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Estudos de Psicanálise

 ISSN 0100-3437 ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.56 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

A língua não coincide conosco: elementos de indeterminação

 

Language does not coincide with us: elements of indeterminacy

 

Scheherazade Paes de AbreuI, II

I Universidade Federal de Minas Gerais
II Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Este artigo propõe o exercício de aproximação entre psicanálise, história e linguagem. O ato de contar algum tipo de história e as paráfrases da vida cotidiana fazem parte de construções na análise – operadores pelos quais o analista poderá levantar a história de vida do analisante. A história de vida de cada um é escrita a partir de elementos de indeterminação, ou seja, é a experiência da palavra conhecida e de que se está privado, o desamparo diante do que é contraído, a mudez no retorno de campos de guerra, o testemunho da ausência, e elementos que provém de resíduos. Em outras palavras, a história de vida não coincide conosco, de modo que podemos conhecer o seu abandono na experiência de análise.

Palavras-chave: Linguagem, Construções na Análise, História de Vida, Inconsciente atemporal.


ABSTRACT

This article proposes an exercise of approximation between psychoanalysis, history and language. The act of telling some kind of story, and the paraphrases of everyday life, are part of constructions in analysis – operators through which the psychoanalyst can survey the patient's life story. The life story of each one is written from elements of indeterminacy, that is, it is the experience of the known word and the word of which one is deprived, the helplessness in the face of what is contracted, the muteness in the return of war camps, the evidence of the absence, and elements that come from residues. In other words, the life story does not coincide with us, so that we can know its abandonment in the experience of analysis.

Keywords: Language, Constructions in Analysis, Life History, Timeless Unconscious.


 

O nome estava na ponta de sua língua,
mas ela não conseguia encontrá-lo.
O nome flutuava em torno de seus lábios,
estava bem perto dela, que o sentia,
mas não conseguia recuperá-lo,
colocá-lo novamente em sua boca,
pronunciá-lo.

Quignard, 2018, p. 33.

 

Para começar, é preciso dizer um pouco do texto O nome na ponta da língua, de Pascal Quignard (2018, p. 21). Onde então reside o inferno?

Colbrune, que nem dormia mais, bordava para ganhar a vida e amava Jeûne. Para conquistar o amor de Jeûne e ser sua mulher, faz um pacto com o senhor Heidebic de Hel em troca de uma cinta que não conseguiu bordar para Jeûne. O compromisso feito era a promessa de que não se esquecesse do nome de Heidebic de Hel, caso contrário deveria viver ao lado do senhor. Ao final do nono mês, Colbrune se lembrou do dia e da promessa, e estava quase a ponto de se lembrar do nome, que fugiu de seu pensamento. Ficou transtornada, se lembrou dos gestos, da capa branca e do cavalo negro, das palavras, mas não se lembrava do nome. Então, perdeu o sono, chorava todas as noites e emagreceu, a tristeza invadiu sua vida. Jeûne perguntou o que estava acontecendo.

Essa experiência da palavra conhecida e de que se está privado é a experiência a que nossa humanidade esquecida, estranhamente retorna. [...] É a experiência em que os nossos limites e a nossa morte se confundem pela primeira vez. É o desamparo próprio da linguagem humana. É o desamparo diante do que é adquirido. O nome na ponta da língua nos lembra que a linguagem não é, em nós, um ato reflexo. Que não somos bichos que falam tal qual veem (QUIGNARD, 2018, p. 55).

A leitura dos textos de Walter Benjamin que Agamben (2017, p. 36) apresenta em Língua e história estabelece relações entre história e linguagem. A ausência de fundamento do ato de fala funda a história, pois a condição histórica do homem é inseparável de sua condição de ser falante e está inscrita na forma de acesso à linguagem. Ou seja, o acesso à linguagem é mediado por histórias. História e significação se produzem, mas atingem uma condição pré-histórica, em que não existe ainda a dimensão do significado, mas apenas o puro som.

Temos aqui, de forma similar à prosa, que a história também consiste em perecer. O confronto com a história se satisfaz somente com a consumação da própria história. É preciso dizer que se trata de uma história que já não pressupõe, sem transmissão, sem gramática e repousa na passagem. A ideia de língua que não pressupõe qualquer língua e, tendo consumido em si todo o pressuposto e todo nome, não tem nada a dizer, mas simplesmente fala. Mas, notemos ainda que para Agamben a história é também a infinita descida dos nomes:

Uma vez que o homem só pode receber os nomes, que sempre o precederam, através da transmissão, o acesso a essa esfera fundamental da linguagem é mediada e condicionada pela história. O homem falante não inventa os nomes nem estes emanam dele como uma voz animal: pelo contrário, eles lhes chegam – descendendo, isto é, através de uma transmissão histórica [...]. A razão não pode encontrar fundo nos nomes, como vimos, eles lhes chegam historicamente por descendência. Essa infinita "descida" dos nomes é a história. Portanto, a linguagem se antecipa (AGAMBEN, 2017, p. 35-36).

