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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.1 no.1 São Paulo  2006

 

ARTIGOS

 

De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática

 

From Freud to Winnicott aspects of paradigm shift

 

Zeljko Loparic

Pontíficia Universidade Católica de São Paulo / Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul / Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspodência

 

 


Resumo

Depois de esboçar os elementos essenciais do paradigma freudiano, o artigo prossegue descrevendo a crise desse paradigma tal como ela foi vista por Winnicott, para articular, na sua terceira e última parte, alguns dos aspectos mais inovadores da mudança paradigmática operada pelo psicanalista inglês na disciplina psicanalítica.

Palavras–chave: Freud, Winnicott, Paradigma winnicottiano, Ser, Mundo.


Abstract

After presenting in outline the essential elements of the Freudian paradigm, the article goes on to describe its crisis as experienced by Winnicott, in order to articulate, in the third and last section, some of the most innovative aspects of the paradigmatic change introduced by Winnicott into the discipline of psychoanalysis.

Keywords: Freud, Winnicott, Paradigm, Being, World.


 

 

1. O paradigma freudiano

Não é fácil dizer o que é a psicanálise. Um esclarecimento possível consiste em evocar a afirmação de Freud, reiterada por Winnicott, de que a psicanálise é a ciência de um certo tipo de fatos clínicos. Isso posto, coloca–se uma nova pergunta, ainda mais difícil: que é uma ciência factual e como devem ser pensados a estrutura interna e o desenvolvimento de uma tal disciplina? De acordo com Thomas S. Kuhn, um dos mais influentes epistemólogos da segunda parte do século XX, uma ciência factual madura é o quadro no qual se desenvolve uma atividade de resolução de problemas semelhantes a quebra–cabeças. A estrutura interna desse quadro é caracterizada por uma maneira de ver o mundo e de falar sobre ele, compartilhada por um grupo institucionalizado, estruturada como um paradigma ou uma matriz disciplinar. Um paradigma é composto de:

1) exemplares, isto é, problemas centrais que dizem respeito aos fatos acessíveis em alguma forma de experiência (observação, experimentação, clínica), acompanhados de suas soluções e

2) compromissos teóricos, dos quais constam:

a) generalizações usadas como guias na pesquisa,

b) modelo ontológico do domínio estudado (a parte propriamente "metafísica" dos paradigmas),

c) modelo metodológico (os métodos de pesquisa franqueados, analogias e metáforas permitidas), e

d) valores, alguns deles epistemológicos – relativos ao modo como deve ser elaborada e praticada a disciplina em questão (capacidade de formular problemas, tipo de soluções admitidas, simplicidade, consistência interna e externa, plausibilidade) – e outros práticos, relacionados à utilidade social do saber científico.

O desenvolvimento de uma disciplina desse tipo passa por períodos de pesquisa normal, cumulativa, realizada de acordo com o paradigma dominante, seguidos de períodos de crise, provocados pelo aumento de "anomalias" – problemas considerados relevantes, mas que permanecem não resolvidos. As crises levam uma parte do grupo a se dedicar à pesquisa revolucionária visando à constituição de um novo paradigma, obedecendo, contudo, à condição de preservar a capacidade solucionadora da disciplina. Quando bem–sucedida, essa pesquisa não–cumulativa termina em conversão da parte ou da totalidade do grupo a uma nova maneira de ver o mundo e de falar sobre ele, comparável a um Gestalt switch perceptivo ou a uma mudança revolucionária de um regime político, seguida de um novo período de pesquisa normal. As mudanças nos paradigmas ocorrem, portanto, como revoluções científicas que substituem os paradigmas (figuras do mundo, "regimes" teóricos) velhos, em crise, pelos novos, considerados mais promissores por resolverem tanto os problemas principais já solucionados como as anomalias e por aumentarem, dessa forma, o poder de resolução de problemas da ciência em questão.1

Mesmo que a psicanálise tradicional não possa ser considerada uma ciência factual madura, parece–me frutífero olhar para ela na perspectiva kuhniana, procurando por formas incipientes de um paradigma e por crises, seguidas de pesquisa revolucionária.2 Procedendo assim, é possível dizer que o exemplar principal da disciplina criada pela pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de Édipo, a criança na cama da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que estão relacionadas à administração de pulsões sexuais em relações triangulares. A generalização–guia central é a teoria da sexualidade, centrada na idéia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré–genitais e genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré–genitais. O modelo ontológico do ser humano, explicitado na parte metapsicológica da teoria, comporta um aparelho psíquico individual, movido por pulsões libidinais, e outras forças psíquicas determinadas por leis causais. A metodologia é centrada na interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação. Os valores epistemológicos básicos são os das ciências naturais, incluindo explicações causais, e o valor prático principal é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais, do tipo libidinal.

Considerando a importância do exemplar do Édipo na psicanálise de Freud, convém chamar o seu paradigma de edípico ou triangular. Se levarmos em conta a natureza sexual da situação edípica, a matriz disciplinar de Freud pode ser designada como sexual. 3

 

2. A crise do paradigma freudiano e os principais resultados da pesquisa revolucionária de Winnicott

A psicanálise passou por várias reformulações pelo próprio Freud e seus seguidores, efetuadas no mais das vezes sob pressão de fatos clínicos. Nas pesquisas de Winnicott, contudo, o paradigma freudiano como tal entra em crise, dando lugar à busca por um novo paradigma. O motivo principal da crise foi o acúmulo de problemas clínicos – entre eles as manifestações da tendência anti–social e da psicose infantil – que não podiam ser compreendidos teoricamente nem tratados clinicamente no quadro do paradigma edípico de Freud, mas que, segundo Winnicott, não deviam ser eliminados do campo de aplicação da psicanálise.4

Desde 1923, Winnicott constatou a existência de várias manifestações do que ele posteriormente chamará de tendência anti–social: num extremo, a avidez (greediness) e a enurese, e, no outro, a delinqüência, os distúrbios de caráter e todos os tipos de psicopatia, incluindo ainda os casos de furto e as mentiras. A psicanálise da época costumava explicar a delinqüência pela culpa originada de uma ambivalência inconsciente insuperável, a saber, pelo ódio persistente dirigido à pessoa amada. A idéia básica era a existência de um sentimento de culpa muito forte, que não podia encontrar saída nem na sublimação nem na reparação, de modo que a única alternativa era o indivíduo destruir algo a fim de poder sentir–se culpado. Em outras palavras, a etiologia da delinqüência era vista em termos da luta no mundo interno do indivíduo, transferida na forma de um acting–out destrutivo, que perturbava o setting analítico. Por essa razão, Winnicott, tal como os outros psicanalistas, encaminhava os casos anti–sociais a clínicas não–psicanalíticas (1989a, pp. 576–7; tr. p. 439). Ao mesmo tempo, contudo, ele não conseguia se convencer que se tratava de um erro de seleção de casos (de aplicação da psicanálise), vendo nisso uma séria limitação da teoria e uma grave falha da técnica psicanalítica. Concluindo, assim como antes dele fizeram August Aichhorn e Sándor Ferenczi, que a psicanálise deveria adaptar sua técnica às necessidades da criança com tendência anti–social ou do psicopata "sem se transformar em puro manejo, ou seja, sem perder o seu título de psicanálise" (1965b, p. 126; tr. p. 115).

