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 ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021

 

ODISSEIA BRASILEIRA

 

Do português ao "guimarês": considerações psicanalíticas sobre o processo de criação e a obra de Guimarães Rosa1

 

From portuguese to "guimarês": psychoanalytic considerations about the creation process and the work from Guimarães Rosa

 

 

Victor de Jesus Santos CostaI; Ana Maria Vieira RosenzvaigII; Carolina Cardinal Duarte Campaña MaiaIII; Márcia Vieira Santos BernardesIV

IGraduado em Psicologia pela Universidade de Brasília (UNB) e, atualmente, aluno de mestrado do Núcleo de Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) - São Paulo / victor.jsc@gmail.com
IIPsicóloga pela UFRJ, psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela University of East London/Tavistock Clinic, membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) - São Paulo / amrosenzvaig@gmail.com
IIIPsicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos CEP), mestranda em Psicologia Clínica (PUC-SP), pós graduada em Teoria Psicanalítica pela PUC-SP - COGEAE, mediadora de conflitos pela Harvard Law School (FLS) e Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (HSMPSP), bacharel em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) - São Paulo / campanamaia@gmail.com
IVPsicanalista e especialista em Psicologia Clínica pelo Instituto Sedes Sapientiae, mestranda em Psicologia clínica (PUC-SP), graduada em Psicologia pela Universidade Camilo Castelo Branco - São Paulo / marcia.consultoriopsc@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é a reflexão sobre o processo criativo de Guimarães Rosa sob o ponto de vista psicanalítico, a partir da apreciação da vida e obra desse autor, realizada por Dirceu Antonio Scali Jr. em sua tese de doutoramento. Assim, Scali Jr. apresenta a biografia de Rosa almejando apreender a gênese do fenômeno da criação, e como chave de leitura de vértice psicanalítica utilizamos o trabalho de Anzieu (1981), Les Corps de l'oeuvre. Scali Jr. indaga em sua tese: "Quem cria, o Eu pessoa ou o eu-criador?" (2008, p. 10), e objetivamos tencionar essa questão com o processo criativo de Rosa. Entendemos que a vida e obra de Rosa levou-o a escrever de maneira tão singular que lhe permitiu fazer o atravessamento do português ao guimarês, uma linguagem própria que, no nosso entender, tocava a verdade de João Guimarães Rosa.

Palavras-chave: criatividade, literatura, criação, escrita, decolagem


ABSTRACT

This article aims to reflect on the creative process of Guimarães Rosa from a psychoanalytic point of view, from the appreciation of the life and work of this author, carried out by Dirceu Antonio Scali Jr., in his doctoral thesis. Thus, Scali Jr. presents Rosa's biography aiming to apprehend the genesis of the phenomenon of creation and, as a key to reading the psychoanalytic vertex, we use the work of Anzieu (1981), Les Corps de l'oeuvre. Scali Jr. asks in his thesis: "Who creates, the person I or the creator I?" (2008, p. 10), and we aim to contemplate this issue with Rosa's creative process. We understand that Rosa's life and work led him to write in such a unique way that it allowed him to cross from portuguese to guimarês, a language that, in our opinion, touched the truth of João Guimarães Rosa.

Keywords: creativity, literature, creation, writing, take-off


 

 

Criação: decolagem e reparação

Segundo Anzieu (1981), pode-se fazer uma distinção entre criatividade e criação, visto que o estado criativo não necessariamente resulta na criação de obras. Anzieu considera o fenômeno da decolagem como a passagem da criatividade para a criação, e conceitua a decolagem como um salto, uma elevação que transforma o sujeito criativo em sujeito criador de uma obra singular, nova, espontânea, que faz diferença no mundo. Consideramos, também, que a decolagem de Guimarães Rosa se observa no estilo criativo de sua escrita, constituída de linguagem rica e abundante de neologismos e das histórias singulares e excêntricas do sertão mineiro que marcam sua obra. Destacamos, assim, um trecho da tese de Scali Jr. com objetivo de retratar a criatividade de Rosa desde a infância e a necessidade de se isolar para poder criar:

Gostava de brincar sozinho e de Geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-se num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas. (Perez, 1991, citado por Scali Jr., 2008, pp. 15-16)

Anzieu (1981) sugere cinco fases que fazem parte do processo de criação: 1) captura criativa ou saisissement; 2) tomada de consciência do representante psíquico; 3) organização do material criador; 4) escolha de um código; e 5) publicação.

