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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2017
O método de história de vida: a exigência de um encontro em tempos de aceleração
Life-history method: in need of a encounter in accelerated times
Maria Luísa Magalhães NogueiraI; Vanessa Andrade de BarrosII; Adriana Dias Gomide AraujoIII; Denise Aparecida Oliveira PimentaIV
IMestre em Psicologia Social (UFMG). Doutora em Geografia (UFMG). Professora do Departamento de Psicologia da UFMG. Integrante do Laboratório de Estudo e Extensão em Autismo e Desenvolvimento. E-mail: marilummn@yahoo.com.br
IIDoutorado em Sociologia, Université Paris 7 - França. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos da UFMG. E-mail: vanessa.abarros@gmail.com
IIIMestre em Psicologia Social. Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas. Professora da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais e do Centro Universitário UMA. E-mail: adriana.gomide@yahoo.com.br
IVPsicóloga Formada pela UFMG. Especialista em Intervenção Psicossocial no Contexto das Políticas Públicas - Centro Universitário UMA. E-mail: daop2007@yahoo.com.br
RESUMO
Este texto toma o método de História de vida visando produzir uma reflexão atualizada sobre esse instrumento. Para tal, retraçaremos seu histórico, buscando identificar filiações teóricas e interfaces, no intuito de refinar as possibilidades e os limites que carrega. Nesse sentido, são apresentadas considerações sobre o tempo, o processo e a interlocução construída no recolhimento da história de vida, de modo a aprofundar reflexões sobre a importância da relação estabelecida entre pesquisador e aquele que narra sua vida, sobre como é delicado trabalhar com a memória e, ainda, sobre como é importante ponderar sobre os lugares de onde se fala. Por fim, concluímos que são três os laços que dialogam no contar da vida - as condições objetivas, as experiências vividas e a maneira como são narradas - elementos que devem constar no processo de investigação de cada pesquisador.
Palavras-chave: História de vida. Memória. Lugar.
ABSTRACT
This article takes life-history method in order to produce an updated reflection on this instrument. Thus, we present its history, seeking to identify theoretical affiliations and interfaces, aiming to refine its possibilities and limits. Seeking to deepen into the relationship between the researcher and the one who tells his life, some considerations on the motion-time of life-history are presented. We also discuss about how memory work is a delicate task and how it is important to take considerations about the place from where we speak. The conclusions highlight three ties in the telling of a life - the objective conditions, the way they are lived, the way they are narrated - points that should be included in the research process of each researcher.
Keywords: Life-history. Memory. Place.
RESUMEN
Este artículo toma el método de la Historia de vida con el objetivo de producir una reflexión actualizada sobre ese instrumento. Para ello, trazamos su historial, buscando identificar filiaciones teóricas e interfaces, con el fin de refinar sus posibilidades y límites. En este sentido, se presentan consideraciones sobre el tiempo, el proceso y la interlocución que se construye durante la recogida de la historia de vida, de manera a profundizar reflexiones sobre la importancia de la relación establecida entre el que investiga y el que narra, sobre cómo es delicado trabajar con la memoria y, además, sobre cómo es importante ponderar sobre los lugares desde donde se habla. Finalmente, concluimos que son tres los lazos que dialogan en el contar de la vida - las condiciones objetivas, las experiencias vividas y la manera como son narradas - elementos que deben constar en el proceso de investigación de cada investigador.
Palabras clave: Historia de vida. Memória. Lugar.
Introdução
Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. (Borges, 2007, p. 92)
Como são construídas as metodologias qualitativas na ciência moderna? Elas são filhas de momentos históricos, da forma como a ciência move-se ideologicamente, das perguntas e do espírito de cada época e, ainda, do uso que, a cada vez, é feito delas. Assim, cada método se constitui e reconstitui sustentado na tríade pesquisador-caminho-mundo. O percurso metodológico que cada pesquisador trilha em sua pesquisa deve possibilitar o deslocamento do pensamento, abrir possibilidades de ver os vários mundos no recorte de mundo que se deseja compreender. Nesse sentido, cabe sublinhar que toda metodologia foi e é reinventada.
A pesquisa com histórias de vida é, assim, um processo de construção de conhecimento a partir da relação específica entre dois atores: pesquisador e sujeito pesquisador - pelo pesquisador, como método que pressupõe a existência de vínculo; pelo sujeito, participante da pesquisa que narra sua história, num dado momento de sua vida. André Lévy (2001) é exato na sua descrição do método: "[...] um encontro único entre um pesquisador e uma pessoa que aceita se confiar a ele - encontro que, também ele, tem sua história própria" (Lévy, 2001, p. 93). Esse texto toma o método de História de vida, após seu uso em diversas pesquisas (Barros; Silva, 2004; Silva, 2015; Nogueira, 2004; Gomide, 2006; Amaral, 2014) com vistas a produzir uma reflexão mais contemporânea sobre o seu uso. Para tal, retraçaremos seu histórico, buscando identificar filiações ideológicas e interfaces, no intuito de refinar as possibilidades e os limites que carrega.
História de vida como ferramenta de historicidade e de ressignificações
Em termos gerais, o método de história de vida participa da metodologia qualitativa biográfica na qual o pesquisador escuta, por meio de várias entrevistas não diretivas, gravadas ou não, o relato da história de vida de alguém que a ele se conta. Nesse processo, a relação entre pesquisador e aquele que narra sua história é um ponto essencial e só acontece na presença de um vínculo de confiança mútua que é construído ao longo de um processo. Ao fim da escuta, todo o material é transcrito e discutido entre o sujeito participante e o pesquisador, que, a partir de então, fará um mergulho analítico para buscar identificar naquele material as pistas que o ajudarão a tentar responder suas questões de pesquisa. "É retomar a reflexão de outrem como matéria-prima para o trabalho de nossa própria reflexão" (Chauí, 1987, p. XXI).
Narrar a vida é dela se re-apropriar, refazendo os caminhos percorridos, o que é mais do que "revivê-los", (Bosi, 1987 p. 55). A autora sugere que a história narrada "[...] não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu" (Bosi, 2003, p. 69). Trata-se, portanto, de ampliar a possibilidade de inventar novos modos de ser no mundo, a partir do vivido e do encontro com o outro; de incorporar o vivido, o passado que se faz presente.
A esse respeito Vincent de Gaulejac (1996) afirma que as histórias de vida são ferramentas de historicidade que permitem ao sujeito "trabalhar sua vida" ao contá-la, jogar com o tempo da vida. Possibilitam reconstruir o passado restaurando-o e fazendo sua vinculação com a história para reencontrar o "tempo perdido", reabilitando o que havia sido invalidado; possibilitam também ao sujeito sustentar o presente pela história incorporada, pela maneira que ela age sobre ele hoje, compreendendo em que a história é presente nele, o que lhe permite projetar um futuro situando-o em relação a esse passado (Gaulejac, 1996, p. 15). Assim, as histórias de vida podem possibilitar a abertura de novas interpretações e elaborações do vivido.
