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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.23 no.1 Goiânia abr. 2017

 

ARTIGOS - ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Heidegger: em busca de sentido para a existência humana

 

Heidegger: searching for sense for the human existence

 

Heidegger: en busca de sentido de la existencia humana

 

 

Tatiana Benevides Magalhães BragaI; Marciana Gonçalves FarinhaII

IPossui Graduação em Psicologia, Mestrado e Doutorado pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora Adjunta da Universidade Federal de Uberlândia, Membro da Sociedade de Psicologia de São Paulo e do Fórum contra a Medicalização da Educação e da Sociedade. Endereço Institucional: Núcleo de Práticas Clínicas do Instituto de Psicologia - IPUFU - Campus Umuarama Av. Pará, 1720 - Bloco 2C - Sala 40 - Bairro Umuarama Uberlândia-MG - CEP 38400-902. Email: tatibmb@gmail.com
IIPossui Licenciatura e Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, Mestrado em Psicologia e Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora Adjunta da Universidade Federal de Uberlândia. Email: mgfarinha@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda alguns dos principais temas da fenomenologia existencial de Martin Heidegger, tendo como fio condutor o conceito de existência. A partir de sua discussão e da explicitação de alguns existenciais da ontologia fundamental heideggeriana, compreende-se o Dasein enquanto marcado pela indeterminação ontológica, que o situa em uma condição de cuidar de ser si mesmo a cada momento em que é. É nessa perspectiva que o cuidado figura como existencial, referindo-se tanto ao ser-com-outros e à ocupação com o mundo quanto às próprias possibilidades de ser. Aponta-se para a importância da dimensão do cuidado enquanto essência mesma do exercício clínico no aí compartilhado entre terapeuta e cliente, já que consiste na interrogação pelo sentido de ser frente à trajetória existencial como via promotora de abertura para novas possibilidades de ser.

Palavras-chave: Fenomenologia existencial; Clínica fenomenológica; Martin Heidegger; Dasein.


ABSTRACT

This article treats about the main themes of the existential phenomenology of Martin Heidegger. We will have his concept of existence how overall thrust this article. We understand the Dasein, marked by ontological indetermination, from discussion and explanation of some existential analytics of Heidegger's fundamental ontological. The ontological indetermination situates the Dasein in a condition of caring of being one's self in each time it is. In this perspective the care appears as existential, referring as being-with others and occupation with the world as the own possibilities of being. We point the importance of the care dimension as essence of the clinical exercise, which is shared between therapist and patient, since this relationship consist in interrogation by sense of being before existential path as primordial route of opening to new possibilities of being.

Keywords: Existential phenomenology; Phenomenological clinic; Martin Heidegger; Dasein.


RESUMEN

El presente artículo trata de algunos de los principales temas de la fenomenología existencial de Martin Heidegger, teniendo, como eje, el concepto de existencia. A partir de su discusión y de la explicitación de algunos existenciales de la ontología fundamental heideggeriana, se comprende que Dasein, mientras esté marcado por la indeterminación ontológica, que lo ubica en una condición de cuidar de ser sí mismo a cada momento en que lo es. En esa perspectiva que el cuidado se muestra como existencial, refiriéndose tanto al ser con los otros y la ocupación con el mundo como a las propias posibilidades del ser. Se apunta para la importancia de la dimensión del cuidado mientras sea esencia misma del ejercicio clínico compartido entre el terapeuta y cliente, puesto que consiste en la contestación por el sentido de ser delante a la trayectoria existencial como vía que promueve la abertura para las nuevas posibilidades de ser.

Palabras-clave: Fenomenologia Existencial; Clínica fenomenológica; Martin Heidegger; Dasein.


 

 

A obra do filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) é considerada um dos importantes vetores que impulsionam a filosofia do século XX, fazendo uma reflexão sobre a existência humana por meio de uma interrogação sobre o sentido do ser. Parte de uma crítica à orientação metafísica do pensamento ocidental, questionando o próprio modo de ser e de habitar o mundo, enfim, de conduzir a própria vida, com intuito primordial de compreender o sentido da existência humana.

Heidegger (2012) propõe, em sua obra, uma análise existencial por meio de sua ontologia fundamental. Para ele, ser é o conceito mais universal, já que está constantemente presente em nossa lida cotidiana com o mundo, mas é simultaneamente o mais obscuro, exigindo, portanto, discussão e reflexão, já que a compreensão de ser dada pela metafísica ao longo da história sedimentou-se. O obscurecimento sobre a questão do ser se constituiu com o modo como a questão foi colocada pela ontologia tradicional: ao se perguntar o que é o ser, lançamos mão de uma compreensão prévia de ser no próprio interrogar. Na tradição filosófica ocidental, o ser é concebido como simplesmente dado: visto que o ser se manifesta no ente, vem sendo compreendido como um ente entre outros entes. Ao entificar o ser, o modo de interrogar da tradição pressupõe nele um caráter de imutabilidade e de essência fixa passível de ser encontrada ultrapassando-se a aparência. Tais pressuposições atribuem-lhe uma substancialidade que restringe seu caráter acontecimental.

Ao refletir sobre esse modo de questionar, Heidegger (2012) aponta como as interpretações prévias sobre o ser vão se impregnando na questão e propõe outro modo interrogar: questionar o ser em seu sentido, que é primordial à compreensão das coisas em nosso cotidiano. O indivíduo tem a capacidade de conhecer o ser, que não é uma coisa fechada, padrão. A questão do ser põe em jogo duas dimensões: a ôntica, referente ao horizonte de manifestação do ente, e a ontológica, referente ao horizonte das possibilidades de ser de um ente (Heidegger, 2012).