A primeira fase refere-se a um momento de crise identitária que se constitui pela invasão e desproporção entre a intensidade das experiências emocionais vividas e a capacidade de elaborá-las. Tal descompasso produz um estado disfuncional de desorganização psíquica, haja vista a desproporção entre as vivências e a capacidade de elaboração ser intensificada. Nesses momentos, é comum a regressão do sujeito, tanto tópica quanto temporal. São períodos em que traumas antigos são intensamente revividos e não apenas recordados. A crise é sempre uma questão de vida ou morte. É uma situação traumática, pois se refere à instigação do conflito pulsional, isto é, dela o sujeito pode cair doente e morrer. Michel de M'Uzan (1964) considera que a criação surge de uma experiência de relativo surto. O sujeito é capturado por algo que vem de fora ou de dentro e que ultrapassa sua capacidade de adaptação, gerando turbulência, o que sempre representa uma experiência traumática.

A criação é entendida como a manifestação do movimento de superação do estado regressivo que permite a reparação narcísica e de objeto. Toda criação é sempre uma resposta criativa a momentos de crise, ou seja, situações traumáticas, uma vez que põe o sujeito em xeque e pode, muitas vezes, levar à despersonalização. Anzieu considera esse estado de desorganização como um momento psicótico não patológico, pois está a serviço da saúde. Para esse autor, criar é algo arriscado que exige do sujeito não apenas superação, mas condições de suportar a crise. Para isso, são necessárias duas condições psíquicas fundamentais: a flexibilidade do eu, condição de aceitação da dispersão causada pela crise; e a possibilidade de manter a dissociação de uma parte do eu, que se mantém coeso e operante, para se responsabilizar pela criação.

Bion (1962/1994), com sua teoria sobre o pensar, pode nos ajudar a compreender esse estado psicótico não patológico sugerido por Anzieu. O autor inglês propõe um modelo espectral do aparelho mental, que seria composto por uma parte psicótica da personalidade e por uma parte não psicótica, ou seja, uma parte que odeia a realidade e tenta evacuá-la e uma outra parte que é capaz de pensá-la e expandir-se. Os pensamentos não pensados seriam antecessores e a força motriz de criação do aparelho de pensar.

Ogden (2008), em continuidade com as ideias bionianas, lembra-nos de que há uma relação dialética entre o não pensamento e o pensamento. A mente humana operaria em movimento de sístole e diástole, em outras palavras, entre as posições esquizoparanoide e depressiva, entre o não pensar e o pensar. O não pensamento é a alma do pensamento, afinal sem ele não haveria o que se pensar, o que se aprender. Castelo Filho (2015) propõe que, no funcionamento da mente do criador/gênio, a parte psicótica da personalidade está em função da parte não psicótica, enquanto, no esquizofrênico, essa relação se inverteria. Pensamos que o estado psicótico não patológico proposto por Anzieu (1981) assemelha-se ao estado esquizoparanoide vivido pelo sujeito quando é tomado por pensamentos selvagens, e, como nos avisa Bion (1997/2018), ao sermos perturbados por pensamentos selvagens nosso dever é domesticá-los.

Voltemos então a Anzieu (1981). Na criação, que representa a superação dessa crise identitária, o sujeito sai revitalizado, pois reorganizou seu mundo interno. A criação possibilita a reparação narcísica e a reparação dos objetos e é, assim, fator fundamental de saúde. Toda criação serve primeiro a seu criador e, em um segundo momento, quando a obra realizada for compartilhada, ela poderá ser útil aos outros sujeitos do mundo.