Há um caráter terapêutico nesse método e ético; uma dimensão interventiva, inscrita na escuta oferecida pelo pesquisador e no fato de que contar a história é recriá-la, é produzir uma leitura sobre as experiências vividas, produzir ressignificações e produzir uma escrita. O sujeito narrador da história não se limita, assim, a ser um "objeto" de pesquisa.
Leituras e escritas, falas e escutas - processos indissociáveis. Afinal, ao lermos um texto, lemos o mundo (Hissa, 2013). Ler é escrever o texto lido, tornando-o outro, o que nos remete ao pesquisador, à relação de interlocução estabelecida no contar a vida. "As formas e os conteúdos de uma história de vida variam de acordo com o interlocutor; dependem da interação que representa o campo social da comunicação, situando-se no interior de uma reciprocidade relacional" (Ferraroti, 1990, p. 52). Em sua célebre pesquisa sobre a feitiçaria, apresentada na obra Les mots, la mort, les sorts, Jeanne Favret-Saada (1977) insiste na importância da elucidação do lugar onde o pesquisador é colocado pelo sujeito, pois, segundo ela, dependendo desse lugar os discursos serão radicalmente diferentes (Favret-Saada, 1977, p. 36). Do ponto de vista da antropologia, ao colocar no mesmo plano a etnografia e a feitiçaria, traçando uma reflexão sobre o que se chama de princípio de simetria, a autora põe em foco o processo de transformação que os pesquisadores vivem inelutavelmente ao se envolverem, reciprocamente, com os contextos de pesquisa que buscam compreender. Daí a importância de entendermos os endereçamentos e pertencimentos presentes no ato da pesquisa.
O tempo-movimento de recolhimento da história de vida, em sua condição de atividade e de experiência, possibilita a abertura de um intervalo temporal e afetivo entre eu e o outro, conexão que fornecerá as condições para que o narrador possa aproveitar desse momento e, a partir dele, produzir novas elaborações sobre o vivido, enquanto o pesquisador, por sua vez, também poderá elaborar suas questões teóricas e pessoais a partir daquela escuta. Essa conexão se sustenta na história social e no universo simbólico, desse modo o processo de narrativa das histórias se localiza numa esfera que privilegia os aspectos simbólicos e subjetivos, em sua conexão indissociável ao material. Afinal, é preciso reconhecer que a vivência/experiência narrada se corporifica em fatos diversos, mas sua tessitura simbólica é fundamental. Nela, no mundo simbólico, é que tais fatos sociais efetivamente se inscrevem.
E por que narramos nossas vidas? "Contamos histórias porque finalmente as vidas humanas necessitam e merecem ser contadas" (Ricoeur, 1983, p. 19) Embora Émile Benveniste afirme que "[...] nunca recuperamos nossa infância nem o ontem tão próximo nem o instante fugidio" (1980, p. 73) podemos voltar atrás; "[...] talvez seja esse precisamente o trabalho da narração: a recuperação de algo impossível sob uma forma que lhe dá sentido e permanência, forma de estruturação da vida e, portanto, da identidade" (Arfuch, 2002, p. 138). A ilusão do tempo recobrado. A narrativa é parte "de um presente ávido pelo passado, cuja percepção é a apropriação veemente do que nós sabemos que não nos pertence mais" (Bosi, 2003, p. 20). E, como Eric Hobsbawm (2002, p. 11) ressalta "[...] o que busco é o entendimento da história, e não concordância, aprovação ou comiseração". Contudo, o entendimento da história só se dá na ação de ir a seu encontro, o que é possibilitado pela força da narrativa, na escuta comprometida.
Assim, como dimensão da experiência, a narrativa postula uma relação possível entre o tempo do mundo da vida, o do relato e o da leitura, conforma explica Leonor Arfuch (2002, p. 87).
[…é] relação de incoincidência, distância irredutível que vai do relato ao acontecimento vivencial, mas, simultaneamente, uma comprovação radical e, em certo sentido, paradoxal: o tempo mesmo se torna humano na medida em que é articulado sobre um modo narrativo.
E daí que temos os laços entre a linguagem, vida e a mútua implicação entre narração e experiência. Poderíamos entender a narrativa da própria vida como uma objetivação da experiência - estando nela inserida - da qual participa um outro, uma coletividade, um tempo, um lugar.
Ainda segundo essa autora, "Os métodos biográficos, os relatos de vida, as entrevistas em profundidade delineiam um território bem reconhecido, uma cartografia da trajetória - individual - em busca de seus acentos coletivos" (Arfuch, 2002, p. 17). Nesse sentido, as narrativas de vida traduzem um modo narrativo próprio do autor (de seus saberes, influências, inspirações, determinações) em seu tempo e espaço vividos.
É possível falar de uma vida humana como se uma história em estado nascente - pergunta Ricoeur (1983, p. 141) - "se não existe experiência que não seja mediada por sistemas simbólicos e entre eles os relatos, se não temos nenhuma possibilidade de acesso aos dramas temporais da existência fora das histórias contadas a este respeito por outros ou por nós mesmos?".
O discurso biográfico, nessa perspectiva, carrega uma riqueza ímpar e de complexo tratamento analítico, na medida em que mora no plano do que não é verificável, transcendendo a esfera da ciência tradicional. Ele é tramado na relação com o interlocutor e traz os elementos da história coletiva, como já se sabe, mas está ainda em conexão com elementos da ordem dos jogos de poder e da linguagem, do imaginário, da subjetividade.
É preciso marcar, ainda, não apenas a impossibilidade de acesso aos fatos fora dos dramas, mas, antes, a importância que a compreensão do drama em si mesmo carrega. Ou seja, importa entrar em contato, por meio da escuta da história narrada, com a dimensão subjetiva, pois ela carrega riquezas importantes: a maneira como os sujeitos, inseridos em uma sociedade, são e foram marcados pelos regimes de verdade de cada época, tal como estudou Michel Foucault (2007), pelas formas de reprodução social e seus dispositivos sociais. Desse modo, vemos que não é em vão que os métodos biográficos favoreçam a inserção da psicologia nos campos da teoria social crítica; certamente, a psicologia deve dar conta da produção sócio-histórica, em qualquer de seus campos epistemológicos, reconhecendo na esfera psicológica os atravessamentos sociais. É justamente no contexto vivido, nas singularidades expressas nas experiências subjetivas dos sujeitos sociais que os poderes, as ideologias e os afetos, enfim, os fatos sócio-históricos se inscrevem, ficando ali disponíveis para serem lidos, reconhecidos e - em alguma medida - transformados.
