israelense está sujeito à medida que dispensa ordem judicial ou supervisão prévia a vigilância dos celulares. Analogamente, no exercício do terrorismo de Estado que cerceia as possibilidades de frentes de oposição e os meios de comunicação independentes, a China censurou a mídia que teria alertado a população sobre a gravidade do coronavírus antes do governo assumi-la.

Entretanto, por vezes, soberania, interesses biopolíticos e os dispositivos de controle se sobrepõem. O que percebemos ao observar que, embora mantenham uma política geral de imigração tão paranoica quanto agressiva, os EUA continuam recebendo e concedendo vistos de trabalho para quem é chamado por alguma empresa e incentiva o ingresso de trabalhadores estrangeiros para sete áreas estratégicas de prioridade, tais como saúde e segurança (Sanches, 2020). Trabalhadores imigrantes são reconsiderados quando operam o ordenamento da multiplicidade da vida individual e coletiva, como são os casos da segurança e da saúde pois, de fato, as estratégias de poder têm sua coerência própria e se entrecruzam em suas formas de exercício de acordo com a conveniência da ocasião (Foucault, 2005).

 

O exercício do poder na gestão da morte

Mas não é apenas à produção de vida que servem às formas de exercício do poder e de controle, concomitante e sub-repticiamente, elas produzem morte, vidas matáveis. O ápice do próprio paradigma da biopolítica, para Foucault (2002), é o holocausto. Seguindo essa trilha, Mbembe (2018) toma o exercício do poder soberano de excluir e de fazer morrer, em sua sobreposição aos mecanismos biopolíticos, como chave para a efetivação da relação de inimizade (frente ao outro) e do estado de exceção (e a violação de direitos) que compõem o racismo de Estado. Este está na base dos processos de desumanização, dominação e justificação da morte do outro, instituído mediante a distinção da espécie humana em grupos, os orientais, latinos ou negros; a repartição de uma população em subgrupos, de pobres, marginais ou imigrantes e cidadãos de bem; e a declaração de um corte biológico entre velhos e jovens, entre (passiveis de serem) infectados e aqueles (que devem ser) imunizados.

A instituição do outro e do mesmo define quem deve viver e quem pode morrer no âmbito colonial e no seu desdobramento como biopolítica do racismo estatal. Destarte, tomando como paradigma das relações de poder sobre a vida e a morte, os processos de colonização e neocolonização baseados no extermínio das populações indígenas, no sequestro e escravização dos povos de Áfricas, na economia de plantation e na forma administrativa interna do império colonial transportada para a ordem democrática, Mbembe (2017) conceitua a necropolítica como forma de exercício do poder em contextos marcados pela colonialidade.

As tecnologias dessa forma de exercício do poder se acoplam ao esquema foucaultiano, constituindo um outro arranjo para os jogos de poder em termos de soberania-disciplina-biopolítica-necropolítica. Isto é, relendo o tema da soberania através da necropolítica, podemos ver que ela serve não apenas à autonomia da nação ou do sujeito, mas à ordem do espaço público como instrumentalização generalizada e produção de morte e de vidas matáveis. Assim, é significativo que no mesmo semestre em que fora formalizada a abolição da escravatura no Brasil, a câmara dos deputados pautasse a necessidade de medida que impusesse compulsoriamente o trabalho, aprovando a lei da vadiagem em um texto tão vago quanto urgente se tornou o imperativo de seu cumprimento policial (Chalhoub, 2017).

Recorrentemente, os campos da saúde e da segurança, mas não só eles, aparecem como operadores fundamentais do poder sobre a vida e a morte. Foucault (2008) problematiza a lógica policialesca disseminada entre diversos poder-saber e distintas práticas sociais para ordenar uma multiplicidade de pessoas, suas necessidades de vida e saúde na cidade, além de regulamentar sua atividade - problema da ociosidade e de pôr para trabalhar os pobres válidos que vemos atualizado nos clamores pela flexibilização do distanciamento social, pela reabertura do comércio e aos apelos contra a morte da economia (Carta Capital, 2020).