A segunda fase do processo de criação é a tomada de consciência do caos interno em que o sujeito se encontra. Relacionamos isto ao depoimento de Rosa sobre sua consciência de angústia e perturbação inerentes ao trabalho criativo:

Ora, uma semana não dá para Rosa caprichar nas suas invenções verbais (há sempre invenções verbais em tudo o que Rosa escreve). Daí a angústia. Rosa confidenciou-me: "- Começo a escrever, um mundo de coisas, ideias, imagens, reminiscências, me acodem. Escrevo cinco, dez, quinze páginas. É preciso reduzir a três. Começo a cortar, começo a corrigir. O meu desejo é então continuar a corrigir até o fim da minha vida. Mas há que entregar os originais. E no dia seguinte começar coisa nova." (Costa, 2006, citado por Scali Jr., 2008, p. 66)

Segundo Anzieu, para enfrentar esses momentos de consciência da crise é de grande importância a existência de alguém que possa exercer o que ele descreveu de função amigo. O amigo é o que acompanha o processo criativo do criador ao ajudá-lo a suportar o caos interno e a enfrentar a desmesura de seu eu ideal. O autor francês lembra-nos de que, para Freud, a pulsão de morte está presente durante todo o processo criativo e, devido à sua agência, há a tendência de o criador aniquilar a própria obra. Por essa razão, é fundamental que todo criador tenha um parceiro, um amigo que o acompanhe nesse processo de criação e contrabalanceie o efeito negativo da realidade psíquica interna dele. Não se pode ser criativo com um superego muito rígido.

Segundo Guimarães Rosa (Scali Jr., 2008), era seu pai quem fornecia elementos e detalhes que compunham as personagens e os enredos de suas histórias. Na tese de Scali Jr. (2008), há várias passagens da correspondência entre pai e filho, as quais nos permitiram observar que Florduardo Pinto Rosa fornecia o material para a criação dos contos e das histórias do filho, ao enviar informações muito específicas de sua terra natal como tipos, costumes, descrição de lugares, cenas, vestimentas, palavras, expressões etc. Nesse sentido, o pai de Guimarães Rosa, ao ser seu interlocutor durante todo o processo de criação, parece exercer a função amigo do grande escritor. Curiosamente, o pai de Guimarães Rosa importunava seu filho por ele ler e estudar, quando criança, em vez de trabalhar.

Lembramos que Chasseguet-Smirgel (1963) propõe, como característica do ato criativo, a função de reparação de objeto e de reparação do próprio sujeito - reparação narcísica. Por esse vértice, pensamos que a obra de Guimarães Rosa pode representar uma reparação de si mesmo e de seus objetos internos, nesse caso, de seu pai, haja vista a evidente contribuição deste durante o percurso de sua escrita.

De acordo com a teoria kleiniana, a criatividade relaciona-se ao sentimento de gratidão e possui seu início na relação básica e primordial entre o bebê e a mãe. Para Klein, as primeiras experiências de gratificação do bebê com o seio bom, por meio da satisfação de suas necessidades, propiciam a internalização do objeto bom e, como efeito, o surgimento da gratidão: "o bebê só pode sentir satisfação completa se a capacidade de amar é suficientemente desenvolvida ... e é a satisfação que forma a base da gratidão" (1957/1991, p. 219). À medida que o indivíduo se sente satisfeito por ter suas necessidades atendidas pela mãe e pode nela confiar, ele é capaz de sentir-se grato e desejar retribuir o que recebeu de bom. Surge, nessa dinâmica psíquica, a primeira manifestação de criatividade como uma resposta à gratificação. Portanto, para Klein gratidão e criatividade estão intimamente ligadas.

Podemos notar a gratidão de Rosa no seguinte trecho:

nós os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que correm por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é de se estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia. (Lorenz, 1994, citado por Scali Jr., 2008, p. 76)

O trecho anterior sugere que a criatividade de Guimarães Rosa está associada à gratidão que sentia por suas vivências no sertão mineiro. Podemos observar a admiração de Rosa pelos sertanejos que contavam lendas criadas, criativas, imaginadas e imersas à realidade cruel a qual estava inserido e que sugere tê-lo aterrorizado na infância. Suas experiências, no entanto, mostram-se integradas à "alma dos homens do sertão", que corre em suas veias e no corpo penetrado, fala-nos da introjeção do objeto bom e de sua identificação com ele, revelando a própria "alma", capaz de enfrentar os horrores, a própria destrutividade e a culpa.