Heidegger (2012), criando uma terminologia própria, busca compreender o sentido do ser. Ele denomina o modo de ser do homem como Dasein, que significa ser-aí. Tal termo busca colocar em evidência o modo como a questão do ser se apresenta para esse ente que nós mesmos somos: diferentemente de outros entes, cujo ser reside na dimensão ontológica, em nossa experiência o ser está "onticamente assinalado, pois para esse ente está em jogo em seu ser esse ser ele mesmo" (p. 59)1. Assim, nosso modo próprio de ser consiste em tornar-se, vir a ser o que se é, em uma relação íntima com o ser mesmo.

Simultaneamente, temos uma relação-de-ser com aquilo que viemos sendo, nos entendemos em nosso ser nós mesmos e somos abertura para aquilo que estamos sendo. Dasein é a palavra alemã utilizada para denominar ser humano, pressupõe presença que engloba o indivíduo no conjunto, como existente humano. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade e aponta para a indiferenciação humana: somos no próprio movimento de realização de nossas possibilidades de ser. Ontologicamente o homem se configura como passado, cotidiano, presente e possibilidades futuras e, portanto, como um ser temporal que em essência se mostra como projeto, possibilidade. Podemos ver em suas palavras:

(...) O Dasein não é um subsistente que possui além disso como dote adjetivo o poder de fazer algo, mas ele é primariamente ser-possível. O Dasein é cada vez o que ele pode ser e como ele é sua possibilidade (...). (Heidegger, 2012, p. 409)

A presença, denominada de Dasein ou ser-aí, é privilegiada por possuir "em seu ser a possibilidade de questionar" (Heidegger, 1999, p. 33) sobre o sentido do ser, de modo que "Elaborar a questão do ser é tornar transparente um ente - o que questiona - em seu ser" (Heidegger, (1999, p. 33) e, assim, é por meio da explicitação desse ente que nós mesmos somos que Heidegger procura iluminar a questão do ser. Questionar corresponde ao plano ontológico, também chamado existencial, que considera o indivíduo como ser-no-mundo, relacionando-se com as pessoas do seu universo social, entes que Heidegger denomina Dasein, e também com as coisas, denominadas entes simplesmente dados. De acordo com Heidegger, existe outro plano, o plano ôntico, também denominado existenciário, que compreende o que se manifesta entre as possibilidades ontológicas do ser e se refere ao próprio ente do modo como se mostra.

O ser se mostra à existência humana imediata e concretamente - na própria dimensão ôntica do Dasein, está presente a "determinidade de um entendimento-de-ser pré-ontológico" (Heidegger, 2012, p. 63). Assim, o Dasein possui três precedências com relação à questão do ser: a precedência ôntica, pois é "determinado em seu ser pela existência" ao realizar possibilidades de ser; a precedência ontológica, pois ele "é em si mesmo ontológico", ou seja, parte de uma indiferenciação e se constitui como um horizonte de possibilidades, e a precedência ôntico-ontológica, pois pertence ao Dasein um entendimento-de-ser de todo ente, possibilitando a própria ontologia. Sendo o Dasein o ente que questiona propriamente o sentido do ser, é a partir da interrogação por esse ente que nós mesmos somos que a questão do ser pode se desvelar.

No pensamento tradicional, o ser foi tomado como coisa em si. Todavia, há uma diferença entre ente e ser:

Esqueceu-se que ser não é uma substância, nem mesmo abstrata; que não é um objeto, uma coisa; que ser é simplesmente o modo daquilo que é. O ser não é uma forma substantiva, mas verbal. Ser não é um substantivo, apenas o verbo ser na sua forma infinitiva. Ser é movimento; ser é sendo. Por ser modo de estar sendo do ente, por ser possibilidade em aberto, o ser não pode ser precisado, objetivado, aprisionado num único sentido. (Critelli, 1981, p. 14)

A compreensão do ser ocorre a partir dele próprio, com as possibilidades mediadas pelos feitos que componham a cotidianidade desse ser. O humano é o único ente cujo modo de ser abrange a possibilidade de interrogar-se porque está em seu horizonte a condição ontológica de indeterminação e a dimensão ôntica da própria questão do ser. Nessa perspectiva, temos em nosso horizonte de possibilidades a busca por continuar a compreender a nós mesmos, lidando com o sentido das vivências presentes em nosso contexto existencial. Nada faz sentido isolado. Onde há ser, necessariamente, há ente. Nas palavras de Heidegger (2012, p. 51):

Ser é cada vez o ser de um ente. O todo do ente pode se tornar o campo em que se põem em liberdade e se delimitam determinados domínios de coisa, segundo seus diversos âmbitos. Domínios de coisa que de sua parte, por exemplo, história, natureza, espaço, vida, Dasein, linguagem, etc. podem ser tematizados como objetos das correspondentes investigações científicas.

Cada ente apresenta um campo de manifestação do ser e, ao se voltar aos entes, o Dasein põe em movimento sua compreensão de ser dos entes que são. Para Heidegger (2012), o modo como somos afetados pela facticidade do mundo diante de nós abre um campo, uma faceta do mundo para nós. A essa abertura em que nos situamos diante de um mundo que se apresenta diante de nós Heidegger denomina compreensão (verstehen), considerando-a um existencial fundamental. Nesse sentido, o Dasein não possui uma compreensão, muito menos produz compreensão a partir de um entendimento ou interpretação racional das coisas. Ao contrário, o Dasein é sua compreensão, na medida em que é o horizonte mesmo de mundo que se abre para ele pelo modo como é afetado. Para Heidegger (2012), toda compreensão já está sintonizada com a disposição afetiva e simultaneamente desdobra-se em interpretações. Um dos modos de constituir uma interpretação de ser dos entes a partir da compreensão é a investigação científica. Mas, antes mesmo do entendimento científico, uma compreensão prévia de ser das coisas está presente na relação cotidiana com o mundo.