A despeito disso, o caráter paradigmático da institucionalização da força policial no Brasil indica que tais estratégias de poder operam pautando a verdade do sujeito e a organização das relações sociais não por uma suposta razão universal, mas pelo exercício do poder sobre a vida e a morte - ou seja, pela possibilidade de instituição do matável e daqueles dos quais se pode maltratar ou dispor de sua vida. Portanto, Mbembe (2017) entende que a administração necropolítica reorganiza uma política de fronteiras e, tal qual no front de guerra, os limites que fazem da política a continuação da guerra por outros meios são borrados e o dentro e o fora, o mesmo e o outro, se confundem. Com isto, populações que deveriam ser prioritariamente protegidas, dadas as suas condições vulneráveis de vida, são sujeitadas ao regime do matável.

Nos EUA, na esteira de Trump, políticos como o vice-governador do Texas, tenente Dan Patrick, pregam o sacrifício de uma população matável, pois o anunciado colapso da economia após três meses de quarentena é pior que a morte e, afinal de contas, o preço parece tão baixo (UOL, 2020). Os vulneráveis citados em seu surto de sincericídio são os idosos, mas não é difícil compreender quem está subentendido entre aqueles que compõem a massa de desalmados e desvalidos, pessoas não consideradas em seu caráter de humanidade e cidadania, as populações de imigrantes subalternos, pessoas com doenças crônicas e deficientes sem plano de saúde, cidadãos reduzidos a massa de manobra do capital, como sacrifício necessário em prol da ordem política. Isso porque nos EUA, a população negra - e a latina -, além de não ter plano de saúde, tem altas taxas de obesidade, diabetes, hipertensão e asma, fatores de risco para o agravamento dos quadros de Covid-19 (Corrêa, 2020).

As semelhanças com a eugenia não são fortuitas, uma vez que a bionecropolítica dá continuidade à guerra entre raças que está na base dos Estados modernos (Mbembe, 2018). O que fica evidente no caso de George Floyd em Minneapolis, homem negro de 46 anos que sofria de insuficiência cardíaca e perdeu o emprego de segurança em uma boate por causa da pandemia, assassinado durante repreensão policial após denúncia de ter tentado comprar cigarros com uma nota de vinte dólares falsificada. Raça, doença, desamparo e violência institucional em um caso emblemático de quem é alvo matável do bionecropolítica.

No enlace policial-sanitário brasileiro, devemos perguntar quem fica aquém das subnotificações. Quem não é notificado quando, após 50 dias de declarada pandemia mundial, um estudo do Imperial College já apontava o Brasil com a maior taxa de transmissão da Covid-19 do planeta. Situação que explode 40 dias mais tarde, quando o Brasil alcança o segundo lugar em mortes por Covid-19, acima das 40 mil mortes, discutindo e realizando a flexibilização da quarentena para retomada das atividades de contato social (BBC, 2020b). A taxa de transmissão do país indica que cada pessoa infectada - sem ou com sintomas, de intensidade variada - infecta outras 2,81 pessoas (Agrela, 2020). Em abril de 2020, a Alemanha, com taxa de transmissão 0,8, reabriu alguns setores, mas voltou ao isolamento após a taxa crescer rapidamente depois de uma semana de relaxamento no isolamento. A alta taxa de transmissibilidade do vírus corresponde proporcionalmente ao risco de colapso no sistema de saúde e medidas de flexibilização da quarentena são indicadas apenas para taxa de transmissão menor ou igual que 1, o que significa que cada pessoa infectada infecta mais uma pessoa e o efeito porta-giratória do sistema de saúde dá conta do fluxo. O problema é que uma ligeira variação na taxa, de 1 para 1,1, já pode colapsar um sistema de saúde como o alemão, por exemplo, que com a taxa em 1,1 colapsaria em outubro, e de 1,2 em julho já (G1, 2020).

As estatísticas de incidência e letalidade por conta do coronavírus do necroestado brasileiro estão entre as mais altas do mundo, mesmo com subnotificações. Apesar das tentativas do governo brasileiro de tentar escamotear o número de mortos pela Covid-19, dados indiretos não deixam dúvidas quanto ao impacto do coronavírus nos índices de mortalidade. Sinal disso é o aumento escandaloso no número de mortes por doenças respiratórias e de óbitos registrados em cartórios comparativamente com o mesmo período do ano passado. As mortes registradas como Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) aumentaram 1.012%, entre 16 de março e meados de abril, com 33 mil internações a mais em 2020 por doenças respiratórias no comparativo com o mesmo período de 2019. A SRAG é um quadro sintomatológico classificado por febre, tosse ou dor de garganta e dificuldade respiratória e não por uma causa específica. Entre 1º de março e 18 de abril o país registrou 5.239 óbitos classificados como SRAG enquanto a média para o mesmo período nos últimos cinco anos foi de 770, nem mesmo o ano de 2016, quando houve o segundo maior surto de H1N1, chega próximo aos dados de 2020. O nível seguro de SRAG é de 1 por 100.000 habitantes. Em 2016 chegamos a ter 1,5 e hoje, mais de 5 mortes por 100.000 habitantes (Fiocruz, 2020). Estados afinados com o governo federal registram baixos números de infecção e letalidade por Covid-19 até o mês de maio de 2020, porém, no Rio Grande do Sul as mortes registradas por SRAG cresceram 602%, de 37 para 260 em comparação ao mesmo período de 2019 e 605% em Santa Catarina, de 20 para 141 em 2020. No mesmo período, o Rio de Janeiro registra alta de 8.533% no número de mortes por causas indeterminadas (Lacerda, 2020).