Desde essa mesma época, Winnicott deu–se conta, a partir de inúmeros casos clínicos, que crianças sofrendo de distúrbios psíquicos mais variados, em particular as crianças psicóticas, "revelavam dificuldades no seu desenvolvimento emocional na infância, mesmo como bebês", fato que, segundo ele, dificilmente podia ser encaixado na teoria do complexo de Édipo (ibid., p. 172; tr. p. 157). Ele expôs esses casos aos colegas em "artigos assustados", reunidos posteriormente num único trabalho: "Apetite e desordem emocional", de 1936. Passado o susto, Winnicott acabou rejeitando a regra básica da metodologia freudiana, a saber, a que exige a interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação da libido a fases pré–genitais.5 Mais uma vez, a ortodoxia psicanalítica estava em crise.

Na percepção de Winnicott, a principal dificuldade da psicanálise tradicional em tratar dos casos de tendência anti–social e de psicose decorria do fato de ela pensar a etiologia dos distúrbios psíquicos em termos relacionados aos conflitos "pulsionais" intrapsíquicos, deixando de ver que, pelo menos nesses casos, a patologia ou a anormalidade estava primariamente no ambiente e só secundariamente na criança. Em outras palavras, Winnicott entendeu que era necessário mudar a etiologia dos distúrbios em questão. A partir do início dos anos 1940, ele passara a sustentar que a tendência anti–social, os comportamentos delinqüentes e os distúrbios de caráter (psicopatias) decorrentes eram causados pela falha ambiental ocorrida num estágio de dependência relativa, no qual o indivíduo já adquirira uma organização egóica suficiente para perceber o fato da deprivação (deprivation) efetiva (perda de um objeto ou de um quadro de referência que já foi experienciado como bom e disponível) e para avaliar que a responsabilidade pela perda era do ambiente (que este ficou lhe devendo algo). Dessa forma, a etiologia tradicional, baseada nos conceitos de pulsão e de conflito interno, foi substituída pela compreensão em termos de necessidade pessoal de asseguramento e de perda de confiança no ambiente, com a conseqüente crise relativa ao autocontrole e à identidade pessoal.6

Quanto à psicose, aproximadamente na mesma época,7 Winnicott chegou à "inesperada conclusão de que a esquizofrenia era uma espécie de doença provocada por uma deficiência ambiental" (1958a, p. 162; tr. p. 239). A esquizofrenia se origina – esta é a tese que Winnicott começará a defender apoiado, de novo, em dados colhidos na sua intensa clínica pediátrica – no estágio de dupla dependência, ou seja, no período no qual o indivíduo em desenvolvimento ainda não adquiriu a capacidade de ter consciência da sua dependência do ambiente externo e de se dar conta das falhas deste (1965b, pp. 134– 6; tr. pp. 123–4). Daí se segue – cito agora um texto tardio de 1969 – que "a teoria psicanalítica precisava ser desenvolvida ou modificada, se é que o analista quer ter esperanças de tornar–se capaz de lidar com fenômenos esquizóides no tratamento dos pacientes" (1989a, p. 256; tr. p. 198). Num outro trabalho, escrito no mesmo ano, Winnicott enunciara a mesma tese em termos que revelam claramente a sua preocupação com a inércia intelectual dos psicanalistas, devida à formação ortodoxa e aos hábitos de trabalho desses profissionais, que impedem o progresso da psicanálise:

Para fazer progresso no sentido de uma teoria operacional da psicose, os psicanalistas devem abandonar toda a idéia da esquizofrenia e da paranóia, tal como vistas em termos de regressão, a partir do complexo de Édipo. A etiologia destes distúrbios leva–nos inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos. O corolário estranho é que existe, na raiz da psicose, um fator externo. É difícil para os psicanalistas admitir isto, após todo o trabalho que tiveram chamando a atenção para os fatores internos, ao examinarem a etiologia da psiconeurose. (1989a, p. 246; tr. p. 191)

Foi por considerações desse tipo, relacionadas essencialmente à capacidade de a psicanálise resolver problemas clínicos no seu quadro teórico – e não por análises abstratas, de cunho especulativo, exemplificadas pela obra de Lacan8 –, que surgiu a matriz disciplinar da psicanálise winnicottiana, substancialmente diferente da de Freud. Cabe destacar, contudo, que a mudança do paradigma freudiano foi elaborada por Winnicott de maneira a preservar "as pontes que levam da teoria mais antiga para a mais nova" (1989a, p. 256; tr. p. 198). Tratava–se de "retornar ao meio ambiente sem perder tudo o que fora ganho pelo estudo dos fatores internos" (pp. 576–7; tr. p. 439).

Que modificações seriam necessárias para assegurar o progresso da psicanálise nos campos assinalados? Em primeiro lugar, era preciso abandonar o paradigma edípico, baseado, conforme vimos, no papel estruturante do complexo de Édipo e na teoria da sexualidade concebida como a teoria–guia da psicanálise. O novo exemplar proposto por Winnicott é o bebê no colo da mãe, que precisa crescer, isto é, constituir uma base para continuar existindo e integrar–se numa unidade. A generalização–guia mais importante é a teoria do amadurecimento pessoal, da qual a teoria da sexualidade é apenas uma parte. Se supusermos que a mudança winnicottiana do paradigma freudiano aconteceu, como diria Kuhn, de forma análoga a um Gestalt switch, ela não podia limitar–se a pontos isolados, devendo abranger todo o campo teórico da psicanálise. É fácil mostrar que, de fato, Winnicott também introduziu um novo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise, centrado no conceito de tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e coisas e para a parceria psicossomática. A sua metodologia preserva a tarefa de verbalização do material transferencial, admitindo, contudo, apenas interpretações baseadas na teoria do amadurecimento, sem recurso à metapsicologia freudiana, e incluindo também o manejo da regressão à dependência e do acting–out dos anti–sociais. O valor principal é a eliminação de defesas endurecidas, paralisadoras do amadurecimento, e a facilitação para que agora aconteça o que precisava ter acontecido, mas não aconteceu; bem como que se junte o que permaneceu ou se tornou dissociado, ou mesmo cindido. O sofrimento decorrente de conflitos, internos ou externos, deixa de ser o fundamental, fica em segundo plano, considerado parte da vida sadia.

