56Reflexões sobre o lugar da supervisão na psicanáliseA máscara como indumentária e metáfora de um tempo: novos possíveis e impossíveis 
Home Page  


Estudos de Psicanálise

 ISSN 0100-3437 ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.56 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE

 

Sobre a vida e a morte m tempos de pandemia1

 

On life and death in times of a pandemic

 

José Alaíde dos Santos LopesI

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo discutir questões do humano desde o surgimento da pandemia de coronavírus, fazer algumas relações com outras pestes que assolaram a humanidade e encontrar questões que perpassam algumas delas. São discutidos os comportamentos, as condutas e alguns pensamentos que motivam, movem e conduzem a pessoa e os que a cercam, bem como a necessária convivência com o outro, o isolamento que se opõe à excessiva exposição virtual. A um tempo, o medo da morte e o seu desejo. Os impulsos que levam o sujeito a se preservar, a expor a si mesmo e aos outros. A sensação de finitude, o respirar mortífero e a experiência fálica de tomar a vacina, de incorporar a proteção contra o vírus por meio de um vírus inativado. Injetar a morte (vírus morto) para ganhar a vida.

Palavras-chave: Pandemia, Coronavírus, Pestes, Isolamento social.


ABSTRACT

This paper aims to discuss human issues since the emergence of the coronavirus pandemic, make some connections with other pandemics that have plagued humanity, and find issues that permeate some of them. We will discuss the behaviors, conducts, and some thoughts that motivate, move, and lead the person and those around him/her, the necessary coexistence with the other, the isolation that opposes the enormous virtual exposure. At the same time, the fear of death and the desire for it. The impulses that lead the subject to preserve himself, to expose himself and others. The feeling of finitude, the deadly breath, and the phallic experience of taking the vaccine, of incorporating protection against the virus by means of an inactivated virus. Injecting death (the dead virus) to gain life.

Keywords: Pandemic, Coronavirus, Plagues, Social isolation.


 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a covid-19, causada pelo novo coronavírus, é uma pandemia. Isso ocorre quando uma epidemia que afeta uma região se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa. Antes da covid- 19, a pandemia mais recente foi em 2009, com a gripe suína, causada pelo vírus H1N1. No total, 187 países registraram casos e quase 300 mil pessoas morreram. O fim da pandemia foi decretado pela OMS em agosto de 2010.

A covid-19 vem se somar a uma lista extensa, conforme Schueler (2021):

• Peste do Egito ( 430 a .C.). A febre tifoide matou um quarto das tropas atenienses e um quarto da população da cidade durante a Guerra do Peloponeso. A força de combate de Atenas foi seriamente abalada.

• Peste Antonina (165-180). Causada pela varíola trazida próximo ao Leste, matou um quarto dos infectados. Cinco milhões no total. Surgiu na China.

• Peste de Cipriano (250-271). Possivelmente causada por varíola ou sarampo, iniciou-se nas províncias orientais e espalhou-se pelo Império Romano inteiro. Em seu auge chegou a matar 5.000 pessoas por dia em Roma.

• Peste de Justiniano (541-544). A primeira contaminação registrada de peste bubônica. Começou no Egito e chegou a Constantinopla na primavera seguinte, enquanto matava (de acordo com o cronista bizantino Procópio de Cesareia) 10.000 pessoas por dia, atingindo 40% dos habitantes da cidade. Foi eliminado até um quarto da população do Oriente Médio.

• Peste Negra (1300). Oitocentos anos depois do último aparecimento, a peste bubônica tinha voltado à Europa. Começando a contaminação na Ásia, a doença chegou à Europa Mediterrânea e Ocidental em 1348 (possivelmente de comerciantes fugindo de italianos lutando na Crimeia), e matou vinte milhões de europeus em seis anos, um quarto da população total e até metade nas áreas urbanas mais afetadas.

• Gripe Espanhola (1918-1920). A gripe espanhola foi uma pandemia do vírus influenza (H1N1) que, entre janeiro de 1918 e dezembro de 1920, infectou 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial na época. Estima-se, majoritariamente, que o número de mortos esteja entre 17 milhões e 50 milhões, com algumas projeções indicando até 100 milhões. Independentemente da diferença entre os números, trata-se de uma das epidemias mais mortais da história da humanidade. 

