Estudos de Psicanálise
ISSN 0100-3437 ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. no.56 Belo Horizonte jul./dez. 2021
MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE
Corpos que falam: escutando desamparos indizíveis1
Bodies that speak: listening to unspeakable helplessness
Márcia Alves da RochaI, II
I Círculo Brasileiro de Psicanálise Seção Rio de Janeiro
II Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi
RESUMO
Freud já nos dizia que o ego é antes de tudo um ego corporal. Ferenczi, por sua vez, apontou que o organismo começa a pensar quando o psiquismo falha. Partindo dessa premissa, o artigo pondera sobre as tentativas do soma em se fazer ouvir, quando o indivíduo recorre ao corpo para comunicar suas dores indizíveis. De acordo com McDougall, o corpo-teatro-psicossomático atua como reflexo de uma representação sem palavras, como se o indivíduo fosse um ator desprovido de texto para a sua representação. Com base nesses e em outros referenciais teóricos (tais quais Balint, Fontes, Green, Khan, Kristeva e Winnicott) o trabalho apresenta fragmentos clínicos que buscam refletir sobre a importância de o analista se deixar levar pela comunicação sensorial, não verbal, para ter acesso à vida psíquica do paciente.
Palavras-chave: Ego corporal, Memória corporal, Representação coisa, Representação palavra, Soma, Transferência.
ABSTRACT
Freud told us that the ego is above all a bodily ego. Ferenczi told us that the organism begins to think when the psyche fails. Based on this premisse, the article ponders the attempts of soma to be listened, when the individual resorts to the body to communicate its unspeakable pains. According to McDougall, the body-theater-psychosomatic acts as a reflection of a wordless representation, as if the individual were an actor devoid of text for his representation. With those theoretical bases and other ones bases (such as: Balint, Fontes, Green, Khan, Kristeva and Winnicott) this paper presents clinical fragments in order to reflect on the importance of the analyst to be guided by sensorial, non-verbal communication, to get access of the psychic life of the patient.
Keywords: Corporal ego, Corporal memory, Transference, Word representation, Thing representation, Soma, Transference.
Ouvir com os olhos diz respeito
a conhecer o outro amor.
WILLIAM SHAKESPEARE
Introdução
Em seu célebre texto O ego e o id, Freud ([1923] 1996) nos ensina que, em última análise, o ego deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo. Tomando como base a premissa freudiana de que o ego é antes de tudo um ego corporal, podemos refletir sobre a dimensão corporal tanto nas afecções somáticas dos indivíduos, quanto no fenômeno transferencial. Se o paciente "fala" suas angústias indizíveis através de registros que não passam pelo verbal, talvez seja verdadeira a hipótese de que o analista também dá contorno e revêrie ao paciente através de uma dimensão corporal da dinâmica transferencial.
Creio que vale iniciarmos nossas reflexões com esta pequena citação de Freud:
O ego é primeiro, e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície (FREUD, [1923] 1996, p. 39).
Freud, desde os estudos sobre a histeria, sempre buscou compreender a importância da dimensão corporal no psiquismo humano. O registro corporal sempre esteve presente na obra freudiana e podemos dizer o mesmo de Sándor Ferenczi. Em seu Diário clínico, num relato intitulado Pensar com o corpo é como a histeria, datado de 10 de janeiro de 1932, Ferenczi afirma:
A histeria é a regressão do erotismo aos órgãos que serviam outrora unicamente às funções do Ego; as doenças corporais de órgãos fazem o mesmo. [...] Nos momentos de grande aflição, em face dos quais o sistema psíquico não está à altura, ou quando esses órgãos especiais (nervosos e psíquicos) são destruídos com violência, forças psíquicas muito primitivas despertam e são elas que tentam controlar a situação perturbada. Nos momentos em que o psiquismo falha, o organismo começa a pensar (FERENCZI, 1990 [1932], p. 37).
Ivanise Fontes (2021) faz uma consistente pesquisa na obra de Freud e Ferenczi assim como nas cartas trocadas entre ambos ao apresentar sua hipótese dos entrelaces da memória corporal na transferência. Complementando o pensamento ferencziano, Fontes (2021, p. 21) ousa ir além:
O corpo não começa a pensar. Ele já estava lá, onde a história do indivíduo se fazia. Como testemunha, presente em todas as circunstâncias vividas pelo indivíduo. O corpo não esquece suas sensações, e as mantém na memória do acontecimento. Ele é o suporte carnal de uma lembrança, avalista de nossa continuidade histórica.