Em virtude da importância da relação mãe–bebê na psicanálise de Winnicott, passei a chamar o seu paradigma de dual. Visto que a generalização–guia é a teoria do amadurecimento, sugeri ainda que chamá–lo de maturacional.9 Este termo não deve ser tomado no sentido exclusivamente biológico, pois, além do lado anatômico–fisiológico, o desenvolvimento humano tem, ainda, o lado pessoal. Winnicott é claro:

O que temos aí é uma braçada de anatomia e de fisiologia e, acrescentado a isto, um potencial para o desenvolvimento de uma personalidade humana. Existe uma tendência geral voltada para o crescimento físico, e uma tendência ao desenvolvimento na parte psíquica da parceria psicossomática; existem, tanto na área física quanto na psíquica, tendências hereditárias, e estas, do lado da psique, incluem as tendências que levam à integração ou à conquista da totalidade. A base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, a linha da vida, que provavelmente tem início antes do nascimento efetivo do bebê [...]. (1987a, pp. 89–90; tr. p. 79)

Ao longo de uma pesquisa conduzida no quadro desse novo paradigma (e que se estendeu por décadas), Winnicott ofereceu uma articulação detalhada de duas das suas teses teóricas mais importantes sobre a etiologia dos distúrbios psíquicos: 1) que o processo fundamental perturbado não é o desenvolvimento sexual, mas o amadurecimento emocional, e 2) que o fator externo, isto é, o ambiente facilitador, tem uma importância decisiva no surgimento dos distúrbios psíquicos. Em primeiro lugar, Winnicott detalhou os três modos básicos de perturbação do processo de amadurecimento: a não–constituição do si–mesmo, a repressão dos instintos e a perda do objeto e/ou a perda do quadro de referência já constituído, com a conseqüente perda do si–mesmo. Esse desenvolvimento teórico tornou–se, por sua vez, a base das suas considerações sobre a classificação dos distúrbios psíquicos e a divisão destes em três categorias básicas, enumeradas aqui na semi–ordem10 de seu surgimento durante o processo maturacional: 1) as psicoses, 2) as depressões reativas e as psiconeuroses e 3) a tendência anti–social seguida ou não de delinqüência e de distúrbios de caráter.11 Em segundo lugar, Winnicott abordou, em diversos estudos, a etiologia de cada uma dessas formações em razão de falhas ambientais ocorridas em diferentes fases do processo de amadurecimento, mostrando, em detalhe, que as psicoses decorrem da privação da facilitação ambiental na fase de dependência absoluta, e mesmo relativa, do bebê com relação à mãe–ambiente facilitador, que as psiconeuroses e as depressões reativas se devem ao não atendimento ou mesmo à repressão dos instintos nas fases do concernimento12 ou do Édipo e que a tendência anti–social é antes uma reação à deprivação, isto é, à perda da facilitação ambiental já experienciada como boa e avaliada como uma falha do ambiente (1989a, p. 578; tr. p. 440).

Com base em seus estudos sobre a classificação dos distúrbios e a etiologia destes, Winnicott ampliou e modificou substancialmente o conceito de clínica psicanalítica, descrevendo três variedades básicas de "psicoterapia": a das psicoses, a das depressões reativas e das neuroses e a da tendência anti–social (1984a, cap. 27). A variedade da psicoterapia para as psicoses caracteriza–se, sobretudo, por uma organização complexa do holding, que permite a regressão à dependência, fenômeno essencialmente distinto da regressão aos pontos de fixação da libido. No caso das psicoses, a clínica tradicional revela–se inapropriada precisamente devido ao erro teórico que consiste em confundir esses dois tipos de regressão, pois considera "que o termo ‘adaptação às necessidades’ no tratamento de pacientes esquizóides e no cuidado do lactente significa satisfazer os impulsos do id" (1965b, p. 241; tr. p. 217), o que, segundo Winnicott, é inteiramente inadequado. A segunda variedade, a das depressões reativas e das neuroses, vale–se do setting clássico desenhado por Freud e trabalha com interpretação. A terceira, a da tendência anti–social, na medida em que compete à psicanálise propriamente dita, e não ao manejo familiar ou social em geral, consiste em admitir a atuação do paciente como parte da transferência, entendendo que se trata de um sinal de esperança que precisa ser compreendido como tal e valorizado positivamente (idem).

 

3. Detalhamento de alguns aspectos teóricos da revolução winnicottiana

A fim de preparar a minha análise da teoria da sexualidade elaborada por Winnicott como parte integrante da sua teoria do amadurecimento, convém aprofundar alguns pontos teóricos do seu paradigma.13 As diferenças com Freud servirão de evidências adicionais de que Winnicott produziu uma mudança na psicanálise que pode ser caracterizada como revolução científica num sentido próximo ao de Kuhn.

Começo pelo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise. Enquanto a psicanálise tradicional estuda o psiquismo humano14 – concebido metapsicologicamente (especulativamente) como um aparelho movido a pulsões dirigidas para objetos (o papel central do relacionamento objetal sendo a satisfação) –, a winnicottiana jamais se distancia da "relação" factual indivíduo–ambiente, o indivíduo sendo caracterizado pela tendência para o amadurecimento e o ambiente, investido do papel de facilitador dessa tendência. De acordo com o preceito de manter abertas as pontes entre o paradigma antigo e o novo, Winnicott esforçar–se–á por preservar o que for possível da teoria antiga e, sobretudo, a eficácia clínica da psicanálise. Nesse espírito, os conceitos de pulsão, de "relação de objeto", de aparelho psíquico, de inconsciente etc. serão reinterpretados, isto é, transpostos para a linguagem experiencial do paradigma winnicottiano. Tal transposição não é uma simples tradução – visto que os conceitos metapsicológicos de Freud são, por definição, especulativos, isto é, não aplicáveis diretamente à experiência clínica –, mas algo semelhante a uma paráfrase para um campo semântico essencialmente diferente: o da linguagem que se quer essencialmente descritiva.

O lugar do conceito especulativo de pulsão é ocupado por, pelo menos, três conceitos radicalmente distintos entre si, todos referentes à experiência possível de um bebê humano: 1) o de necessidade (need) do indivíduo humano de ter um ambiente favorável no qual possa continuar crescendo, tornar–se alguém (um si–mesmo), e entrar em contato com objetos e relacionar–se com eles de diversas maneiras, 2) o de instinto (instinct) ou de impulso (drive) biológico, de onde se originam as pressões em direção de objetos externos, e 3) o de desejo (wish), que investe ou cria objetos, apoiado em sonhos ou fantasias mais ou menos sofisticadas.15 Como sugeri num trabalho anterior, as necessidades e instintos podem ser englobados sob o título de urgências e a vida humana pode ser caracterizada pela urgencialidade, ao invés de pela pulsionalidade (cf. Loparic 2001b).