Em 2 de março de 2019, a revista Viruses publicou o estudo Bat Coronaviruses in China, escrito por três cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan e um pesquisador da Academia Chinesa de Ciências. Em um trecho do estudo, temos a seguinte informação: "Acredita-se que CoVs carregados por morcegos irão reemergir para causar a próxima epidemia de doença. Nesse aspecto, a China é um foco provável." Os morcegos representam cerca de 25% dos mamíferos da Terra. Os que vivem na China, até onde li, não são hematófagos. Acredita-se que o vírus passou dos morcegos para o pangolim e daí para o humano.

Por que os morcegos? Porque voam longe, são mamíferos, têm temperatura corporal elevada e seu sistema imunológico os protege contra os vírus. No início do século, eles foram a causa da transmissão da síndrome respiratória aguda grave, mais conhecida como SARS, que infectou mais de 8 mil pessoas, das quais cerca de 800 morreram. Em meados da década de 2010, os morcegos foram a origem de outra doença respiratória semelhante à SARS: a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS), que afetou menos pessoas (cerca de 2,5 mil), mas foi mais letal, causando a morte de mais de 850 pessoas.

A covid-19 já causou 5 milhões de mortes no mundo, 12% no Brasil. Houve períodos de quase 4.000 mortes diárias no país. Ontem, foram 250. Os demais, protegidos pela potência vital da vacina. No campo político, houve uma desídia homicida dos governantes, respaldados por apoio político criminoso do CFM. Tal política ceifou cerca de 400 mil vidas que poderiam ter sido protegidas.

Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as duas hesitações. Por isso, é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança (CAMUS, [1947] 2019, p. 24).

Em tempos de grave ameaça à vida, o reflexo é a busca de algo que alivie tal sofrimento. As pessoas ficam ansiosas, angustiadas, com medo de morrer. Um mecanismo de defesa muito usado é a negação. É comum ouvir que o medo é "passar a doença" para alguém muito querido e frágil. Assim, o sujeito é portador, mas não morre. Nega a doença em si mesmo. Palavras ditas com frequência na clínica. Um certo grau de onipotência de alguns permitiu comentários como "atletas não morrem". Outra defesa maníaca. O vírus é a ameaça, o veículo da pulsão de morte, o Thanatos. As chamadas defesas maníacas visam preservar a força vital, o Eros. A terceira defesa da tríade é o triunfo ou controle sobre o objeto. Algo como chamar de "resfriadinho" a causa mortis de cerca de 600 mil pessoas no Brasil.

O que se lê acima não significa que o mundo está maníaco, mas que assim se defende. É a forma que as pessoas têm de se proteger da angústia, da agonia, do desamparo. Se tais mecanismos não são suficientes, os reflexos se dão na conduta dos indivíduos. A tolerância se reduz, o egoísmo se acentua, a avareza eclode. Intolerante, o sujeito não convive bem com a frustração, a necessidade, a falta. A empatia se escasseia, desaparece. A elegância e a polidez, já raras, se desfazem. Presidentes e governadores se ofendem ao vivo e on-line. Grupos se revoltam e se envolvem em embates virtuais mortais. Fronteiras, divisas e limites se fecham. Controles se perdem na busca de respostas para perguntas sem resposta. Psicopatas encontram seu lugar em tais cenários. Camaleões que são da personalidade, logo se adaptam e tiram proveito do sofrimento alheio. Corrupção, falsas notícias e manipulação da horda são encontradiços. O medo da morte faz as pessoas cheias de vida ansiarem obsessivamente por um fim, qualquer que seja. Que seja o fim da pandemia. A impossibilidade de abraçar, beijar, apertar, dá lugar ao escarrar, xingar, esmurrar. O cumprimento com um soco denota a agressividade contida. Pugilistas antes do embate.

