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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo jan./jun. 2022

 

EDITORIAL

 

Ode ao divino em ti: a travessia do herói entre crença e fé

 

 

Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci

Analista didata e professora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em saúde mental pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp). Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Roma La Sapienza. Pós-doutora pelo programa de psicologia clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). annelisescappaticci@yahoo.it

 

 

- ?Que gigantes? - dijo Sancho Panza.
- Aquellos que ali ves - respondió su amo-de los brazos largos,
que los suelen tener a algunos de casi dos leguas.
- Mire vuestra merced - respondió Sancho - que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas, que, volteadas al viento,
hacen andar la piedra del molino.
- Bien parece - respondió don Quijote - que no estás cursado en esto de las aventuras: ellos son gigantes; y si tienes miedo, quítate de ahí, y ponte en oración en el espacio que yo voy a entrar con ellos en fiera y desigual batalla.
(Cervantes, 1605/2005, p. 111)

No seu tempo, Freud resolveu aprender, de maneira autodidática, espanhol para conseguir ler Miguel de Cervantes. Provavelmente, achou importante ler o original deixando-se transportar pela música das palavras. Penso que esse romance épico não é sobre Don Quixote, mas sobre a tensão entre a dupla que nos habita a alma e a vida, Don Quixote e Sancho Panza, em que somos transportados pela imaginação, folia, objetividade, regras, crença e fé.

Convidada a fazer o comentário do filme È stata la mano di Dio, de Paolo Sorrentino,1 decidi fazê-lo com base no tema da Ide movida pela convicção de que, afinal, todos nós carregamos dentro de nós mesmos nosso próprio mistério, o divino, algo que nunca será completamente conhecido, e, ao mesmo tempo, o profano, o senso comum, o grupo. Ou, ainda, como na frase-prefácio do filme, frase de Maradona: "ho fato quello che ho potuto. Non credo di esse andato così male" ("fiz o que pude. Não acho que fui tão mal"). Essa afirmação põe em pauta, como um augúrio de vida ao espectador no "portal" da exibição, a trajetória rumo ao crescimento. Quando é possível sair da indiferenciação do grupo, que está à espera de um líder, do Messias, movido pelo pressuposto básico de dependência, algo fora do próprio sujeito, ou pelas regras e busca narcísica de perfeição? Quando, enfim, será o encontro consigo mesmo, dentro daquilo que é possível, com suas próprias referências? O aspecto autobiográfico do filme trazido por Sorrentino é um transportar-se como num sonho, num clima onírico, às cenas de sua infância, algo original em si mesmo, aos olhos concomitantes de um adulto ou como dizia Fellini, "Nulla si sa, tutto si immagina" ("Nada se sabe, tudo se imagina"). A autobiografia é autopoiese, é autocriação movida pela arte que pode ser cinematográfica ou, ainda, psicanálise verdadeira. Nietzsche denominou isso "amor fati", ou seja, aceitação lúcida do destino humano, mesmo em seus aspectos mais cruéis e dolorosos.

A escolha do tema deste número se deu inspirada pelas ideias de Michael Eigen, que descreve em seus artigos a angústia de catástrofe pela aproximação de um ritmo próprio de si mesmo. Um "pulsar psíquico" único a cada personalidade, presente desde o início da vida, na oscilação de integração/não integração, e vice-versa, e o terror de não dar conta e sucumbir. A manutenção de um vínculo de Fé ou permanecer na crença, encapsular-se em regras e normas preestabelecidas. A psicanálise desde Freud inclui no(s) nascimento(s) sentimentos e angústias ligados ao medo de estar morrendo. Se alguém se amortece ou se amortece para sobreviver, pode ter ansiedade de tornar-se mais vivo, ansiedade de vitalidade.

Michael escreveu-me em seus emails: "Nós, de certa forma, nascemos e morremos por toda a vida. E somos uma mistura de liberdade e escravidão de muitas maneiras. Até mesmo sermos tiranizados por nós mesmos". Eigen nos brinda com uma entrevista que abre nossa Ide.

Bion em sua autobiografia, The long weekend (1982), conta que na infãncia, junto com sua irmã, cunham um personagem influenciados pela maneira com a qual o som do início do "Pai nosso" em inglês, "Our father who art in heaven", ressoava aos ouvidos de uma criança: "Arf Arfer", um personagem que surge indicando a aproximação de momentos tão temidos, tem a voz de um trovão ou ainda as asas negras fantasmagóricas da fantasia. Nesse trecho, Bion perscruta a conversa de seus pais, vislumbrando de modo sensível a atmosfera emocional que transparece. Parece estar exposto ao funcionamento mental de sua família. Esse diálogo apreendido pelo pequeno Wilfred aborda a presença de algo que permeia misterioso, uma luz, quem sabe a musa inspiradora e a impossibilidade/possibilidade de apreensão humana.

