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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.3 no.2 São Leopoldo dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Tornar-se mãe e prematuridade: considerações sobre a constituição da maternidade no contexto do nascimento de um bebê com muito baixo peso

 

Becoming a mother and preterm birth: considerations about the constitution of motherhood in the context of very low birth weight

 

 

Andrea Gabriela Ferrari; Tagma Marina Schneider Donelli

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-graduação em Psicologia. Av. Unisinos, 950, Bairro Cristo Rei, 93022-000, São Leopoldo, RS, Brasil. ferrari.ag@hotmail.com, tagmapsi@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir o processo de estabelecimento da relação da mãe com seu bebê prematuro, principalmente aqueles que nascem com muito baixo peso. O interesse pelo tema teve origem na experiência clínica das autoras, tanto no âmbito hospitalar, em Unidades de Internação Intensiva Neonatal, quanto na psicoterapia com crianças em idade pré-escolar que nasceram pré-termo e com muito baixo peso. Para essa discussão, é trilhado um breve percurso teórico sobre o processo de tornar-se mãe, o fator potencialmente traumático do parto, especialmente o prematuro, e a importância do movimento transitivista que a mãe coloca na relação com o bebê na tentativa de empreender o movimento constitutivo dele como sujeito. Esse movimento é ilustrado através de um caso clínico relatado a partir da experiência de atendimento de mães e bebê internados em UTI Neonatal.

Palavras-chave: prematuridade, relação mãe-bebê, transitivismo.


ABSTRACT

This article aims to discuss the process of establishing the mothers' relationship with their premature infants, especially those born with low birth weight. Interest in the subject originated in the authors' clinical experience, both in the hospital in Neonatal Intensive Care Units, as in psychotherapy with children at preschool age who were born preterm and with low birth weight. For this discussion, it will be discussed a brief theoretical course on the process of becoming a mother, the potentially traumatic birth factor, especially preterm and the importance of a transitive movement that the mother puts in the relationship with the baby in an atempt to take the constitutive movement of it as a subject. This movement is illustrated by a case reported from the experience of care for mothers and babies admited to NICU.

Key words: prematurity, mother-infant relationship, transitivism.


 

 

Introdução

A constituição da maternidade

É consenso, dentro da psicologia e da psicanálise, a importância da relação precoce mãebebê para a constituição subjetiva da criança. As diferentes abordagens psicanalíticas focalizam as vicissitudes da primeira infância, pois esta é entendida como determinante da personalidade e das escolhas futuras, incluindo, nestas, a escolha pela maternidade. Partimos do princípio que, como explorado em trabalho anterior (Ferrari et al., 2006), no momento do nascimento de um filho há uma reatualização e reedição dos aspectos constitutivos da própria mãe, que convergem para o estabelecimento da relação com o bebê.

As posições subjetivas, manifestadas através das falas das mães, revelam a montagem de um estilo de relacionamento com o bebê a partir dos movimentos transitivistas e de forçagem1 (Bergès e Balbo, 2003). Porém, também é verdade que a particularidade do parto (Horstein, 1994) e a apetência simbólica do bebê (Crespin, 2007) impõem certos remanejamentos das posições subjetivas maternas que constituirão o lugar materno para esse bebê em particular, a elaboração dos lutos do bebê ideal e da completude do corpo quando da gravidez.

Durante a gravidez, a mulher, no processo de tornar-se mãe, reedita e reatualiza aspectos de sua própria história constitutiva para construir seu lugar materno e, consequentemente, o lugar subjetivo para seu bebê (Ferrari et al., 2006). Entre os aspectos importantes desse processo, pode-se enfatizar a dinâmica narcísica que vai oferecendo um sentido àquele corpo estranho que cresce no ventre. Tanto os movimentos fetais quanto as mudanças corporais maternas são interpretadas a partir das construções imaginativas que a mãe tece em relação ao futuro bebê e a si mesma como mãe. As expectativas quanto ao futuro do bebê e a sua capacidade de ser mãe decorrem de uma dupla identificação - daquilo que ela foi para sua mãe e do que sua mãe foi para ela quando da sua constituição psíquica. Este movimento de renascimento narcísico, bem como a dupla identificação, possibilita que o bebê vá se tornando, para a mãe, um objeto privilegiado (Freud, 1990a [1914]).