Há quem sustente que os termos "instinct" e "drive" de Winnicott são emprestados das traduções inglesas do termo "Trieb" de Freud, comumente vertido em português por "pulsão". Essa interpretação é um sério engano, como se pode concluir facilmente da comparação das teses de Winnicott sobre os instintos com a doutrina das pulsões de Freud. Destacarei apenas três diferenças. Os instintos, diz Winnicott, "são impulsos [drives] biológicos poderosos que vão e vêm na vida do lactente ou da criança e que exigem ação" (1988, p. 39; tr. p. 57). Trata–se, portanto, da animalidade do ser humano.16 Na obra madura de Freud, as pulsões não são impulsos biológicos factuais, mas entidades especulativas que existiriam na fronteira entre o físico e o psíquico ou, então, forças psíquicas de caráter mítico. Em segundo lugar, o vai–e–vem dos instintos na vida de um indivíduo (a alternância entre os estados tranqüilos e excitados) só passa a fazer sentido, segundo Winnicott, depois que esse indivíduo integrar seus estadosexcitados como internos, o que ocorre na fase de concernimento, portanto, já bastante longe das fases iniciais. O si–mesmo (the self) tem que de "preceder o uso do instinto pelo si–mesmo" (1971a, p. 116; tr. p. 137). Em Freud, as pulsões agem em pleno direito no interior do psiquismo humano desde o início, por serem seus elementos constitutivos. Em terceiro lugar, Winnicott rejeita o dualismo pulsional de Freud. A introdução dos conceitos de pulsão de vida e de morte é o principal "deslize teórico" de Freud, responsável por graves deficiências da psicanálise tradicional (M. Klein inclusive): a incapacidade de compreender o processo de amadurecimento pessoal e a produção das teorias da morte e da agressão, inaceitáveis, porque "falsas".17

A introdução dos conceitos de necessidade, instinto e desejo permitiu a Winnicott dar um outro passo extremante importante: redefinir as relações do indivíduo humano não somente com seus "objetos", isto é, com outros seres humanos, mas com seu mundo, de início também essencialmente humano.18 Como disse anteriormente, todo ser humano necessita estar alojado (assentado) em um ambiente – em outras palavras, habitar um ambiente19 – que lhe facilite a resolução das tarefas específicas da fase do amadurecimento em que se encontra; entre elas, a tarefa de estabelecer, preservar ou modificar suas relações com objetos.

Essas relações, por seu turno, podem ser de vários tipos radicalmente diferentes: egóicas, instintuais e desejantes. As primeiras são estabelecidas para atender às necessidades do processo de integração como tal, os objetos sendo usados como apoio, consolo, meios para fins, aquilo que concerne à criança, inspira compadecimento, suscita cuidados etc. Nas relações instituais, busca–se a diminuição da tensão instintual e a recompensa na forma do prazer.20 As relações de desejo perseguem várias metas, mais sofisticadas e, no entanto, talvez menos fundamentais. Em todos os casos, é a relação com o ambiente – o assentamento nele – que possibilita as relações objetais, sejam elas de dependência, de satisfação instintual ou de desejo acompanhado de fantasia.

Darei alguns exemplos de relações egóicas com objetos que apresentam uma das mais importantes contribuições de Winnicott à teoria psicanalítica das relações objetais. Na fase da primeira mamada teórica, em virtude da sua tendência inata para o amadurecimento, o bebê humano, amparado pela mãe–ambiente subjetivo, vai resolvendo as três tarefas fundamentais do período inicial do seu amadurecimento: integra–se no tempo e no espaço, aloja–se no corpo (a sua primeira morada) e inicia o relacionamento com os objetos. No caso desta última tarefa, o amparo da mãe–ambiente consiste na apresentação de objetos ainda não objetificados: em primeiro lugar, ela mesma e seu corpo (mais precisamente, uma parte dele: o seio) como objeto subjetivo e, em segundo lugar, os seus substitutos, também enquanto objetos subjetivos. Em outras palavras, nessa situação inicial ainda não existe a relação com a mãe–objeto como tal, pois ainda não existem dois entes separados que possam ser relacionados um com o outro. "É axiomático", escreve Winnicott, "que não há relação com o objeto subjetivo" (1989a, pp. 286–7; tr. p. 221). Trata–se da identificação primária do bebê com a mãe, pela qual ele é a mãe (o seio).

Em seguida à fase inicial, o ambiente já não é mais simplesmente a mãe, mas o espaço potencial entre a mãe e o bebê, sustentado, contudo, pela mãe–ambiente. Nesse "entre" os dois, acontece um desenvolvimento extremante importante no relacionamento objetal dos bebês: a mãe–objeto subjetivo e parcial (seio) passa a ser substituída e simbolizada por objetos transicionais. Na fase do concernimento (estou pulando várias fases; algumas delas serão consideras a seguir), posterior à separação já consumada da mãe subjetiva, o ambiente é o círculo benigno, isto é, ainda é a mãeambiente – só que, desta vez, na qualidade de ambiente externo percebido como tal –, dedicada a sustentar no tempo o uso excitado pelo bebê dela mesma como mãe–objeto externo, ou seja, aceitando ser objeto do uso instintual do bebê. E assim por diante, até a mãe tornar–se objeto do desejo da criança já na fase fálica ou edípica.

Elaborando essas análises, Winnicott desenvolveu uma teoria do amadurecimento baseada em várias distinções fundamentais, inexistentes ou, pelo menos, não trabalhadas de maneira satisfatória em textos da psicanálise tradicional. A mais decisiva delas é a diferença entre o objeto e o ambiente (mundo), com a ênfase sobre o ambiente enquanto condição não–objetual possibilitadora de objetos, que é o fundamento de uma outra: a distinção entre relação com objeto e relações com o ambiente. Dessa forma, Winnicott abandona um elemento fundamental do componente ontológico da psicanálise tradicional: a relação sujeito–objeto –embutida tanto na teoria freudiana da pulsão como na da identificação e que continua presente nas fórmulas dos teóricos das relações objetais (Fairbairn) e mesmo na posição idiossincrática de Lacan–, abrindo essa disciplina para uma dimensão ontológica essencialmente nova. Essa mudança só pode ser devidamente apreciada à luz da ontologia fundamental de Heidegger, em particular, da sua crítica da relação sujeito–objeto e do seu conceito de ser–no–mundo como modo se ser possibilitador de todas as relações com os outros seres humanos e com as coisas.