Heidegger (2012) compreende o Dasein inserido em seu mundo como co-agente, visando desconstruir o pensamento ocidental que compreende o homem tomando-o de maneira objetiva, distanciada da experiência, como se pudesse dicotomizar a existência. Nessa prerrogativa, ele tem a possibilidade de, sendo, estabelecer uma relação de ser com tudo o que é e uma relação consigo para compreender-se em sua essência. Tal desconstrução tem o sentido de investigar o fundamento mesmo das ontologias, nas condições de possibilidade de colocação da indagação sobre o ser e é nesse sentido que se coloca em perspectiva a manifestação ôntica da questão do ser para o ente que somos, lidando constantemente com a tarefa de sermos nós mesmos. Existência, para Heidegger, é algo que emerge, que se manifesta, que se desvela. Pasqua nos esclarece sobre os conceitos explicitados anteriormente:

A existência (Existenz), tal como Heidegger a entende, não tem o sentido medieval de existentia. Para ele, esta significa literalmente ser subsistente, aquilo que está perante a mão (...). Caracteriza os entes que estão fechados sobre si próprios, cristalizados como uma pedra: a existentia é algo de estático. A existência de que nos fala Heidegger é ek-stática. Caracteriza esse ente denominado Dasein, capaz de ser aquilo que projeta ser, de sair de si próprio, de ek-sistir (...) o Dasein é aquilo que ele pode ser. Ser, para ele, é poder ser este ente concreto, empenhado no mundo, cujo ser é permanentemente posto em jogo e como que arrancado de si próprio. A essência do Dasein não significa, portanto, o caráter estável e invariante daquilo que é, não é uma definição abstrata definitivamente válida. (Pasqua, 1993, p. 36)

Na origem etimológica grega, o prefixo ek designa aquilo que está fora. Seu correlato em português, o prefixo "ex", compõe termos como exterior, externo, expansão, expressar. Similarmente, o elemento grego sistere designa movimento, compondo em português palavras como sistêmico, sísmico, etc. É nesse sentido que ambos os elementos figuram na existência como considerada por Heidegger: ela se caracteriza como ek-sistere, movimento para fora, o próprio direcionamento de ser para o mundo (Heidegger, 2012, p. 381). Ao compreender existência como modo de ser propriamente humano, Heidegger assinala as relações entre Dasein e ser enquanto constitutivas do modo de ser que é o nosso. Nesse sentido, apenas o homem existe, pois o movimento em direção aos entes na compreensão cotidiana de ser é próprio ao Dasein. Existir, assim, refere-se a relacionar-se com os entes enquanto entes. Nas palavras do autor:

A "essência" do Dasein reside em sua existência. Os caracteres que podem ser postos à mostra nesse ente não são, portanto, "propriedades" subsistentes de um ente que subsiste com este ou com aquele "aspecto", mas modos-de-ser cada vez possíveis para ele e somente isso. Todo ser-assim desse ente é primariamente ser. Por isso, o termo "Dasein" com que designamos esse ente não exprime o seu que, como é o caso de mesa, casa, árvore, mas o ser (...) O ente, cujo ser está em jogo esse ser ele mesmo, se comporta em relação a seu ser como em relação a sua possibilidade mais própria (...) E porque o Dasein é, cada vez, sua possibilidade, esse ente em seu ser pode se "escolher" (...). (Heidegger, 2012, p. 140-1)

Em outro momento, Heidegger ainda enfatiza "O Dasein é um ente que, entendendo-se em seu ser, comporta-se em relação a esse ser. Assim se indica o conceito formal de existência. O Dasein existe" (Heidegger, 2012, p. 169). Nessas proposições, Heidegger rejeita qualquer propriedade quididativa ou substancialidade determinada que pudesse ser tomada como aspecto fixo constituinte do Dasein, trazendo como elemento fundante as próprias relações e experiências que o Dasein articula com o mundo. Embora o ser-aí possa tomar-se de modo objetivado, considerando essenciais os aspectos das possibilidades de ser que realiza e assim percebendo-se à maneira das coisas, como "ser simplesmente dado" (Heidegger, 1999, p. 77), a própria dinâmica de realização das possibilidades de ser aponta para uma dimensão temporal da experiência humana, na qual sendo, estabelecemos relações de ser com tudo o que é. O ser-aí se refere aos seres simplesmente dados e, por vezes, se toma como simplesmente dado, substancializando-se. Tomar-se como simplesmente dado não é um "erro", pois apenas o ente para quem a questão do ser se apresenta onticamente pode tomar-se como alguma coisa, mas obscurece a dimensão acontecimental do ser que somos.

No sentido de seu acontecer, existir é direcionar-se à concreção fática do mundo na realização de possibilidades de ser sem, no entanto, completar-se nelas, já que as possibilidades se rearticulam a cada momento em que sou; e sou, a cada vez, minhas possibilidades de ser. Considerando desse modo a existência, Heidegger (2012) compreende como elemento determinante do Dasein as relações que ele estabelece a cada momento com o mundo em sua trajetória existencial, que apenas se completam com a morte.

