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Tempo psicanalitico

 ISSN 0101-4838 ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.55 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2023

 

ARTIGOS

 

Ferenczi e a mutualidade expressiva

 

Ferenczi and the expressive mutuality

 

Ferenczi et la mutualite expressive

 

 

Leonardo CâmaraI*; Regina HerzogII, III**

IUniversidade Federal de São Carlos - UFSCar - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
IIIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O propósito deste artigo é apresentar uma nova "terminologia" que organize, torne inteligível e lance luz sobre algumas experiências clínicas empreendidas por Sándor Ferenczi quando do tratamento de sujeitos com histórico de trauma. Propomos designar, sob o termo "mutualidade expressiva", o gesto do analista de se permitir expressar o impacto dos afetos que lhe são provocados pelas expressões emocionais do analisando, produzindo repercussões profundas neste último. A mutualidade expressiva coloca em relevo três pontos trabalhados por Ferenczi, e que serão discutidos ao longo deste artigo: i) a construção da confiança e o remanejamento da dinâmica da clivagem; ii) o desenvolvimento do afeto que foi interrompido quando do desmentido; iii) a reconsideração crítica da postura técnica de neutralidade e indiferença do analista.

Palavras-chave: Ferenczi, trauma, clínica, expressão, psicanálise.


ABSTRACT

The purpose of this article is to present a new "terminology" that organizes, makes intelligible and sheds light on some clinical experiences undertaken by Sándor Ferenczi when treating individuals with a history of trauma. We propose to designate, under the term "expressive mutuality", the analyst's gesture of allowing himself to express the impact of the affects that are provoked by the patient's emotional expressions, producing profound repercussions in the latter. The expressive mutuality highlights three points worked on by Ferenczi, which will be discussed throughout this article: i) the construction of trust and the reorganization of the dynamics of the splitting; ii) the development of the affect that was interrupted when denied; iii) the critical reconsideration of the analyst's technical principle of neutrality.

Keywords: Ferenczi, trauma, clinic, expression, psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Le but de cet article est de présenter une nouvelle «terminologie» qui organise, rend intelligible et met en lumière certaines expériences cliniques entreprises par Sándor Ferenczi lors du traitement de sujets ayant des antécédents de traumatisme. Nous proposons de désigner, sous le terme de «mutualité expressive», le geste de l'analyste de se permettre d'exprimer l'impact des affects provoquées par les expressions émotionnelles de l'analysant, produisant chez celui-ci de profondes répercussions. La mutualité expressive met en évidence trois points travaillés par Ferenczi, qui seront abordés tout au long de cet article: i) la construction de la confiance et la réorganisation de la dynamique du clivage; ii) le développement de l'affect qui a été interrompue lorsque refusée; iii) le réexamen critique de la position technique de neutralité et d'indifférence de l'analyste.

Mots-clés: Ferenczi, trauma, clinique, expression, psychanalyse.


 

 

Ao tratar da ideia de "atividade", que supostamente compõe a raiz da técnica ativa, Ferenczi defende que ela não é exclusiva a essa técnica, mas que se encontra presente tanto no método catártico quanto na técnica analítica padrão. Essa observação é surpreendente, pois estamos habituados a representar o método psicanalítico sob o signo da passividade. Na verdade, para Ferenczi, ambos os movimentos - atividade e passividade - atuariam de maneira complementar, melhor dizendo, paradoxal, em qualquer análise, assim como os princípios de frustração e de relaxamento. Em sua argumentação na qual visa demonstrar que a atividade é algo inerente à psicanálise, Ferenczi (1921/1993) faz a seguinte observação:

(...) trata-se aqui de criar um conceito e um termo técnicos para algo que sempre foi utilizado de facto, mesmo sem ser formulado, e de empregá-lo deliberadamente. De resto, considero que tal definição e a escolha de uma terminologia não são coisas desdenháveis no plano científico; é o único meio de tomar consciência do seu próprio agir no verdadeiro sentido do termo, e só essa tomada de consciência permite a utilização metódica e crítica de um procedimento (p. 110, grifos no original).

