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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.55 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2023

 

ARTIGOS

 

Mapas da psicanálise contemporânea: a linguagem em André Green e Thomas Ogden

 

Maps of contemporary psychoanalysis: the language in André Green and Thomas Ogden

 

Mapas del psicoanálisis contemporáneo: el lenguaje en André Green y Thomas Ogden

 

 

Thais Klein*

Universidade Federal Fluminense - UFF - Brasil
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo traça uma espécie de mapa que visa contemplar a questão da linguagem no pensamento de André Green e Thomas Ogden. O objetivo é apresentar diferentes formas de conceber a linguagem em sua articulação com a situação analítica, assinalando a importância de discussão dessa temática. A questão da linguagem na obra de André Green tem um lugar central: a partir de um diálogo com a semiótica de Pierce e uma determinada concepção de terceiridade, Green enfatiza sua função de simbolização. Ogden, por sua vez, em consonância com outra noção terceiridade, destaca o aspecto expressivo da linguagem que não se restringe ao símbolo, delineando seu uso na situação analítica. Estas duas concepções comportam pontos de encontros e desencontros, englobando diferentes noções de terceiridade e perspectivas clínicas - menos do que eleger um caminho, o objetivo é fazer um diálogo entre as teorias sobre a linguagem desses dois nomes importantes da psicanálise contemporânea.

Palavras-chave: Linguagem, Psicanálise, Contemporaneidade.


ABSTRACT

The article draws a kind of map that seeks to contemplate the issue of language in the thinking of André Green and Thomas Ogden. The objective is to present diverse ways of conceiving language in its articulation with the analytical situation, pointing out the importance of discussing this theme. The issue of language in André Green's work has a main place: based on a dialogue with Pierce's semiotics and a certain concept of thirdness, Green emphasizes the function of symbolizing. Ogden, in turn, in line with his notion of thirdness, highlights the expressive aspect of the language that is not restricted to the symbol, emphasizing its use in the analytical situation. These two conceptions contain points of encounters and disagreements, encompassing different notions of thirdness and clinical perspectives - the objective is to make a dialogue between the theories about the language of these two important names of contemporary psychoanalysis.

Keywords: Language, Psychoanalysis, Contemporary.


RESUMEN

El artículo traza una especie de mapa que busca contemplar la cuestión del lenguaje en el pensamiento de André Green y Thomas Ogden. El objetivo es presentar diferentes formas de concebir el lenguaje en su articulación con la situación analítica, señalando la importancia de discutir este tema. El tema del lenguaje en la obra de André Green tiene un hogar central: a partir de un diálogo con la semiótica de Pierce y un cierto concepto de terceridad, Green enfatiza la función de simbolizar del lenguaje. Ogden, a su vez, en línea con su noción de terceridad, resalta el aspecto expresivo del lenguaje que no se restringe al símbolo, enfatizando su uso en la situación analítica. Estas dos concepciones contienen puntos de encuentro y desacuerdo, abarcando diferentes nociones de terceridad y perspectivas clínicas; menos que elegir un camino, el objetivo es dialogar entre las teorías sobre el lenguaje de estos dos nombres importantes en el psicoanálisis contemporáneo.

Palabras clave: Lenguaje, Psicoanálisis, Contemporaneidad.


 

 

A expressão psicanálise contemporânea vem sendo bastante utilizada para designar diferentes aspectos da teoria e da clínica psicanalítica pós-freudiana. Essa noção, todavia, não é autoexplicativa. Seguindo as indicações de André Green (2008), para melhor caracterizar o que se chama de psicanálise contemporânea, algumas diretrizes devem ser traçadas. Dessa perspectiva, a psicanálise contemporânea visa ultrapassar uma espécie de crise melancólica que acossou o movimento psicanalítico após a morte de Freud: um luto interminável e o movimento de retorno a ele caracterizariam esse quadro (Green, 1990). As orientações para uma psicanálise contemporânea de Green (2008) seguem na direção de situar a metapsicologia freudiana como fundamento e, simultaneamente, promover uma síntese crítica e criativa das principais contribuições pós-freudianas em um diálogo pluralista, ampliando os limites da analisabilidade e estabelecendo um modelo clínico terciário (calcado nos eixos da transferência, contratransferência e enquadre).

Engendra-se, nesse contexto, a possibilidade de reunir conceitos e perspectivas clínicas oriundas de diferentes matrizes do pensamento psicanalítico, para utilizar uma expressão de Figueiredo e Coelho Jr. (2018), de modo a compreender a natureza das problemáticas geradas e das respostas fornecidas pelos diferentes pontos de vista. Alguns autores, como Cristopher Bollas, Antonino Ferro, René Roussillon, André Green e Thomas Ogden, podem ser caracterizados como representantes da psicanálise transmatricial, na medida em que, inseridos no movimento pós-escolas, articulam em suas propostas diferentes matrizes do pensamento analítico - a psicanálise contemporânea é, portanto, marcada pelo pensamento transmatricial. O terreno da psicanálise transmatricial é vasto, parecendo por vezes uma verdadeira Torre de Babel, posto que cada pensador propõe um arranjo particular entre as matrizes, produzindo uma série de conceitos novos e, às vezes, pouco duradouros, mas também respostas criativas para os desafios enfrentados pela prática e pela teorização psicanal ítica nos últimos anos.