Na verdade, uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que não estavam preparados para isso. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dali a alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem. Sim, porque as portas tinham sido fechadas algumas horas antes de ser publicado o decreto do prefeito e, naturalmente, era impossível levar em conta os casos particulares. Pode-se dizer que essa invasão brutal da doença teve, como primeiro efeito, o de obrigar nossos concidadãos a agir como se não tivessem sentimentos individuais. Nas primeiras horas do dia em que o decreto entrou em vigor, a Prefeitura foi invadida por uma multidão de requerentes que, ao telefone ou junto aos funcionários, expunham situações igualmente interessantes e, ao mesmo tempo, igualmente impossíveis de examinar (CAMUS, [1947] 2019, p. 78).

A pandemia trouxe mudanças importantes nas relações. O sujeito conviver consigo mesmo é tarefa árdua. Nem sempre a pessoa aguenta a si mesma. Vivenciar a morte todos os dias também é novidade. Desejar viver com qualidade é pensamento presente. A importância da convivência, da tolerância, da solidariedade ganhou espaço maiúsculo. Viver bem é uma arte. Renunciar é tarefa diuturna, intensa e quase insuportável. A saudade, representante da falta, ganhou dimensão inigualável. Abraçar a pessoa querida é anseio vital e, ao mesmo tempo, mortal. Sentir o cheiro da mãe, do filho, do irmão, do amor virou tesouro valioso. Porém, é preciso se isolar.

O isolamento surgiu em Veneza, durante a peste do século 14. O termo "quarentena" vem da Bíblia, que recomendava 40 dias de resguardo para se livrar das doenças. A atual pandemia recomenda 14 dias. Período de incubação da SARS-CoV-2.

Uma nova prática se instalou. A consulta on-line. Congressos viraram encontros virtuais interativos e profícuos, porém cansativos pela profusão de cursos e jornadas. Palestrantes tomando mate, jantando ou entre seus bichos é corriqueiro. Soma-se a isso a necessidade de atender on-line.

O contato físico é ansiosamente aguardado. Faltam cheiros. Carece-se do ambiente do setting. Nem mesmo a Apple consegue transmitir os odores da vida real. Os calores, entre eles, os das pessoas, não passam pelo wi-fi.

Mas o sujeito segue vivendo. A tecnologia permite atender, ser atendido, aprender, ensinar. Músicas maravilhosas tocadas por dezenas de artistas que jamais pensaram em tocar juntos são frequentes e adoráveis. Chacinas, filicídios, fuzilamentos parecem divertir alguns. Até que enfim pararam de falar de corona, exclamam, denotando uma negação do perigo sendo substituída pelo alívio de ver a morte dos outros.

Como vai você? Sem covid, responde-se ao dizer "tudo bem". Compartilhar um soro positivo virou troféu. Porta-se IgG positiva e a claque urra de alegria. Quase como um Beta HCG positivo. Parabéns, dizem. Pessoas são aplaudidas na alta hospitalar. Vencer a doença significa nascer de novo, vencer a morte, começar uma nova vida.

Mais difícil, mas maravilhoso vai ser ouvir os negacionistas dizerem: "Viu? Eu avisei que era só uma gripezinha? Peguei e não tive nada. Esse isolamento foi em vão". Mal sabem que só poderão dizer isso porque, de alguma forma, o isolamento funcionou. Somente poderá ouvir quem estiver vivo, especialmente os vacinados.

Na rumorosa eleição americana de 2020, supremacistas brancos invadiram o Capitólio incitados por Trump. Houve 4 mortos. Eram pessoas extremamente perturbadas. Homens e mulheres delirantes, fanáticos e impulsivos. Acreditavam em mentiras e no discurso falacioso de Trump. Em torno deles, milhões se identificam e acreditam em fraude nas eleições, em terra plana, em conspiração comunista, mamadeira de pênis, kit gay e alguns são religiosos fundamentalistas.