Anzieu (1981) sugere que a identificação heroica, a qual costuma ser com alguma figura grandiosa, surge como uma inspiração que ajuda o sujeito a superar os momentos de crise da primeira fase e favorece a decolagem criativa. Os homens do sertão, citados por Rosa, indicam uma identificação heroica que o ampara amorosamente. Reconhecer-se um contador de histórias multicoloridas, em meio à crueldade do sertão e, em última instância, à própria, revela sua capacidade de reconhecer o objeto em sua totalidade e diferenciar-se dele, usando a escrita como uma solução criativa e criadora, além de reparadora. Elaboram-se, assim, as mais profundas ansiedades da posição depressiva e esquizoparanoide. Todavia, quando o herói escolhido para a identificação se torna um objeto de inveja excessiva, a decolagem criativa fica à mercê da destrutividade. Estamos diante do impedimento ou de um extravio da capacidade de criar. Voltemos a Klein.

 

Inveja em Melanie Klein: criatividade e os extravios da decolagem

Se por um lado o objeto bom é percebido como fonte de criatividade pelo bebê, por outro, ele também pode ser alvo de inveja (Klein, 1957/1991). Klein compreende a inveja como um sentimento raivoso direcionado ao outro que possui e frui de algo desejável. A inveja, se excessiva, poderá causar efeitos danosos sobre a capacidade de criatividade, uma vez que, nos primórdios da vida psíquica, ela é direcionada ao seio bom, ou seja, experiências felizes, vitalizantes e criativas compartilhadas entre a mãe e o bebê. Melanie Klein também sugere uma ligação entre a inveja vivenciada em relação ao seio da mãe e o desenvolvimento do ciúme. O ciúme é baseado na rivalidade com o pai, o qual é acusado de ter levado embora o seio materno e a mãe. Essa rivalidade marcará os estágios iniciais do complexo de Édipo precoce que surge de maneira concomitante à posição depressiva. O bebê invejará as trocas criativas entre o casal e sua autonomia. Todavia, quando a inveja não é excessiva, o ciúme na situação edipiana torna-se um meio de elaborá-la, isso porque os sentimentos hostis não serão dirigidos unicamente ao objeto originário, mas também aos rivais representados pelo pai e pelos irmãos. Assim, o bebê poderá com maior facilidade diferenciar o pai da mãe e estabelecer boas relações com ambos.

Nessa direção, pensamos que a função amigo, já mencionada anteriormente, dá-se pelo fato de o sujeito, por estar mais integrado, poder pedir e receber o amparo do outro, uma vez que ele não estaria preso em uma rivalidade esterilizante. Com um superego menos invejoso, o sujeito poderá reconhecer suas fragilidades e, assim, pedir e assimilar a ajuda dada. Retomamos aqui a passagem de Guimarães Rosa e suas cartas ao pai, pedindo a ele que escreva os detalhes das histórias que lhe contava, quando criança, no bar. Identificamos que Guimarães Rosa, ao reconhecê-lo como contribuidor em seu processo de escrita, pôde lhe dar, de forma amorosa e generosa, um lugar dentro de sua mente e pôde reconhecê-lo como alguém que tem suas próprias histórias e alteridade. Ele não o ataca ou degrada com inveja ou tenta engoli-lo, de maneira voraz, como se tudo fosse feito por ele. Aliás, vemos aqui, também, um pai generoso que atende ao pedido do filho.

Ponderamos, ainda, quanto às contribuições de Anzieu a respeito da decolagem, a necessidade de tolerar a frustração para que ela aconteça. A tolerância à frustração está presente nas ponderações de Klein (1957/1991) quanto à capacidade criativa. Esta autora, ao pensar a frustração, novamente nos coloca frente à capacidade de tolerar a ausência do objeto bom. Assim, para que o sujeito possa "decolar" no seu processo criativo, é preciso acreditar que seus momentos de crise são finitos, e a ausência de experiências prazerosas é temporária. Impõe-se, assim, a crença no objeto bom.