Quem está morrendo por debaixo dos panos? Mortes não contabilizadas, mas que não deixam de ser necessárias para fazer girar a grande roda da história? Quem são os moradores de rua, os pobres das periferias, as empregadas domésticas (Jardim, 2020), os motoristas de aplicativos de delivery, os entregadores, empacotadores, presidiários e outros subcidadãos cuja vida matável integra o cenário dos apartheids urbanos das cidades brasileiras e são alvos prioritários do poder necropolítico na sua faceta mais cruel e fatal (Lima, 2017)?

Alguém sugeriu que era o momento de internar todos os crackeiros da crackolândia, pois eles seriam transmissores ambulantes do coronavírus (Universal, 2020). Mulheres, boa parte delas de baixa renda, estão sofrendo mais violência doméstica na quarentena e, embora o fato tenha sido recorrentemente alardeado (Mohan, 2020), não há ação, programa ou campanha coordenada por parte do poder público para a segurança delas. Um profissional de um albergue para desabrigados aconselhou um abrigado que vive com HIV a dormir nas ruas, porque no albergue, junto com 150 pessoas, ele estaria mais exposto ao coronavírus. Curioso, pois quem morre nas ruas não entra nas estatísticas de mortes por coronavírus. Nisso, talvez, os dados estejam corretos: o algoz dessas vidas matáveis é a necropolítica, tão presente e necessária ao capitalismo financeiro. Os cortes raciais, populacionais ou biológicos que instituem o outro matável e cuja vida é passível despojada são móveis e variados (Mbembe, 2017).

Seguindo esta esteira, ressoam uma série de perguntas sem resposta no imbróglio da pandemia de coronavírus no Brasil. Quem está morrendo pelo desmanche programado do vilipendiado Sistema Único de Saúde, cronicamente subfinanciado e implantado por seus adversários - como era o caso do Mandetta, ex-ministro que andava com o colete do SUS quando a crise da Covid-19 se agravou? Quem tem a infecção notificada ou morre ou tem seu mal-estar notado entre os bairros do Morumbi e de Paraisópolis em São Paulo? O bairro do Capão Redondo, na zona sul da cidade registra a maior alta no número de infectados, 113% no final de abril (R7, 2020). Recorte social que não se limita ao fator geográfico, uma vez que na cidade de São Paulo, onde as periferias mais afetadas estão nas zonas leste e norte (Rossi, 2020), pretos têm 62% mais chances de morrer de Covid-19 que brancos e pardos, com 23% (Dantas, 2020); ademais, o risco de morrer em decorrência do coronavírus é dez vezes maior para a faixa etária dos 40 aos 44 anos nos bairros mais pobres (Leão et al., 2020).

Ao sinalizar que um dos aparatos fundamentais das nações modernas é o racismo de Estado, Foucault (2002) afirma que a função deste é identificar quem é considerado inimigo do Estado-nação que se pretende instituir. Historicamente no Brasil, pobres, negros e indígenas são colocados nesse papel sob inúmeras práticas que vão do descaso da leniência planejada até o extermínio aberto. Fato que se atualiza quando olhamos a situação no Amazonas, que tem uma das maiores concentrações de população indígena do país, que padece de uma crise sanitária endêmica - escândalos de corrupção envolvendo desvios de dinheiro da pasta da saúde assolaram os últimos governos no estado - agora somada ao colapso do sistema funerário. Além dos números alarmantes - oficiais e subnotificados, estimados pelo aumento de 179,5% no mês de abril, comparando com o mesmo período do ano passado - o extenso estado tem leitos de UTI somente na capital Manaus e não conta com estradas (Maisonnve, 2020), o que propicia situações desesperadoras, como a de Manacapuru e a do povo Kokama. Os habitantes do Alto e Médio Solimões têm registrado mortes diariamente entre o final de abril e o começo de maio em uma localidade de fronteira com Peru e Colômbia e trânsito terrestre e fluvial intenso, cujas cidades de Tabatinga, Benjamin Constant e Santo Antônio do Iça estão em estágio de transmissão comunitária desde abril e o SUS desequipado e sobrecarregado (Mídia Índia, 2020). Esta tragédia é mais projeto que acidente.