A distinção entre ambiente (mundo) e objeto no ambiente permite ainda que se estude, de maneira organizada, vários tipos de ambiente – mãe–ambiente, espaço potencial, mundos interno e externo, círculo benigno, família, escola, ambiente social – e diversos tipos de objeto – objetos subjetivos, transicionais, lúdicos, instintuais ("pulsionais"), externos, internos etc.

A teoria do amadurecimento permite uma reelaboração das posições tradicionais sobre esses temas, caso elas existam. Por um lado, fica possível a distinção entre modos sadios (ativos, maduros) e não–sadios (reativos, imaturos) de alojamento em ambientes. Os modos sadios podem ser ilustrados pelas capacidades do bebê de sair do colo materno, habitar o espaço potencial, sonhar com um clube, mover–se no círculo benigno da fase do concernimento etc.; já os modos não–sadios, pela tendência de se agarrar ao colo da mãe, a incapacidade de brincar, de sonhar, pela tendência para fanstasying, a inibição em virtude da quebra do círculo benigno, o humor depressivo, bem como defesas ou regressões causadas por conflitos instintuais nas relações familiares.

Por outro lado, Winnicott distingue entre relacionamento sadio e reativo com objetos. Pertence ao primeiro tipo chupar o polegar (veremos isso a seguir), usar objetos externos para atender às necessidades egóicas, usar objetos em ações que visam à satisfação instintual, poder ser responsável, poder ser agressivo etc. Da mesma forma, não saber substituir o seio materno, fetichizar o objeto transicional e não saber escolher entre objetos são exemplos de modos patológicos (reativos) de relacionamento objetal. Todos esses conceitos de relação só recebem significado preciso se forem referidos às fases sucessivas do acontecer maturacional, caracterizadas por tarefas específicas a serem resolvidas por cada indivíduo, os objetos sendo de diferentes tipos, de acordo com o grau de amadurecimento alcançado pelo indivíduo.

Embora continue usando, como observei, as expressões "objeto" e "relação com objeto" do jargão psicanalítico, sobretudo quando discute com psicanalistas as relações instintuais com objetos do mundo externo, Winnicott emprega os termos "pessoa" e "relação pessoal" ou "interpessoal" cada vez que deseja enfatizar que está tratando de relações dos seres humanos entre si. De resto, o uso indiscriminado do termo "objeto" reforça a tendência para o naturalismo objetificante que passou a dominar as relações inter–humanas e a teorização sobre os seres humanos nos dias de hoje, apesar de inaceitável tanto do ponto de vista teórico (filosófico)21 como moral.22 Aos impasses teóricos somam–se os técnicos, que impedem, para muitos psicanalistas ortodoxos, aceitar e valorizar positivamente a contribuição pessoal dos pacientes na relação clínica definida por condições especiais e controladas – o caráter impessoal do setting tradicional foi também objeto de constantes críticas de Winnicott.23 Por tudo isso, quando se discute a psicanálise em geral e, em particular, a de Winnicott, creio ser oportuno evitar falar em "relações de objeto" nos contextos em que se diz algo sobre relacionamentos entre pessoas (entre um si–mesmo e um outro si–mesmo) e mesmo sobre coisas que não são meros "objetos externos objetivamente percebidos", como são as de uso cotidiano ou as obras de arte.24

Pelos mesmos motivos, convém ter cautela – sempre tomando o cuidado de não produzir colapso de comunicação – ao usar os termos "sujeito" e "relação sujeitoobjeto". No início da vida, o bebê humano não é um sujeito, pois nem ao menos existe como alguém independente. Ele precisa chegar a existir antes de poder executar qualquer operação mental ou acional elaborada (ter necessidade instintual, desejar, projetar, pensar, atuar etc.), antes, portanto, de criar capacidades que são tradicionalmente – na filosofia e, por influência desta, na psicanálise – tomadas como traços essenciais da subjetividade humana. Mesmo os adultos escapam cotidianamente da condição de sujeito, pois, na maioria das vezes, cuidam dos problemas das suas vidas apoiados na identidade primária, adquirida muito cedo no processo de amadurecimento pela identificação com a mãe–objeto facilitada pelos cuidados da mãe–ambiente, anteriormente ao desenvolvimento da capacidade representacional. A intra–humanidade da dupla mãe–bebê é anterior à intersubjetividade. Tal como o de objeto, o conceito de sujeito usado na psicanálise é ambíguo e fonte de confusões teóricas e clínicas graves.

Além de ter abandonado o conceito de pulsão e modificado de maneira radical o de relação objetal, Winnicott também substituiu o conceito freudiano de aparelho psíquico por integração ou identidade pessoal, resultado do "desenvolvimento emocional da pessoa individual" – tema principal da teoria winnicottiana do amadurecimento humano.25 É verdade que Winnicott continuou usando os termos metapsicológicos freudiano que designam as instâncias psíquicas, mas ele lhes atribuiu outras acepções. Depois de ter deixado claro que "ego" é um termo teórico sem sentido determinado na linguagem cotidiana – "usado por conveniência, com sentido acordado" entre os psicanalistas –, Winnicott o emprega, tal como faz a psicologia do ego, para falar da "evolução do ego, incluindo o conceito de tendência para a integração, para a capacidade de relacionamento com objetos e para a parceria psicossomática" (1989a, p. 490; tr. p. 371). Essa tendência atinge um momento decisivo na fase do "EU SOU", na qual é criada a diferença entre o si–mesmo e o mundo exterior como tal, permitindo que o indivíduo se experiencie, pela primeira vez, habitado por instintos e se torne, com o tempo, responsável por estes. O termo "id" passa a designar a vida instintual no sentido de um conjunto de funções corpóreas "registradas, catalogadas, experienciadas e finalmente interpretadas pelo funcionamento do ego", isto é, pelo processo integrativo.26 Sendo assim, sem o ego não há o id – tese que difere radicalmente da afirmação ortodoxa de o ego ser um desdobramento do id. Finalmente, depois de ter reconhecido que o termo "superego", por não fazer parte da linguagem cotidiana, pode também ser usado "de qualquer maneira que decidirmos", Winnicott propõe a distinção entre dois usos: o de Freud e o dele próprio, feito na teoria do amadurecimento. Em Freud, o "superego" designa algo que pertence especificamente "à passagem do complexo de Édipo", mas que, não obstante, é construído gradualmente pela evolução dos mecanismos intrapsíquicos que supostamente datam do início da vida do indivíduo (1989a, p. 468; tr. p. 355). Segundo a teoria winnicottiana do amadurecimento, esses mecanismos do funcionamento mental primitivo "não devem ser chamados de superego". Cabe, ao invés disso, atentar para a diferença "entre a idade pré–autônoma e a idade autônoma" e para a "jornada que vai da dependência à independência" (idem). É ao longo dessa transição, mais precisamente na fase do concernimento – isto é, ainda na relação dual, pré–edípica –, que o indivíduo adquire vários elementos que constituirão a parte essencial da moralidade adulta, a começar por uma capacidade de reconhecer o outro enquanto outro: a capacidade de sentir–se pessoalmente responsável ("concernido") pelos danos causados ao ambiente decorrentes do uso excitado da mãeobjeto. Nessa perspectiva, o superego impessoal freudiano da censura, da culpabilização e da necessidade de punição em termos de lei passa a figurar como traço do falso simesmo ou até mesmo como indício de desvios patológicos.