Há que se acrescentar aqui outro fator fundamental: o tempo. Maria Rita Kehl (2009) sugere uma metáfora interessante, ao pensar a relação do sujeito contemporâneo com o tempo: o atropelamento. A velocidade da vida passou a ter uma face mortífera ao se resumir a um só tempo, o da aceleração, numa sociedade competitiva que nos atropela. Contudo, é preciso abrir espaço na pesquisa para que o tempo da narrativa não encontre barreiras intransponíveis; o recolhimento da história de vida não pode ser feito na aceleração. Ele exige o tempo do encontro; o tempo da delicadeza em que, ainda segundo a psicanalista, é possível amar o transitório. E recolher uma história de vida é cartografar o transitório, tal como qualquer incursão pelo mundo da literatura exige; trata-se de registrar o movimento da experiência.
Escola de Chicago e desdobramentos recentes
Importante lembrar aqui um pouco da própria história do método, buscando nela suas marcas epistemológicas, seus desvios e limites e, ainda, o modo como foi recriado, seu processo de avanço, sua transformação - fruto mesmo dos movimentos paradigmáticos que se passam no contexto das ciências humanas. O pesquisador Howard Becker (1996), em conferência proferida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, em 1990, sobre a Escola de Chicago, afirma:
Uma delas [histórias da sociologia que precisam ser contadas] é a história da prática da sociologia, dos métodos de pesquisa e das pesquisas realizadas, porque não se deve tomar como óbvio que as idéias foram as forças motrizes ou a principal realização de qualquer escola sociológica. (s/p)
A influência e a importância das pesquisas desenvolvidas na Universidade de Chicago1, sobretudo nos anos 1920/1930, para um viés qualitativo de pesquisa, são evidentes. No entanto, parece ser importante salientar que havia um caráter eclético nos métodos usados nas pesquisas, podendo acomodar recursos qualitativos e outros quantitativos simultaneamente, como é o caso de muitos trabalhos de Robert Park. O movimento da Escola de Chicago obviamente não apresenta homogeneidade, mas tem grande sintonia em seus direcionamentos metodológicos e conceitos fundamentais - o que lhe confere a unidade necessária à impressão que causou na sociologia e nas ciências humanas de forma geral -, garantindo-lhe um espaço particular na sociologia americana. É especialmente pela preocupação em otimizar a pesquisa e objetivá-la de forma a tratar de conhecimentos próximos da realidade social concreta, "[...] marcada pela insistência dos investigadores em produzir conhecimentos úteis para a solução de problemas sociais concretos" (Coulon, 1995, p. 8), que a Escola de Chicago emerge.
Elementos que hoje se mostram básicos em qualquer pesquisa de cunho qualitativo - tal como reconhecer o ponto de vista de quem vivencia situações que se quer estudar - foram efetivamente percebidos e considerados, com clareza e rigor, pelo que se convencionou chamar de Escola de Chicago. O método de história de vida é tributário dos avanços de pesquisa que ali foram desenvolvidos entre as décadas de 1920 e 1930. O livro intitulado A escola de Chicago, de Alan Coulon (1995), é esclarecedor nesse sentido, resgatando as pesquisas de Thomas e Znaniecki (1927); Park e Burgess (1969); Thrasher (1963); Shaw (1966); Sutherland (1937) e nelas marcando os avanços para as ciências humanas, especialmente no que diz respeito à inovação metodológica que contêm, a saber: a importância do ponto de vista do sujeito, seu modo particular de vida; o uso de documentos pouco convencionais (para a época) como fonte importante de dados, como cartas, diários, etc.; o trabalho de campo como fundamento da boa pesquisa sociológica (sair da biblioteca e, efetivamente, encaminhar-se à pesquisa de campo)2. Contudo, não é apenas para os métodos biográficos e para a percepção de outras fontes de dados que a escola de Chicago é carregada de valor. É preciso ainda marcar a relevância do reconhecimento daqueles pesquisadores sobre a cidade como objeto de pesquisa, sobre a importância do desenvolvimento de uma abordagem social compreensiva da cidade, bem como o que tal herança representa, como riqueza que não deve ser perdida, mas, também, como dificuldades e impasses que ainda se apresentam no cotidiano de nossas pesquisas.
O estatuto principal de tal herança repousa no esforço de privilegiar a dimensão da cultura, no contexto do pensamento e da pesquisa sociológica e econômica. Os pesquisadores de Chicago abrem espaço no pensamento e na prática da pesquisa para uma aproximação consistente com as comunidades, reconhecendo-as no contexto histórico em que estão imersas. Há que se sublinhar que foi a cidade de Chicago o maior convite a tal movimento. Como se sabe, a cidade vivia naquele período um boom populacional, gerado por ondas de imigração internas e externas ao cenário americano, além de ter passado pelo incêndio histórico de 1871, que impulsionou o pensamento urbanista daquele período, reconstruindo a cidade nos moldes modernos em que a reconhecemos hoje, em aço e concreto. Segundo Remy e Voyê (1976), a cidade passou de 112.000 habitantes em 1840, para 1.700.000 em 1910 e, já em 1920, contava com 2.700.000. Alan Coulon (1995) apresenta dados semelhantes e chega a apontar 3 milhões e meio de moradores na Chicago de 1930. Esse aumento populacional impressionante gerou importantes impactos na vida cotidiana da cidade, que produziram diversas demandas de pesquisa, já o tecido urbano recebeu novas justaposições de diferentes usos, gerando uma aglomeração urbana nova.
É interessante observar que os estudos ali desenvolvidos versavam sobre questões que na atualidade parecem apresentar impasses aos cientistas sociais, tais como a violência, a segregação e a criminalidade no contexto urbano. Ainda hoje, parece que esbarramos em dificuldades semelhantes, por exemplo: como dar conta do ponto de vista daquele que vive tal situação; o lugar do imigrante que sofre o choque cultural, que se vê impossibilitado de participar dos jogos sociais valorizados (consumo, poder); como compreender aquele que comete o ato violento ou criminoso, reconhecendo-o como sujeito social, não lhe destituindo saberes e, ainda, implicando os outros atores sociais (nós mesmos) no processo de produção da violência? Os pesquisadores de Chicago avançaram muito teórica e metodologicamente, mas esbarraram em obstáculos moralistas3 e estavam marcados pelo viés positivista e, de certo modo, naturalizante. Assim, apesar da perspectiva qualitativa ter encontrado em Chicago um importante momento de fôlego e produção, o viés quantitativo viria a suplantá-la, ganhando força crescente no cenário americano pós 1935 (data da ruptura na American Sociological Society para a então denominada American Sociological Association) e a partir da Segunda Guerra Mundial, trazendo então outras contribuições à ciência, mas gerando, enfim, um afastamento do que era, até então, a virada trazida por aquele grupo de pesquisadores.