 

Nossas conclusões: do português ao guimarês

Scali Jr., no início de sua tese, pergunta: "Quem cria, o Eu pessoa ou o eu-criador?" (2008, p. 10). Sugerimos a aproximação desse questionamento sobre a autoria da criação às noções de Winnicott (1975) sobre a criatividade originária. Para Winnicott, a criatividade é uma potencialidade inerente à natureza humana que se relaciona à espontaneidade básica e participa da constituição do que será o si-mesmo unitário. A criatividade não diz respeito apenas à produção artística original, mas ao modo como o indivíduo se relaciona com o sentido de realidade que caracteriza cada momento de seu processo de amadurecimento. A criatividade refere-se à capacidade de transitar, ao longo do tempo, pelos vários sentidos da realidade sem perder o contato com o seu mundo pessoal e imaginativo. O indivíduo saudável exercerá sua criatividade com formas mais complexas ao longo da vida. Seu viver criativo se constrói sobre - e a partir da - a possibilidade de exercer sua criatividade originária.

Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim.

...

Vivi no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. (Guimarães Rosa em entrevista ao tradutor alemão, Lorenz, 1994, citado por Scali Jr., 2008, p. 10)

A partir das passagens anteriores, ponderamos a respeito da forma com a qual Guimarães Rosa identificava a impossibilidade de discriminar entre o eu criador e o eu pessoa, ou seja, que a possibilidade de ser criador relacionava-se à possibilidade de ser, e somente a partir desse amálgama seria possível produzir criações e obras literárias.

Outras passagens de entrevistas e cartas do escritor mineiro remetem-nos, mais especificamente, à criação de suas obras e aos estados emocionais vivenciados por ele durante esse processo:

Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de doze novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação. Restava agir. Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, "revendo" paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã. O livro foi escrito - quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas - em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945 foi "retrabalhado", em cinco meses de reflexão e de lucidez). (Carta a João Condé, em: Guimarães Rosa, 1999, citado por Scali Jr., 2008, p. 38)

Eu ando febril, repleto, com três livros prontos na cabeça, um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. Estou apontando os lápis, para começar a tarefa. É coisa dura, e já me assusto, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço. Mas, que fazer? Depois de certo ponto, um livro tem de ser escrito, ou fica coagulado na gente, como um trombo numa veia, pior que um "complexo". Tenho esperança de poder criar coisa nova e diferente, de superar o nosso Sagarana, com histórias e romances mais humanos, mas ao mesmo tempo, mais meta-humanos, mais super-humanos; que sei!?!... O bom seria fazer-se um livro só, de 5.000 páginas, que seria escrito e reescrito, durante a vida inteira. Ou - que beleza! - três gerações de romancista (pai, filho, neto), trabalhando um roman-fleuve, catedralesco, pétreo, trigeracional... (Guimarães Rosa, 1999, p. 363, citado por Scali Jr., 2008, p. 57)

Queria escrever a cada momento. Mas, na fase final, e nas providências e cooperações da mecânica editorial, os dois livros me maltrataram tanto, que foi até demais. Conto a Você que, na última semana, antes de entregar ao José Olympio o "Grande Sertão", passei três dias e duas noites trabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa, sem ver cama: foi uma verdadeira experiência transpsíquica, estranha, sei lá, eu me sentia um espírito sem corpo, pairante, levitando, desencarnado - só lucidez e angústia. Daí, entregues os originais, foi uma brusca sensação de renascimento, de completa e incômoda liberação, de rejuvenescimento: eu ia voar, como uma folha seca. Imagine, eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo, só escrevendo eternamente... (Guimarães Rosa, 1999, citado por Scali Jr., 2008, p. 58)

Essa missiva mostra-nos a forma rigorosa como o autor trabalha na criação de seus contos, bem como a obsessão quanto à melhor construção ou estruturação de suas histórias. Segundo ele, o ideal era escrever um conto e trabalhá-lo a vida toda. Várias edições de suas obras foram modificadas por Rosa que chegava a fazer mudanças profundas nos textos.