Ao examinar a questão narcísica na gestação, percebemos que a gravidez propicia uma restituição do narcisismo chamuscado ao longo da vida. Destaca-se o sentimento de completude narcísica em função da gravidez, caracterizado pela atualização do próprio narcisismo infantil. A história infantil da mãe vai imperar nesse sentimento, evidenciando a relação de narcização que essa mulher teve na sua infância (Ferrari et al., 2006).

Em geral, as mulheres grávidas constroem um bebê imaginado dos mais ricos, no qual despejaram a sua libido oferecendo um lugar privilegiado, dentro da sua fantasmática, para o bebê ocupar. Pode-se pensar que o bebê imaginado permite a essas mães colocar em cena e atualizar, no corpo do bebê, um processo que lhes oferece a ilusão de não castração (Ferrari et al., 2006). O bebê será para elas aquele que propiciará retomar antigos desejos que não puderam ser concretizados, fazendo com que destinem ao filho um lugar privilegiado vendo-o como sua majestade o bebê (Freud, 1990a [1914]).

Assim, pode-se pensar que, durante a gestação, inicia-se um processo fundamental para a estruturação psíquica do bebê: a mãe constrói um objeto privilegiado para ela despejar seu narcisismo, o que permite que o bebê construa seu próprio eu. A "nova ação psíquica" agregada ao autoerotismo é o que possibilitará, segundo Freud (1990a [1914]), o surgimento do ego e do objeto. Em grande parte, essa "nova ação psíquica" agregada ao autoerotismo parece poder ser atribuída aos investimentos afetivos maternos no corpo do bebê, as suas presenças e ausências, às tentativas de decodificação dos comportamentos do bebê, enfim, àquilo que permite a transformação do orgânico em corpo sexuado, o instinto em pulsão. O narcisismo da mãe visa ao surgimento do bebê a partir da sua fantasia (bebê imaginado), para que se possa fazer amar por aquela que o criou.

Pode-se retomar o entendimento de Freud (1990b [1917]) sobre as produções artísticas como sendo um caminho sublimado para o retorno da fantasia à realidade. Talvez a produção materna de um bebê possa ser equiparada a uma produção artística, com a diferença de que, mais cedo ou mais tarde, o corpo do bebê surgirá, e essa produção terá que ser refeita, sob pena de, se não efetivada, acarretar o surgimento de problemas de interação mãe-bebê (Ferrari et al., 2006).

 

O processo subjetivo do parto

No momento do parto, a realidade da criança se impõe e uma reestruturação da economia psíquica na parturiente se faz necessária, para poder suportar as exigências vindas desse bebê que se lhe apresenta no momento do parto. Em geral, o bebê não nasce exatamente igual àquilo que a mãe tinha imaginado: algo escapa a sua fantasia, fazendo com que novas produções imaginativas sejam colocadas em jogo (Donelli, 2003; Lebovici, 1987).