Nesse sentido, propomos pensar a origem como categoria histórica, mas que não se deixa apreender no plano dos fatos como um determinado acontecimento verificável e nem por isso precisa se apresentar somente como um arquétipo mítico, pois opera antes. Então, é como um vórtice no fluxo do devir, que somente se manifesta através de uma dupla instância de restauração e inconsistência. Na origem, um ponto importante é a intenção pela qual a exposição das ideias se interpenetram e o que satisfaz é a consumação da história, escreve Agamben (2017, p. 207). De fato, um vórtice é um movimento forte e giratório, de disposição concêntrica, espiralada, um turbilhão mesmo, redemoinho, um raio.

O vórtice que Agamben (2018, p. 84-86) conceitua é uma forma que se separa do fluxo da água, uma região autônoma fechada em si mesma e que obedece a leis próprias; entretanto, ainda assim está ligado à totalidade em que está imerso. É feito da mesma matéria-prima de massa líquida que o cerca. "É um ser à parte e, mesmo assim, não há uma gota que de fato lhe pertença" (AGAMBEN, 2018, p. 84). O vórtice como imagem (semblante) da origem separa-se da cronologia inicial. Note-se que a origem é contemporânea ao devir dos acontecimentos, dos quais extrai material e dos quais se faz autônoma. A "arché" origem vorticosa que o método arqueológico procura é um a priori histórico, imanente ao devir e que continua a agir. Por vezes, tão distante a ponto de não se perceber o bulício (ruído).

Neste artigo apresenta-se o exercício de aproximação entre psicanálise, história e linguagem. Essa escrita decorre de observações de que o ato de contar algum tipo de história e as paráfrases da vida cotidiana fazem parte de construções na análise – operadores pelos quais o analista poderá levantar a história de vida do analisante.

O limite da função histórica é a morte, dirá Lacan ([1953] 1998, p. 319) em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Nesse sentido, a função histórica constrói o passado, e a cada instante intervém um sentido. Pois repetir não é encontrar a mesma coisa. Assim, a repetição visa a temporalidade historicizante, ao passo que a pulsão de morte exprime o limite da função histórica do sujeito – ou seja, a morte. Contudo, a morte não como término da vida, nem mesmo como certeza empírica do sujeito, mas como possibilidade. Esse limite está presente a cada instante que a história tem de acabado, assim representa o passado.

Para Soler (2013, p. 58) a função de après-coup permite remanejar o sentido e o presente daquilo que vai se tornar passado e já é histórico. A forma real do passado é aquilo que não pode ser apagado e modificado, que é refratário aos remanejamentos de interpretação e sentido, isto é, resiste à historização. Trata-se daquilo que não se pode apagar nem considerar de outra forma. Ou seja, a morte que está presente a cada instante que a história se acaba.

É tarefa do pensamento arrancar os fenômenos de sua ordem cronológica para restituí-los a uma dimensão de insurgência. Vale lembrar que em Freud ([1920] 2020, p. 111) os processos anímicos inconscientes são atemporais, e isso quer dizer que não são ordenados temporalmente, que o tempo em nada os modifica. Em A pré-história aqui e agora, ensaio do livro Studiolo, Agamben (2021, p. 97) propõe que uma estatueta cruciforme esculpida em mármore no V milênio a.C. é muito mais presente do qualquer objeto presente. Isto é, nos convoca com a força e a violência, à qual nada se compara. Assim, a pré-história se revela com a dimensão original da presença. Desse modo, a pré-história não é uma história mais antiga (original), é a história do ponto insurgente de todo acontecimento. A história de vida contata na análise comporta o inenarrável, escreve Abreu (2020, p. 47), e a possibilidade de morte. Isso ocorre a propósito de algo que se vivencia, que é trauma e, assim, não pode se apropriar de palavras.