O ser-aí é um ser-para-a-morte na medida em que é apenas nela que finalizamos a realização de nossas possibilidades de ser. Enquanto vivos, somos abertura, estamos no devir de nossas possibilidades e somos, assim, em constante realização de quem podemos ser. Nas palavras do autor, há no Dasein "uma não-totalidade contínua e ineliminável, que encontra seu fim com a morte" (Heidegger, 1999, p. 23), ou seja, somos incompletos e apenas nos completamos com a morte, já que antes dela estamos na contínua realização de nossas possibilidades de ser e com ela nossas possibilidades se finalizam. A experiência da morte, pessoal, intransferível e única, demarca assim a finitude do ser; ele voltará a ser o que era: nada (Heidegger, 1981). Não se pode morrer pelo outro e também não se morre mais de uma vez. Desse modo, a finitude articula seu sentido com a temporalidade: na perspectiva de finalizar futuramente nossas possibilidades de ser. Com a possibilidade última da morte, retomamos nossa trajetória existencial, em que nos encontramos entre o que já não é mais e o que ainda não é. A dimensão temporal de ser-para-a-morte aponta para o sentido ontológico do cuidado, já que remete à dimensão de incompletude do Dasein na realização de novas possibilidades de ser - o ainda-não que seremos e se encontra continuamente pendente nos modos de ser que se mostram abertos para nós. É na realização dos modos de ser que nos são possíveis que respondemos à tarefa de ser e assim cuidamos de ser: em cada ação cotidiana, no modo como nos colocamos, somos afetados, nos manifestamos, nos relacionamos... Realizamos algumas possibilidades de nós mesmos. Assim, o projetar de nossas possibilidades de ser, na realização de modos de ser no mundo, é constitutivo do Dasein como cuidado e ele apenas é percebido desse modo na sua temporalidade. Diante da angústia que nos coloca frente à condição existencial de ausência de significações e determinações prévias, o Dasein pode perceber sua absorção no cotidiano e apropriar-se da realização de suas possibilidades de ser e, nesse contexto, perceber-se em sua trajetória existencial: no momento de minha existência aqui e agora, venho de um já sido e projeto-me no porvir. Heidegger descreve a temporalidade como articulação entre o porvir e o já sido, que se atualiza na realização das possibilidades de ser do Dasein em seu projetar-se. É nesse sentido que, segundo Heidegger, "A unidade originária da estrutura da cura reside na temporalidade" (1999, p. 121).

Dasein e mundo fazem parte de uma mesma realidade, por ele denominada ser-no-mundo. Heidegger enfatiza que, utilizando essa expressão, quer referir-se a ser e mundo como um "fenômeno unitário" (Heidegger, 2012, p, 169), ou seja, não redutível a uma soma de partes que se juntam. Somente é possível pensar o ser-aí em contato com o mundo, ou seja, em relação com a totalidade fática diante de nós, já que nossa própria condição existencial nos joga de imediato em possibilidades existenciárias abertas na concreção mesma de nosso contato com o mundo. Como comenta Leão (1998), "ser-no-mundo é uma estrutura de realização" (p. 20): o Dasein não se localiza apenas no mundo, como um objeto inserido no interior de outro, mas habita o mundo, relacionando-se com tudo o que é a partir de uma compreensão de ser. O mundo não é entendido apenas como espaço geográfico, mas como uma concreção fática constitutiva do próprio Dasein. Encontramos-nos constantemente diante do mundo que é o nosso, de tal forma que o mundo constitui nossas experiências, constitui nosso devir, constitui nosso sendo. Nesse sentido, o mundo me constitui ou, como coloca Heidegger (2012), "é um caráter do Dasein ele mesmo"(p. 201) numa trama de significações sedimentadas. Ao apresentarem-se a mim no cotidiano, os entes já remetem a experiências, relações e usos que se constroem no lidar com as coisas. Nossa experiência diante de tudo com o que co-habitamos está permeada não apenas dos entes, mas dessas remissões e conjuntações. Nessa perspectiva, o Dasein existe habitando o mundo, imerso tanto em sua concreção fática quanto na trama significativa sedimentada nas relações cotidianas que estabelecemos com tudo o que nos cerca. Ou seja, tecendo familiaridade com o mundo no qual nos detemos, estamos contextualizados - imersos nas relações que construímos no habitar cotidiano esse mundo que é o nosso.

O homem atual tem desenvolvido uma maneira de viver representando-se com seu pensar lógico-racional, analítico, buscando, antes de qualquer vivência, controlar fenômenos e, do mesmo modo, controlar-se. Heidegger (2006a) denomina esse modo de compreensão de pensamento calculante, voltado para a exploração e o domínio dos fenômenos, enquadrando-os nos modos de mediação entre homem e mundo previamente definidos pela técnica moderna. Tal perspectiva opera a partir de abstrações: retirando os fenômenos de seu campo de mostração para tomá-los no interior de sistemas teóricos fechados, o pensamento calculante arrisca-se a desconsiderar os múltiplos elementos presentes num contexto.

No campo da Psicologia, podemos encontrar expressões do pensamento calculante nos processos de medicalização da sociedade, na utilização de instrumentos avaliativos que desconsideram o contexto de produção do sujeito, nas concepções intrapsíquicas sobre a personalidade. Tomemos como exemplo alguns diagnósticos como os de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: ao se considerar os sintomas de uma criança na categoria de doença mental exclusivamente biológica, desconsiderando fatores como seu processo de socialização e escolarização, sua rotina, suas relações, suas condições socioeconômicas, entre outros, o pensamento calculante categoriza diretamente e determina previamente quem a criança assim diagnosticada é e pode ser, bem como a conduta a ser adotada a partir dessa definição, retirando da criança e de sua rede de apoio social a possibilidade de reinventar suas experiências e modos de ser. Assim, o pensamento calculante desconsidera a necessidade de significarmos nossas vivências com o outro, objetificando-as. Criando relações coisificadas com o próprio homem, o pensamento calculante nos distancia do mundo vivenciado. É nesse sentido que podemos compreender Heidegger quando afirma "A ciência não pensa" (2006d, p. 115) ou quando, afirmando que "A ciência é a teoria do real" (2006c, p. 40) percorre o trajeto histórico de construção do pensamento científico moderno. Segundo o autor, a partir da concepção original grega de uma aproximação respeitosa àquilo de se realiza na própria acontecência do mundo, tal frase passou a significar, na concepção moderna, uma classificação em que a teoria fixa uma região do real por meio de uma operação de produção de uma consequência a partir de uma causa, em que permanece incontornável o ser mesmo dos entes de se apresentam no movimento de realização do real.