Em relação à teoria das castrações, Dolto (1992) faz do parto a primeira castração humanizante com que a criança se depara. Porém, a castração umbilical, como foi denominada pela autora, tem um efeito maior na mãe do que na criança e dela dependerá a constituição da imagem corporal do bebê, pois é "concomitante ao nascimento e é fundadora nas modalidades de alegria ou de angústia que acompanharam o nascimento da criança em sua relação com o desejo dos outros" (Dolto, 1992, p. 73). A autora refere-se, então, a duas fontes de vitalidade simbolígena dessa castração relacionadas com a castração umbilical da criança e com a castração imaginária dos pais. Estas dizem respeito ao impacto psicossomático do parto, vivenciado pela mãe, e ao impacto do corpo da criança no narcisismo parental, sendo o corpo do bebê mais ou menos "narcizante" e, nesse sentido, mais ou menos viável. É este movimento que faz com que o ato de nomeação do bebê se estabeleça, possibilitando o pertencimento deste novo sujeito a uma cadeia geracional. Este processo faz com que haja uma ligação de uma palavra, como ato de nomeação, a determinado corpo, uma vez que a inscrição desse corpo no mundo simbólico parental tem um significado determinado em função desse ato (Szejer, 1999).

Crespin (2007) refere que o bebê nasce com certa apetência simbólica que indica a capacidade de entrar em relação com o Outro primordial. A autora refere, ainda, que a apetência simbólica se exprime no campo do escópico nos primeiros minutos da vida do bebê e é considerada como uma função psíquica de comunicação, a partir da qual há um reconhecimento mútuo dos Outros primordiais e seu bebê. O bebê é visto pelo Outro, o bebê existe para esse Outro. Mas, para que o olhar do bebê possa acontecer, ou seja, para que o bebê reconheça esse Outro, é necessário que o bebê encontre uma representação desejante na qual virá a se identificar. A partir deste processo de reconhecimento primordial, a autora refere que a apetência simbólica do bebê se engata no desejo do Outro. Nesse sentido, o reconhecimento primordial é "um ato de pura projeção" (Crespin, 1997, p. 75) e faz com que o bebê seja introduzido a uma filiação, a um pertencimento.

Bergès e Balbo (2003) propõem que seja retomado o conceito de transitivismo para pensar na constituição psíquica da criança. Inicialmente, a noção de transitivismo foi introduzida na psiquiatria para explicar uma forma específica de transferência na direção do exterior, ou seja, como um conceito relativamente próximo à noção freudiana de projeção. Dessa forma, o transitivismo era considerado um fenômeno característico das psicoses. Posteriormente, foi utilizado por Wallon (1989) para caracterizar um fenômeno que acontece com as crianças quando entram em uma relação especular com seu par. A importância deste fenômeno é recolocada quando se observam as reações transitivistas de uma mãe para com seu filho. É frequente que, quando uma mãe percebe que seu filho vai cair, antecipe a dor que seu filho sentiria. A mãe se sente afetada pela dor que supõe que seu filho sentiu, mesmo que este, em um primeiro momento, não tenha esboçado nenhuma reação dolorosa. A mãe, em um efeito especular, experimenta o que supõe que o filho sentiu fazendo com que o bebê passe a decodificar sua experiência a partir dessa significação materna (Bergès e Balbo, 2003). Assim, força o filho a sentir uma dor que na verdade foi por ela pressentida. Bergès e Balbo (2003) referem esse fenômeno como uma forçagem que a mãe impõe ao filho. Esse golpe de força compeliria a criança a fazer seu acesso ao simbólico, visto que a experiência suposta de dor no filho é manifestada pela mãe também pelas palavras de consolo que ao filho dirige. "Essa forçagem transitivista antecipa e condiciona o que em seguida impele a criança a entrar, por bem ou por mal, no campo da fala e da linguagem e, enfim, no campo da linguagem escrita" (Bergès e Balbo, 2003, p. 11).

Este mecanismo abre caminho para a possibilidade de a criança identificar o discurso do Outro suposto sobre ele. No momento em que a mãe transitiva com seu filho, ela se divide - é ao mesmo tempo ela e o seu filho. Essa forçagem antecipatória teria como efeito a produção de um novo sujeito, positivando o sofrimento. Um efeito se produziu a partir da hipótese que a mãe lançou e a criança acatou, transformando o episódio em uma afetação. Nesses movimentos, a criança vai sendo afetada pela hipótese materna a respeito do que ela sente introduzindo um circuito pulsional, a partir do qual a criança se permite ser tomada como objeto privilegiado do discurso materno (Bergès e Balbo, 2002).