Dessa reformulação (no quadro da teoria do amadurecimento) da teoria estrutural da mente elaborada por Freud decorrem importantes conseqüências, tanto para a teoria psicanalítica da origem e do sentido da moralidade – a sua origem é préedípica e o seu sentido desvinculado da lei, inclusive da lei de incesto – como para a teoria da cultura. "Freud, na sua topografia da mente, não encontrou lugar para a experiência cultural", afirmou Winnicott em 1966 (1988, p. 112; tr. p. 133). Dois anos mais tarde, ele estenderá essa crítica a todos os psicanalistas que trabalham no paradigma freudiano, dizendo que a "abordagem ortodoxa" do ser humano, feita em termos da metapsicologia, "não concedeu nenhum lugar para a experiência cultural" (1989a, p. 203; tr. p. 160). A experiência cultural é um fenômeno que não acontece no aparelho psíquico, mas no espaço potencial, numa área entre a mãe e o bebê que não é nem externa (física) nem intrapsíquica, mas que, não obstante, deve ser pensada como parte da organização do si–mesmo do bebê. Aberto na fase de transicionalidade (com base na experiência de confiabilidade do ambiente), esse espaço é inicialmente ocupado por relacionamentos objetais do tipo não–orgiástico, a saber, pelo brincar, atividade criativa e excitante, não por ser impulsionada pelos a instintos, mas por refletir a precariedade que, na experiência do bebê, caracteriza o jogo livre entre o mundo subjetivo e o mundo objetivamente percebido (1988, p. 61; tr. p. 77).

Uma outra mudança conceitual importante merece ser destacada. De acordo com a sua visão de que a psicanálise precisa de diferentes tipos de linguagem, Winnicott praticamente limitou o uso do conceito de inconsciente freudiano à descrição de excitações instintuais e fantasias correspondentes que, por serem reprimidas, não são acessíveis à consciência, e, nesse sentido específico, não integradas (1988, p. 49; tr. p. 67). Trata–se de fatos objetivos da vida psíquica, de algo que foi reprimido por ser inaceitável à consciência, mas que tende a tornar–se consciente e que, levantadas as resistências, pode tornar–se consciente. Entretanto, o conceito freudiano de inconsciente reprimido não pode ser usado para falar das dissociações e das cisões identificadas por Winnicott em pacientes psicóticos e outros. Nesses casos, o inconsciente é algo nãomental e mesmo não–psíquico: a dissociação e a cisão não dizem respeito à nãoaceitabilidade de estados mentais pela consciência ou pelo intelecto, quer teórico quer prático, mas à não–integração ou, ainda, à desintegração pessoal e/ou psicossomática – falha concebida seja como uma parada do amadurecimento seja como uma perda de aquisições já realizadas. Dito em uma outra linguagem, mais próxima de Heidegger: o inconsciente winnicottiano consiste no não–acontecido (mas que precisava acontecer) e no "desacontecido" (mas que precisava continuar sendo); em algo, portanto, que precisa ser vivido ou revivido e que não necessita de elaboração representacional ou simbólica.

Exemplo típico do inconsciente winnicottiano não–acontecido e não–mental são "os cortes no fio da continuidade do si–mesmo", relacionados às repetidas fases de reação prolongada a uma intrusão ambiental durante o parto. Os indivíduos traumatizados devido principalmente à demora desse processo continuam precisando reencenar os cortes acontecidos, isto é, nascer pela primeira vez de verdade. Para tanto, buscam oportunidades para regredir à dependência, mas precisamente a um estado intrauterino, tanto na vida real (por exemplo, a falsa homossexualidade) como na análise (como a compulsão a ter uma mão na testa, representando o corpo da mãe). Ao oferecer o setting adequado para esses "não–nascidos", o analista propicia a atuação (acting–out) de traços mnemônicos relativos ao nascimento e preservados na memória corporal, fenômeno clínico que difere radicalmente das brincadeiras de crianças que contêm simbolismos ligados ao nascimento e das fantasias de adultos que, conscientemente ou não, relacionam–se com o nascimento. Os pacientes desse grupo, em particular os psicóticos, tendem, diz Winnicott, a "reviver" a experiência do nascimento reativando certas funções corpóreas e "passando ao largo de fantasias que se expressam por símbolos" (1958a, p. 189; tr. p. 272). Esse esforço em desfazer a não–integração é radicalmente distinto não somente de processos conscientes, mas também de processos primários no sentido de Freud.

Uma outra ilustração do conceito de winnicottiano de inconsciente não–mental é dada pela produção, na fase do concernimento (cujo ápice se situa por volta dos dois anos e meio), de uma ordem ou padrão no mundo interno mediante um "trabalho que não é mental nem intelectual". Trata–se de uma tarefa psicossomática intimamente relacionada "à tarefa da digestão, que também se realiza à margem do entendimento intelectual, o qual pode acontecer ou não" (1988, p. 77; tr. p. 97).

Ao se livrar da teoria freudiana das pulsões, Winnicott abandonou também a busca do prazer como princípio determinante da vida humana. Sem ignorar que os indivíduos humanos também procuram obter prazer, ele nega que isso ocorra, como sustenta Freud, em virtude de um princípio de funcionamento causal do aparelho psíquico. O indivíduo humano não se relaciona com outras pessoas por buscar o prazer, mas por precisar da presença e da confiabilidade dos outros para que sejam atendidas as suas necessidades egóicas e por necessitar que sejam satisfeitas as suas tensões instintuais. Neste último caso, "satisfazer" significa, em primeiro lugar, aplacar ou acalmar; o termo "acalmar" tomado no sentido descritivo e não metapsicológico (diminuição da pressão "pulsional"). O prazer não fica de fora, mas tem o sentido de "recompensa" pela satisfação encontrada no clímax da exigência do instinto (idem, p. 39; tr. p. 57).