É interessante notar que em um texto marcado pela denúncia da crise da psicanálise, "O analista, a simbolização e ausência no enquadre" (Green, 1990), Green deixa indicado um problema importante a ser superado: a questão da comunicação entre os próprios psicanalistas. Nas suas palavras: "Muitas vezes há um espanto de quem é exterior com o fato de que aqueles cujo ofício é escutar pacientes saibam se escutar tão pouco entre eles" (Green, 1990, p. 102). Nesse sentido, um dos desafios da psicanálise contemporânea consiste justamente em fazer dialogar os diferentes autores, em suas consonâncias e dissonâncias: a possibilidade de criação de certos mapas do pensamento analítico contemporâneo torna-se, portanto, uma tarefa importante e esclarecedora. Mas o que significa a criação de mapas? O intuito de mapear a psicanálise contemporânea não consiste em traçar figuras estáticas do pensamento, mas se aproximar de uma espécie de "coreografia do desassego" para utilizar uma expressão de Deleuze e Guatarri (1996). Isto é, mais do que simplesmente clarear o campo, trata-se de suscitar melhores perguntas.

No entanto, não é possível fazer um mapa sem uma escala ou recortes: um mapa, relembrando Borges (1982) em "Sobre o rigor da ciência", não pode ser do tamanho do mundo. O recorte do mapa que pretendemos traçar consiste em uma problemática central da psicanálise (desde sua concepção como uma talking cure): a questão da linguagem. A problemática da linguagem é certamente mais ampla do que o domínio da psicanálise, muito embora a intercessão entre as duas marque a história desta última - a exploração do domínio descoberto pela psicanálise abriu um campo de discussão em torno deste tema. Esse campo, entretanto, é bastante delicado ao ponto de Green (1984) afirmar que "a psicanálise adoraria poder dispensar de ter que dar um estatuto sobre o lugar - isto é, a tópica -, a função - isto é, a dinâmica - e enfim o modo de ação - a economia da linguagem na prática e na teoria psicanalíticas" (pp. 23-24). Muito embora sejam necessários alguns questionamentos sobre as aproximações entre linguagem e psicanálise, esta não serve apenas como uma ilustração para as diferentes teorias sobre a linguagem, mas deve contribuir para esta vasta problemática.

Ora, assim como Green (1990) assinalou sobre a dificuldade de entendimentos entre os próprios analistas, Mezan (2014) afirma: "os psicanalistas não falam a mesma língua" (p. 22). Quando se trata da questão em torno da linguagem, há uma verdadeira confusão de línguas (parafraseando Ferenczi [1933/2004]) na perspectiva dos analistas contemporâneos. Muitas vezes, principalmente fora do campo lacaniano (que circunscreveu melhor uma certa noção de linguagem com Saussure), os psicanalistas utilizam o significante linguagem em diferentes sentidos - a sensação é de que por vezes não há conversa possível.

Diante dessas considerações, o objetivo deste artigo não é organizar todas as perspectivas possíveis sobre a linguagem - o mapa não pode ser do tamanho do mundo -, mas apresentar duas concepções distintas de autores importantes da chamada psicanálise contemporânea e transmatricial: André Green e Thomas Ogden. Trata-se de contemplar diferentes formas de conceber a linguagem em sua articulação com a situação analítica, assinalando a importância da discussão dessa temática. Estas duas concepções comportam pontos de encontro e de desencontro, englobando diferentes noções de terceiridade e de perspectiva clínica.

 

André Green e a linguagem

A discussão empreendida por André Green sobre o problema da linguagem vem na esteira da possibilidade de circunscrever a psicanálise contemporânea: uma crítica à concepção de linguagem de Lacan bem como a construção de um modelo psicanalítico complexo, este último enriquecido por um diálogo com a linguística. Estes dois objetivos marcam a sua empreitada. Muito embora a questão da linguagem propriamente dita seja uma temática que atravessa toda a sua obra, nosso objetivo não consiste em fazer um caminho cronológico apontando as diferentes acepções que emergem de seu pensamento. Para circunscrever as considerações de Green sobre linguagem, serão enfatizadas questões levantadas a partir de duas obras dedicadas exclusivamente a esta temática, são elas: Le langage dans la psychanalyse (1984) e Le langage au sein de la théorie générale de la représentation (2011).

Os dois eixos principais citados acima, uma crítica da concepção de linguagem de Lacan e um diálogo com a linguística, marcam a discussão sobre a linguagem nesses escritos. Segundo Green (1993), a ideia de um terceiro concebido como um grande Outro, desenvolvida por Lacan (1953/1998), impede de entrever a função de representação, uma vez que o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante - a referência de um significante sem significação evacua, nesses termos, o sentido e a possibilidade de significação. Sendo assim, em Lacan, "toda significação aparece como uma limitação de significação" (Green, 2002, p. 286). A problemática da linguagem, da perspectiva de Green, deve se inserir na sua discussão mais ampla sobre a representação: a questão desloca-se, portanto, de como se articulam os signos em termos de significantes, para o questionamento de um processo no qual algo funciona como signo e a sua possibilidade de significação. Trata-se de expandir o diálogo com a semiologia para a semiótica. Isso porque, para Green (1984), a linguagem dos linguistas não é a linguagem dos psicanalistas - é necessário reconhecer na concepção analítica a conjugação tanto da força quanto do sentido como polos inseparáveis e irredutíveis do trabalho de simbolização.