Por um lado, a Escola de Chicago soube produzir uma abordagem cultural significativa, que teve como produto importante e original o avanço qualitativo, gerado pela forte preocupação empírica e pela coerência temática das pesquisas, que tomavam a cidade como objeto e campo (exatamente do modo como Albion Small sugeriu, na função do primeiro diretor daquela instituição). Tal processo teve influência direta dos trabalhos de Georges Simmel, com quem diversos pesquisadores estabeleceram contato, inclusive Small, Thomas e Park8. Nesse sentido, cabe marcar também a relevância da percepção da importância de outras fontes documentais (como na célebre pesquisa de Thomas e Znanieck4, desenvolvida com os imigrantes poloneses) e do valor da escuta do sujeito. Contudo, diversos pesquisadores - como não poderia ser diferente, se reconhecermos o momento histórico da ciência moderna - seguiam em busca de critérios de "verdade", buscando verificar as informações e traçar, assim, explicações excessivamente generalizantes, o que gera algumas contradições que destacamos neste texto. Assim, ainda que o estudo de Thomas seja reconhecido pela tentativa da produção dos conceitos explicativos de atitude e de desorganização social (Coulon, 1995), sua grande marca é o esforço em compreender do interior os processos vividos pelos migrantes, isto é, "[...] levar em conta o significado da ação para os indivíduos" (Coulon, 1995, p. 81), mostrando a importância das transformações sociais para aqueles sujeitos.
Por outro lado, é patente em diversos estudos, mesmo os de Park, uma vertente ecológica e naturalista, referenciada no darwinismo, o que, possivelmente, explica o futuro deslocamento da vertente qualitativa para a forte produção quantitativa. E, o mais importante, a ausência de reflexão de cunho político. Porém, não desconhecemos a importância e o valor dos trabalhos de Park. Ele afirma, inclusive, que estudando a cidade poderemos compreender o mundo, já que nela moramos ou estamos e a ela nos dirigimos - tese quase profética se pensarmos que vivemos, atualmente, numa sociedade urbana, seja em termos do modo de produção do espaço (Lefebvre, 2008), seja no que diz respeito à preponderância da população urbana à rural (Davis, 2006). Em sua vasta produção, Park consegue se contrapor à aceitação comum na época sobre a necessidade de uma homogeneidade étnica para o país (Coulon, 1995), fato que o protege de qualquer movimento de descarte. Sabemos, ainda, que o autor assume uma posição que valoriza, a todo o tempo, um esforço em reconhecer os aspectos materiais dos contextos em que estão as questões de pesquisa. Entretanto, uma aproximação da vertente urbana de tais estudos evidencia suas contradições, pois Park chega a desenvolver o conceito de área natural, buscando a compreensão da ocupação do ambiente urbano por uma explicação meramente adaptativa, esvaziada, desse modo, tal como nos trabalhos de Burgess, de uma leitura política. Nesse sentido, a estrutura ecológica da cidade de Chicago seria, para Park:
[...] um mosaico de zonas caracterizadas pelo fato de que cada uma delas está dominada por um certo tipo de população ou de funções; um mosaico de zonas que, ademais, se perpetuam por meio do duplo processo de seleção dos habitantes e de socialização dos mesmos, sem que isso queira dizer que nos encontramos frente a um fenômeno estático. (p. 214 - tradução nossa)
A tentativa de produzir um modelo universal que desse conta de explicar e prever a distribuição dos grupos sociais nas áreas urbanas, tal como trabalhou Burgess, é emblemático e evidentemente criticável5. Para Remy e Voyê (1976, p. 216), "a Escola de Chicago considera a cidade como resultado de movimentos espontâneos e quase naturais, o que exclui uma análise da dimensão política dela mesma", diferentemente da escola francesa de pensamento urbano, em que a cidade é "um objeto de estratégias políticas e de conflitos de poder".
Todavia, ao fazermos essas ressalvas, nos aproximamos ainda mais das qualidades da produção inovadora que a metodologia desenvolvida nesse contexto carrega. Somos reencaminhados a pensar no método biográfico, que emerge dos esforços metodológicos dos pesquisadores dessa escola. Porém há aqui, também, outro ponto a ser considerado: todas aquelas pesquisas que trabalharam, no âmbito da Escola de Chicago, no viés biográfico apresentaram uma preocupação que se mostra, no contexto contemporâneo, descartável: checar os dados trazidos pelas histórias recolhidas. Esses dados eram comparados às cartas, aos jornais da época, aos diários e cotejados com entrevistas suplementares, feitas com outros atores envolvidos em cada problema de pesquisa tratado. Tal contradição já conseguimos superar, concordando com Bouilloud (2009, p. 47) que afirma:
O relato autobiográfico é, portanto, incompleto; ele é como todo instrumento de coleta de dados em ciências sociais. Olhemos mais longe ainda: ele é incompleto nos dados, como toda ferramenta de coleta, mas não no plano da significação, contrariamente a muitas outras abordagens. De fato, a necessidade de que o relato "faça sentido" obriga a fechar o texto nele mesmo, a torná-lo coerente ou autônomo ou a lhe fornecer uma lógica ou uma "ordem". O relato de tipo autobiográfico possui, portanto, uma vantagem inegável em face de outras ferramentas, visto que ele mobiliza o indivíduo e exige dele o que outras abordagens não lhe solicitam. Desse modo, a questão não está na "verdade", mas no "sentido", e é preciso deportar a perspectiva da verificação ou da qualificação dos fatos, certamente útil, porém insuficiente e necessariamente inacabada, para a análise do sentido do relato, daquilo que ele quer dizer para o autor.
Como insiste Lejeune (2008, p. 51), o interesse da narrativa reside no fato de que o autor nos conta o que apenas ele pode nos dizer, cabendo ao pesquisador "construir um objeto que seria, na verdade, apenas um dos objetos possíveis a serem construídos".
O lugar da memória nas histórias de vida
José Saramago (2001) conta uma história simples, por ele lembrada em Janela da Alma: diz que costumava frequentar o Teatro da Ópera de Lisboa, onde havia uma coroa dourada enorme que formava o camarote real. Essa coroa era vista assim, bela e imponente, pela plateia, mas de onde ele, Saramago, assistia ao espetáculo, numa posição desprivilegiada, era possível ver muito mais do que a coroa.
Eu ia muito à ópera, no São Carlos, no teatro da ópera de Lisboa. E ia sempre lá pro galinheiro, lá pra parte de cima, onde via uma coroa, quer dizer, o camarote real. Começava embaixo, ia até lá em cima e fechava com uma coroa, uma coroa dourada enorme. Coroa essa que vista do lado da platéia e do lado dos camarotes era uma coroa magnífica. Do lado em que nós estávamos não era, porque a coroa só estava feita entre as quartas partes. E dentro, e era oca, e tinha teias de aranha, e tinha pó. Isso foi uma lição que eu nunca esqueci. Nunca esqueci essa lição: é que para conhecer as coisas há que dar-lhes a volta. Dar-lhes a volta toda. (s/p.)
