43 72O olhar de UlissesA odisseia de todos nós 
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Ide

 ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021

 

CARTA-CONVITE

 

Segunda carta aos leitores: o olhar de Ulisses

 

 

Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira ScappaticciI; Celia Blini de LimaII; Edoarda Anna Giuditta ParonII; Evelyn Finguerman PryzantII; Flávio VerdiniII; Maria Aparecida Angélico CabralII; Luis de Paiva SilvaII; Maria Luiza Lana Mattos SalomãoII; Mariana EizirikII; Orlando Hardt JuniorII; Patrícia Schoueri

EditoraI
Corpo editorialII

 

 

Who amongs the philosophers before me was any way a psychologist?
Before me there simply was no psychology.
(Nietzsche, 1888)

O que podemos fazer para observar, ver o invisível, e depois expor o que vemos
de tal modo que o paciente possa ver o que queremos que ele veja?
Há dois pontos: o primeiro é que tenhamos nós condições de ver;
o segundo, de encontrar uma modalidade de comunicação
capaz de descrever o que vimos ao paciente.
(Bion, 1977, p. 22)

Caro leitor, a Ide, neste momento, convoca seus colaboradores para que juntos possamos empreender um verdadeiro reinício através do olhar de Ulisses, uma forma de indagação utilizada para a reflexão sobre o profundo âmago de nós mesmos desde sempre e na atualidade. Temos como missão estimular o arsenal individual de cada analista, quanto a mitos, poesias, arte, para poder falar de algo inacessível, a mente.

A cultura como modelo iluminou a efemeridade inconsciente da psicanálise desde seu nascimento. A coincidência entre a cena literária/poética e a cena analítica faz parte de alguns dos desdobramentos da condição dada por Freud aos poetas: a de enunciadores de um saber que a ciência tardava a alcançar. No artigo de Freud "Escritores criativos e devaneios" (1908/1996b), somos tocados pela asserção de que o escritor/analisando quer saber de que fontes internas o poeta/analista se alimenta e se reinventa, o quanto é capaz de viver sua emoção e de provocar no leitor as fontes de sua imaginação.

Ao retomar essas questões, é preciso fazer um justo elogio ao lugar da literatura, da arte em geral, na construção da obra freudiana e psicanalítica. Se optarmos por ir mais adiante e investigarmos a metapsicologia e a clínica, tomaremos a literatura como forma privilegiada de inscrição e transmissão do saber inconsciente. Sófocles, Virgílio, Homero, Shelley, Keats, Hopkins, Herbert, Donne, Shakespeare, Milton, Blake, Eliot, Coleridge, Byron, Cervantes, Dante Alighieri, Schiller, Goethe, Rilke - talvez mais importante do que qualquer outra epistemologia, a literatura, a poesia, esteve sempre na retaguarda da psicanálise. Ou, ainda, se constituiu

ecoando a declaração de Shelley, na sua Apologia à poesia, de que "os poetas são os legisladores informais do mundo' ... ou, então, os poetas românticos sendo denominados - por Bion - como os primeiros psicanalistas. (Williams, 2010, p. 140)

A poesia contribui, assim, na aproximação da musa interna que passa a iluminar o caminho do trajeto do herói, do Infante rumo a si mesmo.

O modelo da Odisseia no trabalho psicanalítico é duplo: adota a perspectiva de um vértice histórico, cronológico, com a narrativa do Odisseu de Homero, e também o fluxo de consciência (stream of consciouness) do Ulysses, de James Joyce, na expressividade da própria vida psíquica. Esses dois modelos remetem ao sonho como memória, algo sensorial, o desejo de recordar e de interpretar o ocorrido; e mesmo ao sonho como evolução, o que ocorre no momento. Neste último, sonhar é debruçar-se sobre o desconhecido, abrir uma janela para a infinitude do mundo imaterial; entretanto, é necessário que o observador tolere a dor e seus riscos.

Desde a Antiguidade, filósofos se ocupam da trajetória humana rumo ao autoconhecimento e ao fato de que uma maioria de pessoas teme entrar em contato com sua vida interior, permanecendo assim na superfície de seu mundo psíquico.

No profundo de cada um de nós existe algo que não pode ser ensinado, algo granítico e espiritual, um fatum (fato pessoal ou destino), ou uma resposta pré-determinada para certas questões. Diante de um problema fundamental, uma fala se impõe, "isto sou eu" (Nietzsche, 1886/2014)

Heráclito, filósofo pré-socrático, inspirador de Nietzsche, dizia que, se você procurar, não encontrará as fronteiras da alma (psique), mesmo que viaje por todas as suas rotas, tão profunda essa é. A propósito da observação psicanalítica, Freud ressalta os dotes pessoais de Charcot:

Não era um homem excessivamente reflexivo, um pensador; tinha, antes, a natureza de um artista - era, como ele mesmo dizia, um "visuel", um homem que vê. Eis o que nos falou sobre seu método de trabalho. Costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para aprofundar sua impressão delas dia a dia, até que subitamente a compreensão raiava nele. Em sua visão mental, o aparente caos apresentado pela repetição contínua dos mesmos sintomas cedia então à ordem: os novos casos nosológicos emergiam, caracterizados pela combinação constante de certos grupos de sintomas. (Freud, 1893/1996a, p. 22)

Gostaríamos de concluir esta carta através do olhar do poeta Giacomo Leopardi, no seu "Infinito".

A mim sempre foi cara esta colina deserta e a sebe que de tantos lados exclui o horizonte. Mas sentado e mirando, intermináveis espaços longe dela e sobre-humanos silêncios, e quietude a mais profunda, eu no pensar me finjo, onde por pouco não se apavora o coração. E o vento ouço nas plantas como rufla, e àquele infinito silêncio a esta voz vou comparando: e me recordo o eterno, e as mortas estações, e esta presente e, viva, e o seu rumor. É assim que nesta imensidão afogo o pensamento: e o meu naufragar é doce neste mar. (1819/1972).

Informamos que as propostas deverão ser encaminhadas à secretaria da revista até o dia 11 de junho de 2021, para o endereço fabiana.santos@sbpsp.org.br. As orientações foram revistas e encontram-se em "Orientação editorial e normas para publicação de artigos e resenhas na revista Ide" no final da revista ou no site da sbpsp. Aguardamos as contribuições dos colegas para embarcar nesta estimulante viagem.

 

Referências

Bion, W. R. (1977). Seminari italiani. Burla.         [ Links ]

Bion, W. R. (1992). Cogitations. Karnac Books.         [ Links ]

Bion, W. R. (2000). Cogitações (E. H. Sandler e P. C. Sandler, Trads.). Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1996a). "Charcot". In S. Freud, Obras psicológicas completas (J. Salomão, Trad., pp. Imago. Vol. 3, pp. 21-50). Imago. (Trabalho original publicado em 1893)        [ Links ]

Freud, S. (1996b). Escritores criativos e devaneios. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 9). Imago. (Trabalho original publicado em 1908)        [ Links ]

Leopardi, G. (1972). "Infinito". In H. de Campos, A arte no horizonte do provável. 2. ed. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1819)        [ Links ]

Nietzsche, F. (1888). Ecce Homo - How one became what one is.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2014) Além do bem e do mal. Vozes. (Trabalho original publicado 1870)        [ Links ]

Williams, M. H. (2010). Bion's dream. Karnac.         [ Links ]

 

 

 

Podcast: https://open.spotify.com/episode/3SEg8HBQGaRya4z5Wfg2s4?si=VmVFycxhSIaN0wOeEIO7jQ

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