Há fanáticos em todos os cantos. Não é uma exclusividade brasileira. Pode-se imaginar qual fantasia os nossos eleitores irão usar. Aquele "Village People" peludo e guampudo foi ilustrativo do delírio. Caricatural representante do que se passa no mundo interno dos fanáticos fascistas. Seguiam lá, e seguem aqui, um pai que reforça suas crenças e os impele a reforçar a falsa relação que temos com a morte. A de que somos meros expectadores. São medrosos, são esquisitos que fingem coragem, mas, no fundo, morrem de medo de vacina. O símbolo fálico mais poderoso da atualidade é a seringa. Contém o vírus atenuado, morto, que é capaz de garantir a vida aos vacinados. Alguns não a veem assim. Sentem como algo que vai lhes rasgar o corpo e poderão "virar jacaré". Uma espécie de seringa de piroca que pode engravidá-los e nascer um bebê chinês. A fantasia inconsciente do mundo interno norteando a conduta no mundo externo. Meras suposições que beiram o ridículo. Ferida mortal no princípio da realidade.

Jean-Paul Sartre ([1945] 1983) escreveu A idade da razão. A frase final do livro é um pensamento de Mathieu sobre a sua vida: "Estou na idade da razão". Sintetiza as reflexões de Sartre sobre a existência, a moral, a convivência com o outro. Isolados, refletimos.

A pandemia está causando muitos problemas de saúde mental. O isolamento social, em especial dos familiares, o medo, a angústia estão aumentados. Medo de adoecer, de transmitir a doença, de sofrer, de morrer e de matar. Matar uma pessoa querida ao transmitir o vírus. Agonia ao ter que trabalhar e não poder se proteger e aos seus. Onipotência de alguns que acham que nunca adoecerão. Está havendo queda nos ganhos das pessoas. Comerciantes veem suas vendas despencar, autônomos veem seus ganhos diminuídos. Profissionais liberais são afetados pelo distanciamento necessário. As pessoas estão convivendo mais consigo mesmas. Ao conhecer aspectos desconhecidos, os indivíduos podem se assustar ou ter gratas surpresas. Um cônjuge pode se mostrar maravilhoso ou intolerável. Saudades de pessoas amadas tornam o viver mais árido. Por amor, algumas pessoas se distanciam. Preservar o outro virou algo muito presente e importante. O cuidar de alguém pode ser, simplesmente, não visitar, não abraçar, não tocar. Relações reescritas, afetos reencontrados, frivolidades sepultadas, bobagens proscritas. Esse reinventar-se pode ser maravilhoso, saudável e proveitoso, mas pode causar sofrimento, ansiedade, doenças depressivas, surtos agressivos, ideias suicidas, avareza, desprezo pelo outro, indiferença.

Uma nova ordem se avizinha. O essencial virou supérfluo. O fundamental é desnecessário. Viver virou sobreviver. Respirar é crucial, desde que com máscara e longe dos outros. A cada minuto, respira-se cerca de 20 vezes de forma involuntária e inconsciente. O quão angustiante pode ser imaginar que 20 vezes expelimos vírus ou o ingerimos? A dinâmica respiratória parece implicar-se com a psicodinâmica. Introjetar a força vital, o Eros ou projetar a morte, o Thanatos. Uma nova ordem se avizinha, uma nova era. Estamos na Idade da Respiração.

 

Referências

CAMUS, A. A peste (1947). Tradução: Valerie Rumjanek. 25. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2019.         [ Links ]

FAN, Y.; ZHAO, K.; SHI, Z.; ZHOU, P. Bat Coronaviruses in China. Viruses, v. 11, n. 3, p. 210, 2019. Disponível em: https://www.mdpi.com/1999-4915/11/3/210/htm. Acesso em: 15 mar. 2022.         [ Links ]

SARTRE, J.-P. A idade da razão (1945). Tradução: Sérgio Milliet.  Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1983.         [ Links ]

SCHUELER, P. O que é uma pandemia. Fiocruz Notícias e Artigos, jul. 2021. Disponível em: https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1763-o-que-e-uma-pandemia. Acesso em: 15 mar. 2022.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/11/2021
Aprovado em: 18/12/2021

 

 

SOBRE O AUTOR

José Alaíde dos Santos Lopes
Médico formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Psiquiatra.
Especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria.
Candidato à formação no Instituto de Formação Psicanalítica no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).

E-mail: josealaide@icloud.com

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Para além da pandemia: ecos na psicanálise, realizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, de 4 a 6 nov. 2021, por meio da plataforma Zoom.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License