A transformação dos contos em Sagarana, por exemplo, foi, de certa maneira, o início desse burilar de ourives da palavra. Guimarães Rosa não se cansava de buscar o mot juste, perfeccionismo esse que o acompanhou por toda a vida. Há de se notar o grau de maturidade crítica sugerido em suas supressões ou rearranjos. Como ele escreve: "em cinco meses de reflexão e de lucidez" (Carta a João Condé, em: Guimarães Rosa, 1999, citado por Scali Jr., 2008, p. 38).

Pensamos, com Anzieu (1981), a necessidade e a intensidade dos trabalhos psíquicos relacionados às circunstâncias da criação presentes nessas passagens. Para esse autor, o trabalho de criação inclui os trabalhos psíquicos do sonho, do luto, do chiste, e estes se integram a cada produção, a cada obra. Todos esses trabalhos se acionam na criação, para lidar com situações críticas que, para o psiquismo, configurar-se-iam em situações de crise. É por esse vértice que entendemos o estado febril que Rosa relata, no momento anterior, à tarefa da escrita. Relembramos que uma das fases do processo de criação refere-se à escolha do código e do material que dará corpo ao trabalho. A compreensão de Anzieu está na possibilidade de dar o estatuto de código a algo que surgiu durante a crise. Em algum momento, as ideias organizam-se em torno desse algo que potencializa e dá origem à concepção da obra. Criar um código é utilizar o que, antes, era marginal, como central e essencial, torná-lo núcleo organizador de uma nova ordem. A esse momento, Anzieu chama de decolagem, ou seja, a originalidade estruturante. Quando do status de desorganização e caos, há o remanejamento que institui um novo estatuto ao material e, dessa forma, a partir do caos, institui o código. O autor francês coloca que é nessa fase do processo de criação que se garante a originalidade da obra.

Relacionamos essa etapa ao que é descrito pela esposa de Guimarães Rosa no trecho a seguir. Rosa escolhe suas vivências pessoais, referentes à infância e à sua vida mais madura no Rio de Janeiro, de onde vai extrair e compor seus textos:

Não para nunca. Em casa está sempre lendo, escrevendo, estudando todo o tempo. [Gosta de] comer bolo e tomar café frio, quando escreve. Andar em fazendas. Uma vez acompanhou uma boiada. Andar de ônibus, de olhos fechados, meditando durante o trajeto. Aos domingos, de ônibus, costuma ir para longe. Usina, Jacarepaguá. Gosta ainda de viajar pelo Brasil, que conhece muito bem, e de ficar em casa, deitado numa rede, olhando o mar do Arpoador. Daqui da varanda. [Não gosta de] grã-finagem e vida social intensa, o que não quer dizer que não saiamos esporadicamente. (Costa, 2006, citado por Scali Jr., 2008, p. 70)

Podemos nos amparar em Figueiredo (2019) para uma melhor compreensão sobre a escolha do código que se instaura a partir do caos criativo. Figueiredo propõe que é preciso criar um idioma próprio, capaz de dar sentido às experiências fragmentadas inerentes ao processo criativo, e a cada obra estética ou teórica esse idioma é (re)descoberto e (re)criado pelo autor. Essa ideia está em consonância com o princípio do funcionamento psíquico, proposto por Ogden (2008), segundo o qual o pensar é impulsionado pela necessidade humana de conhecer a verdade, a realidade de quem se é e acontece em sua vida.

Alguns trechos de entrevistas de Rosa e considerações de Scali Jr. (2008) mencionados a seguir fazem-nos pensar que uma leitura possível do conjunto da obra de Guimarães Rosa é a incessante busca desse autor pelo seu idioma próprio, ou seja, o "guimarês":

Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se dizer que daí não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia. (Lorenz, 1994, citado por Scali Jr., 2008, pp. 76-77)