 

A prematuridade do parto

Estudos como os de Bradley et al. (1993) e de Martins et al. (2005) apontam que crianças nascidas prematuras, com muito baixo peso2, podem vir a apresentar deficiências cognitivas, problemas de desempenho escolar e dificuldades de comportamento, atrasos de linguagem, de desenvolvimento motor, cognitivo e social, mas que podem ser amenizadas pelas características socioambientais encontradas por esses bebês. Dentre as características que amenizam o impacto da prematuridade, o enfrentamento materno em relação à prematuridade e a readaptação da mãe a esta situação inesperada são colocados como fundamentais (Martins et al., 2005).

Muitas vezes, o impacto do nascimento prétermo do bebê faz com que a vivência do parto não possa ser elaborada como um momento de separação que instaura o início da vida subjetiva de outro ser. Este parto é tomado como traumático, visto que excede a capacidade de elaboração possível pelo eu - não há palavras que possam dar conta desse momento. Além das parturientes terem enfrentado momentos de angústia no hospital - em geral há intervenções com o intuito de manter essa gravidez -, quando o parto se impõe, geralmente o bebê é tomado como objeto de cuidados extremos que incluem, muitas vezes, a impossibilidade do toque e do olhar maternos. A iminência da morte do bebê está sempre presente. O nascimento pré-termo faz com que a mulher enfrente uma série de dificuldades que não eram até então consideradas. Lidar com um bebê que pode não sobreviver, lidar com um bebê que não pode ser reconhecido como seu, lidar com a destituição da tarefa materna de cuidar do seu filho, lidar com a interposição da tecnologia e do saber médico sobre os cuidados maternos - são situações muito referidas por aquelas que vivenciam uma situação de parto prematuro.

Os fatores que acompanham o nascimento prematuro parecem dificultar muito o estabelecimento da relação inicial, tão fundamental para o estabelecimento do processo constitutivo do bebê (Brazelton, 2005; Mathelin, 1999; Mendelsohn, 2005; Wirth, 2000). Assim, é imposta à mãe uma série de restrições em relação à apropriação dos cuidados cotidianos do bebê. Tais limitações muitas vezes dificultam o ato de nomeação (Szejer, 1999), tão importante para a sobrevivência subjetiva do bebê. Este distanciamento pode dificultar o reconhecimento de características familiares no corpo do bebê e, consequentemente, o espelhamento da mãe no bebê.

Evidenciando este aspecto, Wanderley (1999) relata que é frequente que pais de prematuros utilizem termos técnicos para se referir ao seu filho. Para a autora, esses termos não são apenas repetições daqueles ouvidos quando da estadia do seu filho na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTI Neo), mas revelam uma certa postura frente ao filho e, consequentemente, ao exercício da maternidade. São pais eficientes e eficazes no cuidado diário do seu bebê, que sabem das consequências da prematuridade, dos danos causados, das particularidades desse filho que foi salvo pela medicina. Isto também denota o impacto que as palavras proferidas pelos profissionais, e ouvidas pelos pais, provocam na relação destes com o bebê. Elas são tomadas, muitas vezes, como veredicto e possibilidade de aposta (Cabassu, 1997). O significante que atravessa esse bebê é ser de risco, risco de não sobreviver e por isso mesmo ser alvo de uma série de cuidados específicos no intuito de evitar as consequências do parto prematuro (fonoaudiologia, psicomotricidade, fisioterapia, estimulação precoce).