Manacapuru, cidade de 97 mil habitantes na região metropolitana de Manaus, a 100 quilômetros de lá, registra a maior taxa de incidência de coronavírus do país com 238 casos e 14 mortes confirmadas no final de abril. Ali, nesse período, foi possível ver uma aglomeração de pessoas na fila da Caixa Econômica Federal a quinze passos do hospital de campanha e o comércio local aberto, onde se vê um manequim vestido com máscara na vitrine de uma loja de roupas. Ao serem entrevistados sobre sua postura de não distanciamento social, moradores fazem pouco caso e afirmam a fé em Deus como proteção (Xavier, 2020).

Antes mesmo do embuste da testagem irregular da hidroxicloriquina, sem aprovação do Conselho de Ética, pelo hospital do plano privado da Prevent Senior (Cambricoli, 2020), vários empresários brasileiros fizeram pouco caso do que projetavam como saldo da pandemia no país, a morte de cinco mil pessoas, isso se observadas as medidas de cautela, o que não era a proposta do dono do restaurante Madero, do midiático Roberto Justus e do indescritível Luciano Hang. Pior é que o discurso veiculado de que a favela não pega a doença e se pega não derruba é comprada por parte da população que se resigna, afinal o que é uma gripe (sic) para quem cresceu nadando na água da enxurrada? (Carta Capital, 2020).

Com efeito, se tratasse de uma preocupação biopolítica de salvar vidas, poderíamos estar seguindo um caminho mais próximo ao da Costa Rica, país com maior sucesso do contingenciamento do coronavírus no continente e que investe mais de 6% do Produto Interno Bruto na pasta da saúde (Brooks, 2020). Esse sucesso reflete a organização mais abrangente e menos fragmentada do sistema de saúde e o foco nas equipes básicas de assistência integral à Saúde que estão na linha de frente da resposta à pandemia. O investimento na atenção primária multidisciplinar e territorializada tem sido crucial em dois aspectos em que o Brasil vem falhando: na detecção e no convencimento da população à adesão das medidas de isolamento. Situação que reflete nosso legado de autoritarismo sanitário, um dos motores da revolta da vacina (Sevcenko, 2003), reatualizado no descaso com as áreas não-médicas da saúde pública e no foco na intervenção especializada, concentrada em duas instituições, na figura do médico e no prédio do hospital, ambas ineficazes na tarefa de explicar e convencer a população do recomendável distanciamento social, cujo número recomendado, de 70%, não chegou sequer perto de ser atingido no Brasil (Facchini, Tomasi, & Dilélio, 2018).

Em contrapartida, poderíamos questionar por que não convertemos as indústrias ociosas para a produção de máscaras, roupas, medicamentos e insumos necessários para o contingenciamento da pandemia? Essa entidade quase transcendental do mercado, da economia, não deveria estar a serviço da humanidade ou pelo menos da nação? Seus defensores bradavam contra o Estado até fevereiro e agora clamam por ele para se salvarem?

Em contrapartida, vemos que o projeto bionecropolítico estava a todo vapor, antes mesmo da epidemia quando registramos o maior aumento em gastos militares em dez anos. Oficialmente, os gastos militares no planeta ultrapassaram os US$ 1,9 trilhões ou equivalentes R$ 10,87 trilhões no ano de 2019 (O Globo, 2020). Ocupando o 11º lugar no ranking geral mundial, o necroestado brasileiro - que não desenvolve ações militares ostensivas ou sequer expressivas em contextos de guerra ou conflitos internacionais, voltando a maior parte de seu aparato assassino contra a própria população, especialmente a mais vulnerabilizada - bate 51% desses gastos na América do Sul com US$ 26,9 bilhões de US$ 52,8 bilhões de gastos da região, cujos países têm sofrido com desaceleração econômica. O Brasil gasta mais do que Israel, sendo que não investe em tecnologia nem equipamento, tendo as maiores despesas em pagamento de pessoal.