Nesse contexto, Green (1984; 2002; 2011) assinala que a linguística de Saussure - articulada à semiologia - não pode consistir em um interlocutor central para a concepção de linguagem da psicanálise, uma vez que não ajuda a pensar a relação que a linguagem empreende com outros sistemas de signos. Por conseguinte, os principais interlocutores de Green serão Charles Pierce, considerado o pai da semiótica, e os trabalhos de Simon Bouquet e François Rastier, ambos guiados pela ideia de que o surgimento da linguagem não pode ser concebido senão dentro da evolução geral do semiótico. Nas palavras do autor,

Peirce permitiu com que fosse possível pensar a relação da linguística com a semiótica, nos auxiliando a sair do confinamento no qual Lacan nos havia mantido sequestrados e nos permitiu estender a reflexão, para além da linguagem como sistema de representações de palavra, à semiótica incluindo igualmente a representação de coisa (Green, 2002, p. 265).

Sendo assim, antes de nos aprofundarmos nas considerações de Green sobre a linguagem, faz-se importante assinalar, ainda que superficialmente, algumas diretrizes teóricas de Pierce que configuram o campo da semiótica. O signo, para Pierce (1972), tem dois objetos: o objeto como é apresentado e outro objeto nele mesmo; o signo consiste em um mediador do pensamento que permite relacionar o objeto apresentado ao objeto que ele representa. Todo objeto remete a outa coisa que não ele mesmo - o outro do objeto: trata-se de uma tríade comportada pelo sujeito, pelo objeto e o outro do objeto. Além disso, o elemento triádico também se apresenta no processo de semiose que, segundo Pierce (1972), compreende: 1) Representam em - o primeiro termo da relação triádica; 2) O objeto; 3) O interpretante. Para Peirce (1972), a concepção triádica do signo se configura resumidamente da seguinte forma: a terceiridade é o que traz a primeiridade, ou seja, as qualidades emocionais, instintivas e as percepções de indiferenciação, para a interação com a secundidade, ou seja, as qualidades da dualidade, da separação e do conflito. Essa interação é realizada por meio do pensamento e de sua capacidade de estabelecer leis e generalizações calcados na ação do signo e sua força interpretante. O interpretante é um terceiro, mas não o sujeito que interpreta, é elemento constitutivo do signo e faz a mediação entre o intérprete e os fenômenos, possibilitando o trabalho do pensamento. Nas palavras de Green (2002), na concepção de Pierce, a terceiridade é "mais do que uma noção, é um eixo conceitual ou um meta-conceito" (p. 132).

Prosseguindo nas considerações de Green sobre a linguagem, a questão da terceiridade se apoia largamente na discussão empreendida por Pierce (1972) no campo da semiótica, como afirma o autor nesse trecho:

Prolongando as reflexões de Lacan, dei-me conta de que as relações triangulares tinham sido arbitrárias e, negligentemente, restringidas ao complexo de Édipo. Mais do que a função, tratava-se da metáfora paterna. Foi então que a obra de C. S. Pierce me trouxe uma luz decisiva, através da sua noção de relações triádicas, que desemboca no conceito mais geral de terceiridade. Tentei aplicá-la a ideias que havia expressado, sem referir-me a uma teoria em particular e a casos que não havia analisado sob esse ângulo (Green, 2002, p. 250).

Para Green (1984; 2002; 2011), qualquer dualidade comporta, desde seu início, um terceiro (a relação mãe-bebê, por exemplo, sempre traz uma função terceira, ainda que como representação no psiquismo da mãe). Com inspiração nas ideias de Winnicott, a noção de símbolo de Green (1990) aponta para um objeto divido em dois constituindo um signo de reconhecimento quando seus portadores podem unir os dois pedaços. Nesse contexto, Green (1990) insiste que a reunião das partes separadas jamais será a reedição ou a reconstrução de uma suposta unidade primordial perdida, mas, necessariamente, a criação de um terceiro elemento, que é diferente das duas partes separadas e depois reunidas (na medida em que compõe um signo). Trata-se de um triângulo aberto com o terceiro substituível: o outro do objeto - retomando a concepção triádica do signo de Pierce. Conforme aponta Coelho Jr. (2015), ao longo da obra, Green passa a conceber uma estrutura ternária que compreende o sujeito, o objeto e o outro do objeto. Nesse contexto, Green (1990) delineia o terceiro como uma ausência - uma situação intermediária entre a presença e a perda. Um terceiro elemento, nesse caso, tem a função de separação e de (re)ligação (Coelho Jr., 2015). De forma semelhante a Pierce (1972), a terceiridade consiste na condição inaugural que permite a simbolização. Conforme será mais bem explicitado adiante, esse terceiro elemento é formador de uma estrutura enquadrante, uma potência ausente produtora de efeitos de simbolização tanto nas dimensões intrapsíquicas, como no campo formado em uma situação analítica.