Fontes (2021) defende a hipótese de que as doenças somáticas são resultado das excitações produzidas na experiência vivida. A partir desse ponto de vista, as somatizações são regressões a um tempo em que as comunicações não verbais faziam parte da relação do bebê com seu ambiente. Isso equivale a dizer que as somatizações podem ser conceituadas como uma forma de funcionamento pré-verbal à qual o indivíduo precisou recorrer.
Tomando como base os apontamentos acima, as páginas do presente estudo valorizam a hipótese de que o corpo é o berço mais primevo da constituição subjetiva e, por conseguinte, se torna o registro mais regredido ao qual o indivíduo tem acesso em seus estados de maior vulnerabilidade psíquica. Servem como pano de fundo para minhas reflexões fragmentos de um caso clínico. Os fragmentos relatam dois recortes temporais de uma análise: o primeiro é uma breve citação de um momento anterior à pandemia de covid-19 e o segundo momento, que cito de forma um pouco mais alongada, reflete o auge da pandemia no Brasil. A intenção da apresentação desses dois recortes é compartilhar a intensidade da dimensão corporal no caso em questão, demonstrando o quanto a paciente precisa recorrer ao corpo para comunicar suas angústias mais indizíveis e, em igual medida, o quanto sinto meu corpo convocado em nossa dinâmica transferencial.
O soma se faz ouvir
Compreender o estatuto do corpo, tanto no psiquismo quanto no fenômeno transferencial, tem sido uma busca constante de psicanalistas teóricos-clínicos. Destacarei a seguir algumas das postulações de Joyce McDougall sobre o tema. Baseando-se em diferentes correntes, as abordagens da autora gravitam em torno da metáfora teatral. Para ela, o analista precisa traduzir o drama do paciente em verbalizações analisáveis, não deixando de observar também o seu próprio teatro interno, interpretando-o a priori.
Todos os sintomas são criações infantis numa tentativa de autocura, nos diz McDougall (1997). Para ela, os fenômenos somáticos têm como principal função traduzir uma necessidade de defesa contra uma dor psíquica literalmente indizível (e, consequentemente, somatizada). McDougall propõe que existe o corpo-teatro-psicossomático, que atua como reflexo de uma representação sem palavras. É como se as criações neuróticas, assim como as invenções perversas e os teatros psicóticos não tivessem encontrado espaço no psiquismo do sujeito que, sem encontrar outros caminhos, busca a saída psicossomática. Nos diz a autora:
Gostaria de propor a seguinte hipótese: as fantasias aterrorizantes que não conseguem encontrar uma saída pelo lado dos sonhos ficam bloqueadas pelo fato de o psiquismo não ter acesso às palavras que poderiam exprimi-las, isso justamente porque estão ligadas a experiências precoces, ocorridas antes da aquisição da palavra (MCDOUGALL, 1996, p. 61, itálico da autora).
Assim, McDougall sugere que "o soma se faz ouvir". Para a autora, é como se percepções, sensações corporais e afetos que normalmente reclamam ruidosamente o acesso à representação, se encontrassem excluídos da psique. Sugere, então, que é como se o indivíduo fosse um ator desprovido de texto para a sua representação. Refletindo sobre as postulações freudianas acerca do inconsciente, a autora elabora:
Quando uma representação ejetada do consciente não tem qualquer possibilidade de recuperação sob a forma de sintoma ou de sublimação, podemos verossimilmente falar de privação psíquica. O psiquismo nesse estado vai tentar preencher o vazio assim criado. Para consegui-lo vai reduzir-se a utilizar mensagens primitivas, sinais de ordem somatopsíquica, como durante toda a primeira infância. O infans não possui a capacidade de empregar o pensamento verbal e, no caso de a função maternal de paraexcitações fracassar, terá de enfrentar de outra maneira as tempestades afetivas ou os estados de excitação ou de dor impossíveis de elaborar. Constatamos então que o psiquismo está realmente privado é de palavras, ou, mais exatamente daquilo que Freud chamou de representação de palavras (1915). No lugar destas, o psiquismo dispõe apenas de representação de coisas (MCDOUGALL, 1996, p. 65, itálico da autora).