 

O bebê prematuro e o transitivismo - discussão de caso

Ana3 é uma mulher de 24 anos que teve seu bebê prematuramente, com 32 semanas de idade gestacional e pesando 1.200 gramas. Ela conta que teve uma gravidez "normal", sem intercorrências nem problemas obstétricos ou clínicos. Além disso, refere que estava tranquila, curtindo a gestação da filha Maria, que foi planejada e desejada. Quando estava com 32 semanas de gestação, Ana e o marido foram a uma cidade vizinha para o casamento de um parente e, durante a tarde de sábado, dia da festa, aproveitaram para passear. Foi então que sua bolsa rompeu e ela foi atendida na emergência da cidade e transferida para um município vizinho que possuía recursos médicos para atender seu bebê que estava nascendo muito antes do tempo previsto.

Nas primeiras visitas ao bebê na Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTI Neo), Ana tinha muitas dificuldades para se aproximar da filha. Ela permanecia a cerca de meio metro de distância do berço onde Maria estava, e mantinha as mãos unidas na frente do corpo, como se estivesse fazendo uma prece. Apesar de todo o incentivo da equipe para que ela tocasse no bebê, ela não conseguia. Aos poucos, Ana foi se aproximando cada vez mais do berço, até o dia em que conseguiu tocar o berço com as mãos, uma de cada lado, como se estivesse segurando o berço no colo. Gradativamente ela pôde, enfim, tocar na sua filha, que parecia um minúsculo ser perdido no meio de inúmeros fios, tubos, cateteres, esparadrapos, sacos coletores, sensores e outros apetrechos imprescindíveis a sua sobrevivência.

Ana parecia entender muito bem o que estava acontecendo com sua filha, isto é, quais eram os problemas que ela estava enfrentando, os riscos que corria, a longa caminhada que tinha pela frente como a mãe daquele bebê tão pequeno. Ela usava termos técnicos com muita eloquência e segurança. Além disso, frequentemente se referia à experiência do parto como inesperado e usava essa mesma palavra em muitas outras ocasiões, quando indagada sobre como estava se sentindo: foi inesperado, é tudo inesperado, eu não esperava. Esperança. Será que ela continuava esperando alguma coisa? Como poderiam ser traduzidas suas esperanças e expectativas sobre sua filha?

Ana também referia seguidamente seu mal-estar em relação às cobranças da família, que queria conhecer Maria, ainda que pelo vidro da janela da unidade. Ao mesmo tempo em que Ana queria poder resolver essa situação, atendendo aos pedidos da família, orientava a equipe que não mostrasse a filha para ninguém, especialmente em sua ausência. Ela parecia temer desapontar os outros, mostrando para o mundo um bebê feio, magro, pequeno e assustador.

Em mais de uma ocasião, Maria correu risco iminente de morrer, em função de complicações no seu quadro clínico. Em uma dessas vezes, Ana disse que estava pensando em batizar a filha, pois temia que pudesse perdê-la e nunca tirá-la do hospital com vida. E trouxe a questão da dúvida sobre que nome dar ao bebê. Até então, o nome de sua filha era Maria, o nome escolhido, ainda na gravidez, por Ana e o marido. Mas com a possibilidade de perder a filha, Ana pensou em lhe dar o mesmo nome de sua avó materna e de sua mãe, ambas já falecidas. "Maria é o nome da filha que eu vou ter, não da que eu vou perder", dizia Ana.

Aos poucos, Maria foi se recuperando, e Ana foi se aproximando da filha. Apesar de nunca ter ficado fisicamente longe do bebê, Ana evitava se envolver nos seus cuidados, deixando essa tarefa para os profissionais que, segundo ela, eram as pessoas que sabiam o que estavam fazendo. Quando Maria já podia receber o leite materno, Ana teve muitas dificuldades para produzir e tirar seu leite, mesmo tendo realizado tais procedimentos desde o nascimento da filha. Além disso, apesar de não amamentar diretamente Maria, Ana dizia que a menina não estava aceitando seu leite e temia que ela piorasse em função disso. Pouco tempo depois, quando Maria já podia ser segurada pela mãe, Ana justificava o fato de não pegar a filha no colo, argumentando que preferia que Maria ficasse no berço para não prejudicá-la.

