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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. no.56 Belo Horizonte jul./dez. 2021
MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE
Sofrimentos psíquicos em tempos de pandemia: da infância à velhice1
Psychic sufferings in pandemic times: from childhood to old age
Anelise Scheuer RabuskeI; Magda Maria ColaoI, II; Maria Melania Wagner Franckowiak PokorskiI, III; Waleska Pessato Farenzena FochesattoI
I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
II Universidade de Caxias do Sul
III Faculdade Porto-Alegrense
RESUMO
Este ensaio contempla parte do conteúdo abordado no Ciclo de Estudos Psicanalíticos do Rio Grande do Sul (CPRS), que objetiva proporcionar aos profissionais da saúde e da educação alguns fundamentos acerca dos processos psíquicos da infância à velhice, bem como os estados e sintomas que têm demandado escuta e intervenção em tempos de pandemia. Realizamos uma retomada histórica do autismo na psicanálise, das conflitivas da adolescência, dos sofrimentos da vida adulta e dos processos de envelhecimento.
Palavras-chave: Pandemia, Sintomas, Intervenção, Psicanálise, Escuta.
ABSTRACT
This essay presents part of the content covered in the Psychoanalytic Studies of Rio Grande do Sul Meetings (freely translated from Ciclo de Estudos Psicanalíticos do Rio Grande do Sul CPRS), which aims to provide health and education professionals with some fundamentals about the psychic processes from childhood to old age, as well as states and symptoms that have demanded listening and intervention in times of a pandemic. We revisit the historical approaches to autism in Psychoanalysis, the conflicts of adolescence, the sufferings of adult life, and the aging processes.
Keywords: Pandemic, Symptoms, Intervention, Psychoanalysis, Listening.
Psicanálise: os autismos na infância
A psicanálise defende que, em sua chegada, o bebê necessita de acolhimento, aconchego e amor para poder traçar um mundo de possibilidades, em que a criatividade e o pensar possam se desenvolver e ter um espaço psíquico. Porém, a chegada de um bebê ao mundo nem sempre ocorre dessa forma. Nosso ensaio busca inicialmente realizar uma retomada histórica do autismo na psicanálise, examinando as intervenções precoces em tempos de pandemia, bem como as funções parentais e o trabalho analítico com pais de autista. Por fim, apresentamos um fragmento de caso clínico de atendimento on-line com diagnóstico prévio de autismo. Seguimos examinando as conflitivas da adolescência, especialmente nesse contexto pandêmico, assim como os sofrimentos da vida adulta e dos processos de envelhecimento nesse período marcado por angústias, fobias, perdas, rupturas e lutos.
Em relação à retomada histórica, constatamos que a psiquiatria, a psicologia cognitiva comportamental e a psicanálise têm um entendimento diferente no que diz respeito aos autismos.
Para a psicanálise, o autismo é o primeiro e mais arcaico dos níveis de organização psíquica, aponta para alguma falha no estabelecimento do laço com o Outro primordial no início da vida do bebê. Na retomada histórica, a partir de Roudinesco e Plon (1998), bem como Golse (1998), deve-se a Bleuler a introdução do termo "autismo" em 1911, um neologismo a partir do autoerotismo abordado por Freud ([1905] 1996).
Melanie Klein, em 1930, atendeu o caso Dick, diagnosticado com psicose infantil, o qual foi designado por Lacan, em 1954, como um caso de autismo, ou seja,
Com efeito, é claro que, nele, o que não é simbolizado é a realidade. Esse jovem sujeito está inteirinho na realidade, no estado puro, inconstituído. Ele está inteirinho no indiferenciado (LACAN, [1954-1955] 1985, p. 84).