Dessa perspectiva, a simbolização, como ação psíquica que comporta simultaneamente a reunião e a separação, é permitida pela possibilidade de um terceiro incluso: que remete a noção de signo de Pierce. Green (1984; 2002; 2011) desenvolve, portanto, uma teoria dos processos terciários ou teoria da triangulação generalizada com um terceiro substituível que implica na construção de uma teoria psicanalítica da terceiridade, concebida como matriz geral do sentido. A simbolização, como um processo terciário, consiste em 'ligação-desligamento-religação', uma vez que se vincula à concepção freudiana dos movimentos pulsionais (ligação - pulsão de vida e desligamento - pulsão de morte). Esse processo é simultaneamente permitido e engendrado pela constituição de uma estrutura enquadrante (Green, 1990), isto é, uma estrutura articulada ao narcisismo primário, fruto da consolidação de um terceiro elemento ausente como um espaço. A estrutura enquadrante configura-se como um limite que permite a separação do objeto e o encadeamento dos processos terciários. Diante desse quadro, articulando a semiótica de Pierce e a teoria pulsional de Freud, o processo de simbolização não se baseia unicamente na linguagem, mas no conjunto de ligações-desligamentos-religações que agem nas três instâncias do aparelho psíquico e se configuram como processos terciários. Mas e a problemática da linguagem propriamente dita?

Seguindo as indicações de Green (1984; 2011), a linguagem é definida como uma organização que inclui a dupla significância (de signo e de sentido), a dupla representação (representações de coisa e de palavra) e a dupla referência (realidade psíquica e realidade material). Os processos terciários fazem o laço entre o aparelho de linguagem e o aparelho psíquico, assim como sua potência interpretativa em uma situação analítica sustenta-se na possibilidade de religar, por exemplo, o aspecto subjetivo ao aspecto objetivo de uma experiência, gerando a produção de sentido. Diferenciando-se, portanto, de Lacan, que, grosso modo, coloca a linguagem ao lado dos mal-entendidos, para Green (1984; 2011), a possibilidade de produção do sentido, enquanto simbolização, está constantemente no horizonte. No entanto, essa não recobre todo o aparelho psíquico na medida em que o plano pulsional permanecerá como uma espécie de alteridade. A possibilidade de simbolização, tarefa do aparelho psíquico, coloca-se entre a matéria prima corporal (pulsional e afetiva) e a linguagem, nas palavras do autor: "É o investimento da formalização pela substância. O afeto é a carne do significante e o significante da carne" (Green, 1984, p. 292).

Na situação analítica, essa possibilidade é assegurada pela função do enquadre que introduz a dimensão do terceiro na compreensão da relação analista-analisando. A articulação da linguagem e do enquadre se associa ao que Green (1990) denomina de modelo do sonho: o enquadre é chamado "aparelho de linguagem", pois seu objetivo é a transformação mais extremada possível da produção psíquica em linguagem por meio da livre associação. A linguagem superinvestida pela transferência funciona como um mediador para o que não é linguagem em relação ao inconsciente - deixando entrever a sua função de simbolização. A transferência é considerada dupla: ela age simultaneamente sobre o objeto (analista) e sobre a palavra (discurso associativo). No enquadre, a palavra muda de estatuto e se transforma ela própria num objeto singular, um terceiro, surgido da comunicação entre analista e analisando: trata-se do objeto analítico propriamente dito. Essa possibilidade da linguagem de produzir ligações no enquadre leva a Green afirmar que "a palavra analítica desenluta a linguagem" (Green, 1984, p. 234).

Nesse sentido, a linguagem, enquanto mediadora de um processo de simbolização, um processo terciário, empreende um trabalho de ligação próximo ao trabalho do sonho ou do luto. No entanto, a linguagem não é concebida apenas como sendo determinada por seu enquadramento na situação analítica, mas também como dependente do tipo de funcionamento intrapsíquico e intersubjetivo, manifestada pelas variações do enquadre, em cada situação analítica. Nesse contexto, Green (1990) assinala a possibilidade de a linguagem não funcionar como um meio de simbolização caso a sua função de processo terciário não se estabeleça, caso não esteja articulada ao enquadre como um terceiro elemento ausente. A linguagem na situação analítica precisa, portanto, ocupar um estatuto no qual seja possível exercer sua função de simbolização. Seguindo as indicações de Urribarri (2013), trata-se de falar de outra forma, isto é, de conceber outros parâmetros para o intercâmbio verbal - assinalando, portanto, a singularidade do discurso produzido pelo enquadre analítico. Nesses termos, a linguagem, enquanto articuladora de um processo terciário, também deve estar em consonância com o seu efeito afetivo, o enquadre permite, portanto, o encontro entre a palavra e seu efeito de afeto. Na esteira dessas ideias, Green (1984; 2002; 2011), fazendo alusão a Lacan, indica que é preciso fazer uma distinção tanto para o analista, quanto para o analisando, entre a palavra plena e a palavra vazia. É justamente nesse contexto que se revelam as discussões do autor sobre o silêncio (Green, 1990). Isto porque a fala do analista pode consistir em uma palavra vazia, enquanto o silêncio pode tomar forma de uma palavra plena - essa última é sempre interpretante, para retomar uma expressão de Pierce (1972).