Essa observação, tão extraordinária quanto clara, é uma valorização e, sobretudo, uma afirmação categórica sobre a necessidade da criação e do uso de conceitos na psicanálise. Nota-se que Ferenczi, em poucas palavras, promove uma convergência entre a epistemologia e a ética, e reafirma a indissociabilidade entre a teoria e a prática. O conceito inaugura um campo de distanciamento necessário para verificarmos a que ponto o que fazemos se baseia em preconceitos ou pressupostos tomados dos outros (ou de nós mesmos) sem a devida elaboração e contínua reavaliação; do mesmo modo, estabelece as condições para a reflexão e efetiva modificação de nossa prática, quando isso se torna premente no encontro com a emergência de elementos singulares na clínica.

O propósito deste artigo é apresentar uma nova "terminologia" que organize, torne inteligível e lance luz sobre algumas experiências clínicas empreendidas por Ferenczi quando do tratamento de sujeitos com histórico de trauma. Propomos designar, sob o termo "mutualidade expressiva", o gesto do analista de se permitir expressar o impacto dos afetos que lhe são provocados pelas expressões emocionais do analisando, produzindo repercussões profundas neste último. A mutualidade expressiva coloca em relevo três pontos trabalhados por Ferenczi, e que serão discutidos ao longo das linhas que seguem: i) a construção da confiança e o remanejamento da dinâmica da clivagem; ii) o desenvolvimento do afeto que foi interrompido quando do desmentido; iii) a reconsideração crítica da postura técnica de neutralidade e indiferença do analista. Para que consigamos compreender esses três pontos, bem como a ideia de mutualidade expressiva, é necessário estarmos de acordo com alguns elementos essenciais da teoria ferencziana do trauma. O tópico a seguir visa, pois, introduzi-la.

 

Breve introdução à teoria ferencziana do trauma

A teoria do trauma de Ferenczi descreve um processo que pode ser subdividido em duas partes. A primeira refere-se à relação da criança com os adultos; a segunda é uma descrição metapsicológica dos processos de defesa levados a cabo pela criança como forma de lidar com as consequências desastrosas ocorridas na relação dela com os adultos. Em outras palavras, Ferenczi descreve primeiro o que acontece no campo intersubjetivo, relacional, para depois esboçar o que ocorre a nível intrassubjetivo. Adianta-se que o conceito que fundamenta a primeira parte é o desmentido - que vem sendo designado na literatura alternativamente pelos termos descrédito ou desautorização (Miranda, 2012; Kupermann, 2015) -, e a segunda é o conceito de clivagem.

Na teoria do trauma de Ferenczi, o tempo e a natureza da violência estão intrinsecamente ligados ao mundo humano, isto é, às relações humanas - mais especificamente, às relações mais íntimas e intensas que cercam a criança. É nas redes relacionais, portanto, que a violência ocorre, e é também nelas que o primeiro componente da teoria ferencziana do trauma se desdobra: o desmentido. Costuma-se narrar um cenário com estrutura simples para explicitar a ideia de desmentido (Pinheiro, 1995). De acordo com esse cenário, um adulto e uma criança mantêm uma relação de amor entre si, por exemplo, uma relação de pai e filha. Salienta-se que não é uma relação qualquer, mas uma na qual há amor, afeto, confiança. Por algum motivo, esse adulto passa a perceber a criança como um objeto sexual. A partir daí, o que acontece é que a fronteira que separava o adulto da criança se desvanece, e o adulto passa a interpretar as brincadeiras da criança como insinuações ou convites eivados de sexualidade. Diante dessa confusão, em que ele vê sexo onde só há brincadeira, em que vê paixão onde só há ternura, aborda sexualmente a criança, isto é, comete uma violência sexual contra a mesma (Ferenczi, 1933/1992).