Leo Kanner, em 1943, diferenciou autismo da psicose infantil. Tomou o autismo como um quadro denominado de síndrome ou distúrbios de contato afetivo. Percebeu no bebê autista sinais de dificuldades de se aninhar ao colo, de não esticar os braços para ser carregado, não demonstrar sorriso, evitar olhar a pessoa e ter contato corporal. Em 1944, Hans Asperger definiu a síndrome de Asperger como um dos tipos de autismo, reservado às raras crianças autistas quase normais, inteligentes e altamente verbais com problemas nas comunicações não verbais. Seguiram-se os estudos de Bruno Bettelheim em 1944, Margaret Mahler em 1950, Françoise Dolto em 1950, Donald Winnicott em 1967, Donald Meltzer em 1975 e Frances Tustin em 1980.
Entre os autores da atualidade, destacamos Anne Alvarez (1994), que defende causas múltiplas para os autismos, ou seja, que os fatores inatos interatuam com os ambientais. Laznik (2004), a partir de Freud e Lacan, identifica que o autismo se deve a dificuldades significativas do bebê na constituição da imagem corporal, com falha na instauração da relação mãe-bebê. No diagnóstico, seria preciso observar três sinalizadores: o do olhar, o da voz e o do terceiro tempo pulsional, isto é, o de o bebê se oferecer ao Outro primordial. Maleval (2017) apresenta uma nova clínica espectral do autismo, não mais a do retraimento, como no século XX, em que os autistas criam condições de receptibilidade de um novo gênero literário, em que alguns escrevem como se percebem em seus sentimentos e pensamentos, ou seja, dão-se a conhecer.
Recentemente, Kupfer (2020) escreveu um romance intitulado Arthur: um autista no século XIX. Na história, Marguerite, que o acolhe ainda bebê em sua casa, registra em seu diário, escrito de 1891 a 1916, suas tentativas de fazê-lo "sair de seu mutismo e entrar no mundo". Em 1941, os dois diários, o de Marguerite e o de Arthur, foram enviados para uma apreciação de Françoise Dolto. Dolto escreveu que percebia que Arthur
[...] não pôde desenvolver o prazer compartilhado, base para uma vida sexual e para o amor. [...] Além disso, falar só fará sentido se as crianças desejarem agradar aos outros. [...] Pôde assim usar sua inteligência, sempre em evolução, para imaginar como sentem as pessoas, mesmo sem experimentar nele próprio esses sentimentos plenos (KUPFER, 2020, p. 241-242).
Por fim, damos destaque à equipe da Universidade de São Paulo (USP), coordenada por Kupfer, que tem realizado pesquisas em vários estados do Brasil, com o objetivo de "detectar já no primeiro ano de vida a interrupção do laço da criança com a figura materna" (KUPFER; PINTO, 2010, p. 15), bem como possibilitar, durante o tratamento, que a criança ou o adolescente possa se constituir como sujeito. Os quatro eixos da pesquisa Indicadores Clínicos de Risco do Desenvolvimento Infantil (IRDI) segundo Kupfer e Pinto (2010, p. 15), são: (a) suposição de sujeito; (b) estabelecimento da demanda; (c) alternância entre presença e ausência; (d) função paterna. Esse material tem servido aos pediatras para identificar sinais dos IRDI e para trabalhos e pesquisas em escolas de educação infantil.
Em relação às funções parentais e ao trabalho analítico com pais de autistas, é importante perguntar: qual é a história da chegada de um bebê na família? Como um bebê pode mudar a família? Batistelli e Amorim (2014, p. 54) afirmam:
A função materna, que se oferece como objeto compreensivo, exige a inclusão do pai como terceiro na mente materna, na configuração edípica; cria a mente humana em complexa relação com muitos outros fatores.
Alvarez (citado por BASTITELLI; AMORIM, 2014, p. 53)
[...] enfatiza que, quando o bebê nasce com estados autistas embrionários, em nível protomental, ele precisa de uma 'puxada para a vida', um resgaste por meio das funções parentais.
