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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

ARTIGOS

 

Linhas, riscos e rabiscos - considerações sobre o presente

 

Lines, scratches and scribbles - thoughts about the present

 

Líneas, rayas y garabatos - consideraciones sobre el presente

 

 

Katia AguiarI; Vanessa FonsecaII; Raphaella DarosIII

IDocente. Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIPsicóloga. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIPsicóloga. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória. Estado do Espírito Santo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo, ao dar contorno a alguns dos achados de estudos e pesquisas que caminham em regime de coprodução em diferentes atividades de formação junto a profissionais, grupos e integrantes de movimentos sociais, reafirma o lugar tensionado que assumem os denominados trabalhadores sociais em nosso presente. Tomando como campo de nossas análises os processos de judicialização da vida colocados em andamento no cenário contemporâneo, refletimos sobre como determinadas demandas e políticas promotoras dos direitos humanos operam. Imersas nas lutas por igualdade e justiça, nos move a crença de que a questão humana deve prescindir de fórmulas simplificadoras. Entendemos que o exercício do direito ganha outras tensões, já não se tratando apenas de reivindicação endereçada ao Estado, mas de todo um campo de disputas, de litígios que se instala nas relações de vizinhança - entre grupos, indivíduos, instituições, entre movimentos sociais.

Palavras-chave: Poder; Micropolítica; Judicialização da vida; Trabalhadores sociais.


ABSTRACT

This article, by giving shape to some of the study findings and researches that go together with a co-production regime in different training activities along with professionals, groups, and members of social movements, reaffirms the tense place assumed by the designated social workers in our present. Taking the processes of life judicialization in the contemporary scenario as the basis for our analysis, we reflect on how certain demands and policies promoting human rights operate. Immersed in the struggles for equality and justice, we are moved by the belief that the human question should dismiss simplifying formulas. We understand that the exercise of law generates other tensions since it is no longer a claim addressed only to the State, but rather a field of disputes and litigations, which establishes itself in neighborly relations - between groups, individuals, institutions, among social movements.

Keywords: Power; Micropolitics; Judicialization of life; Social workers.


RESUMEN

Este artículo, al dar contorno a algunos de los hallazgos de estudios e investigaciones que caminan en régimen de coproducción en diferentes actividades de formación junto a profesionales, grupos e integrantes de movimientos sociales, reafirma el lugar tensado que asumen los denominados trabajadores sociales en nuestro presente. Tomando como campo de nuestros análisis los procesos de judicialización de la vida puestos en marcha en el escenario contemporáneo, reflexionamos sobre cómo ciertas demandas y políticas promotoras de los derechos humanos operan. Inmersiones en las luchas por igualdad y justicia, nos mueve la creencia de que la cuestión humana debe prescindir de fórmulas simplificadoras. Entendemos que el ejercicio del derecho gana otras tensiones, ya no se trata sólo de reivindicación dirigida al Estado, sino de todo un campo de disputas, de litigios que se instala en las relaciones de vecindad - entre grupos, individuos, instituciones, entre movimientos sociales

PalabrasClave: : Poder; Micropolítica; Judicialización de la vida; Trabajadores sociales.


 

 

[...] o verdadeiro problema do homem está em um modo de viver que o torna
cúmplice daquilo que supostamente ele combate ou quer se libertar,
cúmplice do poder que o captura. Desconstruir a cumplicidade em nós é essencial.

L. Fuganti

 

Abertura, arriscando um plano de escrita

Os países ocidentais erigiram suas fortalezas à custa do roubo e da exploração do resto do mundo. Sabemos. As estratégias de invasão, ocupação e dominação são cada vez mais vasculhadas e conhecidas. Elas ganham as páginas dos livros, dos relatórios de pesquisas, os espaços nas mídias alternativas, há mais ênfase nas denúncias e nas histórias contadas, em especial pelos povos tradicionais, nativos dos territórios.

Se podemos voltar no tempo e reconhecer que essas práticas acompanham a nossa história, é certo que também podemos dizer de uma preguiça moral, além de teórica e política, quando nos contentamos com demonstrações das semelhanças entre o passado e o nosso presente (Foucault, 1986, p. 11) - "isso é assim, desde que mundo é mundo". Desconfiar das evidências, uma quase advertência que nos convida a colocar importância em acessarmos as instalações da nova ordem do mundo e nelas rastrearmos suas especificidades, interrogando o que a diferencia dos regimes anteriores.

Essa certamente é uma das forças que nos move nesta escritura, menos pela aceitação de um dever e mais por entendermos ser este um movimento necessário ao exercício de uma certa localização, sendo também um movimento inacabado e aberto à experimentação de incertas temporalidades. Trata-se da indispensabilidade de olhar o mundo ao redor e suas condições determinadas. Esse movimento, necessário e desejante, nos coloca diante de nossos interesses investidos em estudos e pesquisas, favorece a análise de nossas implicações e pode sugerir outros caminhos investigativos.

No presente artigo, a busca por soluções não foi o que orientou a jornada de escritura, mas, ainda que as tensões dos desdobramentos por vezes possam forçar impasses, arriscamos um plano de escrita. Seguindo rastros de uma teoria das multiplicidades, encontramos que "escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir" (Deleuze, & Guattari, 1995, p. 13). Daí arriscarmos um texto que se faz na conjugação entre linhas de escrita e linhas de vida.

Convocadas por nossas práticas como trabalhadoras sociais, refletiremos sobre como determinadas demandas e políticas promotoras dos direitos humanos operam. Imersas nas lutas por igualdade e justiça, nos move a crença de que a questão humana deve prescindir de fórmulas simplificadoras. Precisamente, há que se desconfiar de saídas rápidas e consensuais.

Seguindo algumas linhas, trazemos traçados de um exercício de rastreamento de forças para colocar o problema. Com que linhas precisamos romper para habitar as fronteiras, as encruzilhadas, os cruzamentos, metáforas das lutas sociais que estão a denunciar as formas colonizadoras de busca por justiça. Como romper com a lógica normalizadora que rege a política, as instituições e leis ocidentais, pretensamente garantidoras de tais direitos? Como romper com práticas normatizadoras, colonizadoras e prescritivas, em meio à convocação dos saberes e especialismos que nos constituem como trabalhadores sociais?