Pagamento dos operadores do genocídio da população negra e pobre do país, sobretudo em metrópoles sob intervenção militar oficializada ou não, como o Rio de Janeiro ou Fortaleza. O valor citado é maior que o estimado para gastos com a saúde no país no mesmo período, R$ 127,07 bilhões, cujo total de despesas executadas para sua área de atuação foi de R$ 114,18 bilhões. Ele integra o orçamento da pasta da defesa, de R$ 3,24 trilhões, e que teve valor total pago de R$ 2,61 trilhões no ano de 2019 de acordo com dados do Portal da Transparência da Controladoria-Geral da União (2020). Vale lembrar que, segundo dados de 2017, o país gasta 3,9% do PIB na saúde pública, enquanto a média dos países da OCDE é de 6,5% e que o orçamento da Saúde perdeu R$ 20 bilhões em repasses com a Emenda do Teto de Gastos que fez com que a receita da União crescesse 27% desde que entrou em vigor não distribuindo aumento compatível à pasta (Souza, 2020).

O caráter necropolítico do poder estatal revela uma lógica contraditória no cerne de seus mecanismos de poder de totalitarismo biopolítico que investe os meios de produção e reprodução da sociedade. Há uma lógica suicidária, própria ao fascismo, realizada com a morte do outro - preferencialmente o pobre, negro ou indígena para o necroestado brasileiro protofacistóide -, no qual os meios de força da nação são investidos para a destruição. O regime nazista autocrático e personalista padeceu desse mal sinalizado no telegrama em que Hitler brada que uma vez perdida a guerra, que se faça perecer a nação, destruindo suas reservas civis de água, combustíveis, alimentos etc. (Deleuze & Guattari, 1996).

Se o nazismo aparece como paradigma da justaposição entre a guerra e a política articulando o direito soberano de matar à gestão e proteção da vida pelo biopoder, essa lógica estatal racista, assassina e suicidária não se restringe a ele, mas compõe o próprio Estado contemporâneo, embora se agudize em governos autocráticos com tendências autoritárias. No esquema bionecropolítico, o racismo é a peça de regulação que possibilita a função estatal de fazer morrer e estabelece justificativas para uma distribuição específica da morte na população. Por isso, a invenção do outro enquanto ameaça e cuja eliminação serve à gestão da vida e da segurança num território é imprescindível ao imaginário paranoico da soberania dos Estados modernos do século XVI ao XXI (Foucault, 2002, 2008; Mbembe, 2018).

Nesse âmbito, conforme as crises, sanitária e política se agravam, o governo brasileiro se infla de militares da ativa, com pelo menos 2.700 deles apenas no poder Executivo (Lopes, 2020). A militarização da burocracia governamental, inédita nesses números absolutos até em tempos de plena ditadura civil-militar - para citar a maciça ocupação militar no Ministério da Saúde que tem que lidar com a maior crise sanitária da história mundial recente -, recolocam em cena essas figuras que encarnam o autoritarismo autocrático no imaginário do país que não acertou as contas com a memória dos assassinatos perpetrados pelo Estado nacional.

Hoje no Brasil, se somam aos desastres não voluntariamente planejados - mas autorizados pelos planos de desenvolvimento, contra as águas, terras, recursos e bens naturais (Krenak, 2020) - as atuações governamentais no contexto de Covid-19, as delongas injustificáveis para o pagamento dos auxílios, burocratização e dificuldade no acesso aos meios e serviços de saúde e assistência da população na configuração de um Estado não só racista e assassino, como suicidário. Definitivamente, frente às configurações do atual estado de coisas, vemos que a pandemia de coronavírus vem se somar à necropolítica contemporânea no que ela implica uma condição permanente de viver na dor (Mbembe, 2018).

 

À guisa de conclusão: verdade, saber e política no Brasil contemporâneo

Vimos que os jogos de poder acionados pela situação pandêmica colocam em marcha uma variedade de estratégias que vão da disciplina dos corpos, de práticas de confinamento e monitoramento das movimentações às de regulamentação, gestão total e extermínio da vida. Tais estratégias manipulam e criam efeitos de verdade e realidade atualizadas na instrução e legitimação das respostas práticas de enfrentamento da pandemia em curso.