Em contrapartida, é ao considerar cuidadosamente o que se desvela e interrogar pelo sentido da técnica que encontramos uma possibilidade de acompanhar o próprio movimento de velamento e desvelamento dos entes, amplamente multifacetado. Meditando sobre o que merece ser interrogado para ir ao encontro com a essência dos entes, permanecendo junto às coisas na própria dinâmica performativa dos fenômenos, encontramos o pensamento reflexivo, ou pensamento do sentido, como outra possibilidade de pensar. Sob o prisma do pensamento do sentido, a atividade de pensar não é inativa, mas voltada às implicações do próprio pensamento ou, como afirmou Heidegger, "é ele mesmo o agir (Handeln) que, em si mesmo, está em diálogo com o destino do mundo (Weltgeschick)" (Heidegger, 2009, p. 39). Heidegger comenta que o pensamento do sentido "é a serenidade diante do que é digno de ser questionado" (2006c, p. 58), apontando para a possibilidade da serenidade (gelasseinheit) de simultaneamente reconhecer as possibilidades desveladas pela ciência e pela técnica modernas, mas não se aprisionar a este modo de olhar como único possível, conservando assim a capacidade de um "sim e não" simultâneos a elas. Nesse contexto, a psicologia a partir da perspectiva fenomenológica existencial volta-se aos homens em sua situação concreta de vida, buscando compreender as significações sedimentadas na trama existencial para ampliar as possibilidades de ser a partir da interrogação pelo sentido da experiência (Braga, 2014). É na totalidade da existência que os dramas humanos se desenrolam e é no permanecer junto ao próprio vivido, iluminando o modo como nos encontramos na concreção fática do mundo que é o nosso que transitamos pelas possibilidades de ser que se abrem no próprio acontecimento do existir. Assim, qualquer possibilidade interpretativa deve estar atenta às suas implicações e às correlações possíveis no horizonte mesmo da facticidade que procura tocar.

Assim, em contraposição a uma perspectiva abstracionista, a perspectiva fenomenológica existencial procura compreender as experiências humanas em sua totalidade. A existência não é apenas uma característica entre outras, mas busca abarcar todas as dimensões de nossas experiências, já que existimos com todos e em todos os aspectos que participam de nós mesmos - nosso meio social, nosso corpo biológico, as relações afetivas que estabelecemos etc. Nesse sentido é que Heidegger busca compreender o homem, como ser finito que é, inserido no tempo e no espaço de sua existência e que se constitui, em seu ser, pelo questionar e interrogar a si próprio. Em sua analítica, o autor parte do Dasein enquanto ser-no-mundo, como um ente para quem o sentido do ser se apresenta ao encontrar-se cotidianamente frente a um : na circunvisão de um mundo que se apresenta a mim, estou a cada momento dirigindo quem sou em relação com as coisas, com os outros, com os entes em geral.

É porque "O Dasein é sua abertura" (Heidegger, 2012, p. 381) que uma perspectiva de mundo se abre na convivência com outros, no estar junto às coisas e no ser seu quem. O próprio Dasein é a claridade do mundo que se ilumina diante de si e que constitui sua experiência de ser-si mesmo. Encontrarmo-nos sempre diante de um mundo que se apresenta perante nós. Nesse encontrar-se, somos afetados por tudo o que nos vem ao encontro, estando sempre já numa disposição afetiva.

As disposições afetivas nos voltam ao mundo: o temor me dirige para a ameaça e o mundo se abre em seu caráter ameaçador, a paixão me dirige à pessoa amada e abre um mundo envolvente, a alegria me dirige ao divertimento e abre um mundo colorido e agradável. Angústia, todavia, é a disposição afetiva que nos volta não para o mundo, mas para nossa própria condição existencial, rompendo os significados sedimentados na trama existencial cotidiana e nos abrindo para a condição de pura possibilidade. É nesse contexto que encontramos na disposição afetiva da angústia uma condição ontológica. Diante da finitude da existência ou da possibilidade de não-ser, a angústia é tomada como disposição afetiva e condição ontológica, dizendo respeito à experiência da própria condição de ser no mundo: lançados a nossas possibilidades de ser, sem nenhuma propriedade prévia que nos determine, estamos constantemente frente à ameaça de não-ser.

A abertura que somos apresenta-nos uma condição de ser-lançados diante desse mundo que se apresenta a nós. É a perspectiva de mundo diante de nós que Heidegger denomina compreensão. A interação entre o Dasein e os outros entes ocorre em um constante vaivém entre o que é dado na situação e a realidade que se desvela na compreensão. Essa compreensão, segundo Heidegger, desenvolve-se antes da tomada de consciência reflexiva, do mesmo modo que a situação se manifesta antes da reação afetiva. É quando a compreensão se desdobra na interpretação que atribuímos linguagem ao contato com o mundo, construindo com ele uma trama significativa.

Estar voltado para um mundo que se apresenta para mim é a condição fundamental de ser-no-mundo, em que somos lançados factualmente, a cada acontecimento, a cada desvelamento, a cada contato. Diante do mundo, nos encontramos também lançados frente às nossas próprias possibilidades de ser, realizando-as nas relações, familiaridades e redes de sentido que vão se cerzindo em nossa trajetória existencial. O Dasein habita o mundo, é familiar e co-agente neste mundo, sendo um ser de possibilidades, já que é projeção e pode assumir diversas maneiras de compreender o mundo e relacionar-se com ele. De acordo com Spanoudis (1981), sendo-no-mundo significa as várias formas como o homem vive e pode viver, os modos pelos quais ele se relaciona com os entes. Assim, o homem, em sua condição ontológica, é fundamentalmente poder-ser, como um projeto, o que lhe outorga a responsabilidade e a obrigação de ser enquanto existente no mundo.