A partir do exposto, vamos apresentar o caso clínico de JB, um menino com 5 anos de idade que passamos a atender na forma on-line em maio de 2021, com o diagnóstico de autismo fornecido por neurologista. A mãe foi em busca do atendimento por ter percebido algo diferente no filho, desde o nascimento. Menciona que ele não aceita ser filmado nem participar de chamadas de vídeo e não tem assistido às aulas remotas na educação infantil. Segundo a mãe, ele demonstra bastante sensibilidade auditiva. Por um período, caminhou na ponta dos pés e se mostra seletivo na alimentação. Além disso, JB sabe contar números até centenas, sabe o alfabeto, brinca bastante, conhece marcas de automóveis, repete os mesmos filmes e tem um comportamento bastante possessivo em relação ao pai ou à mãe. A partir de algumas sessões de atendimento com o menino e de escuta da mãe, passamos a questionar o diagnóstico inicial, uma vez que percebemos que JB demonstrava ter uma boa noção da realidade, pois conversa quando brinca, narra o que se passa com os personagens. A linguagem utilizada por JB tem a intenção de se comunicar com o outro, o que autistas evidenciam dificuldade de manifestar. O que se percebe é uma conflitiva entre as figuras parentais, que romperam o relacionamento antes dos 3 anos de JB, e ambos divergem bastante em relação à educação do filho.
Adolescências em um contexto pandêmico
Com o advento da pandemia da covid-19, humanos do mundo todo são convocados a permanecer em casa, evitando contatos com o mundo externo. Está em cena o perigo iminente de contágio pelo outro. O distanciamento social é apontado como única alternativa para conter o colapso nos sistemas de saúde. Aglomerações humanas, encontros presenciais, abraços e apertos de mão passaram a ser "proibidos". O uso de máscaras faciais, que escondem mais da metade do rosto, torna-se orientação e obrigatoriedade em caso de eventual necessidade de encontros com outras pessoas. Rituais de higienização de mãos, roupas, calçados e objetos provenientes do mundo externo começam a fazer parte de nosso cotidiano.
A morte nos ronda e fica mais próxima à medida que pessoas conhecidas e familiares começam a partir vitimados pelos efeitos devastadores e não compreensíveis do vírus. O luto torna-se cada vez mais difícil de elaborar: mistura o medo da própria morte com a impossibilidade das despedidas nos funerais proibidos por questões de segurança.
Os mais vulneráveis continuam sendo a população negra e pobre das periferias brasileiras. Que isolamento? Como higienizar-se? E os recursos para adquirir máscaras e álcool em gel? Como trabalhar para garantir a sobrevivência cotidiana, se há o isolamento social? E com as escolas fechadas, como se alimentam e com quem ficam as crianças e os adolescentes? Quais condições de continuidade da vida são oferecidas às famílias mais vulneráveis?
Por que precisamos, enquanto psicanalistas, olhar para esse cenário?
Freud ([1921] 1996) aponta para a indissociabilidade entre a psicologia social e a psicologia individual, tomando como base a importância do outro na vida (social ou psíquica) de todo e qualquer ser humano, seja como modelo, seja como objeto, seja como inimigo.
Hannah Arendt (2000) diz que o anúncio da chegada de cada indivíduo coincide, para todos os que participam de seu grupo social, com o fato de ser indispensável inseri-lo em um mundo de significados que, em consequência, irá configurá-lo como um participante daquela cultura. Por outro lado, um paradoxo: somos totalmente diferentes uns dos outros. Não existe a possibilidade de repetição de uma existência.
E a vivência das adolescências em um contexto pandêmico, como pode se dar?
Durante o período do desenvolvimento conhecido como adolescência, a convivência e a interação com os semelhantes no grupo de amigos são constituintes da identidade. É um espaço de circulação fundamental para poder afastar-se do meio familiar e constituir-se enquanto um outro, cujas ligações produzem diferentes modelos de identificação e pertencimento. A adolescência configura-se como um complexo movimento de estruturação da personalidade, e o adolescente assume um lugar peculiar com relação aos laços sociais. É um "espelho da cultura". Pensar a adolescência contemporânea leva-nos a questionar o mundo contemporâneo e suas formas de subjetivação.