O galinheiro, esse lugar desvalorizado, inferior e desprovido do status que o camarote real comportava, possibilitava outras miradas, de lá se via mais. Vale repetir a leitura que o escritor faz daquela experiência: é que para conhecer as coisas há que dar-lhes a volta.Dar-lhes a volta toda. Sua lembrança carrega não apenas a importante lição trazida ao presente pelo escritor e multiplicada em suas palavras, mas, ainda, o lugar da imagem e a pertinência da alteridade, eixo fundamental de nossas experiências, de suas vivências. Ainda segundo Saramago (2001), há que se pensar no que vemos e que convencionamos chamar de realidade:
Nós não temos, por exemplo, os olhos como os têm a águia ou o falcão. Nós vivemos dentro d'uma possibilidade de ver, que é nossa, que nem vê - supondo que os nossos olhos são olhos sãos, normais - que nem vê nem de menos, nem demais. E para tornar isso claro, eu digo que se o Romeu da história tivesse os olhos de um falcão, provavelmente não se apaixonaria pela Julieta, porque os olhos dele veriam uma pele que, enfim, veriam uma pele que provavelmente não seria agradável de ver; porque a acuidade visual do falcão, cujos olhos o Romeu teria, não mostraria a pele humana tal como nós a vemos. Portanto, saber o que é realidade, bom, se eu acreditar que deus fez os meus olhos para que eu visse a realidade tal como ela [é], então, estupendo. Mas como nós sabemos que não é assim, não vale a pena estarmos a perder tempo com isso. (s/p)
Nossos olhos não veem a realidade tal como ela é, tampouco nossa memória acessa o vivido objetivamente. Ao contrário, parece que tal relação perfeita e precisa com o passado seria, de fato, insuportável. Nessa medida, sabemos que a memória é sempre instável. É construída e reconstruída, inventada, podemos dizer. Ela não é feita de virtudes impecáveis, é criada, cultivada, transformada - sempre.
A memória, onde navegam as histórias de vida narradas, é um engenho delicado para todos. Ela é e precisa ser imprecisa e inventiva, pois muito da plasticidade da existência cabe a ela. As memórias jamais devem se enrijecer, sob pena de perder os códigos que conformam seu funcionamento. Seus mecanismos rejeitam a rigidez, colocam em suspensão o que é repetitivo e perseguem a invenção. A fruição da memória faz eco aos fluxos e ao imponderável da vida, ofuscando o que é convencionado, individual ou socialmente. O que importa ao sujeito é a forma como a coisa foi vivida, ou seja, como determinada vivência pregressa compõe com os fatos e elementos afetivos atuais.
A memória é fazer constante, movente. Para Ecléa Bosi (1987, p. 17), "A memória não é sonho, é trabalho [...] lembrar não é reviver, é refazer, reconstruir, repensar com ideias de hoje, as experiências do passado". Lembrar não é viver de novo, é construir - sempre de outro jeito - o vivido, que se torna novo, nosso. A memória não é um estado de coisas, uma bagagem, não é segura, confiável ou blindada (como costumamos pensar). A memória é processo: deslocamento (Bosi, 1987). É justamente a memória que possibilitará o novo. Por isso, a memória inteira é insuportável; ela só cabe em nós por sua condição de incompletude, tal como relata o personagem Funes, o memorioso, de Jorge Luis Borges (2007, p. 96):
Com efeito, Funes não recordava somente cada folha de cada árvore, de cada monte, como também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. [...] [Era] solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato.
Milton Santos afirma: "no lugar novo o passado não está; é mister encarar o futuro: perplexidade primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação. Para os migrantes, a memória é inútil" (2008, p. 328). Porém, o passado nunca está nos lugares como passado. Sempre se faz presente, pois a memória parte sempre do presente. A memória (o passado), talvez não seja - rigorosamente - "inútil", como sugere Milton Santos; seja apenas insuficiente. É o próprio autor quem continua a discussão:
Para os migrantes, a memória é inútil. Trazem consigo todo um cabedal de lembranças e experiências criado em função de outro meio, e de que pouco lhes serve para a luta cotidiana. Precisam criar uma terceira via de entendimento da cidade. Suas experiências vividas ficaram para trás e nova residência obriga a novas experiências. (p. 328)
Se entendemos que a memória se faz entre a lembrança e o esquecimento, tal ideia de "inutilidade" se torna mais clara: a memória não está no passado (aí residiria sua inutilidade, na permanência no passado), mas ao contrário, no presente, ela é geradora do futuro (Bosi, 2003, p. 66) ao reinventar o passado. E na nova cidade é onde os saberes serão cultivados e o novo surgirá. E no novo, a memória convoca o passado no presente.
A memória acontece na relação com o outro, com o grupo, com a produção de uma identificação (ainda que esta seja pela via da oposição ou da resistência), quando amalgamamos ao passado o presente. Segundo Vicent de Gaulejac, (1996) certos acontecimentos do passado são vividos como se fossem hoje; o presente é a trama da memória. Em suas palavras:
O tempo imaginário escapa à contingência cronológica. Além disso, o que vivemos a posteriori conduz a 'reescrever', a 'reconstruir', a reelaborar de outra maneira o que foi vivido antes e, então, viver de uma outra maneira. É nesse sentido que podemos dizer que o presente muda o passado. Evidentemente, não é o passado que muda, mas a relação que um sujeito estabelece com a sua história passada. (p. 18, tradução nossa)
A psicanálise ensina como as experiências são feitas de hoje, uma vez que no mundo sensível, presente, lembrança e sonho se confundem. Desse modo, não devemos nos preocupar com a cronologia dos acontecimentos, justamente porque necessariamente ela nos escapa. Não é preciso reconstruir a trajetória linear das histórias de vida; elas não são feitas nem vividas na linearidade.
A neurologia também reconhece a volatilidade da memória. Segundo Oliver Sacks (2013), o cérebro não distingue uma experiência vivida e um sonho, uma memória vivida ou a lembrança de um relato de outrem.