A criança, por sua vez, atordoada pelo que aconteceu, não tendo ciência da dimensão exata do que se passou - apesar de se sentir profundamente violada -, procura um outro adulto para relatar o evento com a esperança de entender o que aconteceu e, sobretudo, de ser socorrida, e, no regaço desse adulto, se recompor do acontecimento (Ferenczi, 1932/1990). Acrescente-se que, mesmo a criança não buscando voluntária ou ativamente pelo adulto, ainda assim dá mostras mais ou menos explícitas de sua perturbação - isto é, expressa o seu sofrimento por diferentes meios: seja pelo corpo, pelo conteúdo dos desenhos, pela aflição em ficar próxima do agressor ou em ir ao local onde ocorreu ou ocorre a violência.

Entretanto, este outro adulto, no primeiro caso, rechaça a criança: quando ela relata a ocorrência da violação sexual, o adulto não acredita no que ela está contando, seja por não poder tolerar ou suportar o que está sendo dito, seja porque simplesmente considera a sua narração como mero produto da fabulação (Câmara, 2012). Quanto ao segundo caso, o adulto ignora, não dá o devido valor, fica em dúvida ou não consegue se sintonizar à expressão das perturbações. Seja de que forma isso ocorra, o adulto desmente aquilo que se passou com a criança: através da violência física, da coerção psicológica, da evitação sistemática ou de um silêncio de morte, a desapropria ou não lhe oferece suporte para se apropriar do evento que sofreu, de todas as sensações que sentiu, de toda expectativa de poder se recobrar do pavor.

Adverte-se que o cenário narrado para descrever o desmentido é menos uma história e mais uma constelação, na qual encontram-se três funções ou posições distintas - a criança violentada, o adulto agressor e o adulto que desmente -, que podem ser cada qual ocupadas por uma ou diversas pessoas, assim como múltiplas posições podem ser ocupadas pela mesma pessoa (Gondar, 2017). Desta forma, o mesmo que agride sexualmente a criança pode ser aquele responsável pelo desmentido (Ferenczi, 1932/1990). Ademais, na medida em que as situações de violência podem ser intermitentes ou mesmo contínuas, o desmentido não é pontual, mas uma atitude generalizada de não reconhecimento das perturbações da criança violentada - atitude esta que pode ser repetida por diferentes atores e instituições, bem como reatualizada em diferentes momentos de sua vida.

Diante do desmentido, a clivagem é um recurso de que a criança lança mão para continuar sobrevivendo. Esse processo de defesa possui mais de um sentido na teoria ferencziana (Câmara, 2018). Dentre os sentidos que comporta, vamos privilegiar a fragmentação daquilo que Ferenczi designou como Persönlichkeit, isto é, "personalidade" (Ferenczi, 1931/1992; 1932/1990; 1933/1992). A clivagem, conforme adiantado, relaciona-se à dimensão intrassubjetiva, sendo uma das únicas formas de reação que a criança encontra para lançar mão quando é abandonada, quer dizer, quando está radicalmente só (Ferenczi, 1932/1990). Ora, o desmentido consiste, efetivamente, em um abandono: antes do trauma, a criança confiava nos adultos; após o trauma, ela não tem mais ninguém com quem contar ou que possa cuidar dela. Essa fratura de confiança na relação com os adultos leva não apenas à destruição da relação objetal, como também em sua reconstrução como relação narcísica (Ferenczi, 1934/1992).

De que maneira a clivagem é considerada uma saída encontrada pela criança quando abandonada? Uma vez que aqueles em quem confiava não cuidaram dela em uma situação crítica, a criança passa a cuidar de si própria: ela se divide entre uma parte que é objeto de cuidados e de proteção e outra que se torna responsável em cuidar e proteger a outra parte (Ferenczi, 1931/1992; 1932/1990). Na clivagem, o elemento diferencial é o cuidado, e o que distingue ambas as partes entre si é a posição ocupada por cada uma na dinâmica de interação entre elas: uma parte cuida, a outra é cuidada. Tais posições apresentam-se, simultânea e explicitamente, em um mesmo sujeito.