Há um árduo trabalho de reorganização física e psíquica, com a necessária elaboração de diversas mudanças corporais e excessos pulsionais. Esse período da vida pode ser experimentado de forma traumática e violenta, já que o sujeito se encontra passivo diante de transformações que não pode controlar. As pulsões ainda não estão simbolizadas. E perdas angustiantes acontecem: a perda da condição infantil, a perda dos pais da infância, a perda do corpo infantil, a perda dos antigos referenciais identificatórios. O Ego precisa fazer um trabalho de luto, desinvestindo antigos objetos para, então, construir laços com novos objetos.
Durante o isolamento decorrente da pandemia, todos nós intensificamos o mergulho no virtual como uma exigência da realidade: trabalhar, estudar, manter-se informado, fazer compras. Nossos adolescentes também. No trabalho clínico, observamos que há aqueles que aumentaram seu sentimento de solidão e intensificaram adoecimentos que já vinham em construção no psiquismo. Há outros que vivenciaram uma experiência de maior convivência em casa, mais tempo com a família, mais conversas e momentos de interação.
Onde já existia hostilidade e excesso de cobranças, associados à falta de afeto e lacunas amorosas no desenvolvimento, pode ter havido uma potencialização desses processos. Relatos de gritos, palavrões, xingamentos, desqualificação tornam-se mais frequentes. Isso implica um aumento da tristeza e do sofrimento para os adolescentes. Os contatos virtuais com amigos e a interação através dos jogos e das construções virtuais (mundos melhores possíveis) aparecem muitas vezes como alternativas de escape para situações dolorosas e possibilidades de expressão de afetos e de escuta.
Outro aspecto importante do viver adolescente diz respeito ao processo de aperceber-se. A existência, em determinado momento, revela-se como uma experiência íntima e preciosa. Tal revelação acontece na maioria das vezes, na adolescência, fase de solitárias interrogações acerca de si mesmo. Octavio Paz (2015, p. 11), em O labirinto da solidão, refere: "O adolescente se assombra de ser".
As crianças se esquecem de si mesmas enquanto estão brincando, e os adultos, enquanto estão trabalhando. O adolescente, nem criança nem adulto, fica completamente capturado pelas mudanças que lhe acontecem, o que desperta inúmeras sensações angustiantes e muitas transformações. Os afetos necessitam de significação. A partir desse olhar reflexivo de autocontemplação, momento de solidão necessária e estruturante, acontecem os questionamentos. Sentir-se só pode significar sentir-se distinto, único, singular.
Um dos movimentos possíveis pauta-se na empatia (do grego empatheia ): a capacidade de sentir com e como o outro. Ferenczi ([1933] 2011) destaca-se por investir no caminho do afeto. Aprofunda o estudo da capacidade empática do analista, transformando-o em instrumento a ser utilizado na técnica analítica. Partindo das discussões freudianas sobre o intrapsíquico, Ferenczi convoca a pensar e a viver o intersubjetivo: empatia, transferência, contratransferência, identificação.
Freud revela a fragilidade da condição humana e a fundamental importância do outro na vida de qualquer um de nós. É o outro que recebe o bebê em um mundo repleto de significados o mundo da cultura. O outro " suficientemente bom", termo cunhado por Winnicott ([1971] 1975) é aquele que atende às necessidades do bebê de uma forma empática, auxiliando-o a organizar um aparato psíquico capaz de dar sentido e destino aos estímulos que vêm dos mundos interno e externo. Constrói-se, dessa forma, um aparelho de memória, de simbolização e de metabolização.
Para Ferenczi ([1933] 2011, p. 91), uma experiência traumática se dá quando há falta de sensibilidade no adulto para testemunhar o sofrimento, as angústias:
O pior é realmente a negação [desautorização, Verleugnung], a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática dos pensamentos ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico.
Uma prática psicanalítica ampliada pode possibilitar a movimentação dos afetos e o fortalecimento de vínculos nos espaços que acolhem crianças e adolescentes. É preciso criar condições para a circulação e a escuta da palavra, pois eles têm muito a dizer sobre si e sobre o mundo.