Parece que não existe, nem na mente nem no cérebro, nenhum mecanismo para garantir a verdade de nossas recordações, ou pelo menos o caráter verídico delas. Não temos acesso direto à verdade histórica, e aquilo que sentimos ou afirmamos como sendo verdadeiro [...] depende tanto de nossa imaginação quanto de nossos sentidos.Não existe um modo pelo qual os acontecimentos do mundo possam ser transmitidos ou gravados diretamente em nossa mente; eles são experimentados e construídos de modo altamente subjetivo, que é diferente em cada indivíduo, para começar, e reinterpretado ou revivido diferentemente a cada vez que são recordados. [...] Com frequência nossa única verdade é a verdade narrativa, as histórias que contamos uns aos outros e a nós mesmos - histórias que reclassificamos e refinamos sem cessar. Essa subjetividade está embutida na própria natureza da memória e decorre de seus mecanismos e bases no cérebro. (s/p)
A conclusão do neurologista aponta para a importância do outro e é bastante pertinente a afirmação de que só existe a verdade narrativa. Outro ponto importante, que o autor sublinha, é justamente a construção subjetiva e plural na forma como os acontecimentos do mundo são processados. No entanto, a relação que o senso comum e mesmo que a ciência estabelecem, geralmente, com a memória reporta, novamente, a princípios presentes no projeto moderno, como a ideia de controle. Mas o conteúdo da memória, por sua vez, não é matéria sujeita ao disciplinamento. A memória é rebelde e é sempre mais potente do que uma atividade de repetição. Nesse ponto, cabe lembrar a leitura que a Psicanálise traça sobre o caráter mortífero da repetição, o que nos encaminha a pensar sobre a importância dos processos de elaboração que a memória convida - reclassificações e refinamentos constantes - que, então, segundo Oliver Sacks (2013) está presente nos próprios meandros neurológicos, na conexão indissociável corpo-subjetivação. Processos de elaboração que são indissociáveis da produção de sentido que o sujeito realiza, a posteriori, como veremos, nos processos narrativos de sua vida.
A busca de sentido(s) e a força do lugar
O método de história de vida possui uma dupla dimensão: a descrição de fatos e a busca de sentido. Os fatos fazem parte de uma experiência de vida singular, inscrita num universo de relações sociais, de classe, de poder, que reenvia às condições sociais de existência (Lévy, 2001). O sentido é o que faz sentido para as pessoas; ele não está na própria história nem mesmo em sua narrativa, mas é apreendido/construído na retomada posterior do que foi narrado, no movimento de pensamento no qual é representado (Favret-Saada, 1977). Como explica Lévy (2001, p. 27):
[...] não no próprio passado, mas no ato que o reitera - como em uma fuga de Bach, na qual o mesmo tema, retomado em suas diferentes variantes, adquire sua significação dinâmica; na qual a dimensão do tempo é, pois, primordial, na medida em que faz existir concretamente o desvio irreprimível e a tensão que dele resulta, entre o passado definitivamente perdido, ultra-passado e o que dele pode ser pensado e dito, a respeito dele, no presente. Desse hiato, dessa contradição e dessa tensão entre o esclarecimento de um passado findo e o presente vivo e enigmático, resulta o efeito de sentido, que não é uma resposta, mas uma pergunta, que cria as condições de um devir possível.
Essa dimensão se sustenta assim, pelo trabalho da memória, na possibilidade reiterada do sujeito de se reapropriar de sua história, de mobilizá-la - na relação com a esfera social - posicionando-se no presente. Repousa aqui, na produção de sentido, a força do método, na forma como se estabelece com o sujeito de pesquisa uma relação de não assujeitamento, oferecendo a ele, portanto, um produto dessa experiência.
Trata-se de não reafirmar a relação de objeto que tantas vezes a universidade, como espaço privilegiado da ciência moderna, produziu, mas, ao contrário: o sujeito que narra sua história é um coautor do trabalho, participante ativo (e reconhecido) do conhecimento produzido, no encontro com o pesquisador. Além de ter, no fim das sessões de recolhimento da história, o registro completo de sua fala (o livro de sua vida), ele pode, no processo, experimentar o viés terapêutico oferecido pelo método, em que a palavra é um eixo central; na escuta comprometida que o pesquisador oferece, a fala fica carregada de potência. Esse é, inclusive, um ponto para verificação do processo vivido como História de Vida. Afinal, uma série de entrevistas biográficas ou mesmo narrativas não se constitui, necessariamente, como História de Vida - ainda que possam, de modo distinto, produzir dados relevantes para a produção de uma pesquisa. Entretanto, é preciso registrar que o método possui determinados elementos constitutivos que o definem em sua identidade e proposta, sendo a experiência da construção de sentido um de seus pilares fundamentais. O outro elemento diz respeito ao lugar do participante da pesquisa que, como veremos, deverá também produzir sentido a partir daquele encontro, tal como propõe Ferraroti (1984).
O recolhimento de histórias de vida produz uma relação em que vínculos recíprocos de confiança e afinidades vão se formar com o tempo, não sendo, simplesmente, uma busca de informação sobre o outro. É imprescindível o comprometimento dos sujeitos, como ressalta Bosi (2003, p. 61).
Narrador e ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão, no final, um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte, pelo que aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de rememorar quanto o das pessoas ditas importantes.
Podemos entendê-la como uma relação de interlocução (Ferraroti, 1984) na qual o pesquisador se transforma em sujeito e objeto de pesquisa e a relação entre ele e o sujeito que narra se situa no mesmo pé de igualdade. O pesquisador estará dessa forma em condições de refletir igualmente sobre si mesmo, o que transforma a investigação em uma ocasião para seu autodesenvolvimento: "eu não posso compreender a situação de classe de uma pessoa ou de um grupo familiar se eu não me interrogo primeiro sobre minha própria posição de classe" (Ferraroti,1984, p. 92). Os entrevistados, por sua vez, não são informadores, mas participantes engajados na pesquisa. Desse modo, quando a história de vida acontece, nos termos mencionados, ela faz acontecer; mobilizando entrevistado e entrevistador, movendo, na história de vida, a história social. E, para isso, é fundamental refletir também sobre a dimensão epistemológica que participa do estudo, pois tal relação só poderá assim se estabelecer se o pesquisador estiver implicado em abandonar sua posição de poder (instalada pela ciência moderna) e se estiver aberto e interessado em refletir sobre os aspectos ideológicos presentes no conteúdo social e cultural a ser encontrado.
Por isso, a lembrança trazida por Saramago é, aqui, mais uma vez, pertinente, pois é preciso "dar a volta toda" (Saramago, 2001, s/p). O segredo está justamente no movimento de ir até o que se deseja conhecer - no risco de se sujar6 e de ser afetado pela busca -, aí repousa a possibilidade de construção de algum certo saber sobre alguma coisa. É, ainda, nesse movimento, tanto para o pesquisador quanto para o sujeito que conta sua história, que habita a possibilidade de ruptura com olhares hegemônicos, com dualismos e dicotomias. Aí mora a produção de sentido, tal como ensina Levy (2001). É na invenção, na imaginação do que há por vir, na representação do que se viu que alcançamos um pouco da vida, vivendo-a e refazendo-a nas lembranças contadas ao outro.