Observamos na clínica psicanalítica pessoas com manifestações sintomáticas ligadas a diversas ações no corpo. Para Júlia Kristeva (2002), é justamente a dificuldade de representar que indica o denominador comum do que denominou como "as novas doenças da alma", destacando-se os narcisismos feridos, as falsas personalidades, os estados-limite e os estados psicossomáticos. Kristeva (2002, p. 14) ressalta: "o corpo conquista o território invisível da alma. Daí o ato". Para a autora, é preciso se deixar levar pela comunicação sensorial, não verbal, para se ter acesso à vida psíquica inconsciente do paciente.
Kristeva (2002) ressalta que, apesar das diferenças características que marcam as sintomatologias, as "novas doenças da alma" têm em comum a marcada impossibilidade do indivíduo em representar. Seja através de um mutismo psíquico, de sensações de vazios, ou de artificialidade, a carência de representação psíquica entrava a vida sensorial, sexual e intelectual, podendo também prejudicar o funcionamento biológico, defende a autora. Complementa seu pensamento afirmando que, ao ouvir o paciente em toda a sua singularidade, o analista acaba descobrindo uma "nova doença da alma", sob distintas formas de disfarce. É como se o paciente clamasse ao analista uma restauração da vida psíquica para permitir ao corpo falante uma vida melhor.
Recorrendo a André Green (1982), somos levados a refletir que as palavras, quando cumprem sua função simbólica, revelam-se representações de ideias fortemente carregadas de afeto. A isso, o autor chamou de "discurso vivo". Mas na ausência das palavras, o sujeito precisa recorrer ao funcionamento somático ou a uma descarga na ação. Avaliando fragmentos de dois atendimentos clínicos, Green (1982, p. 175) pondera sobre a defesa contra a representação pelo afeto e a defesa contra o afeto pela representação, concluindo que:
Tudo se passa como se o ego tivesse o poder, ao fazer funcionar os mecanismos de defesa inconscientes, de operar a separação relativa entre o afeto e a representação para que, em nenhum caso, estes pudessem existir na cadeia do discurso.
Um pouco mais à frente, Green (1982, p. 175) também enfatiza que não podemos negligenciar as consequências transferenciais advindas desse tipo de análise. Nos diz ele:
O que faz o analista com seus afetos? [...] Como pedir ao mesmo tempo a mais profunda empatia, a identificação afetiva e o controle da resposta? Não marcar limites para nenhum dos dois é transformar o analista num mago espeleólogo da psique e grande sacerdote da palavra. É também alimentar o fantasma da onipotência analítica que triunfa sobre qualquer estrutura de inconsciente.
Creio que vale aqui retomarmos uma provocação de McDougall (1996), quando ela indaga: com que tipo de escuta o psicanalista ouve as mensagens mudas do soma? Os terrores vividos no estado pré-verbal, nas vivências mais primitivas do indivíduo, deixam suas marcas em experiências extremamente corporais, que retornam em forma de defesa quando o indivíduo se encontra em situações de desamparo, de regressão psicossomática.
Pensando sobre como o psicanalista ouve as comunicações tácitas expressas através do corpo de seus pacientes, penso que é importante retomarmos Ferenczi ([1927] 2011, p. 31), quando o autor nos fala sobre o tato psicanalítico como a faculdade de "sentir com" o paciente.
Mas o que é o tato? A resposta a esta pergunta não nos é difícil. O tato é a faculdade de "sentir com" (Einfühlung). Se, com a ajuda do nosso saber, inferido na dissecação do nosso próprio eu, conseguirmos tornar presentes as associações possíveis ou prováveis do paciente, que ele ainda não percebe, poderemos não tendo, como ele, de lutar com resistências adivinhar não só seus pensamentos retidos, mas também as tendências que lhe são inconscientes (Itálico do autor).
Se considerarmos como verdadeira a hipótese de que o analista precisa sentir em si o vazio que o paciente experienciou, podemos também pensar na postulação winnicottiana de que o analista precisa se colocar tanto no lugar de mãe-ambiente quanto de mãe-objeto, proporcionando ao indivíduo a vivência de uma experiência de mutualidade e confiança. Para Winnicott (1975), a comunicação entre a dupla analista-paciente precisa ter a força da bilateralidade: se, por um lado, o paciente comunica suas angústias seja de forma verbal, seja de forma silenciosa ou somatizada o analista carrega em si a importância da função especular, traduzindo e proporcionando sentidos ao paciente.
Feito este breve percurso teórico, a seguir, recorrerei aos fragmentos clínicos que serviram como base para as reflexões aqui apresentadas.