O xadrez do adulto (ser) na pandemia: considerações pela verdade e pela vida. Função paterna e função escopofílica
"Adultecer"! "Bem-vindo à dor e ao prazer de tornar-se adulto" é a provocação presente no livro de Outeiral, Moura e Santos (2008). Historicamente, espera-se do adulto uma certa homeostase emocional que o leve a fazer opções equilibradas, desfrutando de suas capacidades egoicas para pensar, sentir e agir. A pandemia não é uma histeria.
Qual é a problemática dos sofrimentos psíquicos na pandemia? O cenário sindêmico: o vírus não vencerá esta sociedade patógena que cruzou a nossa vida e promoveu desestabilizações, além de uma crise sanitária de forma muito particular, deixando a sociedade em desamparo. Os adoecimentos e as mortes causados pela covid-19 integram um arcabouço de questões e gritos de sofrimento ainda não possíveis de serem assimilados, elaborados e dimensionados. O xadrez do adulto (ser) é colocado em jogo para transformar as marcas que deixam registros da ausência de sentidos, das palavras não ditas, dos atos sufocados e de conflitivas somatizadas. O convite é estendido para olhar a vida adulta. Quem é quem nesta sociedade patógena? O adulto diante dos seus lances de batalha incerta no campo da saúde mental: que inércia sua bateu com a pandemia? Nesse ínterim, simbolicamente, valemo-nos de uma analogia reflexiva sobre os adoecimentos psíquicos com o jogo de xadrez.
No xadrez, há regras, movimentos, posições hierárquicas e relações. Por exemplo: o tabuleiro, o chamaremos, segundo Debord (2004), "a sociedade do espetáculo"; peças com nomes, cada qual em uma ordem crescente, com um valor determinado, movimentos a serem seguidos; e dois jogadores, adversários, aos quais atribuímos, de um lado, a representação da realidade interna do sujeito psíquico e, de outro lado, sua realidade externa. A trama das jogadas, com ganhos e perdas, está marcada pelos movimentos pulsionais diante da potência de ser do indivíduo, efetivando considerações de acordo com sua verdade, sua dramática de infinitos lances de vida. A natureza é pura diversidade. Nela a vida se apresenta como se fosse um jogo de xadrez. "A vida é uma arte e tem seus estilos diferentes, como as artes que tentam exprimi-la" (WILDE, 1995, p. 1098). Como fica esse panorama no setting clínico psicanalítico? Freud ([1913] 1969), no texto Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I), escreve:
Todo aquele que espera aprender o nobre jogo do xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os lances finais de jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo (FREUD, 1969 [1913], p. 164).
A psicanálise trata das formações do inconsciente, que é o produtor de desejos. Ao receber um adulto na clínica estendida digital (atendimento on-line), percebemos que ele tem consciência de que sofre. Quando expressa sua angústia, faz isso a partir do que associa livremente, atribuindo sentidos. Mediante o conteúdo manifesto, de forma desconexa ou não, desorganizada ou não, o adulto em suas vicissitudes escuta a si mesmo. Assim, o sujeito acessa sua potência de ser, seu manancial de criatividade. Como diz Isaac Asimov diz em sua conhecida frase "Na vida, ao contrário do xadrez, o jogo continua após o xeque-mate". E a vida segue atribuindo nomes ao estado de seu mal-estar, identificando o descompasso entre possibilidades e realidade dos seus sofrimentos psíquicos provocados pelo distanciamento social, pelo desemprego, pelas perdas e, assim, seu próprio desamparo. No quadro de uma teoria da angústia, o estado de desamparo torna-se o protótipo da situação traumática. No texto, Inibições, sintomas e ansiedade, Freud ([1925] 1976) reconhece o que pode gerar sentimentos de desamparo aos perigos internos.
Inserido no que Han (2017) delineou como " sociedade do cansaço" , caracterizada pelo desaparecimento da alteridade e da estranheza, ocorre um tédio profundo. Nessa configuração, reportamo-nos à função paterna, por ter papel central no desenvolvimento e na estruturação do psiquismo e na formação da personalidade. Há muitos significados atribuídos à paternidade, mas tomamos sua máxima: serve para humanizar.
Pulsão de vida. A vida é o bem mais precioso e valioso. Há que ter olhos para o desejo de olhar. Olhar o que se passa no cotidiano faz um apelo para integrar os sentidos da pulsão escópica na conjuntura atual.