Winnicott também opera várias mudanças importantes no componente metodológico da matriz disciplinar da psicanálise. Em primeiro lugar, recusa a teorização metapsicológica, que trabalha com conceitos especulativos, não testáveis no domínio de dados clínicos, e opta pela teorização de tipo "empírico", a que procede "pela observação dos fatos, pela construção da teoria e seus testes, e pela modificação da teoria de acordo com a descoberta de novos fatos" (1996a, p. 5; tr. p. 23). Em segundo lugar, Winnicott distingue diferentes modos de construção de teorias empíricas, levando em conta os fatos tratados e a linguagem empregada. Um desses modos, característico da teoria freudiana das relações instintuais da fase do Édipo ou das fases ainda mais tardias, vale–se da objetificação do "material clínico" – isto é, trata os fenômenos clínicos como fatos da natureza, pertencentes ao mundo externo refletido no psicanalista–espelho – e emprega uma linguagem também objetificante. Sem abandonar por completo esse procedimento, Winnicott introduziu de maneira sistemática um modo de teorização diferente,27 que corresponde a uma atitude participativa e nãoobjetificante do analista, empregando uma linguagem de comunicação direta, também não–objetificante. Essa linguagem é usada para trazer a palavra aos fatos pertencentes aos mundos próximos da origem, isto é, para descrever os ambientes nos quais se constitui o ser dos bebês humanos no período inicial do processo de amadurecimento – que vai da fase chamada primeira mamada teórica ao estágio do concernimento, inclusive – ou para descrever os estados muito regredidos de adultos.28 Segundo Winnicott, a "linguagem dos instintos" não pode dizer tudo o que, na psicanálise, precisa ser dito sobre o ser humano. Usada na caracterização de fases anteriores à edípica, ela torna–se "errada" (1988, p. 34; tr. p. 52). Ao atentar para a multiplicidade de mundos criados e habitados pelo seres humanos ao longo do processo do amadurecimento, assim como para a diversidade de objetos e relações com os quais se vêem envolvidos, Winnicott reconheceu a necessidade de usar a multiplicidade dos dizeres29 a fim de falar desses mundos. Embora desconfiasse de quem se compraz em introduzir palavras novas, ele modificou radicalmente o vocabulário da psicanálise. Os termos winnicottianos tais como "solidão essencial", "continuidade do ser", "ambiente", "confiabilidade", "experiência do nascimento", "colo da mãe", "objeto subjetivo", "dois em um" (relação dual mãe–bebê), "objeto transicional", "holding", "manejo", "apresentação de objeto", "uso do objeto", "brincar", "estágio de concernimento", "moralidade inata", "senso de responsabilidade", "experiência cultural", "privação", "deprivação", "tendência anti–social", "jogo de rabisco", "regressão à dependência", mesmo sem serem inicialmente cunhados por ele, são apenas alguns dos que mudaram radicalmente a paisagem intelectual da psicanálise dos nossos dias.

Seria um engano pensar que essas considerações, de natureza abstrata e mesmo filosófica, estejam aqui fora do lugar. Winnicott, tal como Freud, é um pensador radical. A sua obra exige leitores igualmente decididos, dispostos a levar em conta todos os aspectos importantes do seu novo paradigma e a romper, quando necessário, com usos estabelecidos.

 

Referências

Nota: As obras de Winnicott são citadas de acordo com a bibliografia de Knud Hjulmand, publicada em Natureza humana, v. 1, n. 2, 1999, pp. 459–517. As traduções brasileiras são parcialmente refeitas.

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Endereço para correspodência
E–mail: loparicz@uol.com.br

Recebido em 28 de janeiro de 2006.
Aprovado em 23 de março de 2006.

 

 