Se com uma teoria da multiplicidade podemos afirmar que somos feitas de linhas, a análise de nossas implicações se desdobra rastreando alguns riscos, para interrogar nossas práticas, apreender alguns de seus efeitos. Alguns riscos já são para nós velhos conhecidos, como o risco de entrarmos pelos caminhos dos especialismos silenciando vozes. Outros, entretanto, são captados pelos efeitos desestabilizadores gerados em nossos corpos, mas ainda não podemos nomear. No entanto, na condição de inomináveis, tais riscos podem nos levar a pressentir, a acessar percepções e afetos nascentes, a avaliar de outros modos, a cada vez, os nossos fazeres com quem mais estiver envolvida nos processos. Eles podem aparecer como inquietações e podem levar a uma decisão política, a decidir por uma política de pesquisa que acolhe e coloca em análise o que, em meio às práticas, percute em nossos corpos.

Tais linhas de força, por vezes imperceptíveis em seus movimentos de deriva, podem abrir acesso aos processos que se produzem e aparecem na multiplicidade - as subjetivações, as totalizações, as unificações (Deleuze, & Guattari, 1995, p. 8). Acessando os processos de constituição do que está posto como verdade, interpelar certezas, desnaturalizando, rachando pontos de cristalização. Ensaiando rabiscos, abrir caminhos investigativos: como uma aposta que, fora das origens e finalidades segmentares, favoreça a criação de outros modos de vida.

 

Seguindo algumas linhas, colocar o problema

Na nova ordem do mundo, de assentamento do projeto neoliberal, sabemos de uma economia que articula de forma singular zonas de vulnerabilidade, margens de tolerância, um sistema de informação geral e a constituição de consensos. Estratégias vinculadas à possibilidade de rápida intervenção no que se faz intolerável para o poder. Coerções e incitações que montam as engrenagens do autoengendramento e do autocontrole social (Foucault, 1986). O acesso aos fatos em tempo real acelera a propagação de notícias carregadas de espanto, indignação e de medo. Reações afetivas que, longe de serem naturais, se produzem ora pela descoberta de que não vivemos na "aldeia global", ora pelos efeitos contundentes de um clima de ameaça, propagado e generalizado, que nos quer detidas em polarizações.

A nova ordem do mundo traça caminhos retos que levam a abismos. Em cada canto, cidade, nas dobras de algum morro, nas margens de um novo cercamento, desfiliados, precários, famintos, sem-terra e teto, corpos desvalidos, nos (a)parecem como terminais de processos acelerados de descarte. A nova ordem do mundo impõe seus caminhos retos por procedimentos ilusionistas de flexibilização e descontrole, num fluxo permanente de informações e mercadorias, incitando humanos e não humanos à composição de máquinas, em sucessivos acoplamentos simuladores de movimento e de transformação. A capitalização dos excedentes, das criações e dos desvios se faz num processamento que é também de apropriação de riquezas e de reenvio das sobras às linhas de segmentação duras, pregnantes nos enquadramentos normativos (classe, sexo, idade, profissão, cidadania).

Ainda assim explosões de corpos excedem, invadem as ruas, grafitam paredes, cantam, ocupam, empoemam, protestam. Categorias e nomeações são rachadas e vazam modos de pensar/viver diversos, ensaiando outras trajetórias - cis, trans, homo, hetero... Também vazam reivindicações, representações e insistências que podem reafirmar destinos. Como escapar das ciladas do reconhecimento?

A nova ordem do mundo tem que se haver com corpos cada vez mais "pobres para a dívida, numerosos para o confinamento" (Deleuze, 1992, p. 224), intensamente desterrados e expatriados para caberem em alguma regulação migratória, demasiadamente híbridos para alguma cidadania. A nova ordem do mundo amontoa corpos em covas rasas, engaiola crianças e atualiza estratégias de contenção de mulheres fazendo-as experimentar "uma alienação de seus corpos, de seu 'trabalho', e até mesmo de seus filhos, mais profunda que a experimentada por qualquer trabalhador" (Federic, 2017, p. 180). A nova ordem faz varreduras pela criminalização das resistências à expropriação e pela militarização das disputas por recursos naturais, exterminando mundos.

Barricadas nas estradas, num breve estrato de tempo, nos fazem ver a diversidade de motivos, de interesses, de filiações, de argumentos que enxameiam cristalizando no que se diz greve1. Ainda que os corpos trabalhadores se agreguem na formação de um outro corpo (sindicato), a diversidade de motivos e de modos de estar na estrada, embaralham e inquietam as análises que insistem no encontro de um líder, de um centro de direção. O que se encontra são forças, tensões, linhas emaranhadas de continuidade e de ruptura: oscilantes, desmancham mandatos, hierarquias e riscam outros contornos; endurecidas, moralizam o movimento e investem no reconhecimento e na negociação. Neste contexto da recente greve dos caminhoneiros no Brasil, os agentes conseguiram uma significativa visibilidade e alguns avanços "interrompendo o fluxo de basicamente todos os insumos necessários para a sociedade brasileira", somos notificados de que "quando as vias institucionais para reivindicações de direito perante o Estado falham, parece que a única alternativa é o bloqueio" (Berzins, 2018, p. 95).

Cada piquete, um encontro. Com churrasco, bebida e música. Com discussão política, com vida. Interromper os fluxos do capitalismo não deve ser uma tarefa exclusivamente negativa, deve também carregar o contraponto da proposição alternativa. Construindo suas formas de confraternização, de troca, seus modos de aprendizado e mantendo-se sempre aberto às análises de implicação, análises de conjuntura e pensamento sobre os próximos passos. Sabe-se que um piquete não é eterno. Sabe-se que aquela suspensão do cotidiano tem um prazo razoavelmente curto de duração. Então que se tire o melhor proveito dessa suspensão, para quando a vida voltar aos fluxos usuais algo tenha ficado para além das marcas das fogueiras, amontoados de escombros e correntes pelo caminho (p.100)

Na nova ordem, o controle social funciona nas dimensões dos grandes contornos e dos detalhes, duas segmentaridades forjando, ao mesmo tempo, dois tipos de vigilantes: os de visão curta (molar/linhas duras) e os de visão ampla (molecular/flexíveis); e "o que eles vigiam são os movimentos, as manifestações súbitas, as infrações, perturbações e rebeliões que se produzem no abismo" (Deleuze, & Guattari, 1996, p. 73). Seguir vibrações, ínfimos movimentos nas microsegmentações, captar alterações; observar as dualidades, os enquadramentos binários, recortar e sobrecodificar o existente em favor da manutenção de modelos.