Diante desse quadro, as considerações de Green sobre a linguagem, apoiadas sobretudo na semiótica de Pierce e na teoria pulsional de Freud, enfatizam seu estatuto de processo terciário e a possibilidade de ligação-desligamento-religação. Quando articulada ao enquadre, ela cumpre sua função de processo terciário, engendrando a simbolização. Enfatiza-se, portanto, o papel de simbolização ou representância da linguagem - papel este que, remetendo-se à semiótica de Pierce (1972), é engendrado pela estrutura triádica do signo que se articula à formação de uma estrutura enquadrante. O terceiro, nesse contexto, consiste, seguindo as indicações de Coelho Jr. (2015), em um elemento seja de separação, seja de religação e aparece como condição inaugural da possibilidade de simbolização, uma espécie de potência ausente. A linguagem ligada a este tipo de terceiridade tem o estatuto de um processo terciário na análise vinculada a simbolização e comporta consequências clínicas particulares.

Pretendemos mostrar acima que o desenvolvimento das ideias de Green sobre a linguagem são fruto da percepção, pelo autor, de questões não respondidas por outras abordagens sobre o tema em nossa disciplina - especialmente por parte teoria lacaniana, um forte interlocutor portando concepção própria sobre o símbolo e o simbólico. Sua busca por outras inspirações teóricas, especialmente a semiótica de Pierce, visa dar inteligibilidade a formas de triangulação que ultrapassam a matriz edípica. É a maneira como Green faz trabalhar as ideias de Pierce que nos interessam e não esta grade teórica em si mesma. No entanto, há outras formas de conceber o terceiro e a linguagem que comportam perspectivas paradoxalmente distintas e semelhantes - passemos ao próximo autor do nosso mapa.

 

Thomas Ogden e a linguagem

Diferentemente de Green, a questão da linguagem em Ogden não parece ser uma preocupação central da sua obra - talvez, uma explicação para esse fato, dentre outras hipóteses possíveis, consista na ausência de compromisso do autor com o pensamento lacaniano. Apesar de se remeter a Lacan em algumas passagens, sua filiação teórica aproxima-se de autores que não se dedicaram mais especificamente à problemática da linguagem, tais como Melanie Klein, Bion e Winnicott. No entanto, seguindo a mesma metodologia empreendida nas considerações de André Green, não traçaremos uma evolução do pensamento de Thomas Ogden em relação a essa temática, mas um breve resumo das questões em torno da linguagem e, mais especificamente, do uso da linguagem a partir de sua perspectiva de terceiro.

Antes de adentrar mais profundamente na questão da linguagem propriamente dita, faz-se importante circunscrever melhor uma concepção de terceiridade, central no seu pensamento. Isso porque, desde seu livro publicado em 1986, A matriz da mente, Ogden (2017) começa a construir, a partir das ideias do desenvolvimento emocional de Winnicott e de uma concepção dialética das posições de Melanie Klein, uma perspectiva singular sobre um terceiro elemento. Segundo o autor, a matriz da mente consiste em um

um espaço psicológico que é, primeiramente, quase que completamente interpessoal, para evoluir mais tarde em um ambiente pessoal interno. É esse interjogo dialético entre nossos conteúdos mentais, e o espaço psicológico pessoal e interpessoal onde são vividos que constitui a matriz da mente (Ogden, 2017, p. 17).

Nota-se, portanto, de saída, uma diferença em relação à concepção de terceiridade de Green, uma vez que se parte do espaço interpessoal para se constituir a matriz da mente: a terceiridade aqui é condição de possibilidade da dualidade primária (Coelho Jr., 2015). Prosseguindo nas considerações de Ogden (2017) sobre a matriz da mente, esse espaço interpessoal é sustentado por uma constante dialética entre mãe e bebê, nas suas palavras "o atingimento da capacidade em manter a dialética psicológica [mãe - bebê] envolve a transformação da unidade que não requer símbolos em uma "terceiridade" (threeness), que é um interjogo de três diferentes entidades" (p. 213). Esses três elementos permanecem, portanto, em constante tensão e não se articulam necessariamente a símbolos - questão que será decisiva para a sua concepção de linguagem.

Em Os sujeitos da psicanálise (Ogden, 1994), a questão da terceiridade retorna por meio da noção de terceiro analítico que passa a ser entendido como "uma criação do analista e do analisando, ao mesmo tempo em que ambos (na qualidade de analista e analisando) são criados pelo terceiro analítico" (p. 93). Paralelamente à problemática da matriz da mente, o campo interpessoal formado por analista e analisando, constitui o foco de sua investigação. A noção de terceiro analítico pressupõe a ideia de que ainda que de um ponto de vista empírico a situação analítica na maior parte das vezes seja constituída por dois sujeitos separados e claramente distintos, o processo analítico é instaurado e se instaura por um terceiro sujeito mantido em uma tensão dialética com os outros dois. Seguindo as indicações de Reis (1999), embora Ogden (1994; 2017) se refira a Hegel para sustentar uma concepção dialética, a problemática articulada ao terceiro analítico parece remeter à concepção de Merleau Ponty (discutida previamente por Heráclito de Éfeso) sobre uma dialética sem síntese. Isso porque, este terceiro, tanto em Ogden quanto em Merleau-Ponty, não diz respeito a uma entidade simbólica que marca um corte entre antes e depois e o estabelecimento de uma síntese, mas consiste em uma tensão sem resolução. A terceiridade aqui é concebida como resultante da dinâmica entre dois elementos - sendo simultaneamente sua condição de possibilidade e seu efeito. O terceiro, portanto, é produto e produtor da dinâmica que se cria entre analisando e analista e tudo aquilo que se passa nesse espaço se articula a esse terceiro sujeito. Nesse contexto, não faz sentido conceber qualquer tipo de comunicação ou de processo fora de um terceiro sujeito, isto é, na situação analítica o que está em jogo não são polos puramente exteriores um ao outro.

