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Ide

 ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021

 

ILUSTRACÕES

 

Gente di altri tempi: Abramo Tancredi Fossi, detto abra1

 

 

Paolo Scappaticci

Advogado pela Facoltà La Sapienza di Roma e pela Faculdade de Direito do São Francisco. Mediador. Ministra cursos sobre a Divina comédia, de Dante Alighieri. Escreveu textos sobre vários artistas, como Pasquale Fosca e Dante - São Paulo / paoloscappaticci@aasp.org.br

 

 

A imagem que ilustra a capa deste número da Ide, revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), é uma reprodução das obras ficcionais do meu conterrâneo Abramo Tancredi, artista talentoso. Ele era conhecido por todos e, na praça da nossa pequena aldeia (a antiga ágora do povoado, depois fórum romano e sucessivamente piazza municipum), era a figura que você procurava primeiro. Parecia que sua imagem nos animava. Não posso dizer que era seu amigo no sentido estrito do termo, dada a diferença de idade, mas posso dizer que mais de uma vez, disfarçadamente, prestei atenção total às suas palavras e discussões com outras pessoas para ouvir suas interpretações sobre a arte (aquela que frequenta a alma). Eu me apaixonei por sua fantastoria, sua ideia do processo de criação artística, da interpretação da arte e principalmente sua releitura futurista de De Chirico. Minha paixão por sua arte nasceu de imediato, de um quadro que minha mãe comprou por um valor simbólico, porque ele nunca buscou lucro, fortuna econômica. Hoje me esforço por criar uma fundação em seu nome também para agradecer sua companheira de vida, Giuliana Maggiani Fossi, que nos enviou a imagem autorizando seu uso, com a única condição de colocar seu nome na legenda. Se buscarmos um ponto de contato com este número da Ide e seu título, O olhar de Ulisses, como Em busca do tempo perdido, é óbvia a união umbilical entre Ulisses oral homérico, Kafka, Joyce, Proust, Primo Levi (viajando para o nada) e o trabalho de Abramo Tancredi com uma pitadinha de On the road, de Jack Kerouac, e O poder do sonhar, de Carlos Castaneda.

Abra, como era chamado por todos, nasceu em Arpino em 1933 e faleceu ali em 2014, seu pai era membro de uma família nobre de Florença. Estudou no prestigioso Liceo Classico Tulliano di Arpino e seguiu os estudos de direito em Roma para, todavia, dedicar-se à sua paixão verdadeira e interior pela arte. Depois se transferiu e continuou seus estudos nas cidades de Camerino e Urbino, verdadeiras joias da Idade Média. Por ser o aluno com maior número de anos fora do curso (inscrito na faculdade sem se formar), era também conhecido como o duque de goliardia romana com o nome de Abra XXIII, o último dos paracelsos da festa dos calouros.

Iniciou sua atividade artística em tempo integral no início dos anos 1960, abandonando-se de corpo e alma ao voo mágico entre fantasia, efêmero, gastronomia e boêmia, que o levará a discutir a obra de De Chirico com sua série artística Profanação da metafísica de De Chirico, passando pela gastronomia e outras coisas.

Em sua pintura transparece o interesse por máquinas antigas e modernas, comida antiga, principalmente latina, que para ele poderiam se fundir efusivamente em sua fantástica visão artística de sua jornada pela vida.

 

 

Ele participou de importantes exposições internacionais, incluindo a Bienal de Design de Cleveland, a Bienal de Cannes Graphics, o Gold Alamo Award em San Antonio, no Texas, com exposições pessoais no Japão e nos Estados Unidos. Para mais informações, vide a revista Le Arti, edição especial decretada na XXXVII Bienal de Veneza.

Sua companheira de vida quis nos presentear com algumas lembranças e considerações da arte de seu companheiro e dar algumas imagens presentes em suas memórias vividas em primeira mão.

O ateliê de Abra está empoeirado nas poderosas paredes ciclópicas da arcaica aldeia de Arpino, e é aqui que a fantastoria nasceu na década de 1960, antecipando em uma década as profanações da arte internacional.