Seguidamente, Ana perguntava como seria a ida para casa com a filha. Dizia que tinha sido muito difícil sair do hospital, logo após o parto, sem a barriga e sem o bebê, mas que agora igualmente previa enormes dificuldades. Chamava a atenção da equipe que Ana conhecia muito bem a função de cada aparelho conectado ao bebê, e cada vez que chegava ao hospital para ver Maria, primeiramente olhava todos os parâmetros dos monitores, depois conferia o prontuário médico e só então olhava para a filha. Ela chegou a solicitar orçamentos de monitores que verificam a saturação de oxigênio e a frequência cardíaca, com o intuito de adquirir um aparelho semelhante para quando a filha recebesse alta. Ela dizia que temia não saber se a filha estaria bem, caso não pudesse contar com os aparelhos para lhe assegurar tal fato. Além disso, Ana passou a temer pelo desenvolvimento futuro de Maria, solicitando à equipe médica exames que pudessem prever as sequelas que a prematuridade deixaria na filha. Ela dizia: "se é para ela ficar bem, a gente aguenta". E se Maria não ficasse bem?

Quando nasce um bebê prematuro, as promessas narcisizantes do período gestacional ficam em suspenso, o que antecipa e intensifica o luto pelo bebê ideal. Bergès e Balbo (2003) apontam que o que uma mãe espera do filho é que ele afague seu desejo de ser mãe. Isto é possível pelas hipóteses que ela tece a respeito do suposto endereçamento de uma demanda de amor e reconhecimento. Situações banais e cotidianas, como o fato de a mãe, em determinado momento, supor que o filho sorri para ela ou quando ela supõe que ele chora por frio ou por cólica, demandando um cuidado, não se estabelecem quando se trata de uma criança que está em risco. No risco não há tempo de fazer hipóteses e não há tempo de supor - é preciso saber o que esse comportamento significa e tomar uma decisão frente a esse saber. Do lado da mãe, o efeito dessa invasão interrompe a possibilidade de permitir que a mãe abra um caminho para uma dupla identificação, o que permitiria supor o que a criança demanda pela possibilidade de se colocar no lugar do filho e, simultaneamente, acessar os pontos identificatórios do tempo em que ela ocupou o lugar de filha (Ferrari e Piccinini, 2010).

Através do toque e do cuidado corporal, a mãe tece hipóteses a respeito dos comportamentos do bebê, permitindo, assim, uma atitude transitivista de reconhecimento e antecipação. Em se tratando de bebês prematuros de baixo peso, é frequente presumir que não possam ser manipulados ou segurados no colo, em função das demandas prementes de manutenção da sua vida. Pode-se supor que essa impossibilidade do toque priva mãe e bebê de construírem um laço pulsional, fundamental para o movimento transitivista. Além disso, abre-se espaço para que o discurso médico ocupe o lugar da hipótese materna, dê um sentido para a prematuridade e assegure que o bebê seja investido e reconhecido a partir do saber médico.

No caso de Ana, pode-se perceber a dificuldade que ela tinha de aproximar-se e apropriar-se da filha, reconhecendo nela partes de si mesma. Tais dificuldades podem advir da impossibilidade de segurar o bebê no colo em função da realidade que os cuidados médicos impõem, mas também podem revelar a dificuldade de abrir mão daquele bebê sonhado, imaginado e idealizado, para colocar no seu lugar um bebê muito diferente e que talvez nem sobreviva. Nesse sentido, a apropriação do discurso médico parece vir ao encontro das necessidades da mãe de preencher o vazio deixado pela distância entre o que ela esperava de seu bebê e o que o bebê pode lhe dar. Tal apropriação se torna um escudo, uma defesa que, de certa forma, oferece à mãe uma referência a partir da qual ela pode se referir à filha, falar dela e reconhecer nela algo de familiar, mesmo que ainda desconhecido. No lugar do mito familiar, que dá as pistas de decodificação dos comportamentos do bebê, é inserido o discurso médico que, além de uma defesa, permite oferecer um sentido para tudo aquilo que o bebê apresenta.