1 Várias idéias de Kuhn se aproximam das de Heidegger, entre elas a de que ciência em geral é uma atividade de resolução de problemas, que no paradigma de toda ciência existe um elemento ontológico e que a ciência progride por revoluções (cf. Loparic 1999 e 2001b). A tese de que Heidegger antecede, por várias décadas, a concepção da ciência empírica proposta por Kuhn e desenvolvida por autores tais como Steven Toulmin e Dudley Shapere, ainda pouco tratada no Brasil, foi e continua sendo objeto de numerosos estudos no exterior, sobretudo nos Estados Unidos (cf., por exemplo, os artigos de Theodor Kisiel e Don Ihde, publicados em Babich 2001). Um outro paralelo a ser considerado é aquele entre Kuhn e Kant, levando em conta o fato de o próprio Kuhn ter afirmado estar desenvolvendo "uma espécie de kantiano pós–darwiniano" (Kuhn 2000, p. 104). Sobre esse tema, cf. Hoyningen–Huene 1993, pp. 33–6 et passim.
2 Vários outros autores aplicaram Kuhn ao estudo da história do pensamento psicanalítico, entre eles Modell (1968), Levenson (1972), Lifton (1976) e, em particular, Greenberg e Mitchell (1983). O alcance dos resultados desses dois autores ficou, contudo, severamente limitado pelo fato de eles considerarem apenas o componente metafísico da teorização psicanalítica, deixando completamente de lado os exemplares, o principal comente de uma matriz disciplinar do tipo kuhniano. Uma posição simpática à mesma abordagem foi tomada recentemente por Joyce McDougall (1997, pp. 255–6). Creio que a resistência de certos comentadores a analisar a estrutura e a história da psicanálise do ponto de vista kuhniano se deve, em boa parte, à falta de familiaridade com a obra de Kuhn e, de um modo geral, com os problemas da historiografia das ciências factuais. Há quem diga, por exemplo, que o conceito kuhniano de paradigma não se aplica às ciências humanas. Isso é um erro, que o leitor poderá verificar ao examinar, com atenção, o Posfácio de Kuhn 1975 e Kuhn 2000, cap. 10.
3 Uma descrição mais detalhada do paradigma edípico encontra–se em Loparic 2001a e Fulgencio 2003.
4 O presente parágrafo é uma continuação da análise da crise winnicottiana apresentada nas seções 3 e seguintes de Loparic 2001a.
5 Num texto autobiográfico, de 1967, ele caracteriza a sua posição como "protesto contra a referência à regressão universal a partir da satisfação/frustração do Id no triângulo edípico", acrescentando que, com o tempo, surgiram outros psicanalistas (em particular, Alice Balint) que se mostravam interessados nesse ponto, e que outros profissionais, que não eram psicanalistas, mas que tinham grande experiência no tratamento das crianças, entre elas Margaret Lowenfeld e Merrill Middlemore, estavam defendendo teses semelhantes, sem constituírem, contudo, um grupo coeso (1989a, pp. 569 e 575; tr. pp. 434 e 438).
6 Sobre esse ponto, cf., por exemplo, Winnicott 1989a, p. 578; tr. pp. 439–40.
7 Uma indicação sobre essa tomada de posição encontra–se em Winnicott 1988, p. 2.
8 Veja, por exemplo, a desenvoltura de Lacan no uso de construções auxiliares e de metáforas óticas, tidas como autorizadas por Freud (Lacan 1975, p. 90).
9 Visto que o conceito winnicottiano de amadurecimento pode ser interpretado em termos da fenomenologia heideggeriana da acontecência do ser–no–mundo do ser humano, o paradigma proposto pelo psicanalista inglês pode ainda ser chamado de acontecencial. Para maiores detalhes sobre o paradigma winnicottiano, cf. Loparic 2001a.
10 Falo em semi–ordem, porque os distúrbios podem surgir sobrepostos.
11 O enunciado clássico dessa classificação encontra–se em Winnicott 1961a, cap. 27.
12 Esse neologismo é a minha tradução do termo concern de Winnicott.
13 O desconhecimento da importância da teoria winnicottiana do amadurecimento é uma das principais razões da pobreza conceitual da maioria dos artigos sobre a teoria winnicottiana da sexualidade contidos em Caldwell 2005. A tese de doutorado de Maria de Fátima Dias (cf. Dias 2005), elaborada de acordo com o ponto de vista apresentado neste artigo, apresenta um dos poucos estudos aprofundados sobre esse assunto.
14 Na medida em que o psiquismo é definido, desde Leibniz até Freud, pelas capacidades de representação e de apetição, as relações humanas originárias, tal como concebidas por Winnicott, não devem ser ditas relações de ordem "psíquica". Para uma crítica do psiquismo como conceito fundamental da psicanálise e para a exposição de uma concepção alternativa do ser humano, baseada em Heidegger e Winnicott, cf. Loparic 2001b. Embora essa crítica tenha semelhanças com as objeções de Lacan à psicologia do ego, a alternativa indicada difere radicalmente da metapsicologia estruturalista do sujeito apresentada pelo psicanalista francês.
15 Esses três tipos de "tendências" são enumerados em 1989a, p. 256, nota; tr. p. 199. Faço constar que o termo winnicottiano drive é traduzido erroneamente por "pulsão".
16 O conceito winnicottiano de animal humano é esclarecido em Loparic 2000.
17 Cf. Winnicott 1988, p. 133; tr. p. 155; 1987b, pp. 40 e 42; tr. pp. 35 e 37. No que segue, o conceito winnicottiano de instinto será examinado em mais detalhe e contrastado mais uma vez com o conceito freudiano de pulsão.
18 O jargão psicanalítico brasileiro usa "relação de objeto" e o francês relation d´objet, expressões que brigam com a gramática das línguas respectivas. Trata–se da tradução problemática dos termos Objektbeziehung de Freud, para o qual os psicanalistas ingleses (inclusive Winnicott) empregam objectrelationship ou object–relating, ambos perfeitamente idiomáticos. Em Vocabulário de psicanálise, Laplanche e Pontalis justificam o uso da expressão francesa não gramatical no lugar da gramatical relation à l´objet, dizendo que a primeira "vem caracterizar" a inter–relação entre o sujeito e o objeto apontada sobretudo por M. Klein, a saber, o fato de o sujeito constituir o objeto e ser modelado por este em suas atividades. Temo que uma expressão não gramatical, ao invés de adquirir um sentido estipulado pela teoria, insista em permanecer sem sentido.
19 Winnicott introduz aqui o conceito de dwelling – habitar, demorar–se, assentar–se –, que pode proveitosamente ser aproximado dos conceitos heideggerianos de "ser–no–mundo" e "habitar o mundo.
20 A idéia da "adaptação materna suficientemente boa às necessidades do bebê" não deve ser confundida, diz Winnicott, com "o conceito de satisfação, pela mãe, dos impulsos instintuais" (1989a, p. 242; tr. p. 188).
21 Essa tendência gerou impasses teóricos que tornam adicionalmente problemático o modo de teorização adotado por Freud, fato destacado por pensadores como Heidegger e Wittgenstein. No campo psicanalítico, críticas ao naturalismo objetificante de Freud encontram–se, por exemplo, em Guntrip 1996 [1975]. Ainda estudante de medicina, Harry Guntrip rejeitou "a psicobiologia freudiana das pulsões [instincts]" por ser mecanicista. Reconhecendo, contudo, a grande importância das descobertas de Freud na área da psicopatologia, Guntrip se dedicou à tradução "da sua [de Freud] psicobiologia, ou melhor, dos [seus] dados clínicos para os termos da filosofia de ‘relações pessoais’" (p. 746).
22 A objetificação tomou conta do modo de pensar e de sentir nos dias de hoje, a tal ponto de, muitas vezes, parecer oportuno, e mesmo necessário, lembrar aos nossos contemporâneos que os outros seres humanos com os quais convivem são, antes de tudo, os seus pais, irmãos, amantes, vizinhos, parceiros etc., e só em condições muito artificiais ou mesmo patológicas, seus objetos. A objetificação é parte inerente sem, contudo, ser definitória da existência humana. Um tratamento, inspirado em Heidegger, da nossa responsabilidade em não objetificar os outros seres humanos e em deixá–los ser enquanto outros encontra–se em Loparic 2003.
23 Veja, por exemplo, Winnicott 1988, p. 61; tr. p. 79.
24 O conceito de objeto usado na psicanálise tem conotações que lembram o uso desse termo na linguagem cortesã do século XVII, influenciada pela teoria filosófica da representação (cf. Laplanche e Pontalis 1971, p. 407).
25 Em certos textos, ele usa o termo "psicomorfologia" como sinônimo de psicologia dinâmica.
26 Afirmada em 1962, essa tese é retomada literalmente em vários textos posteriores (cf., por exemplo, 1989a, p. 182; tr. p. 143).
27 Antes de Winnicott, alguns outros autores, entre eles Sándor Ferenczi, fizeram as primeiras tentativas nessa mesma direção. Nenhuma delas prosperou, talvez por terem sido severamente censuradas pelo establishment psicanalítico durante décadas.
28 O primeiro desses mundos é o subjetivo, constituído a partir da identificação primária do bebê com a mãe–ambiente ou, como Winnicott diz ainda, com a mãe–objeto subjetivo. Essa identificação, pressuposta em todos os tipos de "relações com objetos" posteriores, não é, ela mesma, uma relação (objetal). "É axiomático", diz Winnicott, "que não há relacionamento com objeto subjetivo" (1989a, p. 287; tr. p. 221). As relações objetais propriamente ditas só começam depois da criação de um novo mundo, o mundo externo, o que pressupõe a constituição de um novo sentido de realidade – o de realidade objetivamente percebida: "O mundo acha–se lá para o relacionamento apenas na medida em que é objetivamente percebido, sendo aquilo que chamamos de externo à criança" (idem, p. 286; tr. p. 221).
29 A dimensão filosófica desse conceito foi explicitada em Loparic 2004.

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