Consideramos pertinente ressaltar a originalidade dessa concepção, uma vez que Ferenczi pensa os movimentos do psiquismo de outra maneira que não seja somente pela via do conflito. Uma parte não está em conflito com a outra no sentido de querer satisfazer-se, utilizando-se, para isso, de deslocamentos simbólicos, como é o caso do recalcamento. A dinâmica da clivagem não é de conflito, mas uma dinâmica do cuidado (Câmara, 2018). Uma parte cuida da outra, protege a outra. Assim procedendo, a criança não precisa mais contar com aqueles que, em um primeiro momento, a agrediram, e que, em seguida, lhe recusaram cuidado depois de uma situação tão terrível. O sujeito clivado é um sujeito fechado sobre si mesmo - eis o motivo de a clivagem consistir na transformação de uma relação objetal em uma relação narcísica.

A parte da personalidade que é objeto de cuidado é a criança torturada pelo trauma. Ela é isolada do mundo e do contato com os outros, sendo conservada em uma dimensão na qual o tempo não parece passar. De fato, ela parece não conseguir se regenerar ou se recompor do pavor, "esse mesmo pavor [que] está sempre operando", e "que mantém separados os conteúdos psíquicos assim dissociados" (Ferenczi, 1932/1990, p. 251). Essa parte está de tal forma sensível e é de tal maneira vulnerável, que deve ser mantida à distância de qualquer possibilidade de o trauma se repetir. Uma vez que as pessoas mais próximas, justamente aquelas em quem a criança mais confiava, foram capazes de violá-la e abandoná-la, essa parte da personalidade deve ser afastada, custe o que custar, do contato com o mundo humano. Ela deve ser siderada de qualquer relação objetal.

A parte que cuida, por sua vez, está virada para o mundo e se relaciona com as pessoas. Por conta do sofrimento, torna-se madura cedo demais: a criança que sofreu além da conta adquire até mesmo traços fisionômicos de maturidade, como se subitamente envelhecesse (Ferenczi, 1933/1993). Ela aprende cedo a arte de se adaptar aos outros e às circunstâncias. Em outras palavras, ela aprende a técnica de se identificar. Com efeito, Ferenczi descreve o sujeito clivado como um "autômato" incapaz de amar ou de odiar um objeto. A única coisa que consegue fazer, na relação com os outros, é se identificar (Ferenczi, 1932/1990). A partir dessa capacidade de se identificar, a criança se adapta ao que o adulto deseja para, assim, manter a sua parte mutilada longe dali.

A gênese desse automatismo de identificação se dá no próprio evento traumático. No momento do abuso, a criança se apercebe de tal maneira vulnerável e incapaz de se defender do agressor - o adulto é tão mais forte que ela - que ela se abandona, parando de resistir ao ataque. Para conseguir sobreviver, ela começa a se identificar com o agressor, no sentido de se moldar de acordo com os desejos e movimentos passionais dele (Câmara, 2018). Ela, portanto, não se defende; ela se abandona para obedecer, cega e automaticamente, a todos os impulsos do agressor, com a esperança de que, em algum momento, ele a deixe de lado (Ferenczi, 1934/1992).

A divisão entre as duas personalidades e a constituição de uma dinâmica específica entre elas - uma dinâmica do cuidado - implica também na ruptura entre a vida afetiva e a vida intelectual. Uma vez que a função do fragmento que cuida é a de proteger a qualquer custo a outra parte da violência das relações humanas, ele deve destituir de si a possibilidade de experimentar qualquer tipo de afeto para assim tornar-se capaz de calcular com o máximo de objetividade todas as situações com que se depara (Ferenczi, 1939/1992). Ao lado disso, o esvaziamento afetivo é a condição necessária para se tornar capaz de se identificar com os outros e se adaptar a eles (Ferenczi, 1932/1990).

O afeto é destituído, mas não aniquilado. Toda vivência afetiva concentra-se (e contrai-se) no outro fragmento de personalidade, precisamente aquele que é objeto de cuidado. Seu isolamento do mundo e das relações com os outros não permite a circulação do afeto que, por consequência, mantém-se preservado em um estado de inércia, ou ainda, em um estado embrionário. Todos os afetos que sentiu, principalmente relacionados à violência sofrida, continuam ali, parados no tempo, aprisionados em uma caixa escura sem nutrição e alimentação (Ferenczi, 1932/1990). O próprio modo como eles são sentidos e expressos continua sendo eminentemente infantil, terno, e por isso mesmo desolador: diante de afetos tão terríveis, a criança continua vulnerável, por demais sensível. Ela não tem com quem partilhá-los e, portanto, os afetos não têm condição de se desenvolverem (Câmara, 2018). Tomando em conjunto ambos os fragmentos de personalidade, em sua configuração específica na relação entre afeto e pensamento, temos, assim, "a clivagem da pessoa numa parte sensível, brutalmente destruída, e uma outra que, de certo modo, sabe tudo mas nada sente" (Ferenczi, 1931/1992, p. 77).