Entrar no estúdio é mergulhar num mundo mitológico e ao mesmo tempo histórico; a imagem se confunde com as visões de seu humor.

Sua obra tende a se sobrepor a tempos históricos, fazendo coincidir acontecimentos distantes tornando-os imediatos, com insight e imaginação fervorosa sempre voltados para a abordagem simultânea.

Abra molda a realidade com sua fantasia; o conceito de espaço-tempo é cancelado, e os eventos históricos se juntam e ganham vida por meio do conhecimento "atualizado" do progresso científico.

As telas, que mostram situações e temas ousados, estão sempre preparadas para as artes figurativas em um período que vai além da representação da realidade, e os movimentos artísticos são projetados preferencialmente para o mundo da abstração.

As cores variáveis obtidas com efeitos alquímicos particulares transformam as áreas sombreadas em luminescências vívidas, e é assim que as profanações e a fantastoria ganham vida.

Soldados de César com rifle, Júlio César joga fliperama, Jesus foge dos soldados romanos em motocicletas, O primeiro romano na Lua, dedicado a Collins, o astronauta "nascido" em Roma, que pousou na Lua como um conquistador centurião e ergue a bandeira romana, Caixa de Pandora, usando o pote de ketchup de Andy Warhol como recipiente, As profanações da metafísica, Os selos do Império Romano... Inserido em catálogos nacionais e internacionais, participou de importantes exposições incluindo Dallas (Texas), Londres e Cleveland (GB), Paris (França), Nova York (EUA), Osaka (Japão). A última em Atlanta em 1996 em ocasião da Olimpíada nos Estados Unidos. Assim, sua obra tem atraído a atenção dos críticos mais atentos, seguindo uma nova dimensão e nova originalidade.

Mas por que sugeri e ofereci a imagem da obra fantastoria de Abra para ilustrar esta capa da revista Ide? Na minha busca de respostas e liberdade na arte, nada como a fantastoria, a meu modesto ver, para sintetizar bem o processo evolutivo do inconsciente coletivo assim como eu o percebo.

É desse inconsciente coletivo, sempre segundo meu modesto parecer, que tratam a Odisseia e a Ilíada, dividido entre a deriva ou uma sistematização. Não a ira de Aquiles d'a Ilíada, não a exaltação da inteligência superior de Ulisses, sua humanidade e ideia de família. Os cânones culturais daquele período eram ainda indefinidos, em busca de um autor, como diria Pirandello, e buscavam se definir e se socializar. Assim, nessa necessidade de busca de um senso e um sentido, de sair da indefinição identificativa de ser "um, nenhum e cem mil" (Pirandello) ou de "ser ou não ser" (Shakespeare), o processo evolutivo da humanidade criou seu primeiro mecanismo de fixação de conteúdos sistêmicos, nascendo assim as obras transmitidas oralmente. Até hoje na Sicília, a vetusta Magna Grécia, se encontram os puparos, uma espécie de teatro com bonecos que os artistas levam de praça em praça e recitam os clássicos, principalmente o Orlando furioso e enamorado. E o prêmio do Oscar para a literatura, Dario Fo com seu Mistero Buffo, nos mostra a transformação da cultura da Idade Média e da linguagem, que passa do latim (das classes ricas) ao vulgar (o dialeto), a linguagem do povo, quase um grunhido ancestral, síntese de várias linguagens que tinham dominado o território. No dialeto italiano encontra-se francês, latim, grego, islâmico, germânico, uma mistura ainda hoje em busca de uma síntese homogênea.

Aquelas obras orais, transmitidas até hoje pelos atuais "cantadores de histórias", e que no tempo iam evoluindo e se enriquecendo de novos aspectos e conteúdos, e ofereciam aquela liberdade criativa que permitia integrar na narração originária novas interpretações, novos sentimentos, novos pontos de vista, até que um dia alguém reduzia e fossilizava essa grande usina nuclear que é o inconsciente coletivo, em um consciente coletivo dotado de nome, início, meio e fim.