Tudo é político. Buscamos, seguindo algumas linhas de organização molar, de segmentação dura (percepções e sentimentos), visibilizar como os problemas que temos colocado ganham contornos, preenchimentos e anexos. Com outras linhas, de segmentações mais finas (microperceptos, afectos) que operam, captam e sentem de outro modo que não o da organização, acessamos alguns movimentos, potências de deriva de um certo estado de coisas.

A nova ordem do mundo, vista como uma dimensão molar, com a dureza de estratégias produtoras de consensos, está presente na criminalização de práticas de resistências - elas mesmas como microperceptos e afectos - que oscilam entre a captura e o deslocamento do que se produz como uma ordem a ser seguida. Suturas, cortes, fissuras, "toda essa cadeia e essa trama do poder mergulham num mundo que lhes escapa, mundo de fluxos mutantes" (Deleuze, & Guattari, 1996, p. 111), linhas de fuga à centralização/totalização. Na imanência mútua, nas entrelinhas, nas linhas de fuga imanentes ao campo social, o desembaraçar nos dá a ver tensões: no mundo que escapa, as rupturas podem criar, mas também ganhar o curso da destruição, linha de abolição, linha de morte.

Na nova ordem do mundo, os combates inscrevem-se entre políticas de existência entendidas aqui como tessituras, modos de manejar o registro dos conjuntos binários (representações), e suas relações de dupla dependência recíproca, com a flexibilidade, a criatividade permanente nas múltiplas combinações moleculares (crenças e desejos). Para além das contradições, interessa-nos que algo vaza, escapa às organizações, fluxo mutante, convulsivo, criador (quanta micropolítico) sempre subjacente à linha sólida e aos segmentos (Deleuze, & Guattari, 1996, p. 95).

Pensar com linhas e fluxos nos permite traçar um espaço onde as três modalidades coexistem, se misturam e se transformam - linhas duras, de corte; linhas flexíveis, de fissura; fluxo quanta ou "linhas" de fuga, de ruptura. Permite evocar diferentes temporalidades na montagem de uma analítica que é ao mesmo tempo prática e política: "a prática não vem após a instalação dos termos e de suas relações, mas participa ativamente do traçado das linhas, enfrenta os mesmos perigos e as mesmas variações do que elas" (Deleuze, & Guattari, 1996, p. 78). Nesse sentido, procuramos intercessores que pudessem contribuir na construção de um campo de consistência, mantendo atenção aos efeitos que poderiam ser visibilizados nas conexões, nas composições, nos bloqueios e nos impedimentos, nos riscos de um escape...

É nesse mundo, o das instalações neoliberais, onde perduram contendas nessa nova ordem sempre mediadas pelo sistema judiciário, que somos levadas a recorrer às leis na intenção de buscarmos algum reconhecimento, a direitos que nos deem acesso a serviços, à justiça para exercermos direitos. Tempo paradoxal, no qual as lutas por direitos fazem avançar uma economia entrecruzando modulações persuasivas - de tamponamento das tensões através de políticas de inclusões precárias - com incidências repressivas de silenciamento das deserções, nas políticas de encarceramento e mortificações variadas. Buscamos o justo. No entanto, o que é "justo" e de "direito" parece ter sido transfigurado, barbarizado, modulado, anexado às engrenagens de regulação das formas de coexistência.

O que temos como expressão máxima da nova ordem mundial é a expansão da função judiciária no corpo social, em seu duplo movimento de invasão (capilarização) no ínfimo da vida e de condensação (tomada para si) das funções de diferentes instituições - processamentos permanentes entre planos, micro e macropolítico, em uma ordem sustentada pelo controle. Atualização de um modo de operar o poder que se faz na "regulamentação jurídica de todos os comportamentos como modalidade de governo" (Lobo, 2012, p. 29). O direito não é mais um "direito", é benefício, ganho, privilégio; mercadoria a ser barganhada por bom comportamento, prêmio a ser conquistado na política de editais. Nessas condições, o exercício do direito ganha outras tensões: já não se trata apenas de reivindicação endereçada ao Estado, mas de todo um campo de disputas, de litígios que se instala nas relações de vizinhança - entre grupos, indivíduos, instituições, entre movimentos sociais, entre nós trabalhadoras sociais.

Foucault (1977; 1979; 2015), se afastando de uma concepção jurídico-política do poder, nos instiga a olhar para a promoção dos direitos e as tensões desse processo. Não se trata de pensar receitas, fórmulas, normas de saídas para as opressões, mas de afirmar a necessidade de problematização das práticas que nos afetam, produzindo modos de viver. É nessa direção de análise que consideramos a política que se hegemoniza na representação parlamentar, nas organizações e normas instituídas, como adjacente a outras tantas políticas difusas, por vezes dispersas, que também concorrem na produção de subjetividades. Na perspectiva micropolítica, muitas práticas se tornam políticas, já que "estão imbuídas em relações de forças, expressam regimes desejantes e governam a vida. Por isso se fala em políticas do cotidiano, da família, da subjetividade, do corpo, do desejo" (Hur, 2018, p. 45) e, acrescentaríamos, de pesquisa.

A apreensão da modulação judicializante nos chegou primeiro como microperceptos - mal-estar e inquietação - efeitos em nós das práticas punitivas e suas variadas penalidades que começaram a aparecer, cada vez mais intensificadas, como procedimento e como reivindicação. Tais práticas se fazem presentes nos processos de formação e de trabalho, em diferentes campos onde atuamos e por diversos corpos, individuais e coletivos. Observamos que não são exclusivas de nenhum credo religioso, de nenhuma classe social, de nenhuma adjetivação política como esquerda ou direita. Lembramos que, se desde um funcionamento disciplinar foi acionada a estratégia de "inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir" (Foucault, 1977, p. 76), no regime de poder atual, está em curso uma nova definição e institucionalização do que é judiciável, expansão do judiciário (Lobo, 2012, p. 29), dos fluxos de penalidades.