O ser-aí ou Dasein tem como sentido estar-aí situado historicamente. Esse ser-no-mundo vai se constituindo sendo-no-mundo antes de todo e qualquer eu, mas sempre situado e imerso no jogo homem/mundo, e é nessa interação que a realidade se dá. É sempre no contexto das coisas que sedimentamos os seus significados. A pressuposição de um conhecimento passível de ser elaborado de modo fixo e imutável desconsidera a própria dinâmica acontecimental do real e o próprio fluxo experiencial da consciência no sujeito que conhece. O filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911), em Ideias para uma Psicologia Descritiva e Analítica (2011), realiza tal crítica ao distinguir o modelo explicativo das ciências naturais e o compreensivo das ciências humanas. O procedimento das ciências naturais, ao estabelecer um sistema de conexões de causa e efeito, busca ser passível de generalização a todos os casos singulares, excluindo outras possibilidades explicativas. Tal operação, sendo necessariamente abstrativa, retira os fenômenos de seu campo de mostração no cotidiano, em que as relações estão sempre inscritas em planos contextuais, possuindo o risco de desconsiderar aspectos da totalidade da vida que não se deixam reduzir ao sistema explicativo generalista, sejam de ordem histórica, psicológica, ética, estética, cultural. Para Dilthey (2011), a tarefa das ciências humanas seria a de recolocar os fenômenos em seu campo de mostração, permitindo uma articulação mais ampla com a totalidade da vida, compreendendo-os sob o horizonte total que sustenta os fenômenos em geral. Assim, as tentativas das ciências humanas de reproduzir, em seu contexto, procedimentos caros às ciências naturais desconsiderariam o importante fato de que a vida não se deixa reduzir às hipóteses, não sendo possível excluir outras possibilidades e determinar claramente a relação entre mundo material e supramaterial. Segundo Dilthey, em ciências humanas "ao buscarmos produzir um conhecimento causal pleno, somos banidos para o interior de uma nuvem de hipóteses" (p. 28). É nesse sentido que podemos entender a afirmação diltheyana de que as ciências naturais explicam, enquanto as ciências humanas compreendem (Dilthey, 2011).

Heidegger (2012) parte da hermenêutica de Dilthey em sua tarefa de descrever a vida em sua complexidade e totalidade, compreendendo os fenômenos nas relações de significado que estabelece em seu campo de mostração, e articula tal perspectiva com a correlação fenomenológica entre ser e mundo, para descrever a dimensão ontológica da existência. Assim, a hermenêutica fenomenológica compreende tanto a dimensão fática da existência quanto sua imersão numa trama de significações sedimentadas no próprio existir. Heidegger caracteriza a hermenêutica como interpretação da facticidade, a partir da concreção fática do próprio Dasein. O Dasein não é um ente qualquer, mas o ente para o qual a questão do sentido se apresenta onticamente e que, respondendo à questão do ser em seu cuidado cotidiano, desdobra suas compreensões em interpretações. Além disso, a própria facticidade é de caráter interpretativo, já que dela faz parte um horizonte permeado pelas significações sedimentadas no mundo. Tal condição simultaneamente aponta para a precedência da hermenêutica e para sua precariedade, já que sendo permeada pelas significações sedimentadas, toda análise é também provisória.

Em suas características fundamentais, que Heidegger denomina existenciais, o Dasein está sempre situado num mundo concreto permeado por uma trama significativa - uma situação hermenêutica. Toda interpretação parte da concreção fática em que nos encontramos: sua rede de relações, a trama de significados que se apresenta com ela, as possibilidades que lhe são inerentes... Se, por exemplo, afirmo que alguém é saudável, o faço num horizonte hermenêutico em que conhecimentos prévios e pressupostos sobre o corpo determinam o que "saudável" significa ou não significa na realidade fática que é a minha. Uma afirmação como essa tem diferenças de significação em uma cultura permeada pelo modelo biomédico, como a nossa, ou numa cultura indígena, por exemplo. Diversos juízos e conhecimentos prévios, hermeneuticamente sedimentados, recortam a circunvisão do Dasein e é preciso considerar tais significações sedimentadas para compreender a facticidade em nossa condição existencial. É a partir da consideração das significações sedimentadas e dos recortes que elas nos colocam que podemos também nos desprender delas para uma interrogação mais radical do sentido do ser. Nessa perspectiva, encontramos uma explicação para que a filosofia heideggeriana seja conhecida como ontologia hermenêutica, já que busca, por meio da compreensão e interpretação da existência alcançar a questão do ser. Alguns aspectos do pensamento heideggeriano podem ser destacados nesse sentido. Primeiramente, Heidegger (2012) aborda a diferença ontológica entre ser e ente ressaltando o caráter temporal do ser: é apenas no horizonte temporal que o sentido do ser se desvela.

A abertura é característica do ser-aí, que se lança para a ação e para a descoberta. É nessa medida que o Dasein pode ir à busca da verdade, mas esta é temporal e manifesta-se na história que se desvela. Heidegger retoma o processo histórico de compreensão da questão da verdade, designada pelo termo aletheia (άληθεία) entre os gregos. Em sua acepção original na cultura grega, aletheia significava desvelamento, fazendo menção ao movimento fenomênico dos entes, no qual para que uma faceta se desvele, outras se velam. Nessa direção, podemos considerar o duplo sentido do termo revelar em português, que remete tanto a desencobrir algo quanto a velar novamente. Heidegger (2006c) ressalta que termo θέα (teo ou tea), diz respeito simultaneamente ao perfil do que se mostra à visão e à deusa, tal como apareceu a Parmênides. Aquilo que surge e permanece em sua aparição também comporta um "descobrir que se sustenta sempre a cada vez" (Heidegger, 2006c, p. 238) Nesse sentido, o real é o que se realiza, acontece numa dinâmica de velamento e develamento e não há como uma verdade ser imutável e constante. Ela se revela na própria ação de quem a busca, sendo significada na compreensão do Dasein. Segundo Heidegger (2008), o mito da caverna que Platão (2015) elabora em A República estabelece uma hierarquia das verdades que antes não participava da cultura grega: o filósofo, ao se retirar das sombras da caverna e se dirigir ao mundo das ideias, teria acesso a um desvelamento mais amplo e voltaria para iluminar os que ainda se encontravam amarrados. A ideia de um desvelamento progressivo que ruma até o totalmente desvelado desconsidera condições existenciais, como a temporalidade e o próprio aí contextual do Dasein, abrindo espaço para uma conotação de verdade fundada numa essência fixa e imutável para além e para aquém do próprio desvelamento do real. É essa acepção que marca a tradução do termo aletheia para o latim como veritas, designando a adequação entre as representações e os entes. A conotação moderna de verdade, mais próxima ao termo latino veritas, aloca a verdade numa proposição que diz respeito à concordância entre discurso e coisa. Heidegger (1999) problematiza essa relação, comentando que não é possível uma relação de igualdade entre coisa e pensamento, já que ambos não "pertencem à mesma espécie" (p. 283) e assinalando que tal relação se dá entre o pensamento e seu conteúdo ideal, ou representação da coisa, expressando um nexo entre coisa e representação.