Essa concepção de terceiro, todavia, diferente de Green, não se articula a uma noção de símbolo, ao ponto de Ogden (1994) afirmar que os processos do terceiro analítico são constituídos por "formas simbólicas e proto-simbólicas (baseadas em sensações) atribuídas à experiência não articulada (e muitas vezes ainda não sentida) do analisando, quando estas estão ganhando forma na intersubjetividade do par analítico (no terceiro-analítico)" (1994, p. 82, grifo nosso). É interessante notar que a possibilidade de conceber formas proto-simbólicas associadas ao terceiro analítico remete diretamente à discussão empreendida por Ogden (1989) no livro The Primitive Edge of Experience (1989) ao dar forma a um nível bastante primitivo de experiência psíquica. Dialogando diretamente com as formulações de Melanie Klein sobre as posições esquizoparanóide e depressiva, Ogden (1989) propõe um estado denominado posição autista-contígua, caracterizando-o como um modo pré-simbólico e sensorial de atribuir sentido à experiência. Este modo de organizar a experiência é marcado por formas específicas de defesa, formas específicas de relação objetal, por uma qualidade de angústia e por um grau de subjetivação específicos. A palavra autística aqui não remete a um sistema no qual a criança está isolada do mundo objetal, mas a relação objetal, nesse tipo de experiência, é vivida em termos de "superfícies sensoriais geradas pela interação do indivíduo com seus objetos e pelas transformações sensoriais que ocorrem com ele no curso dessas interações" (Ogden, 1989, p. 51). Nesse sentido, a posição autista contígua está associada a um modo específico de se atribuir sentido à experiência, na qual dados sensoriais predominam na formação de conexões pré-simbólicas entre diferentes impressões sensoriais, gerando superfícies com fronteiras e delimitações. Nesse modo de experiência, a contiguidade sensorial da superfície da pele, juntamente com a ritmicidade, são sensações básicas para o desenvolvimento de todo o conjunto das relações objetais. Dessa perspectiva, "a experiência intersubjetiva, portanto, precede a experiência pessoal e está fundada sobre a experiência corporal" (Reis, 1999, p. 384).

Diante desse passeio pela obra de Ogden, faz-se preciso melhor circunscrever a problemática da linguagem, ainda que esta não receba grande destaque. Uma vez que a questão da linguagem não diz respeito a uma temática central na obra de Ogden, as discussões sobre esse tema estão diretamente articuladas as considerações anteriores. Ora, a partir dessas considerações, a linguagem não pode ser concebida como uma quebra da experiência emocional, uma vez que, para Ogden, a experiência mantém em tensão dialética diferentes posições. O modo específico de atribuir sentido à experiência caracterizado pela posição autística contigua, por exemplo, deve estar necessariamente incluído em certa concepção de linguagem. Assim, a discussão sobre a linguagem, para Ogden, guarda aspectos de uma dimensão da experiência proto-simbólica e se articula à sua concepção singular da terceiridade.

Diferente de Green, ao menos em termos de ênfase, a linguagem para Ogden (2010) comporta algo de uma experiência sensível e, enquanto tal, não pode ser concebida prioritariamente como uma atividade de representação ou de simbolização. As palavras, nesse contexto, não são simplesmente o suporte de símbolos, mas entidades concretas passíveis de serem experienciadas pelos sentidos. Nesse contexto, seria possível mais uma vez fazer uma articulação entre a teoria de Ogden e as considerações de Merleau-Ponty (1960/1991) quando afirmamos que a intenção de significar não se acha fora das palavras ou ao lado delas: é a expressão que permite uma coincidência entre intenção e a palavra. A intenção dá vida às palavras e, como resultado dessa animação, as palavras e toda linguagem encarnam uma intenção que compõe o sentido - destaca-se aqui um dos eixos centrais da definição da linguagem de Ogden. Ela não é um veículo do sentido que, por sua vez, não é unicamente linguístico - o sentido e a linguagem guardam uma articulação (não hierárquica) em relação às outras dimensões como aquela discutida na posição autística contígua. Dessa forma, a linguagem deve comportar uma linha de continuidade com o modo específico de se atribuir sentido à experiência, característico da posição autística contígua, na qual, conforme indicado anteriormente, dados sensoriais predominam na formação de conexões pré-simbólicas entre diferentes impressões sensoriais. A linguagem, portanto, implica também uma dimensão sensorial, isto é, de sons, ritmos, entonações e não remete apenas ao símbolo. Nesse contexto, a linguagem pode ser concebida em sua potência expressiva, articulada à sensorialidade.