As teses Sobre o conceito de história foram o último trabalho de Walter Benjamin ([1936] 2020), escritas a partir de seu tempo, de catástrofes, da resistência e da Segunda Guerra Mundial. Para Benjamin, era necessário fazer a reflexão epistêmica acerca da concepção tradicional do conceito de história. Com a invasão da Polônia em 1939 e parte da Europa ocidental, Benjamin sente que a vida estava em perigo. Exilado em Paris desde 1933, estrangeiro, judeu e de esquerda, foi internado no campo francês de trabalhadores voluntários de setembro até novembro de 1939. Retorna a Paris e continua o trabalho sobre o poeta francês Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), enquanto escreve, entre a primavera e o inverno de 1940, as teses em francês e uma versão censurada em alemão. Os recursos para viver em Paris eram escassos, além disso era preciso obter passagem e visto e fugir para os Estados Unidos. Na fronteira entre França e Espanha, o grupo do qual Benjamin fazia parte foi barrado em 25 de setembro de 1940. Benjamin provoca sua própria morte nessa mesma noite limítrofe, momento em que toma uma dose de morfina. Benjamin envia do fundo do abismo seu testamento de um período terrível – as suas teses. Para Benjamin, é atual não quem marca passo com o seu tempo, mas aquele capaz de estabelecer curtos-circuitos com outras épocas (SELIGMANN-SILVA, 2020, p. 10-11).

Mas notemos que, anteriormente, Nietzsche ([1874] 2017, p. 29-39), diante de um sintoma de sua época e com as palavras de Goethe, começa o prefácio de suas considerações extemporâneas – sobre a utilidade e as desvantagens da história para a vida: " Aliás, odeio tudo aquilo que apenas me instrui, sem aumentar ou estimular diretamente minha ação ".

Em Nietzsche, o ensino sem vivência, o saber que entorpece a ação, a história como excesso de conhecimento, parafraseando as palavras de Goethe, deve ser odiada. É certo que precisamos da história, mas de maneira diferente do que dela precisa o ocioso. Ou seja, com a "força plástica" (NIETZSCHE ([1874] 2017, p. 37), que é a força capaz de transformar e incorporar o passado e o estranho, assim como de reconstituir formas arruinadas, isto é, utilizar o passado para a vida e para a ação, de maneira que o ocorrido se faça de novo história. E extemporâneo é o que ocorre ou se manifesta fora ou além do tempo apropriado ou desejável; que não é próprio ou característico do tempo; inoportuno, intempestivo. Pertence "verdadeiramente ao seu tempo", escreve Agamben (2015, p. 22) na esteira de Nietzsche:

Aquele que não coincide perfeitamente com ele e nem se adequa às suas exigências e é, por isso, nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso, exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e de apreender o seu tempo.

Então, qual é a relação possível com o passado? Em Agamben (2015, p. 31-33), a origem se localiza não apenas no passado, mas é contemporânea ao devir histórico e continua a operar, assim como o embrião continua a agir no organismo maduro, e a criança, na vida psíquica do adulto. Nesse sentido, contemporâneo, é aquele que divide e interpela o tempo, é capaz de transformá-lo e de relacioná-lo com os outros tempos, e de nele ler de modo inédito a história, de citá-la a partir de uma exigência à qual não pode responder, escreve sobre o que significa ser contemporâneo.

Retomemos, então, Pascal Quignard (2018) em O nome na ponta da língua . Colbrune promete a Jeûne a tarefa impossível de tentar bordar para ele outra cinta historiada igual à que lhe contornava a cintura. Lacan ([1971] 2009, p. 15), em O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante, dirá que o trovão é um sinal. Mesmo que não se saiba sinal de quê. Essa é a própria imagem do semblante. Tudo o que é discurso, continua Lacan, só pode se dar como semblante. Colbrune trabalhou por dias, mas não conseguiu reproduzir os motivos que ornamentavam a cinta. O cansaço se juntou à ameaça de ser uma pífia artesã e ser rejeitada por Jeûne: eu o amo, sei bordar, trabalho sem cessar, mas em vão, não consigo. O semblante de autoria rompe-se. Resta o trovão. Pois, como nos diz Quignard (2018, p. 74) "é da própria linguagem que o locutor se descobre subitamente separado, completamente separado". Assim, mostrar-se bordadeira habilidosa no laço com Jeûne, não mais estampava consistência, diante de elementos de indeterminação. Para Lacan ([1971] 2009, p. 122), é no elemento de indeterminação que se mostra o que há de fundamental, isto é, que a relação sexual não é inscritível, fundável como relação.