Nos chama a atenção anotações de uma analítica do presente indicando que os direitos sociais, até pouco tempo dispositivo agregador de contestações, na nova ordem do mundo vem se tornando obsoletos, sendo até abolidos, ao mesmo tempo em que refratam e se dispersam em direitos de minorias (Passetti, 2007). Efeitos colaterais de uma sociedade de controle na qual o Estado:

organiza sua segurança em polícias, forças armadas de superfície, herdadas da sociedade disciplinar, e sistemas de vigilância [satélites, serviços de informações e delações]. Ele passou a contar com a sociedade civil organizada, exercendo também múltiplos controles. Com isso, acautelou-se contra a multidão e a sitiou (Passetti, 2007, p. 25).

Cercear, assediar, aterrorizar, controlar ao ar livre. Sitiar como estratégia colonizadora a forjar sobreviventes, condenar muitos à lógica na qual "é a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o sobrevivente se sentir único" (Mbembe, 2018, p. 62). Pensando com as linhas, dizemos da transformação de uma linha de fuga quando a mutação é substituída pela destruição, pela abolição. Seguindo o seu funcionamento, nos aproximamos da especificidade dos microfascismos percebendo que "eles podem cristalizar num macrofascismo, mas também flutuar por si mesmos sobre a linha flexível, banhando cada minúscula célula", como um vírus (Deleuze, & Guattari, 1996, p. 110).

Não podemos deixar de notar que o sistema judiciário exerce uma seletividade na população que é presa. Não é o cumprimento de uma lei que estabelece a punição necessariamente, mas um regime em que a infração é percebida apenas quando cometida por parte de uma população marcada por sua cor, classe social e gênero. A perseguição policial se dirige à população negra. É possível propor uma lei que não recaia sobre essa população? Que outras construções de mundo nos livraria daquelas que investem numa lei para punir? Como promover direitos sem tutelar?

Embora entre nós a obra Vigiar e Punir (Foucault, 1977) tenha ganhado, desde os anos 1970, rápida popularidade alavancando críticas à função da escolarização na emergência e consolidação do capitalismo, revelando um sistema disciplinar de adestramento dos corpos, distribuição do espaço e controle do tempo, as contribuições desses estudos somadas àquele que hoje encontramos em A Sociedade Punitiva (Foucault, 2015) configuram e nos oferecem uma genealogia da forma-prisão. Ela nos faz ver as linhas de coemergência do campo da delinquência e das prisões, no contexto pós-revolução francesa, quando aquela é construída como um novo ilegalismo na tentativa de freio das lutas sociais que ameaçavam as classes dirigentes.

Como destaca Candiotto (2012), nos estudos foucaultianos o aprisionamento se mostra um meio eficaz de produzir delinquência, que passa a ser normalizada, tornada economicamente útil. Evidenciando a proximidade entre as tecnologias que encontramos no sistema prisional e aquelas utilizadas em outras instituições sociais, o autor aponta, ainda, que o penitenciário, sendo "a forma concentrada das instituições médicas, psiquiátricas, pedagógicas e industriais", "inocenta todas essas instituições de serem prisões, no sentido de que está reservada somente àqueles que cometeram uma infração, delito ou crime" (Candiotto, 2012, p. 20).

A prisão, junto ao sistema judiciário e ao dispositivo legislativo, gera e se dispõe à gestão dos ilegalismos, fazendo-os "jogar uns contra os outros". Ao lado dos ganhos econômicos acima referidos, o ganho político se anuncia: "quanto mais delinquentes há, mais a sociedade aceita os controles policiais" (Pol-Droit, 2004, pp. 49-50). Em nosso presente, em meio a ameaças de toda a ordem, num contexto de perdas e danos por vezes irreversíveis, a naturalização dos castigos e punições têm na forma-prisão sua formulação maior (Foucault, 1977) e no genocídio o ápice da "gestão policial e policialesca da vida cotidiana dos pobres" (Batista, 2013, p. 66).

Como figura, a judicialização condensa questões advindas de variadas práticas sociais e as faz orbitar o sistema judiciário. Em seu rebatimento sobre as práticas, opera pela individualização e seus desdobramentos como a culpabilização, a criminalização e a punição, valendo-se do respaldo legal como correlativo à isenção de interesses e ao bem comum. Encontramos uma constelação de intercessores que podem nos apoiar na ampliação das análises, nos acompanhando na proliferação de situações cotidianas e de conceitos que hoje desenham um campo problemático: o da judicialização da vida.

Na nova ordem do mundo, em suas condições determinadas, com a oportunidade que aqui se coloca de tornar escritura alguns dos achados de estudos e pesquisas que caminham em regime de coprodução a partir de nossa presença em diferentes atividades de formação junto a profissionais, grupos e integrantes de movimentos sociais, queremos reafirmar o lugar tensionado que assumem os denominados trabalhadores sociais em nosso presente. Como gente que atua na "produção de subjetividade" e cuja profissão consiste em "se interessar pelo discurso do outro", habitamos uma encruzilhada política e micropolítica com o permanente desafio de "fazer com que se mantenham os processos singulares que estão quase na tangente do incomunicável - articulando-os numa obra, num texto, num modo de vida consigo mesmo ou com alguns outros, ou na invenção de espaços de vida e de liberdade de criação" (Guattari; Rolnik, 2005, p. 186).

 

Rastreando alguns riscos, interrogar nossas práticas

A judicialização surge para nós como problema no campo de intervenção da psicologia social, que aqui mantemos assim nomeada com a ressalva de que nosso entendimento é o da implicação de nossas práticas - dizeres e fazeres - na produção daquilo sobre o qual anunciamos cuidar (criticar, intervir, agir, reparar...), do que não só definimos, mas produzimos como nosso objeto. Tal atitude reafirma que, para além do reconhecimento de uma impossível neutralidade, nossas implicações e os efeitos de nossas práticas são matérias de análise nos processos de pesquisa-intervenção.