A linguagem é então tomada pelo autor como um ato de expressão, isto é, deve ser concebida na psicanálise pela sua dimensão expressiva (uma das dimensões possíveis), e não apenas como uma ferramenta que pode engendrar o sentido ou que esconde algo velado. Destaca-se, portanto, a língua falada ou viva e o seu valor expressivo que não se reduz à soma dos valores expressivos pertencentes a cada elemento da cadeia verbal. Um caminho interessante para melhor ilustrar essa perspectiva consiste na interlocução entre psicanálise e literatura promovida por Ogden (2010). Ao discorrer sobre a função de um texto literário, o autor destaca que este não se reduz à possibilidade de descrever a experiência humana - um romance não seria uma visão particular de um sujeito sobre o mundo, mas permitiria criar uma experiência entre o escritor e o leitor. A escrita literária, dessa perspectiva, busca, mais do que trazer a representação de fatos ou história, fornecer vitalidade a uma pessoa, a um sentimento ou a uma ideia - para Ogden (2010), este é o desafio de toda a escrita psicanalítica (mas não só analítica e não só em relação à escrita). Essa discussão é, de certa forma, transposta por Ogden (2010) para a própria situação analítica, ao ressaltar, além do aspecto expressivo da linguagem, o seu uso. Sob este viés, recriar uma experiência é criar uma linguagem que expressa a maneira pela qual se pode experienciar sob certas circunstâncias, comportando um uso específico da linguagem.

Diante desse quadro, a situação analítica, da perspectiva de Ogden (1997; 1999; 2010) deixa de estar ancorada no sentido revelado e instaurado pela linguagem, mas para os efeitos criados por ela - pela possibilidade de constituir uma dimensão da experiência. Isso porque, segundo o autor, "as experiências não vêm a nós em palavras (...) uma experiência é o que é" (Ogden, 2010, p. 110). A partir da discussão de um caso clínico, Ogden (1997) indica que certas vezes não se trata de compreender através da linguagem o que o paciente está falando sobre o que pensa, sente, percebe ou experimenta no seu corpo, mas de "criar um efeito na linguagem: a experiência de envolver si mesmo na pura sensação dos sons das palavras" (p. 228). Desta perspectiva, em uma sessão analítica, o objetivo não é escutar ou desvendar o que o paciente está dizendo, mas o modo pelo qual diz e, principalmente, "o efeito criado com isso pelo paciente na relação analítica, em um determinado momento." (Ogden, 1997, p. 214). Esta possibilidade expressiva inclui não apenas o que foi dito, mas principalmente o modo como foi dito (o ritmo, a entonação, a cadência), tornando-se central como um "meio de comunicação das experiências inconscientes no setting analítico" ou melhor, no terceiro analítico (Ogden, 1997, p. 225).

Neste âmbito, não só a fala do paciente, mas também a do analista deve ser enfatizada na sua capacidade de criar possibilidades e não apenas na função de criar compreensões ou insights. Logo, o uso da linguagem na psicanálise pode ser concebido através da possibilidade tanto do analista, quanto do analisando de criarem a linguagem "com sua própria voz" (Ogden, 1997, p. 224). Remetendo-se a Frost, Ogden (1997) afirma que aprender a falar com a própria voz e com as próprias palavras requer que se aprenda a escutar e usar os sons vivos do discurso. É interessante notar a articulação que o autor realiza entre a impossibilidade de vitalidade do discurso e a estreita relação com uma espécie de dialeto ligado às escolas psicanalíticas, o que permite entrever possíveis consequências clínicas para o comentário mais geral de Green (1990), citado anteriormente, sobre a falta de comunicação entre os analistas e a espécie de torre de babel que pode caracterizar a psicanálise contemporânea. Nas palavras de Ogden (2010),

As interpretações feitas por um analista que é afiliado a uma determinada "escola" psicanalítica são frequentemente dirigidas ao próprio analista (a seus objetos internos e externos), e não ao paciente. Quando um paciente sente que o analista está falando de uma forma que não é dirigida somente a ele, ele se sente isolado e privado da oportunidade de falar com o analista sobre o que é verdadeiro no que está acontecendo na análise. (p. 26)

Nesse contexto, Ogden (1997) aponta para a possibilidade no setting analítico de uma fala ou certo discurso estar sem vitalidade ou constituir uma espécie de imitação, inviabilizando o engendramento de qualquer sentido tanto naquele que fala, quanto naquele que escuta. Desta perspectiva, é possível fazer uma articulação com a discussão de Green (1990) sobre a fala plena e a fala fazia. No entanto, d iferentemente de Green, para quem o objetivo da análise é a simbolização, para Ogden trata-se da possibilidade de produzir uma experiência emocional. É evidente que os processos de simbolização e a produção de uma experiência emocional possuem importantes interseções entre si; todavia, há ênfases diferentes entre nossos dois autores, as quais constroem fatos analíticos distintos. Nas palavras de Ogden: "eu acredito que a tarefa analítica mais fundamental envolve o esforço do par analítico para ajudar o analisando a se tornar humano no mais amplo sentido que ele pode ter sido capaz de alcançar nesse ponto" (Ogden, 2013, p. 15). A linguagem, portanto, não seria um veículo privilegiado para a representação ou a simbolização, mas, através da possibilidade de guardar a potencialidade de diferentes dimensões da experiência, ela constitui um dos meios pelos quais seria possível, através da formação de um terceiro sujeito, experienciar mais amplamente a vida, a si mesmo e o mundo.