As origens dessa modalidade de registro e comunicação inicialmente foram em forma de conhecimento mental recolhido e transmitido pelos poucos possuidores desse conhecimento por meio do uso da palavra. Não é um acaso que a palavra, em um dos textos mais antigos transmitidos até hoje, é considerada a origem do mundo ("no início era o verbo"), como consta na Bíblia, que também originariamente não fugia da tradição e transmissão da comunicação oral.

Todavia, a oralidade e o simbolismo estão voltando, uma vez que a atenção das novas gerações privilegia a escuta e a visão de imagens, com o empobrecimento do intelecto e uma expansão do conhecimento generalístico e generalizado, supérfluo ou muito especializado. Perdemos o prazer de ler uma obra e deixar nosso cérebro viajar pela imaginação. Por isso, a fantastoria.

A palavra é fruto da fusão de dois elementos essenciais de nosso ser: nossa capacidade intelectiva de abstração e nossa capacidade racional de lembrar e registrar fatos anteriores, mas também expressa um conceito muito mais liberatório que se adapta a um discurso introspectivo do sistema homo/humanidade. Uma história fantástica, fantasmagórica, fruto não de uma descrição dos fatos, assim como vividos subjetivamente e transmitidos pelos vencedores em detrimento dos vencidos, uma reprodução manipulada e às vezes até destacada da realidade física da fenomenologia humana.

Em conclusão, a fantastoria é a expressão de uma fonte de cultura em que não há limites espaciais e temporais, que transcende da fisicidade e subjetividade dos fatos para alcançar emoções e conhecimento livre, abstrato, puro. Nesse sentido, um dos maiores filósofos gregos não deixou sua herança cultural esculpida e codificada em palavras impressas, mas nos transmitiu o maior segredo da nossa história: Gnosis teauton ou, em grego antigo, γνῶθι σεαυτόν - "conhece a ti mesmo".

O conhecimento inicia e acaba em cada um de nós, e a exteriorização desse conhecimento tem sua função social na aproximação dos indivíduos e na codificação dos modus vivendi.

Assim, o nascimento da tragédia sofocliana e da comédia aristotélica (depois da tragédia o maior instrumento de transferimento de cultura dos romanos), verdadeiros momentos de catarse (no deus ex machina da tragédia grega ao final feliz da comédia satírica romana e da Idade Média) e de interpretação social da vida por uma inteira sociedade. Até o teatro físico funcionava como centro de agregação e desenvolvimento sistêmico exaltando a atenção da inteira comunidade, que nele se recolhia para aprender sem, todavia, deixar indefesa a acrópole. Um sistema que procurava se conhecer e se reconhecer para ser reconhecido externamente.

E nesse movimento circular, aberto, autopoiético, se encontra a causa raiz que tem levado, desde então, à individuação e fixação dos valores e das crenças das diferentes culturas. E o sistema continua na sua fenomenologia de crescimento, agregando valores, ideias, plus valencias, até se tornar escrita.

E na escrita, instrumento de gravação das lembranças reproduzidas inicialmente de forma oral, não encontra seu fim, mas novas formas de acrescentar, de transmitir e evoluir. Assim, da odisseia de Ulisses (aquele Ulisses que, conforme uma interpretação, volta para sua família ou, ao contrário, continua na sua busca de conhecimento) passamos pela odisseia de Eneias de Virgílio, que chega na foz do rio Tigre e de lá todo um novo sistema será criado, um império originado por lobos. A partir disso, a descida aos inferis da tradição grega e da tradição virgiliana levará Dante Alighieri a percorrer sua odisseia rumo ao grande motor evolucionístico da sociedade e ao conhecimento do verdadeiro eu, o reconhecimento do sistema em que o eu se insere. Uma viagem feita de dor interior e de sublimação, passando pelos vários estados da razão até encontrar São Bernardo, a razão pura kantiana.

Vejam quanta liberdade de interpretação a fantastoria de Abra nos oferece no quadro que ilustra esta revista e as demais obras de sua autoria.

 

 

1 Agradecemos a generosa contribuição da sra. Giuliana Maggiani.

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