Ressaltamos o caráter paranoico implicado no regime geral de soberania em suas distintas configurações e sobreposições como um investimento de formação social fundamental à instituição projetivo-agressiva do outro sob dois aspectos. Primeiro, como mecanismo de invenção do outro como inimigo do Estado sobre o qual se dispõe da vida, desprovida de valor, uma vez inscrita sob as formas simbólicas da exclusão e, eventualmente, sujeita a práticas concretas de assassinato (Foucault, 2002; Mbembe, 2017, 2018). Junto à representação negativa do outro, signo de ameaça e perigo, há uma formação político-social paranoica (Deleuze & Guattari, 2011) que opera a partir da separação entre bem e mal e inculca um medo generalizado mobilizando todo um imaginário de salvacionismos e fantasmas que servem, por fim, à retomada ou manutenção de um estado de coisas hegemônico.

No caso do Brasil, vemos que tais fantasmas, colocados em marcha em plena pandemia, acabam por agravar e duplicar a crise sanitária em crise política, atuando inclusive numa lógica de Estado suicidário de forma a enfraquecer e emperrar o funcionamento de medidas e instituições chaves no enfrentamento da Covid-19. Com isso, a pandemia e as respostas a ela servem como analisador dos jogos de força em curso no país, trazendo à tona uma variedade de elementos que tornam mais polissêmica e complexa a situação em causa.

Nas formas contemporâneas mais autocráticas de exercício da soberania paranoica como política de administração de multiplicidades, de produção de realidade e conhecimento, observamos que a manipulação da verdade - em seus efeitos sofísticos e de tensionamento com os atravessamentos contemporâneos de pós-verdade e fake news (Tiburi, 2017) - é indissociável das formas de manejo do mesmo e do outro, que encarnam o bem e o mal e justificam o exercício do poder sobre a vida e a morte. Trata-se de uma manobra chave na constituição das estratégias necropolíticas enquanto "formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte" (Mbembe, 2018, p. 71), ativadas ou reiteradas com a pandemia atual.

Logo, vemos que há uma tensão intrínseca ao reordenamento do poder contemporâneo em termos de soberania e mecanismos de controle na aplicação de estratégias de poder sobre a vida e a morte. O aparato paranoico contemporâneo é evidente nas atitudes de governantes que evocam a si o mando e se creem acima ou a própria lei, proferem palavras de ordem aos seus seguidores e tentam calar seus adversários a todo custo, via desqualificação, censura ou ameaça (Kotscho, 2020; Sahuquillo et al., 2020). Nesse espectro de política de conhecimento, o presidente de tendência despótica pretende alterar bula de medicação via decreto, sem qualquer respaldo científico e quando não consegue interferir na divulgação de conhecimento científico seus aliados, tentam dividir ou confundir a população (Catraca Livre, 2020).

O discurso paranoico-autoritário é impulsionado e produz efeito de verdade como força informacional (com seus mecanismos de comunicação instantânea) e discursiva que refuta o saber técnico-científico e se alimenta dessa refutação. Os modos de produção de saber e realidade que não se curvam aos interesses do soberano de viés despótico, são transformados em inimigos - incluindo-se a ciência e toda prática social ou instituição pública e privada, mesmo as que constituem a base operacional do próprio Estado, do qual ele é o chefe-maior.

A desqualificação de todo saber, instituição ou prática social que não se sujeita aos interesses do despotismo soberano, predominantemente realizada no plano moral, mediante ataques à honradez e à honestidade, se soma às estratégias de instituição e deliberação das vidas consideráveis como matáveis e descartáveis, desprovidas de proteção de quaisquer jurisdição, humana ou divina. Enquanto política de produção e administração da multiplicidade da realidade, minar as instâncias de mediação, debate e disputa de sentido serve para fazer valer o exercício da soberania afirmada no direito de matar e expiar, cujo modelo desproporcionalmente violento deve servir exemplarmente, assim como a decapitação ou os suplícios públicos serviam ao soberano de outrora (Deleuze, 2014; Mbembe, 2018).