O desvelamento em aletheia refere-se a deixar e fazer ver (Heidegger, 2012) e é nessa acepção que o autor descreve a dinâmica de ser-no-mundo que, compreendida no instante vivido, constitui o fenômeno da verdade a partir de sua abertura: ao abrir-se contata os entes e os desvela. Assim, é da própria condição ontológica de ser no mundo descobrir dimensões da realidade na abertura que somos. Para se mostrar é preciso ter abertura para o mais próprio do ser, como podemos ver em suas palavras: "o homem é e está na verdade" (Heidegger, 1988, p. 289). Para Stein (2010), esse filósofo demarca um novo paradigma, que é o ser-no-mundo prático, lançando uma alternativa para resolver o problema da ontologia e da verdade.

Para Heidegger (1988), o sentido só existe para o ser e pertence àquele momento; por isso ele considera o ser como ser de presença no mundo. Heidegger não concebe o homem apenas em relação a ele mesmo, mas sim, em contínua interação com todos os seres circundantes junto aos quais ele permanece. Ser-no-mundo é condição fundamental do indivíduo. Ser humano é ainda sempre ser-com-o-outro, como podemos ver a seguir:

Os outros não são aqueles com quem o indivíduo convive, nem aqueles que o completam; os outros "constituem-no". Sem o outro, o indivíduo não é. A ideia corriqueira e metafísica da coexistência é de que esta é uma decorrência de indivíduos já existentes juntarem-se uns aos outros. Ela seria um "resultado". Primeiro, haveria a manifestação de indivíduos, depois sua relação (social), como decorrente de um encontro. No caso da fenomenologia, a coexistência não é um resultado, mas condição ontológica, uma condição que lhe é dado existir. (Critelli, 2016, p. 78)

O modo como o Dasein se relaciona com outros entes, tanto simplesmente dados quanto outros Dasein, aponta para seu singular cuidar de ser si mesmo. Para Heidegger, o cuidado (sorge) não é algo que temos, mas que somos: em cada relação que estabelecemos, em cada ação no mundo, em nosso lidar cotidiano com outros entes, tornamo-nos também quem somos. Nesse sentido, cuidamos de nosso quem, de ser quem somos, no lidar com o mundo, pois temos como tarefa e como questão ser nós mesmos. O cuidado é autêntico quando nele se assume a responsabilidade de cuidar de ser si mesmo. É quando em nossa lida com o mundo clareamos a questão de quem somos e percebemo-la em jogo, na dinâmica performativa de nossos modos de ser que podemos alcançar um cuidado autêntico. Isso acontece nas vivências cotidianas que nos estimulam a refletir sobre a angústia, desilusão, agitação que acompanham a todos nós (Michelazzo, 1999)

Para a filosofia heideggeriana, há duas maneiras fundamentais de o homem se relacionar com os entes. No trato com as coisas, estabelecemos uma relação de serventia em que estas assumem um caráter de ente-à-mão. Heidegger denomina tal modo de ocupação, pois pressupõe o fazer alguma coisa, produzir, realizar algo, impor-se. Assim, a ocupação refere-se ao trato com os entes simplesmente dados e participa de nosso cuidado de ser na medida em que nosso trato com os entes no mundo abre possibilidades de relação com o mundo e, portanto, possibilidades de sermos a cada momento desse ou daquele modo. Nas palavras do autor, no Dasein "está em jogo o seu poder-ser-no-mundo e, com isso, a ocupação que descobre na circunvisão o ente intramundano" (Heidegger, 1988, p. 297). O segundo modo Heidegger denomina preocupação ou cuidado (sorge) e se refere ao ser-com-outros em co-presença no mundo. Diante de outro Dasein, não estamos à maneira das coisas, mas reconhecemos seu caráter de abertura. Nas palavras do autor, "Porque, em sua essência, o ser-no-mundo é cura2, pode-se compreender nas análises precedentes o ser junto ao manual como ocupação e o ser como co-presença dos outros nos encontros dentro do mundo como preocupação" (Heidegger, 1988, p. 257). Heidegger concebe o ser como ser de presença; ele é um ser-no-mundo descobrindo-se sempre como ser-com. A preocupação, também chamada solicitude, refere-se a essa com-vivência, em que compartilhamos o mundo com outros.

Heidegger (1988) concebe o Dasein como transcendente, porque estamos constantemente no espaço de intersecção entre o que é desvelado da situação via compreensão e o modo como somos afetados e respondemos ao mundo. Ou seja, em nosso movimento de ser atribuímos sentido ao que é e ao que somos, já que vivemos no mundo com outros. Sendo ser-com-o-outro, ser-no-mundo é condição fundamental do homem em sua humanidade: emoções, valores e envolvimento não existem em si mesmos, como entidades, ou de maneira pronta e estática, mas, antes de tudo, são constituídos e compartilhados nas relações.