Tal abordagem fica evidente no filme Mil vezes boa noite (2013), drama de uma fotógrafa de guerra envolta em tensões familiares e desafios profissionais. O objeto do olhar se coloca em cena. A pulsão do prazer de olhar, a curiosidade e o visto concomitantemente à realidade virtual.
Freud ([1915] 1974), em Os instintos e suas vicissitudes, ao inventar a categoria de pulsão, identificou tabus quando revelou que a infância está envolta de sexualidade e que essa etapa do desenvolvimento é determinante para o todo e sempre da vida do sujeito. O olhar é o personagem principal no mundo narcísico contemporâneo. A pulsão fornece energia para a curiosidade de apreender a circunstância que nos cerca. Lacan ([1968-1969] 2008, p. 209) expressa: "a sublimação está com a pulsão", no Seminário 16: De um outro ao outro. Narrativas e imagens levam o sujeito a sublimar, abrindo possibilidades para novos horizontes do aprender, do ser, do sentir e do investigar. O gozo escópico é tanto do gozo de maravilhas quanto do horror da pulsão de morte.
Manter a saúde mental entrelaça
[...] a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única "mensagem" que o fim pode produzir [...]. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós (ARENDT, 2000, p. 531).
Tal será o desfecho desse movimento: o adulto com condições materiais garante sua autonomia. Ou seja, torna-se mais fortalecido para promover sua própria subsistência, mirando a saúde mental. Logo, é criador de si mesmo quando em ambientes com ações possíveis. Então, brota o exercício de bem viver com a finalidade de comungar relações cidadãs na coletividade.
O envelhecimento e o contexto pandêmico
Ao longo do último século, em função de diversas questões, observamos um aumento exponencial da expectativa de vida em nível mundial, fato que chamamos de fenômeno da longevidade. Segundo Kalache e Keller (2000), na maior parte do mundo desenvolvido, o envelhecimento da população foi um processo gradual, acompanhado do crescimento socioeconômico durante décadas e gerações. Já nos países em desenvolvimento, o processo de envelhecimento está limitado a duas ou três décadas. Assim, enquanto os países desenvolvidos tornaram-se ricos antes de envelhecer, o Brasil encontra-se em franco processo de envelhecimento, com nítida escassez de recursos, desconstrução de políticas públicas e uma desigualdade social abissal, fatores que repercutem diretamente no processo de envelhecimento da população. Goldfarb (2014, p. 60) refere que há uma intenção em nosso país em desabilitar o velho enquanto sujeito. O velho é ou um empecilho, ou um problema, ou um favorecido, que goza de favorecimentos, e não de direitos. Nas palavras de Goldfarb (2014, p. 53):
O lugar do velho é quase um não lugar, pois os velhos são empurrados para as bordas da estrutura social, são reconhecidamente obrigados a uma subjetividade ancorada na passividade, a uma pobreza de trocas simbólicas e à renúncia ao papel de agentes sociais; são empurrados a uma perda de todo poder, mesmo sobre si mesmos.
De acordo com Goldfarb (2014, p. 45), o fato de a velhice ser o momento da existência humana mais próximo da morte, ligado ao declínio cognitivo e à mercê de questões culturais, acaba por criar um terreno fértil para uma representação social negativa, além de propiciar atitudes de marginalização e exclusão. A autora se utiliza dos postulados de Birman sobre a sociedade do espetáculo para enunciar que, atualmente,
[...] não basta ser belo, deve-se também ser competitivo, autocentrado, agressivo e egoísta. Mas fundamentalmente não se pode nem deprimir, nem sofrer (GOLDFARB, 2014, p. 33).
A proximidade da morte, que, nestas circunstâncias, não pode ser elaborada, é sentida como um limite intransponível e fica no registro do destino iniludível da degeneração e da decrepitude. Os efeitos negativos desta experiência na economia libidinal se fazem evidentes nos discursos infantilizados, depressivos ou rígidos dos idosos (GOLDFARB, 2014, p. 55).