Desaparecer de si
Atendo Júlia, atualmente com 15 anos, há alguns anos. Vínhamos colhendo frutos do nosso trabalho conjunto quando os impactos da pandemia de covid-19 lhe atravessaram da forma mais avassaladora possível. Seu pai, profissional da área de saúde, foi uma das vítimas em meio ao assombroso número de mortos em nosso país. Atropelada pelos acontecimentos, Júlia se viu caindo num espaço sem fim, quando seu pai não mais voltou, após ter saído de casa com uma tosse que o deixava muito cansado. Seu pai, seu herói que há poucos meses havia ajudado os vizinhos a escapar vivos de um devastador incêndio doméstico, resistiu ao fogo, mas não resistiu à falta de ar. Naquela manhã, quando seu pai saiu de casa para ir ao médico, Júlia não pôde sequer supor que não o veria mais. Internou, entubou, não voltou.
Diante das inúmeras angústias irrepresentáveis que a morte do pai lhe suscitou, Júlia recorreu a um sintoma que já lhe era conhecido: tinha dificuldades em reter os alimentos, numa oscilação sem fim entre vômitos e diarreias. Frente à impossibilidade de elaborar a realidade, seu corpo atuava onde a representação em palavras não lhe era possível.
Júlia, que já carregava em sua história uma frágil constituição egoica, se viu novamente diante de ansiedades primitivas com as quais nosso trabalho clínico já havia encontrado formas de dar continência. Iniciamos nossos encontros, anos atrás, na clínica presencial e, com a chegada da pandemia, passamos a ter sessões on-line . Mas após a morte do pai, que partiu sem a possibilidade de uma despedida, de um último olhar, Júlia passou a não mais ligar a câmera, nem nas sessões comigo, nem nas aulas on-line da escola. Ao não suportar ser vista através da câmera, penso que me comunica em silêncio a falta que ser vista por seu pai lhe faz.
Apesar de precisar manter seu corpo invisível, Júlia demanda que meu corpo lhe esteja visível, ativo, vivo. Sua câmera não é ligada, mas a minha é. Ela me vê durante a sessão inteira, mas falo olhando para o print de um desenho que a representa na tela. Mesmo diante de uma imagem, mantenho o olhar fixo na tela, indicando que a vejo, mesmo quando ela sente o desamparo de não se sentir vista pelo olhar constituinte de seu pai.
A cada semana, a tela de seu aplicativo de conversas me apresenta uma nova imagem. Personagens variados do universo de mangás. Conversamos sobre os personagens que a representam na tela, sempre guerreiros ou guerreiras que arduamente mudam a dinâmica do mundo no qual habitam. Heróis e heroínas transgressores, que teimam em sobreviver.
Ao retomar sua antiga dinâmica corporal de não conseguir reter os alimentos que ingere, Júlia me comunica tacitamente seus medos de desintegração. E da mesma forma o faz quando precisa recusar ser vista pela câmera. Seu corpo, apesar de invisível, segue a serviço da comunicação que lhe é possível por ora. Curiosamente, apesar de não ligar a câmera, Júlia me descreve espontaneamente suas mudanças corporais: o irregular ciclo menstrual, as curvas do corpo de moça que insistem em não chegar, a evolução corporal que sempre lhe parece tardia e demorada.
Retomando as postulações de McDougall (1996), lembro que, ancorada no pensamento winnicottiano, a autora propõe que um corpo sofredor é uma tentativa desesperada do indivíduo em constituir um objeto transicional em sua própria pele. McDougall (1996, p. 170) propõe que, através das manifestações corporais, o sujeito tenta se sentir vivo. A autora, então, elabora: "um corpo que sofre é um corpo vivo".
"Ouvindo" Júlia em toda a sua singularidade, percebo que, através de suas manifestações corporais, Júlia me "fala" de seus desamparos. Parafraseando David Le Breton (2018), através de seu corpo ela me fala seus impulsos de "desaparecer de si mesma", como uma tentativa primária em controlar uma existência que lhe foge. Podemos pensar na problemática alimentar como uma tentativa de constituição de um objeto transicional, mas diante da impossibilidade de tal constituição, a comida e o corpo se limitam a ser objetos transitórios repletos de ambiguidade, que não tranquilizam tal qual um objeto transicional o faz.