Em nosso ser-com-outros, a preocupação, enquanto modalidade do cuidado, pode assumir várias maneiras. Nas formas deficientes e indiferentes de solicitude, somos ser-sem-o-outro; ser-contra-o-outro; passar-pelo-outro, demonstrando um não-se-importar-com-o-outro (Heidegger, 1981). Para Heidegger, entre os modos positivos da preocupação, há duas possibilidades extremas. No modo substitutivo, vai-se ao encontro do outro trazendo para si o encargo de ocupar-se dos entes no lugar do outro. Assim, a enfermeira que dá banho no doente quando ele se encontra impossibilitado ou a mãe que prepara o alimento para o filho quando ele ainda não é capaz de fazê-lo substituem o outro na ocupação de banhar-se ou alimentar-se. O outro é "deslocado de sua posição, retraindo-se" (Heidegger, 1988, p. 173) e nos ocupamos de sua lida com os entes em seu lugar. Embora tal modo de cuidado se faça muitas vezes necessário, corre o risco de dominar o outro, já que, escolhendo ou fazendo por ele, toma seu lugar na tarefa de direcionar seu ser si mesmo, tornando-se uma maneira inautêntica de cuidado. Outra possibilidade de cuidado é o modo antepositivo, em que questionamos pelo modo como alguém vem sendo e cuidando de seu quem, favorecendo que ele assuma seus próprios caminhos, crescendo e encontrando-se consigo mesmo. Nessa perspectiva, ser-com-o-outro pressupõe um relacionamento significativo e envolvente, também chamado de autêntico cuidar.

Na relação de submissão, há um afastamento: o ser se torna ser-lá, deixando de ser-si-mesmo, denunciando maneiras deficientes de solicitude, transformando o ser em impessoal ou em a-gente. Para Heidegger (2012), em nosso agir cotidiano estamos imersos nas significações hermeneuticamente sedimentadas, sem nos atentarmos para o modo como realizamos nossas possibilidades de ser - de início e na maioria das vezes, somos como se é na facticidade que é a nossa, caindo no impessoal. Essa impessoalidade leva ao anonimato, ao afastamento, o que favorece a não-singularidade do ser, tornando-o ser-inautêntico. No contato com nossa condição existencial de abertura e de indeterminação, possibilitado pela angústia, percebemos que o horizonte significativo hermeneuticamente sedimentado que permeia nossa realidade é uma possibilidade interpretativa, mas não determina nosso modo de ser, e podemos nos apropriar do modo como cuidamos de ser ao reconhecer na realização de nossas possibilidades o direcionamento de nosso existir. Ao reconhecer que as significações constituídas, se nos proporcionam um horizonte determinado, podem nos aprisionar nele, reconhecemos simultaneamente que o silêncio da suspensão dos significados, se não nos oferece determinações prévias, nos possibilita a liberdade da criação de sentido. Ao nos apropriarmos de nosso direcionamento existencial, assumimos a possibilidade de nos tornarmos protagonistas e coautores de nossa história e contatamos a dimensão da autenticidade. Assim, a autenticidade remete a um contato com a condição ontológica da existência enquanto indeterminação e abertura, desvelada na disposição afetiva da angústia: ao reconhecermos que as tramas significativas que orientam nosso habitar o mundo são contruídas e não nos substancializam, retomamos nossa condição de ter o ser si mesmo como tarefa e questão, frente a possibilidades de ser abertas em nosso aí. Ser-autêntico pressupõe um ser-aí aberto às possibilidades da existência. Na medida em que o ser-com se revela como ser-autêntico, é capaz de compreender o outro, pois a compreensão do outro ocorre por meio do cuidar solícito. É no encontro com a questão de ser si mesmo que se abre para nós a possibilidade de interrogar pelo sentido de ser de outrem.

(...) preocupação que não tanto substitui o outro, mas que se lhe antepõe em sua possibilidade existenciária de ser, não para lhe retirar o "cuidado" e sim para devolvê-lo como tal. Essa preocupação que, em sua essência, diz respeito à cura propriamente dita, ou seja, à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa, ajuda o outro a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela. (Heidegger, 1988, p. 174)

A partir da perspectiva heideggeriana da existência, podemos compreender a clínica como um espaço para o cuidado de ser. Testemunhando o modo como alguém vem sendo, o processo clínico pode auxiliar a explicitar a trama significativa presente numa trajetória existencial. Assim, o processo de retomada das experiências e de interrogação por seu sentido permite ampliar a liberdade em relação às significações já sedimentadas no mundo, abrindo novas possibilidades de ser e reformulando o próprio mundo.

Simultaneamente, é a pela via da indeterminação ontológica do Dasein que podemos pensar a abertura para novas possibilidades de ser como espaço promotor de transformações singularizantes na relação entre o ser-aí e o mundo. Nesse sentido, a clínica na perspectiva fenomenológica não parte de construções teóricas prévias embasadas num modelo de personalidade, mas da possibilidade de teorizar, explicitar, questionar e reinventar a trama de sentido que se apresenta na concreção fática da vida. No encontro que se dá no aí compartilhado entre terapeuta e cliente, as relações de sentido se clareiam, se criam e podem se reconduzir, levando à apropriação da condição existencial para o protagonismo de sua trajetória frente às possibilidades de ser e relacionar-se com o mundo.

 

Referências

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Recebido em 11.07.2016
Primeira Decisão Editorial em 15.09.2016
Aceito em 06.10.2016

 

 

1 Há diferentes traduções para o português de "Ser e Tempo", uma das principais obras de Martin Heidegger. Utilizamos as de Maria de Sá Cavalcante (1999) e de Fausto Castilho (2012) nesse artigo. Algumas expressões alemãs foram traduzidas de diferentes modos nas duas versões e, para a finalidade do presente texto, utilizamos a cada passagem a tradução que compreendemos melhor respeitar as ideias do autor
2 A palavra alemã sorge é traduzida na obra heideggeriana como cura, preocupação ou cuidado. Na tradução de Fausto Castilho (Heidegger, 2012), utiliza-se nesse trecho a palavra preocupação para tradução do termo alemão sorge, e preocupação-com-o outro para referir-se à preocupação. No presente artigo, sempre que possível, utilizamos o termo cuidado para nos referirmos genericamente a sorge, que acreditamos ser mais fiel ao sentido do pensamento do autor, já que o termo, ao apontar para o cuidar de ser, se refere ao modo como nos somos nós mesmos a partir de nossas relações com o mundo.

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