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Ide

 ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021

 

ILUSTRACÕES

 

O repoussoir

 

 

Mário Lúcio Sapucahy

Fotógrafo e doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp/Rio Claro) - São José dos Campos / mlsapucahy@gmail.com

 

 

Mas quando a Aurora de belas tranças trouxe o terceiro dia, logo cessou o vento,
sobreveio a calmaria, e Ulisses, desde o cimo de uma onda enorme, avistou,
com penetrante olhar, a terra que estava muito próxima ... assim Ulisses se
quedou arrebatado, ao contemplar a terra e a floresta.

(Homero, Odisseia, Rapsódia V)

Após séculos com um papel apenas secundário, a paisagem, entendida como noção, esquema simbólico da natureza e baseada em regras próprias de composição, teve início nas artes através da pintura holandesa e italiana, entre os séculos xv e xvi, quando finalmente deixou de ser apenas elemento decorativo e assumiu posição central em obras renascentistas e se consagrou, no romantismo, como tema central no desenvolvimento do conceito estético do sublime.

A elaboração das regras da perspectiva garantiu essa evolução e foi determinante para essa mudança de status. Perspectiva é a técnica de iludir o olhar conferindo tridimensionalidade às bases bidimensionais da arte. Mas nem só da perspectiva se valeram os artistas no intuito de criar a terceira dimensão onde ela não existe. O repoussoir surgiu como um recurso de composição que amplia a ilusão de profundidade na tela. O termo, em francês, deriva do verbo repousser, que significa repelir. Geralmente, mas não exclusivamente, o repoussoir é disposto na borda da cena e em tom mais escuro. Ele pode ser representado por uma árvore, uma cortina, ou qualquer elemento criativo proposto pelo artista. O contraste entre os planos aumenta a noção de profundidade, criando a ilusão de que os elementos principais da cena foram empurrados para o fundo. Também auxilia no enquadramento dos elementos principais da cena ao conduzir o olhar do observador das bordas para o motivo central. Pode ainda criar um vetor entre o elemento-chave do repoussoir e a paisagem ou algum elemento em destaque. Em uma paisagem típica, sem o repoussoir, o olhar do observador percorre planos mais próximos entre si, sem muita profundidade.

Obras renascentistas e românticas apresentam esse recurso com maior frequência. A título ilustrativo podemos citar algumas obras do pintor holandês Vermeer em que o repoussoir é utilizado: Leitora à janela, de 1657; Oficial e moça sorridente, de 1658; e Alegoria da pintura, de 1666. Caspar David Friedrich, pintor romântico alemão, também fez uso desse recurso em várias obras em que suas personagens foram pintadas de costas, de forma a conduzir nosso olhar para a paisagem, por exemplo em Der Wanderer über dem Nebelmeer, ou Andarilho acima do mar de névoa, de 1818.

Aprecio esse recurso. O repoussoir me convence de que, se bem usado, ele pode conferir maior eloquência às minhas fotografias de paisagem. Mas devo reconhecer que posso estar sendo iludido por um recurso cuja função é iludir.

 

 

 

Em Lago Llanquihue, Osorno y El Calbuco, os vetores de condução do olhar são as linhas curvas do ondular das águas. Elas nos conduzem para o vulcão Osorno, que está à esquerda, levemente mais iluminado que o El Calbuco, à direita, e nesse vetor cria uma certa tensão abalando a harmonia simétrica entre os dois vulcões no terço superior da paisagem.

Em La Roca y El Calbuco, uma rocha vulcânica expelida pelo Osorno contempla à distância o lago Llanquihue e o vulcão El Calbuco. O recorte vertical estreito aumenta a distância entre o repoussoir e os elementos da paisagem, intensificando um clima de solidão, apanágio das montanhas rudes, intempestivas, eruptivas.

Na foto Baía Redonda, o matacão em primeiro plano ocupa quase um quarto do fotograma, diante dele a Baía Redonda congelada e o silêncio do inverno patagônico.

Na foto Indiana, banco e galhos de uma árvore são os elementos que compõem o repoussoir nessa paisagem urbana da periferia tranquila de Bloomington/in. A solidão aqui se repete.

A única personagem humana dessas imagens está presente nessa foto, mas em escala tão reduzida que dificilmente se distingue na paisagem. Rochas e banco cumprem, nessas imagens, função análoga à dos personagens de Friedrich; além de direcionar o olhar, sugerem um ponto de contemplação. Trata-se de um convite ao observador para empreender a mesma viagem do fotógrafo e se deixar arrebatar pela paisagem.

 

 

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