Tal política de produção do real se apoia na difusão da desinformação, expressa, em última instância, por meio de mobilização afetiva através de ofensas, e que produz seu efeito de verdade associando-se primordialmente a sentimentos primários. Dentre estes, o ódio se destaca na medida em que serve ao objetivo de eliminação do oponente, ou seja, de tudo que se coloca como obstáculo à imposição das estratégias do poder hegemônico e seus interesses soberanos (Safatle, 2015). Essa mobilização, fundamental para a atualização da soberania despótica expressa na sua versão contemporânea de tendência fascista, é uma tentativa de responder às inseguranças das sociedades do capitalismo tardio. Ela se reordena no século XXI como nacionais-populismos que provocam a adesão rápida de milhões de pessoas porque despertam poderosamente a vida afetiva e relacional a partir das quais são imediatamente criados laços comunitários privilegiados entre os patriotas, os que seguem cegos a uma certa ideia nebulosa de soberania nacional, e cidadãos de bem.

Com esses laços identificatórios, temos a legitimação - sob distintos níveis que vão da anuência à incitação - de constrangimentos e violências dirigidos contra tudo que não se submeta ao conjunto de interesses que emanam do soberano. São diferenciações que hierarquizam os que estão dentro do espectro de cidadão de bem e, do lado de fora, os outros, os adversários, os (i)migrantes e os que querem distribuir o dinheiro entre os desprovidos etc.

Regidos por sentimentos regressivos e rudimentares de insegurança, medo e ódio, os adeptos do fascismo da soberania autoritária (os supostos patriotas) têm no líder despótico a expressão de seus anseios (Hur, 2018). Assim, o neofascismo bolsonarista modula a insegurança social-existencial e a indecisão intelectual-prática propagando ódio e fazendo ressoar absurdos de não-saber. Enquanto política de conhecimento (Deleuze & Guattari, 2008), ele ativa as correntes internas concretamente paranoicas, se ancorando na fixação intensiva a códigos, estratificações e significantes arcaicos, conservadores e totalitários na medida em que se torna evidente sua inaptidão frente a experiências de crise (como a que a pandemia atual nos impõe) e indeterminação (do tipo que integra a produção de conhecimento legitimável como disputa de sentido no âmbito científico, filosófico ou popular).

Em outras palavras, o despotismo fascista tende a fixar a intensidade dos afetos a códigos rígidos, não obstante de grande apelo popular, como Deus, pátria, família. Com isso, gera três ilusões, a de regular as instituições, impondo o uso não cientificamente avalizado de cloroquina; a de estabilização da crise econômica e sanitária do país e a de paralização dos processos que geram instabilidade política ao governo. Crises cuja responsabilidade recai ao outro (aos esquerdistas!), mesmo que esteja encarnado em cientistas e profissionais de saúde, ou mesmo em qualquer discordância, pronta e negativamente politizada como ataque à ordem e a moral, mesmo que joguem dentro do escopo das regras e instituições democráticas.

Portanto, "vemos na paranoia um tipo de investimento de formação social" (Deleuze & Guattari, 2011, p. 255) que instaura os dois polos: do outro e do mesmo. Este, imaginariamente superior e identificado com o líder de tendências déspoticas e paranoicas e cuja transcendência - uma vez que ele está acima dos outros, porque seria um outsider, diferente deles - dá base aos processos de sobrecodificação da realidade.

Uma vez que o líder despótico se coloca em linha de filiação direta com Deus, ele reclama que o povo deve segui-lo e sua política de produção e conhecimento visa sobrecodificar os elementos de realidade que se interpõem às suas fabulações. A insistência de Trump em chamar o coronavírus de "vírus chinês" é ecoada na tragicômica repetição dessas acusações por parte do chanceler Araújo e do filho do presidente Bolsonaro, atirando no pé ao gerarem inimizades com a China, maior parceiro comercial do Brasil e produtor de insumos e equipamentos de máxima urgência na pandemia. Encontramos efeitos e derivações dessa linha de não-saber em manifestações como a do chamado fake vírus dos "bolsominions" dançando em frente a caixões e da fala do prefeito de Parnaíba no Piauí sobre o "vírus boiola" (Mello, 2020).

Há certa política de conhecimento e manejo das instituições e estratégias de poder por parte do autoritarismo neo-despótico brasileiro que atua como se fosse possível sobrecodificar a realidade pandêmica para impor um código imaginário sobre, acima da invasão do real por parte do vírus. O bordão de que "temos que voltar ao normal, a vida deve continuar, a economia não pode parar" é expressão desse afã de restituição de um estado de coisas pretérito e mítico, cuja realidade pouco importa se existiu ou não. Pois o fundamental é o efeito desta fabulação sobrecodificante, que é uma estratégia de retomada do poder por parte daqueles que o exerciam anteriormente. Sem dúvidas, seria necessário retomar essa questão da política de conhecimento e produção do real por negacionismos incontestavelmente algo paranoicos e sobrecodificações de cunho autoritário. Debate que não cabe no escopo deste artigo, mas que conta com certo arcabouço e tradição no amplo campo da psicologia política.