Em meio à convocação permanente a escolher entre emprestarmos nossos corpos ao jogo dos interesses macropolíticos ou à invenção micropolítica, temos que nos haver com os riscos insistentes de nos tornarmos moduladores do controle, ainda que na intenção de compor com forças que parecem resistir ou escapar às incidências biopolíticas no cotidiano das práticas. Para nós, tal escolha ética não é questão de vontade/coragem, apenas, mas de produção subjetiva, de construção de outras lógicas, de outros possíveis. E, por isso, vamos puxar aqui algumas linhas que fiam como problemática as relações entre trabalhadores sociais e os direitos humanos, ressaltando que iniciamos uma conversa que hoje nos parece ser infinita.

Por meio dos estudos de Foucault, podemos compreender como os modos de vida são atravessados por práticas, discursivas e não discursivas, na docilização dos corpos e na regulação das populações. Observamos que Foucault retoma o modelo jurídico (dialógico) apresentado como caminho de emancipação e proteção dos saberes tornados menores e submetidos. Nesse caminho, o autor abordará as relações entre normatizações das condutas e a centralidade do sujeito do conhecimento, colocando em questão o modelo de humanidade desenvolvido por diferentes práticas - entre elas as psicológicas, as médicas e as educacionais - que, com suas tecnologias e suas injunções com o dispositivo científico, contribuíram para a perpetuação e universalização de uma ideia de homem (Aguiar, 2012, pp. 64-65). Essa análise se dá por meio do reconhecimento da relação entre sujeito e poder, entendendo as relações de poder como intrínsecas às concepções de sujeito, como produção de modos de existência.

O eurocentrismo que conduz a análise dos direitos humanos e das leis nacionais não apenas universalizou os sujeitos, mas criou as condições de normalidade, de pensamento, de representação política. Pensando na judicialização, são criadas fórmulas prontas para lutar politicamente, com base em sistemas corretivos e disciplinares que favorecem a lógica do colonizador e das elites. Assim, a tradição democrática das sociedades ocidentais se manteve pela relação estreita com a disciplina normalizadora dos sujeitos (uniformização e individualização). No liberalismo, a liberdade é alcançada pela lei, estabelecida com base em uma certa ideia de autonomia, em que são prioritárias as habilidades atribuídas aos processos de desenvolvimento humano que conduzem à centralidade da razão e ao controle das paixões. Os que ainda não alcançaram ou estão fora do alcance de tais habilidades são percebidos como incivilizados, carentes de controle e necessitados de tutela.

As práticas judicializantes incidem e reincidem, especialmente, sobre os grupos minoritários ou maiorias populares, como preferimos nomear aqui. A lógica da lei, vinculada a um sujeito universal, tem sido usada para legitimar as demandas dos grupos dominantes que definiram os parâmetros de seu exercício. Crenshaw (2002) nos oferece um exemplo claro dessa questão, quando observa como se manifestam as diferentes formas de opressão pela intersecção de marcadores sociais de gênero e raça:

Embora a Declaração Universal garanta a aplicação dos direitos humanos sem distinção de gênero, no passado, os direitos das mulheres e as circunstancias específicas em que essas sofrem abusos foram formulados como sendo diferentes da visão clássica de abuso de direitos humanos e, portanto, marginais dentro de um regime que aspirava a uma aplicação universal. Tal universalismo, entretanto, fundamentava-se firmemente nas experiências dos homens. Consequentemente, apesar da garantia formal, a proteção dos direitos humanos das mulheres foi comprometida à medida que suas experiências poderiam ser definidas como diferentes das dos homens. Assim, quando mulheres eram detidas, torturadas ou lhes eram negados outros direitos civis e políticos, de forma semelhante como acontecia com os homens, tais abusos eram obviamente percebidos como violações dos direitos humanos. Porém, quando mulheres, sob custódia, eram estupradas, espancadas no âmbito doméstico ou quando alguma tradição lhes negava acesso à tomada de decisões, suas diferenças em relação aos homens tornavam tais "abusos periféricos" em se tratando das garantias básicas dos direitos humanos (2002, p. 172).

A observação de Crenshaw nos parece importante porque, além de pontuar a forma diversa e desigual com que diferentes grupos são afetados pela aplicação da lei, evidenciando o caráter discriminatório e opressor de regimes democráticos, abre caminho para nos afastarmos de categorias que se pretendem universais, nos aproximando de situações-problema para reparar, observar como funcionam. Desse modo, encontramos entrecruzadas num problema linha dura, de enquadramento, como as de classe e de gênero, e também linhas flexíveis que vão dar a ver modulações na operacionalização de uma lei, por exemplo. Como nos organizamos e buscamos soluções para as opressões no cotidiano das práticas? A concepção microfísica do poder, de um poder positivo e que se exerce no domínio da norma, se afastando do domínio da lei, poderia ampliar nosso campo de análise?

Algumas tensões que encontramos em situações de luta pela garantia de direitos das maiorias populares parecem estar relacionadas a uma forma de promoção da justiça em que a possibilidade de escuta das diferentes vozes e dos variados fatores que atravessam as vidas e as relações foi limitada pela pressa e por um ímpeto econômico na produção de saídas para fatos que demandam análise cautelosa e lenta. O reducionismo da complexidade dos atravessamentos das situações que demandam por justiça baseia-se na tentativa de naturalização e normalização do que se entende ser a vida humana e incidem sobre os que não se encaixam nas normas.

O ser humano considerado capaz de adquirir as habilidades para participar de processos democráticos, aquele que tem voz, é tomado como modelo, universalizado, induzindo que situações diversas ganhem, então, enquadres comuns. A luta, o movimento por justiça em vários âmbitos, não tem fugido dessa fórmula, o que coloca questões para a pauta e as estratégias dos movimentos sociais que, ao buscarem institucionalizar tais reivindicações, o fazem reproduzindo aquela mesma lógica.