Mas penso que, assim como seu corpo fala suas angústias irrepresentáveis através de vômitos e diarreias inesperados e da necessidade de ficar invisível diante das câmeras, Júlia também clama por comunicações de pulsão de vida emanando do meu corpo, quando me pede para que a minha câmera fique ligada. Em uma determinada sessão, especialmente mais difícil para Júlia, além de não conseguir ligar a câmera, Júlia também não abriu o microfone. Na curiosa dinâmica que se estabeleceu nesse encontro, ela me escrevia pelo chat da plataforma, enquanto eu a respondia com minha câmera e microfone abertos. Foi uma sessão intensa e densa, ela escrevia e eu a respondia com um discurso vivo, uma presença viva.
O corpo do paciente fala o tempo todo na dinâmica transferencial. Seja presencial ou on-line. Mas o corpo do analista também fala, devolve, dá sentido, ressoa. Em minha dinâmica com Júlia, meu corpo tem a importância da função especular, ajudando-a na atribuição de significados e sentidos. Apesar de sua câmera desligada, eu a vejo, mesmo, quando sem perceber, ela anseia por desaparecer de si mesma.
Para finalizar, algumas considerações adicionais
Balint (2014) fala de um "novo começo" proporcionado pela análise. Um novo começo que visa a elaboração da "falha básica" ocorrida na infância. Isso equivale a dizer que o analista se oferece como objeto primário na relação transferencial, representando para o paciente o esperado encontro com um ambiente suficientemente bom.
Em nossa caminhada, Júlia e eu estávamos indo ao encontro da sua falha básica e dos seus possíveis recomeços quando a pandemia de covid-19 e a repentina morte de seu pai lhe (re)intensificaram suas angústias mais primárias. Penso nas minhas tentativas de demonstrar a Júlia que a nossa dinâmica transferencial pode suportar quantos recomeços forem necessários. Relembrando Winnicott ([1964] 2007), a regressão pode e deve ser vista pelo analista com a expectativa de que surjam condições novas, oferecendo uma nova chance para que o desenvolvimento ocorra.
Iniciei este texto enfatizando a importância da postulação freudiana de que o ego é, antes de tudo, um ego corporal. Procurei compartilhar fragmentos clínicos que indicam a importância dos sintomas psicossomáticos e das comunicações não verbais no setting analítico. Ouvir as mensagens mudas do soma é estar aberto a ouvir o paciente em toda a sua singularidade, ouvindo suas angústias mais indizíveis.
Masud Khan (1984), considerado um dos herdeiros teóricos do pensamento de Winnicott, propõe que o analista pode e deve se predispor a sentir em seu corpo tudo o que emana do corpo do paciente. Ao defender a ideia de que o analista precisa ouvir com os olhos, o autor propõe:
Ouvir com os olhos diz respeito a conhecer o outro através da experiência visual que temos dele ou dela. Não creio que esse tipo de trabalho clínico seja possível fora de uma simpatia positiva e explícita pela pessoa do paciente e uma grande consideração pela sua presença corporal. Nestas circunstâncias, se não olhamos para um paciente e o, ou a, reconhecemos, falhamos no nosso empreendimento (KHAN, 1984 p. 304).
Para Khan, o analista precisa desempenhar três importantes funções: conhecer o paciente, experimentar os sentimentos oriundos da dinâmica transferencial e se prestar a ser um ambiente suficientemente bom para o paciente. Nessa dinâmica, considerando a importância dos três pilares pontuados por Khan, assim como as importantes ponderações dos demais autores aqui citados, espero ter atingido a expectativa de compartilhar minhas reflexões sobre a importância da capacidade do analista em "sentir com" o paciente, ouvindo os ecos da memória corporal que se presentifica na transferência. Sob essa perspectiva, o analista precisa estar atento e aberto a ouvir não somente o que é dito, mas precisa sobretudo estar disposto a "ouvir" os desamparos indizíveis que não conseguem ser ditos, apenas atuados.
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Recebido em: 10/11/2021
Aprovado em: 18/11/2021
SOBRE A AUTORA
Márcia Alves da Rocha
Bacharel em comunicação social.
MBA pela Fundação Getúlio Vargas.
Pós-graduada em gestão e recursos humanos pela PUC-RJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professora do curso de Formação Psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Integrante do Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Integrante do Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância (NEPsI) do CBP-RJ.
Coautora do livro Transexualidades: reflexões psicanalíticas sobre gênero e Édipo.
Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).
E-mail: marcia_a_rocha@hotmail.com
1 Trabalho apresentado no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Para além da pandemia: ecos na psicanálise, realizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise Seção Rio de Janeiro, de 4 a 6 nov. 2021, por meio da plataforma Zoom.