Ao que nos cabe neste desfecho, resta salientar que a política despótica de conhecimento e sobrecodificação da realidade é um arcaísmo de fixação - para dizer em termos freudianos - da contemporaneidade. Ela propicia a emergência e o fortalecimento de negacionismos tão diversos quanto danosos, como o negacionismo do aquecimento global e dos crimes da ditadura civil-militar brasileira, dos males do holocausto às mortes e danos causados pelo coronavírus. Vemos, com isso, seu lado mais perverso, retrógrado e endurecido quando o que precisamos é de uma política de verdade capaz de contribuir na busca pela contraefetuação do que nos acontece, da pandemia de coronavírus às demais crises sanitárias e de valores, políticas e ecológicas que a acompanham e sucedem (Danowski & Castro, 2014).

Não há enfrentamento de crise alguma com negacionismos. E as tentativas mais ou menos bem-sucedidas de sobrecodificação da realidade dos desafios vivenciados no século XXI apenas exacerbam ainda mais o fracasso do neoliberalismo, com suas políticas de austeridade e de governança do mundo, seus recursos e suas gentes no contexto do capitalismo tardio. Tema que também merece maiores desdobramentos e investigações posteriormente.

Neste artigo, buscamos trazer elementos para entender como a pandemia de coronavírus e seus desdobramentos nos servem como analisador ético-político das estratégias de saber-poder inerentes aos dispositivos institucionais e de controle social que fazem a gestão da vida e da morte no contemporâneo. Entendemos, junto a Mbembe (2017, 2018), que o neoliberalismo ao qual estamos sujeitos atualmente recoloca em cena algumas das estratificações fundamentais da modernidade primeira e tardia e concluímos que a pandemia de coronavírus revigora a necessidade de tensionarmos nossas práticas sociais na direção das populações mais sujeitadas às ações políticas de morte e despojamento da vida.

A pandemia de Covid-19 nos serve como analisador quando, atentando a diferentes recortes biopolíticos como idade, sexo e região, vemos que o adoecimento por ela causado é mais prevalente em homens que mulheres, mais letal em idosos que em criança, mas não podemos menosprezar que ela acaba atingindo desigualmente brancos e negros, além de se fazer devastadoramente mortífera entre os indígenas. Ademais, a requisição pela apuração dos dados e números de testes realizados, de casos confirmados, assim como o desespero por conta da subnotificação, são o efeito refratário de conflitos de diferentes regimes de produção de conhecimento e realidade, dados pela inflação das relações degradadas entre produção de verdade, saber-poder e gestão da vida e da morte que vivemos no Brasil hoje (Tiburi, 2017), situações que sinalizam o desconforto com o caráter suicidário do necroestado brasileiro.

Portanto, quando finalizamos a escrita do presente artigo, 100 dias após a data simbólica e estratégica da confirmação do primeiro caso no Brasil, a situação da pandemia do novo coronavírus nos serve como analisador das interferências e das relações de imanência e indissociabilidade entre os jogos de poder, os interesses, negligências e displicências políticas e a elaboração, circulação e aplicação das práticas de enfrentamento à Covid-19.

Por conseguinte, entendemos que o enfrentamento da pandemia nos coloca de frente com problemas ético-políticos que têm raízes mais profundas num país que parece clamar por figuras de tendências autoritárias e autocráticas, o que gera, como efeito refratário, uma espécie de fetiche por fardas militares e o apelo reiterado por um tipo de soberania tosca ocupada em fazer morrer ou dispor da vida boa parte da sua própria população.

Se de fato não há como impor por decreto uma negação da realidade, nos cabe contraefetuar o acontecimento da pandemia. Com esta breve genealogia das políticas se administração da multiplicidade e gestão da vida e da morte, tomamos o problema atual da pandemia de Covid-19 a fim de problematizar e contraefetuar os efeitos políticos que emergiram junto às diversas estratégias de poder que operam na manipulação da vida da população e dos cidadãos brasileiros.

 

Referências

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Recebido em: 29/06/2020
Aprovado em: 12/10/2020

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