Estava rubra de excitação. Ele olhou os bordados que ela estava fazendo. Virou-se para ela e tomou as suas duas mãos em suas mãos. Disse que pensava na possibilidade de se tornar seu esposo, mas que impunha uma condição ao casamento. Disse: dizem, Colbrune, que tu és a mais habilidosa bordadeira da cidadezinha de Dives. Serias capaz de bordar uma cinta tão bela quanto esta? (QUIGNARD, 2018, p. 24)

Contudo, é preciso saber sobre ravinamento. É um processo de formação de ravinas [fr.ravine], escoamento erosivo de grande concentração de águas. Serra Fina, localizada nas fronteiras entre três estados, é uma região de formação de montanhas de picos altos, perigos e, note-se, de ravinas. Nesse trecho trata-se de mostrar que Lacan ([1971] 1998, p. 23) em Lituraterra utiliza algumas vezes a ideia de "ravinamento". Na ruptura do semblante emerge o gozo. Lacan dirá: o que se evoca do gozo ao se romper o semblante é isso que se apresenta como ravinamento das águas. Com efeito, a escrita é o próprio ravinamento. A escrita é no real o ravinamento do significado, isto é, aquilo que choveu do semblante como o que constitui o significante.

Em Lacan ([1971] 2009, p. 86) "a escrita é aquilo de que se trata, aquilo de que falamos". A partir do dizer de Quignard, perguntamos: é da própria linguagem que se descobre separado na escrita da história de vida? Toda história é do semblante? De que maneira pensar história e ruptura do semblante?

Em O fogo e o relato, Agamben (2018, p. 28) dirá que a humanidade se afasta cada vez mais das fontes do mistério, porém pode-se narrar a história. De modo que, o que resta é a literatura. Mas até que ponto isso deve ser suficiente? O elemento em que o mistério desaparece é a história, e é um fato sobre o qual se faz refletir, que um mesmo termo (história) irá designar tanto o decorrer dos feitos humanos quanto o que a literatura narra, tanto o gesto do historiador e do pesquisador quanto do contador. Só podemos ter acesso ao mistério, ao enigma, por meio da história, e a história é também aquilo que o mistério apagou. De que maneira um elemento, cuja presença é a prova incontestável da perda do outro, pode dar testemunho daquela ausência? Onde há relato, o fogo se apagou; onde há mistério, não pode haver história.

Gershom Scholem, conta a história transmitida por Yosef Agnon:

Quando Baal Schem, fundador do hassidismo, tinha uma tarefa difícil pela frente, ia a certo lugar no bosque, acendia um fogo, fazia uma prece, e o que ele queria se realizava. Quando uma geração depois, o Maguid de Mesritsch viu-se diante do mesmo problema, foi ao mesmo lugar do bosque e disse: "Já não sabemos acender o fogo, mas podemos proferir as preces", e tudo aconteceu segundo seus desejos. Passada mais uma geração, o Rabi Moshe Leib de Sassov viu-se na mesma situação, foi até o bosque e disse: "Já não sabemos acender o fogo, nem sabemos as preces, mas conhecemos o local no bosque, e isso deve ser suficiente"; e, de fato, foi suficiente. Mas, passada outra geração, o Rabi Israel de Rijin, precisando enfrentar a mesma dificuldade, ficou em seu palácio, sentado em sua poltrona dourada (provavelmente não tinha Zoom como temos no tempo agora), e disse: "Já não sabemos acender o fogo, não somos capazes de declamar as preces, nem conhecemos o local do bosque, mas podemos narrar a história de tudo isso". E, mais uma vez, isso foi suficiente (AGAMBEN, 2018, p. 28).

Para terminar, a história de vida de cada um é escrita a partir de elementos de indeterminação, ou seja, é a experiência da palavra conhecida e de que se está privado, o desamparo diante do que é contraído, a mudez no retorno de campos de guerra, o testemunho da ausência e elementos que provém de resíduos. O que resta é o que se encontra no começo deste artigo. São as palavras de Quignard (2018, p. 55), que nos servirão de pano de fundo para continuar esta investigação, no sentido de que a "língua não coincide conosco", q ue a língua, em nós, seja adquirida. Isso quer dizer que podemos conhecer o seu abandono. Em outras palavras, a história de vida não coincide conosco, de modo que podemos conhecer o seu abandono na experiência de uma análise.

 

Referências

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Recebido em: 10/08/2021
Aprovado em: 26/10/2021

 

 

SOBRE A AUTORA

Psicanalista.
Mestranda em Estudos Psicanalíticos pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

E-mail: scheherazade_abreu@yahoo.com.br

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