No enfrentamento às opressões sociais diversas, as leis têm sido acionadas com frequência como soluções fins, sendo a complexidade da vida, mesmo que não desconhecida, solapada da elaboração de propostas na direção de uma sociedade mais justa. No entanto, como adverte Lobo (2012), a demanda por leis, regulações e controle aparece hoje, como referimos anteriormente, numa relação afinada à função judiciária, a qual, mais do que determinar o que é lícito e o que é ilícito, faz funcionar os mecanismos protetores como uma das técnicas da administração das populações consideradas vulneráveis.

Podemos dizer da judicialização como processos que, para além das sanções e das punições do sistema penal, se inscrevem na ordem da informação, das denúncias, das culpabilizações, se capilarizando e se multiplicando em nosso mundo, "de tal modo que só entendemos a liberdade pela violação, pela vulnerabilidade tornada necessária para que nos tornemos presas fáceis e obedientes a esta economia de poderes que, em nome da proteção e da segurança, pretende obstruir as intensidades da vida" (Lobo, 2012, p. 29).

A obstrução das intensidades da vida, a redução da complexidade opera na invisibilidade das variações de composição e de rupturas entre linhas que traçam grandes contornos das organizações binárias (mulher-homem, negro-branco, criança-adulto, pobre-rico) e aquelas que podem fazer vibrar desvios, criações. O que temos é "menos a afirmação da imponderabilidade ou do inominável que se espreita na diversidade (da vida) do que a busca de novas fronteiras que possam delimitar, conter nossas zonas obscuras, aquelas atribuídas às paixões e identificadas como possíveis barbáries" (Aguiar, 2012, p. 63).

O modelo que serve de referência à judicialização se estabelece na articulação de determinados marcadores sociais: branquitude, masculinidade, heterossexualidade, adultez, integralidade das capacidades físicas, capacidade produtiva, poder aquisitivo. Assim sendo, observamos que as punições previstas nos referenciais jurídico-dialógicos nos quais se ancora a ideia de justiça costumam incidir sobre algumas pessoas, em especial aquelas que se identificam na sobreposição de vários marcadores como a mulher negra, pobre, lésbica, por exemplo. No enfrentamento às situações em que as desigualdades e a opressão estão presentes nas relações, revela-se a multiplicidade de forças que atravessam a garantia do que é justo.

Como exemplo da questão aqui levantada, trazemos o caso do casamento na infância ou adolescência, situação com a qual nos deparamos em nossas práticas como trabalhadoras sociais. Mais recentemente, tem havido uma mobilização internacional em torno desse tema, que produz efeitos na vida de muitas meninas e mulheres. Com base em denúncias de casamento infantil em diversos países da África, Ásia e América Central, uma pesquisa foi realizada sobre esse tema coordenada por uma organização não governamental no Brasil, buscando-se apontar evidências para a existência do problema por aqui (Taylor et al., 2105). No Brasil, dados coletados na última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) apontam que, na faixa entre 10 e 14 anos de idade, existiam 22.849 meninos e 65.709 meninas em uniões estáveis. No entanto, com base nas entrevistas realizadas com mulheres adolescentes na pesquisa coordenada pela organização no Brasil, diferentemente de países em que o casamento se dá de forma forçada na infância, no país ocorrem uniões consensuadas entre adolescentes ou entre meninas adolescentes e homens adultos. (Taylor, Lauro, Segundo, & Greene, 2015). Em geral, as meninas desejam se casar pelos modelos a sua volta, pelas histórias românticas que as fazem imaginar os parceiros como salvadores de suas vidas de privações econômicas e sexuais, para se liberaram das restrições sexuais parentais, por imaginarem que casadas serão livres e adultas, por incentivo dos pais por terem engravidado ou para que não sejam malvistas socialmente, ou mesmo porque acredita-se que não há mais nada a se fazer para que a vida se transforme. Entretanto, como consequência, as meninas acabam submetidas ao poder do parceiro, são sobrecarregadas em relação às tarefas domésticas e sofrem diversas formas de violência, por exemplo. Para a prevenção desses efeitos para a vida de mulheres adolescentes, a proibição do casamento tem surgido como pauta.

Diante desta solução, como acolher a possibilidade de escolha das meninas por essa relação? Se nesta faixa etária desejar e consumar o casamento pode produzir injustiças e violências, quais são as alternativas para evitá-las? E principalmente, emersas em práticas judicializantes, o que não temos observado sobre as relações potentes estabelecidas pelas adolescentes? O que podem, reivindicam e criam essas meninas? No caso das políticas para a infância, o simplismo das saídas oferecidas tem produzido contradições na concepção de sujeito de direitos. Paradoxalmente à busca da afirmação do lugar de sujeitos de direitos de crianças e adolescentes, esses não deixam de ter suas vidas tuteladas pelo Estado e pelos adultos. A proteção da infância e adolescência tem sido reduzida à negação, à proibição e ao controle. A promoção de seus direitos se dá de forma negativa, isto é, por uma lista de impossibilidades para a experiência na infância, e não de forma positiva, com o estímulo à potência e a apresentação de caminhos possíveis para a vida nessa etapa (Chevitarese, & Fonseca, 2013).

Não é demais enfatizar que aqui nos referimos à infância pobre, negra, menina. São elas que desejam se casar pela ausência de alternativas. É, portanto, sobre elas que a justiça sacará respostas mais rápidas, sob a forma de tutela e de negação. Assim, a promoção dos direitos das infâncias atravessadas por certas linhas sociais é também a negação de outros direitos, em que é acionado todo um campo de correção e vigilância.

Essa é a lógica que produz um campo de forças na constituição de práticas sociais, resultando, por vezes, na reincidente opressão das maiorias populares na direção de normalização da sociedade. Como escapar do esforço para facilitar, reduzir, aparar arestas e tensões, se essa é forma própria da constituição e fundação das ciências humanas e jurídicas?

Problematizar a lógica que se hegemoniza com tais marcadores é, para nós, no trabalho social, condição para processos de singularização. Tais processos são entendidos aqui como algo que pode frustrar os mecanismos de "interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de valores num registro particular, independente das escalas de valor que nos cercam e espreitam de todos os lados" (Guattari, & Rolnik, 2005, p. 55-56).