Todo esse processo é refeito a cada história recolhida. Lembramos aqui das palavras de Gonçalo Tavares no livro Breves Notas sobre Ciência: "Tu não usas uma metodologia. Tu és a metodologia que usas" (2006, p. 62). No caso do método que discutimos, essa formulação é particularmente forte. Na mesma linha, a reflexão de Eduardo Mendieta (2008) nos encaminha à relação tempo-espaço, colocando em questão o lugar e o endereçamento sempre presente em nossas reflexões de pesquisa:
Simultaneamente, quando pensamos sobre a América Latina, nós temos que perceber que pensamos a partir de um lócus particular, como faço agora, por exemplo, na costa leste dos Estados Unidos, de dentro do sistema universitário estatal de Nova York. Pensar no tempo exige que pensemos o espaço do nosso tempo, o tornar-se espaço do tempo. (p. 287)7
É bonita e importante a reflexão do pesquisado sobre o tornar-se espaço do tempo. Parece ser esse o conteúdo comum das narrativas singulares que o método possibilita. A cada encontro, o método é refeito. O caminho metodológico é adaptado e transformado em cada pesquisa, a partir da consideração do sentido, produzido no processo de narrativa, nos lugares em que a narrativa acontece. O encontro (quem narra; quem escuta) faz toda a diferença, bem como o lugar em que ele toma corpo - o lugar é um conceito que carrega indissociavelmente o material e o simbólico na sua especial capacidade de servir como um desenho quase preciso do tempo. Para Milton Santos (2008) o lugar é o espaço local. Podemos entender a especificidade do conceito imaginando que ele emerge quando a escala geográfica toma a forma do vivido.
É no lugar que mora a memória e a experiência, pois é onde a vida acontece e, assim, é onde o sentido e os significados se inscrevem; ficando ali registrados para serem recriados. No lugar, nas ligações que oferece entre mundo e indivíduo, entre tempo e espaço, entre materialidade e imaterialidade, as mediações simbólicas, fundamentais à vida cotidiana, se fazem existir (Santos, 1996). Precisamos sempre partir de um lugar: "o homem não vê o universo a partir do universo, o homem vê o universo a partir de um lugar" (Santos, 1987, p. 81). É justamente nos lugares que a experiência subjetiva acontece como produção de sentido, movimento e diferenciação. Portanto, é importante refletir também sobre o lugar em que a narrativa se dá. O lugar é ação, "intermédio entre o Mundo e o Indivíduo" (Santos, 2008, 251), e sua força nos convoca à percepção do cotidiano, esse tecido histórico que sustenta os fatos. Lugar e cotidiano se ligam por serem feitos, ambos, de ação, investido de uma dimensão política, esse aspecto perene da vida social.
Para Henri Lefebvre (2008, p. 61), o espaço é político, ideológico e estratégico, não apenas por integrar as novas raridades, mas essencialmente por ser um produto social, desde sempre. O espaço é político, ainda, por carregar o tempo do vivido, a história, a produção do espaço. Por sua vez, o lugar não está desconectado da produção do espaço, pois "cada lugar é, [...] a cada instante, objeto de um processo de desvalorização e revalorização, onde as exigências de natureza global têm um papel fundamental" (Santos, 2008, p. 225). Para Milton Santos (2008), o lugar ocupa uma posição central no processo de globalização e no jogo das forças produtivas - o que não é de forma alguma desprezível em termos políticos.
Para entendermos os lugares como políticos, é preciso recorrermos, inicialmente, a uma definição mais ampla do conceito de política, afinal, a política pode ser entendida a partir de diversas ópticas. Inspirados no pensamento de Jacques Rancière (1996), pensamos que a política não pode ser tratada como um fato circunscrito. Portanto, vamos entender a política como espaço de negociação, a partir do dissenso.
A importância da política e sua permanência na definição e uso da categoria lugar é evidente, afinal é justamente onde esse encontro de coletividades se manifesta na experiência de cada um. Tal como sugere Jorge Luis Borges (2010, p. 111) "o espaço pode ser parcelado em varas, em jardas ou em quilômetros; o tempo da vida não se ajusta a medidas análogas". Os lugares nos permitem entrever, sem, contudo, apagar as contradições do nosso encontro com o mundo (a dialética social), o processo de diferenciação e a negociação que daí decorre - registro da esfera política. Do mesmo modo, é também no lugar onde estão guardadas as memórias, como num palimpsesto, possibilitando a emergência do novo, de outros tempos, do possível (a que se refere Lefebvre, 2008), pois o lugar é tecido de cotidiano, de existência, de invenção da vida.
Considerações finais
A palavra histaur, em grego, significa aquele que sabe, conhece e que pode então, contar, produzir um relato. Como Franco Ferraroti (1990, p. 81) destaca, não contamos nossa vida a um gravador e sim a "uma outra consciência". De fato, uma história indica a potência de alguém de produzir um relato, de estar dentro do jogo de linguagem que nos liga ao outro, nos faz reconhecíveis nas relações de alteridade. Uma história pode ser contada de várias formas, versões, com distintos aprofundamentos e ramificações dos fios que a conformam. A cada vez que convidamos alguém a ouvir nossa história (que aceitamos o convite para contar nossa história) estamos dando as mãos e seguindo juntos pelos enraizamentos diversos que uma vivência produziu em nós e, assim, podemos cultivar diferentes frutos, da mesma raiz. A relação com o outro é fundamental, conforme anunciou Ecléa Bosi (2003), o afeto está presente na pesquisa.
A escrita feita de memórias e afetos nos revela a importância do outro na produção da experiência subjetiva e, ao contrário do que poderia parecer o triunfo do individualismo, as histórias de vida recolocam o ser humano, em sua dimensão concreta - aquela da experiência -, no centro da cena, o que significa colocá-lo diante de seu próprio desdobramento especular, que é relato de todos. O campo da subjetividade com seu caráter individual, singular, de unicidade, construído concretamente nas experiências do coletivo, que, por sua vez, se manifesta por meio do relato e nele se reconstrói - alteridade. Encontramos assim os três laços que dialogam no contar da vida: as condições objetivas, as experiências vividas, a maneira como são narradas. Dialética entre realidade material e realidade subjetiva em "um trabalho da reflexão sobre a matéria da experiência", como aponta Marilena Chauí, (1987, p. XXI). Contudo, o reconhecimento dessa dialética e sua pertinência não é sempre garantido no âmbito da ciência moderna disciplinar, que ainda, narcisista, se considera capaz de esgotar perguntas e achar a verdade. Desconhece que, "As memórias só são sinceras pela metade, por maior que seja a preocupação com a verdade: tudo é sempre mais complicado do que o dizemos" como nos ensina André Gide (apud Lejeune, 2008, p. 42), o que nos remete à reflexão sobre o tempo, essencial, na medida em que é o cenário onde as histórias de vida são construídas, contadas e escutadas.