A velhice é uma fase da vida muito exposta à vulnerabilidade, pois se trata de um período em que somos demandados a lidar com perdas das mais diversas naturezas. As mudanças corporais, as eventuais perdas de habilidades, o afastamento dos filhos, a morte de pessoas queridas, o declínio do status social e fantasias a respeito da própria morte são acontecimentos que desafiam constantemente a capacidade de lidar com as adversidades e de elaborar os lutos do sujeito que envelhece. Fochesatto (2018) aponta que, de acordo com Bianchi (1993), uma das tarefas fundamentais da pessoa idosa é manter os vínculos afetivos, permitindo, assim, que o aparelho psíquico continue em atividade, ou, em outras palavras, que ele continue gerando fluxos de investimento. Dessa forma, é possível e desejável preservar a juventude psíquica, o que ocorre se o ego mantiver sua capacidade de investir em objetos externos. Segundo Bianchi (1993), o investimento "fora do eu" é condição de manutenção da subjetividade. O envelhecimento implica um conjunto de renúncias narcísicas que se opõem aos desejos infantis: ser-tudo, ser-por-todo-o-tempo, ser investido sem obrigação de reciprocidade e dispor do objeto amado.
Mucida (2017, p. 44) nos lembra da atemporalidade do inconsciente e questiona: como reconciliar o sujeito do inconsciente que não envelhece com o real da velhice?
Se o inconsciente mantém a morte à distância, quase não deixa lugar para a velhice, então a velhice nos 'pega' sempre de maneira inesperada.
Se envelhecer já é um processo doloroso em decorrência dos valores da contemporaneidade e de tudo que traz consigo, atravessar uma pandemia na velhice pode ser a personificação do desamparo. Afastados de tudo e de todos, os velhos, ao longo de todo o ano 2020, estiveram frente a frente com a morte. Além de compor o "grupo de maior risco", foram as maiores vítimas da catástrofe humanitária que ocorreu no Brasil quando o sistema de saúde colapsou.
Um estudo da Universidade de Oxford, publicado em setembro de 2021 ( Jeavans , 2021), apontou que, entre 29 países analisados, 27 tiveram redução da expectativa de vida. O maior declínio foi registrado nos Estados Unidos entre homens 2,2 anos em relação a 2019. No Brasil, o número de mortes pelo vírus fez a expectativa de vida da população cair de 76 para 74 anos. Para a maioria dos que sobreviveram ao vírus, sintomas de depressão e declínio cognitivo foram os desdobramentos psíquicos mais observados ao longo da pandemia, gerados, em grande parte, pelo isolamento social e pelo desamparo diante da angustiante possibilidade de morrer longe dos familiares. Medo, desesperança, desespero e angústia, quando não são devidamente elaborados, podem ocasionar quadros demenciais? Seria esse o nome da psicose na velhice, na medida em que a demência é também uma dissociação da realidade?
A psicanalista Delia Goldfarb, ao desenvolver, em meados dos anos 1990, sua tese de doutorado acerca das demências, aponta um dado que chama sua atenção: frequentemente (em aproximadamente 50%), o processo demencial iniciava-se logo após um fato extremamente doloroso.
Acontecimentos como a morte de um ente querido, a perda de uma fortuna ou até de um objeto sem muito valor real, porém altamente significativo para a pessoa, pareciam não ter sido elaborados; não tinham submergido o sujeito na esperada depressão elaborativa que lhe permitisse o trabalho de luto (GOLDFARB, 2014, p. 15).