 

Considerações finais

A partir de um mapa das concepções sobre a linguagem de André Green e Thomas Ogden, foi possível observar que essa problemática, apesar de guardar semelhanças, comporta algumas diferenças entre os dois autores. Enquanto Green, apoiado na semiótica de Pierce, circunscreve uma concepção de linguagem ligada à ideia do símbolo a partir de uma perspectiva triádica, para Ogden, a linguagem comporta uma dimensão da experiência proto-simbólica e, ainda que se articule ao símbolo, não se restringe a ele. Se da perspectiva clínica de Green, a linguagem vinculada ao enquadre engendra o processo de simbolização ou representação, para Ogden, quando associada ao terceiro analítico, pode tocar algo da experiência humana ampliando a possibilidade de experienciar. Ora, é evidente que essas diferenças sutis provocam algumas questões para a própria concepção da situação analítica: a linguagem viabilizaria a simbolização ou engendraria uma experiência entre analista e analisando? A linguagem na situação analítica remete necessariamente ao símbolo ou comporta uma dimensão proto-simbólica?

Longe de ter a pretensão de responder a essas perguntas, é interessante assinalar que, apesar dessas diferenças, ao versar sobre as concepções de terceiridade na psicanálise contemporânea, Coelho Junior (2015) afirma que elas não são mutuamente excludentes, mas podem ser pensadas como funções simultâneas presentes na teoria e na prática. Talvez seja possível, em determinadas situações analíticas, ora colocar ênfase em uma perspectiva, ora em outra - tarefa um tanto árdua que exige conhecermos bem suas diferenças e semelhanças.

Retomando a questão dos mapas, quando pensamos em mapas e na linguagem, um autor que vem à cabeça imediatamente é Guimarães-Rosa - ninguém melhor do que ele para versar sobre a linguagem. Na segunda edição do Grande Sertões Veredas (Guimarães-Rosa, 1994), encontramos um mapa nas primeiras páginas: trata-se do mapa da travessia de Riobaldo. É interessante notar que no meio do mapa (entre rios e montanhas) há um vazio: o liso do Sussuarão. Nas suas palavras: "Só sabia: o liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia maldade - feito pessoa". É interessante que articulado à concepção de linguagem de Green e de Ogden, apresentam-se também considerações sobre o silêncio. Um ponto de encontro entre nossos dois autores consiste na possibilidade de conceber a linguagem, tanto do analista quanto do analisando, como desprovida de vitalidade - a discussão de Green sobre a palavra vazia e a palavra plena e a perspectiva de Ogden sobre a vitalidade e desvitalização da linguagem no terceiro analítico parecem apontar para direções semelhantes. Nesse sentido, para os autores, a linguagem não caminha na direção oposta do silêncio, mas ambos podem cumprir ou não determinadas funções que a linguagem engendra na situação analítica.

Diante desse quadro, o objetivo desse mapa, mais do que afirmar uma determinada concepção de linguagem, consistiu em chamar atenção para essa problemática na psicanálise contemporânea e para a importância, já assinalada por Green, de "na multiplicidade de dialetos nascidos da língua psicanalítica fundamental, nós [psicanalistas] ensaiamos ser poliglotas (...)" (Green, 1990, p. 80).

O que é preciso levar em consideração, seja com André Green ou com Thomas Ogden, consiste na necessidade de nos atermos a diferentes concepções de linguagem, menos para chegar a um consenso e mais para tornar a própria linguagem psicanalítica viva, intentando minimizar uma espécie de Torre de Babel que pode caracterizar muitas vezes a psicanálise contemporânea. Ao versar sobre a problemática da linguagem, Merleau-Ponty (1960/1991), por sua vez, assinala uma dialética sem síntese entre sedimentação e inovação que deve considerar tanto o aspecto cultural e herdado dos significados, quanto sua necessária e constante articulação à criação no ato de fala. Nesse sentido, o filósofo enfatiza a linguagem como passível de exprimir "alguma coisa que nunca haviam dito " ( Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 80). Trata-se da possibilidade do ato de expressão ser capaz de tocar algo do silêncio. Só assim joga-se luz na afirmação de que "toda linguagem é direta ou alusiva e, se quisermos, silêncio" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 54). Es s a possibilidade de tocar o silêncio condiciona tanto a primeira fala da criança quanto a fala do escritor, tanto a construção do vocábulo quanto a do conceito - talvez essa também seja uma das tarefas da psicanálise cotemporânea. Para finalizar, Guimarães-Rosa (1994) ajuda-nos mais uma vez ao afirmar que

a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que como escritor devo me prestar contas de cada palavra e considerar de cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. (p. 274)

Traçar as diferenças e semelhanças entre alguns autores da psicanálise contemporânea sobre a linguagem talvez ajude nesse aspecto, ou seja, em fazer conversar concepções distintas, diminuindo uma espécie de confusão de línguas na direção de uma maior vitalidade da própria linguagem psicanalítica.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Thais Klein
E-mail: thaisklein@id.uff.br

 

 

*Psicanalista, Doutora em Teoria Psicanalítica (PPGT-UFRJ), doutora em Saúde Coletiva (IMS-UERJ). Membro do grupo brasileiro de pesquisas Sandor Ferenczi, membro do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC - UFRJ) e membro convidado da Formação Freudiana. Professora adjunta do curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF-PURO).

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