Quando Ana fala do parto, faz pensar não apenas em tudo o que o momento concreto do parto interrompeu, por um lado, e precipitou, por outro. Interrompeu aquela relação que vinha se desenvolvendo entre a mãe e o feto, mas, principalmente, entre a mãe e seu bebê imaginado, investido de expectativas e de possibilidades narcisizantes. E precipitou o duro encontro consigo mesma como uma mãe que ainda não estava pronta para se deparar com as exigências do processo de investimento no bebê real.

É nesse momento concreto do parto que ocorre o que Dolto (1992) chamou de castração simbolígena umbilical, a qual permite à mãe situar o bebê como um sujeito separado de seu próprio corpo, e que terá suas próprias escolhas, características, desejos e trajetória. Quando isso não ocorre, como no caso de um bebê prematuro e muito diferente daquilo com o qual a mãe é capaz de se identificar, impossibilita a significação dos comportamentos do bebê e o consequente não investimento libidinal, dificultando a transformação do orgânico em pulsional.

 

Considerações finais

A revisão dos conceitos-chave para o entendimento da constituição psíquica no bebê aponta para a importância das primeiras relações com seu cuidador primário. Estas relações são chamuscadas quando uma separação drástica é imposta por ocasião da prematuridade do parto. A angústia gerada por essa separação e pela iminência de morte do bebê faz com que a mãe precise se defender, apropriando-se daquele discurso que, naquele momento, é capaz de garantir a sobrevivência do seu filho, isto é, o discurso médico. Este processo pode dificultar, e até mesmo romper, as primeiras identificações que a mãe precisaria fazer em relação ao seu bebê a fim de decodificar seus comportamentos e tecer hipóteses a respeito dos seus desejos e necessidades. Como visto anteriormente, o transitivismo materno permite o surgimento de um sujeito. Sem esse movimento transitivista por parte da mãe, o bebê tem dificuldades de se constituir psiquicamente. Pode-se, assim, supor que o parto prematuro extremo e todas as suas vicissitudes, é capaz de deixar, além das sequelas físicas comuns nos casos de bebês que nascem com muito baixo peso, também "sequelas emocionais", no sentido de marcar profundamente seu desenvolvimento como sujeito.

Por isso, sublinhamos a importância de intervenções psicológicas precoces que permitam facilitar a elaboração do luto pelo parto prematuro e pelo bebê que, muitas vezes, não é reconhecido pela mãe e, consequentemente, não é suficientemente narcizante. Uma intervenção nesse sentido permitiria à mãe se encarregar novamente do cuidado com o bebê, a partir de novas identificações estabelecidas em relação àquele corpo específico e retomando o movimento transitivista. Essa intervenção, de cunho preventivo, dar-se-ia ainda no contexto hospitalar e visaria não apenas às mudanças comportamentais, mas principalmente a retomada da relação mãe-bebê e o incremento da libidinização do corpo do bebê. A partir deste trabalho, é possível afirmar que seria importante a realização de estudos longitudinais que se propusessem a acompanhar os bebês prematuros e suas mães, a fim de aprofundar as especificidades da constituição psíquica no contexto da prematuridade extrema.

 

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Submetido em: 21/07/2010
Aceito em: 26/08/2010

 

 

1 Os conceitos de transitivismo e de forçagem são definidos na sequência do texto.
2 Bebês prematuros de muito baixo peso são bebês nascidos pré-termo (menos de 37 semanas de idade gestacional) que pesam menos de 1500g.
3 Ana é o nome fictício de uma mãe que teve seu bebê prematuro, nascido com muito baixo peso, internado em uma UTI Neonatal de um hospital público da região metropolitana de Porto Alegre.

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