Ora, como apontam diversos autores, sobretudo Foucault, à medida que compreendemos que "nossas práticas não habitam ou não se localizam em espaços de significado e negociação entre indivíduos homogêneos, amorfos e assepticamente funcionais" (Domènec, Tirado, & Gomes, 2001, pp. 123-125), somos forçosamente colocados diante das exigências produzidas em meio à imanência de uma "posição que desliza entre imposições e exposições", convocando-nos ao constante exercício da prática refletida da liberdade diante do "caráter circunstancial das alianças" (Foucault, 2006a). "Quem diz a verdade? Indivíduos que são livres, que organizam certo consenso e se encontram inseridos em uma certa rede de práticas de poder e instituições coercitivas" (Foucault, 2006a, p. 283).

Isto posto, como romper com práticas normalizadoras, colonizadoras e prescritivas em meio à convocação dos saberes e especialismos que nos constituem como trabalhadoras sociais?

 

Ensaiando rabiscos, abrir caminhos investigativos

Entendemos que só nos foi possível construir trajetórias a partir de nossas inserções no campo das psicologias, no exercício permanente de desvio do encargo social que nos foi historicamente atribuído. Nessa direção, procurar e criar intercessores (Deleuze, 1992) para dar passagem às inquietações e aos inomináveis que nos tomam; sustentar problematizações (Foucault, 2006b) do que se apresenta como evidência e exercer a análise de nossas implicações (Lourau, 1993) como crítica aos lugares que ocupamos, nos forçam à atenção ao presente e que nos demandam uma outra temporalidade no exercício de nossas ações. Interessar-se pelo discurso do outro se aproxima da ideia de atuar na relação com esse outro, através do esforço de problematização e desnaturalização dos discursos desse presente que nos constitui, ampliando o índice de transversalização nas práticas (Guattari, 1981).

No entanto, desde a perspectiva micropolítica, o trabalho sobre e com os discursos não é suficiente para uma problematização que entendemos como efetiva: a que coloca em questão os investimentos do desejo. Entendemos que a linguagem está referida à consciência, ancorada num determinado regime de códigos já conhecidos, ligada ao interesse e, portanto, articulada a segmentações como aquelas citadas aqui anteriormente - classe, sexo, idade, profissão, cidadania... Será preciso

considerar um regime de paralelismo comunicante, entre o registro das formas atuais do mundo (códigos, representações, o visível da existência) e o registro das forças que agitam o mundo (saber-do-corpo, afectos, invisível da alteridade). Nessa perspectiva que comporta tanto dissociações quanto cruzamentos entre os registros, é que poderemos acessar os modos de investimento desejante e ampliar o entendimento de questões como aquelas que giram em torno do problema da distância ente o que se enuncia e o que se faz, por exemplo.

Nos processos de formação de trabalhadores sociais temos que nos haver com o direito e o humano como conceitos/figuras que, naturalizadas, são evocadas como universais. A naturalização é a operação que esvazia a dimensão sociopolítica das práticas, fazendo morrer a história, as condições de emergência, que envolvem desejos, interesses e necessidades em disputa, favorecendo a manutenção de versões pretensamente neutras e justas das práticas. Em relação aos direitos humanos, é soterrar suas vinculações com o capitalismo e mesmo com o surgimento da delinquência, ocultando os efeitos de servidão à disseminação dos dispositivos de segurança.

Afirmamos que pensar com as linhas, seus movimentos, estagnações e rupturas desestabiliza a vida normalizada e reativa que nos toma a todas como único modo possível de viver. Longe de uma essência universal do homem, podemos pensar os direitos "como diferentes modos de sensibilidade, diferentes modos de viver, existir, pensar, perceber, sentir; enfim, diferentes jeitos de estar no mundo" (Coimbra, 2011, p. 89). Como sugerimos anteriormente (Aguiar, 2012), isso não significa que tenhamos que eliminar o que chamamos de direitos humanos ou liberdade, mas, que não podemos dizer que a liberdade ou os direitos humanos tenham que se limitar a certas fronteiras. No dizer de Foucault, "o que me assusta no humanismo é que ele apresenta uma certa forma de nossa ética como modelo universal válido para qualquer tipo de liberdade" (Foucault, 1995, pp. 149-150).

Consideramos difícil e necessária nossa aposta, em tempos de reativação das linhas fascistas, em tempos nos quais "o racismo é indispensável como condição para poder condenar alguém à morte, para poder condenar à morte os outros". Tempos nos quais "a função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo" (Foucault, 1999, p. 306). No convite a habitarmos a encruzilhada política e micropolítica que se constitui no complexo exercício do trabalho social, entendendo que atuamos na produção de subjetividade, espreitamos os riscos de fazermos, a nós mesmas, moduladoras do controle: pacificando contradições e dissolvendo resistências "pelas práticas de inclusão e por ampliação de penalidades, próprias dos controles jurídicos, policiais e normalizadores" (Passetti, 2007, p. 12). Afinal, como nos alertou Guattari e Rolnik,

[...] do ponto de vista micropolítico, qualquer práxis pode ou não ser policialesca; nenhum corpo científico, nenhum corpo de referência tecnológica garante uma justa orientação. [...] A garantia de uma micropolítica processual, só pode - e deve - ser encontrada a cada passo, a partir dos agenciamentos que a constituem, na invenção de modos de referência, de modos de práxis. [...] Para o profissional do social tudo dependerá de sua capacidade de se articular com os agenciamentos de enunciação que assumam sua responsabilidade no plano micropolítico (2005, pp. 37-38).

Certamente esse é um dos desafios da encruzilhada a demandar a inserção da "produção do político na criação do social" (Negri, 2002, p. 425), e não seu contrário. Trata-se de compreender que a dimensão política se dá nas próprias práticas sociais indo muito além da restrição ao seu exercício via instâncias representativas características do Estado de Direito, e da valorização quase que exclusiva dos especialismos e conhecimentos técnico-científicos A inseparabilidade entre a atividade política e a ação social pode provocar o trabalhador social a assumir um modo de vida específico, um ethos, operando a favor do movimento, produzindo espaços de expressão e conexão para "a diversidade das experiências e posicionamentos implicados na produção das políticas" (Guizardi, 2008, p. 20), ao mesmo tempo em que problematiza o que se coloca como norma de vida (Daros, 2016).