A autora nos convida, enquanto psicanalistas, a conceber a memória como produção histórica do sujeito psíquico, resultante de seu funcionamento inconsciente. Ela cita dois exemplos instigantes de processos demenciais relacionados com a questão traumática. Em 1990, no Brasil, durante o governo Collor, e em 2002, na Argentina, foram confiscados os depósitos em poupança e os depósitos bancários, respectivamente. Meses depois desses dois acontecimentos, a procura por grupos de apoio a familiares de portadores de Alzheimer cresceu consideravelmente. Segundo ela, as duas experiências têm em comum o fato de acontecerem em um período de recessão econômica e de eliminarem drasticamente os projetos a curto prazo que dependiam das economias da população. Para os mais jovens, embora represente um grande sofrimento, pode ser um simples adiamento, enquanto que, para os mais velhos, é a constatação de que seu tempo acabou. Será que podemos pensar nas vicissitudes da pandemia de forma semelhante, no sentido de adiar a vida como um todo, inclusive o exercício dos vínculos afetivos, sem prazo certo para voltar a acontecer, em que a ameaça da morte é constante?
Nas palavras de Birman (1995, p. 36),
[...] é o vazio e o abismo que está permanentemente sob seus pés, em um vórtice tempestuoso que pode engoli-lo a qualquer momento, pois a morte o espreita.
Freud ([1930] 1974), em O mal-estar na civilização, nos fala de três ameaças que colocam o Ego em perigo: (a) a fragilidade dos vínculos e a possível perda do amor do outro, que o deixará em um estado de desamparo; (b) o corpo condenado à decadência e à finitude; e (c) as forças da natureza impossíveis de serem dominadas por inteiro. Essas três dimensões questionam a onipotência do sujeito diante de sua fragilidade. E, segundo Goldfard (2014, p. 50),
[...] talvez ninguém esteja mais consciente de sua finitude, à mercê das dificuldades com a corporeidade, diante das ameaças da natureza e da cultura, do que o sujeito que envelhece.
No contexto pandêmico, podemos pensar em uma potencialização de todos esses aspectos, na medida em que o isolamento e a impossibilidade de negação da morte se apresentam sem filtro, de forma real e cruel.
Tecendo considerações
Este trabalho é fruto da realização de um ciclo de estudos de psicanálise, oferecido pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul para profissionais da saúde e da educação no mês de julho de 2021, em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2.
Configurou-se como um relevante momento de estudo e de trocas, um momento que solidificou a importância dos espaços de fala e de escuta sobre as diversas etapas do desenvolvimento da vida humana.
Referências
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Recebido em: 12/12/2021
Aprovado em: 20/12/2021
SOBRE AS AUTORAS
Anelise Scheuer Rabuske
Psicanalista.
Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Psicóloga clínica desde 1998.
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Lecionou na Faculdade São Judas Tadeu, no Instituto Superior de Educação Ivoti (graduação) e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) (pós-graduação).
Atualmente dedica-se à clínica psicanalítica nas cidades de Dois Irmãos e Ivoti (RS).
Coordena o Seminário Freud V na Formação Psicanalítica do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).E-mail: anerab@hotmail.com
Magda Maria Colao
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Psicóloga, pedagoga, orientadora educacional.
Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mestre em Aconselhamento Psicopedagógico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Professora adjunta da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Integrante do Grupo Internacional de Pesquisa de Formação de Professores para a América Latina. Linha de pesquisa: Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (FACED/ UFRGS). Editora da Revista Estudos de Psicanálise 2021/2023 - Seção RS.
Parecerista da Revista Direito Ambiental e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UCS.E-mail: magdacolao@gmail.com
Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Psicopedagoga titular, mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Doutora e pós-doutoranda em Psicologia Social pela Universidad Argentina J. Kennedy.
Professora em cursos de graduação e pós-graduação na Faculdade Porto-Alegrense (FAPA) de 1996 a 2017.
Autora de artigos sobre psicopedagogia e psicanálise e do livro O mutismo seletivo no espaço escola (Editora Diálogo Freiriano, 2019).E-mail: mwagnerpokorski@gmail.com
Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
Psicóloga pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Mestre em Ciências da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Pesquisadora na área do envelhecimento humano (AVAES).
Autora de artigos na área da psicanálise e do livro infantil Ana Lise e o menino de olhos verdes (2019).E-mail: waleska.pessato@terra.com.br
1 Trabalho redigido a partir de mesa apresentada pelas autoras no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Para além da pandemia: ecos na psicanálise, realizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, de 4 a 6 nov. 2021, por meio da plataforma Zoom.