Refletir sobre o tempo da vida é tão difícil quanto sobre a morte. Mas é ela, a ideia da morte, que confere espessura ao tempo presente, segundo a Psicanálise. A morte está entre a supressão e a continuidade do que fizemos vazar de nós, sujeitos, sociedade. Tempo, tecido invisível em que a vida escorre. Maria Rita Kehl, a partir de Antonio Candido, reconhece que a vida é confeccionada na transitoriedade do tempo, ainda que hoje o Capitalismo seja seu senhor: "O tempo é o tecido da nossa vida" (Candido apud Kehl, 2009a, p. 454). Tecido tramado em memórias, objetos, espaço. É invisível, não imaterial.
A importância dos acontecimentos e a produção de seus sentidos têm uma relação direta com sua origem, ou seja, com o movimento imprevisível da vida. A riqueza da vida está nos significados que atribuímos ao vivido - nunca controlável - e que fica depositado em nós, que vai significando-nos, de maneira impermanente. Os significados das vivências mudam, mudamos. Afinal, há uma característica plástica das impressões da vivência do tempo em nós, impossível de se ajustar a medidas e antecipações, por isso mesmo atingíveis à posteriori, nos processos narrativos da história de cada um/uma.
Assim, o método de história de vida é uma ferramenta que possibilita aos pesquisadores e sujeitos uma relação em que a ética e a dimensão da alteridade são fundamentais. As lembranças nesse processo não são simplesmente repetir um passado, e sim trabalho, reconstrução e deslocamento. O processo de recolher as histórias de vida se dá no tempo do encontro. Pesquisador e sujeito ao iniciarem esse processo aceitam um convite de compartilharem uma nova experiência, quando o pesquisador deve repensar constantemente os lugares estabelecidos. A história de vida ressalta a abertura ao sujeito que narra e para isso esse encontro necessitará de interação e afeto.
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Recebido em 21/05/2015
Aprovado em 12/06/2017
1 A expressão Escola de Chicago resume em si um movimento que tem, muito significado para a Sociologia e para a Psicologia Social, compreendendo um conjunto de trabalhos de pesquisa sociológica, desenvolvidos entre (aproximadamente) 1915 e 1940, por professores e estudantes da "recém" criada Universidade de Chicago -que foi fundada em 1890. (Coulon, 1995).
2 Trata-se do reconhecimento da importância empírica; é bom registrar que o estudo de caso, como proposto em Chicago, não chega a ser desenvolvido, como se pode confundir, nos moldes da observação participante (ainda que, por exemplo, Park tenha trocado correspondências com Malinowski).
3 Um exemplo interessante, relatado por Howard Becker (BECKER, 1996) em sua conferência e citado em outros materiais sobre a Escola de Chicago, envolve justamente a aposentadoria de Park. O pesquisador estava fazendo entrevistas, em 1919, dentro de um quarto de hotel, desenvolvendo um trabalho com as prostitutas, quando houve uma batida policial. O acontecido foi noticiado no jornal e, então, "[...] a universidade achou conveniente pedir que ele se aposentasse" (BECKER, 1996, s/p).
4 Outro marco da Escola de Chicago é o interacionismo simbólico de Mead; contudo, sua referência não foi Simmel, mas sim Wundt (Velho, 2005, p. 61). O mesmo vale para os trabalhos, no campo da educação, desenvolvidos pelo pragmatismo de Dewey, por sua vez, uma forte influência sobre Mead.
4 Thomas publicou, após intenso trabalho de campo em conjunto com Znannieck, a obra "The polish peasant in Europe and America; Monograph of an immigrant group" (University of Chicago's Press (1818/1820), cujo tema central é o processo de desorganização - organização e reorganização - que sofre um grupo ao se inserir numa nova sociedade, como exemplo o caso dos poloneses ao se integrarem à cultura americana. Os autores estudaram a vida social de camponeses poloneses na Polônia e camponeses poloneses emigrados nos Estados Unidos, através do recolhimento de relatos biográficos, além da análise de documentos e análise documental de cartas, que segundo eles permitem a compreensão e a interpretação desses emigrantes a partir da significação subjetiva que eles mesmos denotam às suas ações. Foram explorados documentos coletados na Polônia e, ainda, outros existentes nos Estados Unidos que tratavam sobre os poloneses que lá estavam, além da coleta do longo relato de um polonês chamado Wladek Wiszniewski.
5 5 zonas concêntricas que vão desde o CBD (Central Business Disctrict) até as moradias, afastadas do centro, da classe alta - onde os indivíduos com melhores qualidades adaptativas conseguem chegar.
6 Por ocasião de uma pesquisa (NOGUEIRA, 2004) fizemos uma entrevista com o Padre Mauro, pároco do Aglomerado Santa Lúcia em Belo Horizonte. Padre Mauro havia se mudado para essa favela recentemente e nos relata, de um modo delicado, que vinha refletindo sobre como essa mudança, já que ele é de Belo Horizonte, mas de outra parte da cidade. Assim, como objeto de sua reflexão sobre a ida para uma favela, ele relata a história de um cachorro poodle branco que chegara recentemente também àquela localidade. Ele afirma: "[...] e aí eu vi uma moça carregando um cachorro poodle branco e eu sempre fui muito cismado com esses cachorro branco [...] quer dizer, manter um cachorro branco é o negócio mais difícil do mundo, não só financeiramente, mas, quer dizer, cê tem que gastar muito tempo com um cachorro branco. [...] Aí ela me narrou que a patroa dela tinha viajado pra fora do país, pra morar fora e ela tinha sido demitida e uma das coisas é que ela ficou com o cachorro da mulher como herança, [...] eu fiquei curioso pra ver como é que ia ser um cachorro branco numa favela, né? Aí de fato, cê acredita que esse cachorro ele virou - eu acompanhei por muito tempo - ele acabou virando um vira-lata? Ele foi ficando bege, foi ficando marrom, foi ficando imundo, ele era, ela não tinha tempo de ficar com ele, cuidar talvez. Aí ele virou um cachorro de favela mesmo assim, e isso é real, né? Não é suposição não. E eu comecei a pensar na minha própria vida se ia acontecer comigo também. Se eu também ia me deixar sujar, no sentido positivo assim, me deixar envolver tanto pela realidade da favela a ponto de me tornar um favelado mesmo, eu acho que o cachorro teve um bom resultado, acho que ele, ele ficou mais agradável aos olhos, não ficou feio não. Foi interessante ver ele dentro da realidade: ele não tinha mais o corte que tinha pelo salão de cachorro." (NOGUEIRA, 2004, p. 7. grifos nossos).
7 "Simultaneously, when we think about Latin America, we must realize that we think from a particular locus, as I do now, for instance, on the eastern coast of the United States, from within New York´s state-university system. Thinking in time requires that we think the space of our timing, the becoming space of time." (MENDIETA, 2008, p. 287).