Habitar a encruzilhada é tornar visível o que não necessariamente está oculto na trama das relações de força do poder. Trabalhar para dar passagem à multiplicidade das vozes, e, a partir de uma intervenção atenta, produzir eco, funcionar como uma estrategista, cujas táticas se direcionam para essas vozes e seu potencial de ressonância em espaços coletivos de expressão.

[...] o saber de um intelectual é sempre fragmentário. O que existe são os atos provocativos por meio dos quais, os operários, os loucos, os prisioneiros, os negros e os homossexuais passam a revoltar-se contra as situações de opressão não de um sistema, mas sim de uma sociedade normalizadora que sempre rechaça a diferença. Essas insurreições não são um produto de uma mobilização originada pelas reflexões de um intelectual, nem o resultado de um processo de conscientização coletiva, mas o indicativo de uma resistência direta e objetiva contra os dispositivos (Vivar y Soler, 2012, p. 222).

Sabemos que nem sempre é possível para o subalterno falar, mas que saberes insurgentes podem ter função de antinormalização evidenciando representatividade e lugares de fala, estes entendidos aqui como nossas implicações. Sabemos que, por vezes, não basta 'tomar posição' "[...] seria preciso um mínimo de controle sobre os meios de expressão" (Deleuze, 1992, p. 192) e que "[...] não basta "dar a palavra" aos sujeitos envolvidos - que pode ser às vezes uma conduta formal e até jesuítica -, é preciso antes criar condições para um exercício total, leia-se paroxístico, desta enunciação. A ciência não tem nada a ver com justas medidas e compromissos de bom tom!" (Guattari, 1981, p. 38).

Ao reconhecermos as práticas sociais - discursivas e não discursivas - como campo de intervenção e "quefazer" de todo aquele que se intitula trabalhador social, afirmamos, portanto, a potência de se atuar prioritariamente como um estrategista, como aquele que percebe que nem toda encruzilhada se dá mediante a forma da bifurcação, mas de múltiplos cruzamentos nos quais se forjam e se que transversalizam as lutas socais. E é nesta variabilidade que podem se abrir infinitas possibilidades de caminho, e ao mesmo tempo, se produzir outros de modos subjetivação.

Para o trabalhador social que se coloca como estrategista, a tarefa não é instrumentalizar os sujeitos para que se tornem cidadãos conscientes de seus direitos e deveres estampados na universalidade dos legalismos, mas pensar as práticas sociais em suas manifestações de poder e problematizá-las. Um modo de pensar e agir que envolve a desnaturalização do instituído e a apreensão dos investimentos de desejo, trabalhando por políticas de subjetivação libertárias que rabisquem territórios existenciais.

O que interessa é instrumentalizar a crítica e não os sujeitos; é interrogar as práticas e não seus atores. Por essa via, o trabalhador social, a exemplo da concepção de intelectual específico, de Foucault,

[...] não é mais aquele que empunha sozinho os valores de todos, que se opõe ao soberano ou aos governantes injustos e faz ouvir seu grito até a imortalidade; é aquele que detém, com alguns outros, ao serviço do Estado, ou contra ele, poderes que podem favorecer ou matar definitivamente a vida. Não mais cantor da eternidade, mas estrategista da vida e da morte (Foucault, 1979, p. 11).

É neste sentido, que tendemos "[...] a pensar as coisas como conjunto de linhas a serem desemaranhadas, mas também cruzadas" (Deleuze, 1992, p. 200). A encruzilhada nos faz ver, na proliferação de bifurcações, uma miríade de linhas/caminhos, potências inventivas de mundos. Encontramos ressonância dessa função antinormalizadora da filosofia, nos estudos das "ciências encantadas da macumba" e da "pedagogia das encruzilhadas", pistas para ampliarmos as análises de nossos lugares que se sustentam entre os tensionamentos da branquitude e da condição de mulheres-feministas. Ensaiando uma aproximação, o conceito de cruzo nos dá acesso a outras práticas que, na espiral de um tempo ancestral, já apontavam para "as potências que esculhambam os binarismos impostos" (Simas, & Rufino, 2018, p. 119).

Desse modo, para além da busca de soluções eficazes para o enfrentamento das problemáticas opressoras relacionadas à questões judicializadas, a luta que aqui se propõe, se faz mediante a aposta na produção dos encontros, permeados por uma escuta atenta e aberta, que se sobreponha às falas especializadas, normatizadas, prescritivas, judicializadoras e, ao mesmo tempo, judicializáveis. Daí a necessidade incontornável de se retomar de imediato o sentido da palavra atenção, de um modo que esta seja entendida não em sua conotação coercitiva disciplinar, mas "como um instrumento de seleção dos encontros, por meio do qual os seres distinguem, em cada corpo e em cada ação, a potência do poder, a diversidade da diferença, a mobilidade do nomadismo, o prazer do desejo" (Sant'anna, 2005, p. 109). Nesse sentido, "tentar manter-se atento é um primeiro gesto para inviabilizar as ações que deletam tanto as nossas singularidades quanto aquelas dos que nos rodeiam" (Sant'anna, 2005, p. 110).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Katia Aguiar
katiafaguiarpsi@gmail.com

Vanessa Fonseca
vnfonseca@gmail.com

Raphaella Daros
raphadaros@gmail.com

Submetido em: 22/09/2018
Revisto em: 01/11/2018
Aceito em: 06/11/2018

 

 

1 Uma situação emblemática desse realidade foi a recente greve dos caminhoneiros ocorrida em maio de 2018 no Brasil. Conforme Berzins (2018), em consonância com as análises do Comitê Invisível (2016), o movimento teve um impacto abrangente e profundo na sociedade com alguns paralelos com os movimentos de junho de 2013, corroborando a percepção de que vivenciamos uma época que, paralelamente ao crescimento dos movimentos conservadores, é marcada também por muitas situações similares de insurgência. Nesse sentido, o autor chama atenção para a importância de mantermos nossas ferramentas militantes em boas condições, nos colocando essa tarefa como cotidiana.

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