Neste livro [Terceiras estórias], o experimentalismo do autor chega a preocupar alguns críticos, que temem que o autor se torne tão hermético a ponto de ficar ininteligível. O livro apresenta dois índices diferentes, quatro prefácios e quarenta e quatro contos. O índice tem ainda a peculiaridade de ser disposto em ordem alfabética, com exceção dos contos que ao chegar em J. seguem-se G. e R., ou seja, as iniciais do autor, e continua-se a ordem normal L, M etc. Os experimentos formais são de tal ordem que tornam o livro de difícil compreensão, porém o sucesso de vendas não foi diferente dos anteriores. (Scali Jr., 2008, pp. 72-73)

Chama-nos a atenção como o idioma de Rosa e seus neologismos - que estamos chamando de guimarês - foi se tornando mais original em sua obra. Nessa perspectiva, Scali Jr. (2008) ajuda-nos com suas observações sobre o autor e sua obra. Em Sagarana, a obra do jovem Guimarães Rosa, há o início de sua predileção por neologismos presente já no título, aglutinação de Saga e rana. Sua obra mais famosa, Grande sertão: veredas, é reconhecida pelo estilo único e a presença maciça de neologismos; por fim, em Terceiras estórias, seu último livro, os críticos literários se preocuparam com o experimentalismo do autor ao temer que sua linguagem se tornasse hermeticamente fechada.

Ogden pode ajudar a pensar o guimarês:

as verdades humanas devem ser repetidamente descobertas em novas formas; caso contrário, essas verdades tornam-se clichês que estancam o fluxo da criatividade e do pensar genuínos. A renovação do pensar e da originalidade de expressão são mutuamente dependentes: a escrita é a forma singular de pensamento; e a originalidade escrita é originalidade de pensamento. Conteúdo e estilo não existem um sem o outro. (2014, p. 28)

Aproximar as "verdades humanas", sobre as quais nos escreve Ogden, a nossa própria compreensão em relação a Guimarães Rosa e sua obra faz-nos entender que a obra do autor brasileiro tocava a verdade humana do escritor mineiro. Visto que compreendemos sua produção literária como a que retrata a alma dos homens do sertão, alma de si próprio, verdades inconscientes, advindas de reparações, integrações, cisões, entre outros mecanismos e trabalhos psíquicos mencionados pelos diversos autores citados neste artigo. É a busca do autor por "um idioma próprio" que nos chama a atenção e nos faz pensar ser marca importante de sua originalidade criativa. Identificamos, nesse aspecto, a ideia de que a apropriação subjetiva do vivido e a integração das experiências à personalidade poderiam se associar à necessidade da criação de algo tão particular que, em suas obras, aparece como um idioma próprio e original, que poderia tornar-se hermético a seus leitores.

Por fim, gostaríamos de propor um paralelo entre a busca por um idioma próprio empregado por Guimarães Rosa e a narrativa contada pelo personagem Odisseu na obra Odisseia. Sugerimos que Odisseu, ao contar suas aventuras aos feácios, antes de descrever acontecimentos, está transformando sua longa e fantástica viagem de retorno a Ítaca em uma narrativa que contemplava suas experiências emocionais. Assim como a viagem de Odisseu foi marcada por idas e vindas, perigos, sofrimentos e - por que não - prazeres, a busca de João Guimarães Rosa por seu idioma próprio parece-nos também abarcar essas características. Como exposto anteriormente, o processo criativo de Rosa era vivenciado por turbulentos estados emocionais. O escritor encontrava-se imerso em uma tormenta de afetos que o compeliam à dura tarefa de escrever. Imaginamos que o próprio escritor sintetizou, de forma poética, sua atitude perante esses estados ao escrever em Grande sertão: veredas que o que a vida quer de nós é a coragem de vivê-la (Rosa, 1956/2019).

 

Referências

Anzieu, D. (1981). Les Corps de l'oeuvre. Gallimard.         [ Links ]

Bion, W. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In W. Bion, Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. (2018). Domesticando pensamentos selvagens. Blucher. (Trabalho original publicado em 1997)        [ Links ]

Castelo Filho, C. (2015). O processo criativo: transformação e ruptura. Blucher.         [ Links ]

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1 Este artigo possui como origem o trabalho desenvolvido pelos autores no curso de pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), na disciplina "Da criatividade à criação: oportunidades, impasses e extravios", ministrada pelo Prof. Luís Cláudio Figueiredo.

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