Um dia estávamos todos juntos, cantando um hino, "Às vezes uma luz surpreende o cristão quando ele ora". Minha mãe disse ao meu pai, deixando de lado o seu livro de hinos: "Eu acho que nunca ouvi falar de alguém que tenha tido essa experiência, você já, Fred?" Ela parecia triste. Depois de pensar por um momento, meu pai respondeu, pouco à vontade: "Sim, acho que sim, mas eu não tive".

Eu estava assistindo, ouvindo atentamente. Por que eles estavam tão tristes? Coloquei minha mão na de minha mãe para confortá-la. Eles não tinham até aquele momento notado minha presença. O feitiço foi quebrado; minha mãe acariciou meu cabelo, e o assunto não foi retomado. Estranho. Muitas vezes me perguntei qual era a questão.

"Por que você está triste, mamãe?" Perguntei-lhe mais tarde; ela riu dispensando a sugestão. "Sim", eu insisti, "você sabe - as surpresas de luz", eu lembrei a ela.

"Algum dia você vai entender - quando você for adulto", disse ela.

"Mas", eu insisti, "você é adulta e disse que não entendeu." Ela corou um pouco e riu. Aquela risada desconfortável. (Bion, 1982, p. 24)2

Como na música Fantasia Opus 17, escrita por Schumann em 1836, quando separado de sua amada Clara, o poeta nos fala de um momento maior de inspiração. A vida mental se encontra por meio da arte entre a sonata e a rapsódia. E por que não lembrar outras fantasias inesquecíveis, como no filme de Walt Disney de 1942, em especial, a cena do Aprendiz de feiticeiro? Ou nas estrofes da música Sem fantasia (1968), de Chico Buarque, em que o protagonista parece aconselhar-se com sua musa em diálogo imaginário?

Um dos tantos musicais baseados numa releitura da obra de Cervantes, Don Quixote, The man of la Mancha estreou em 1965 na Broadway, com texto de Joe Darion e música de Mitch Leigh. Jacques Brel realizou em 1968 uma adaptação para o francês e levou o musical à cena na Bélgica e na França. O tema mais conhecido desse musical é, sem dúvida, The impossible dream, que Brel adaptou e intitulou La quête. Esta canção tem tido ao longo do tempo várias versões, sendo uma delas em português. Essa adaptação para a nossa língua foi escrita por Ruy Guerra, autor do "Fado tropical", popularizado por Chico Buarque.

"Sonhar mais um sonho impossível/Lutar quando é fácil ceder/Vencer o inimigo invencível/ Negar quando a regra é vender..." (Guerra & Hollanda, 1972). Esta é a versão de Impossible dream, cantada por Maria Bethânia, imortalizando nossas próprias infâncias.3 Agradeço aos nossos leitores, aos nossos autores, a equipe editorial e a todos que colaboram com a Ide, mantendo, enquanto ainda brilhar, a chama acesa de nossos sonhos impossíveis, num voto de fé e esperança: não costuma falhar...

 

Referências

Bion, W. R. (1982). The Long Weekend 1897-1919: Part of a Life. Karnac.         [ Links ]

Cervantes, M. S. (2005). El Ingenioso Hihalgo Quijote de la Mancha (Vol. 1, cap. 8). eBooksBrasil. (Trabalho original publicado em 1605)        [ Links ]

Guerra, R. & Holanda, C. B. (1972). Sonho impossível. In O Homem de La Mancha (Musical). (Música original de J. Darion & M. Leigh)        [ Links ]

Holanda, C. B. (1968). Sem fantasia. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=CHwADeJBHoY        [ Links ]

 

 

1 Grupo de Psicanálise de Marília e região. Tópico: Cine Debate. www.psicanalisemarilia.com.br, 5/2/2022, A mão de Deus. Comentários de Anne Lise Scappattici. Coordenação de Luis Fernando de Nóbrega.
2 Tradução livre da autora.
3 A letra completa da música pode ser conferida na descrição do vídeo oficial no YouTube: https://m.letras.mus.br/maria-bethania/47243/.

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