 

Identificação e hipocrisia no processo analítico

A teoria ferencziana do trauma, conforme esboçada em suas linhas gerais no tópico anterior, desenvolveu-se gradativamente a partir das descobertas, dos acertos e dos fracassos experimentados por Ferenczi no dia a dia da sua clínica com sujeitos que apresentavam, em sua infância, eventos trágicos. Afinal, como salienta Canguilhem (1966[1943]/2011), o pathos antecede o logos. Propomos, entretanto, fazer uma trajetória inversa. De posse de sua teoria do trauma, vamos a partir de agora revisitar algumas observações e descrições por ele realizadas ao longo de seu percurso clínico. Em outras palavras, a teoria será projetada sobre sua prática, com o propósito de organizar alguns de seus gestos e, daí, extrair uma ideia que defendemos ter operacionalizado a sua clínica: a mutualidade expressiva.

Ao experimentar, através da técnica ativa, produzir o máximo de tensão para recrudescer conflitos e fazer a análise andar, o que Ferenczi percebeu, em alguns pacientes, foi que eles se identificavam com o analista, isto é, se moldavam e se adaptavam de acordo com os anseios deste, sem contrapor resistência (Ferenczi, 1932/1990; 1933/1992). A fim de preservar a relação com o analista, os pacientes toleravam ir até às últimas consequências, mesmo que isso implicasse em não exporem seu sofrimento. O verbo que Ferenczi utiliza para designar a operação por meio da qual o analista toma ciência desse sofrimento que não é partilhado não é interpretar (deuten), mas adivinhar (erraten) (Ferenczi, 1933/1992; 1933/1939, p. 513). Ao adivinhar o que está se passando, Ferenczi não vai simplesmente devolver isso ao paciente com uma intervenção verbal. Pelo contrário, ele vai mudar o seu manejo e a forma de se relacionar com o paciente. Algo de concreto deve ser feito, e esse algo se refere aos afetos do analista, mais precisamente à expressão deles (Câmara, 2018).

Ferenczi entrevê no processo no qual o analisando, apesar de ser "violentado", permanece de certa maneira passivo, silenciando suas críticas em relação ao analista, uma repetição: uma repetição da história que aconteceu na relação da criança com os pais, no contexto do trauma. Ferenczi utiliza frequentemente o termo "hipocrisia" para qualificar a atmosfera que envolveu a criança e os pais, e que se reatualiza na relação entre o analista e o analisando (Ferenczi, 1933/1992). Se a criança tem críticas, dúvidas em relação ao que os pais dizem - principalmente à intenção que eles têm ao dizer algo e à disposição de dizerem a verdade - ela é punida, devendo aquiescer ao que dizem e silenciar as suas próprias impressões e intuições (Ferenczi, 1913b/1992; 1928/1992).

Na experiência analítica, a mesma dinâmica teria lugar. O aumento da tensão, a reprodução dos conflitos, a angústia, o corte, a postura fria, imóvel e neutra do analista frente aos relatos cheios de sofrimento do paciente seriam suportados, tolerados, engolidos pelo paciente, como se fossem coisas boas que ele deve aguentar. Para Ferenczi, a técnica analítica, tal como vinha sendo realizada, consistia assim em um processo infindável de o paciente engolir sapos, de submeter-se ao sofrimento, de ser coagido a falar a verdade. E, ao mesmo tempo, de ser silenciado quanto às suas críticas e aos seus protestos, isto é, quanto à sua suscetibilidade e vulnerabilidade diante dos movimentos da análise.

Se algum paciente ousasse fazer algum tipo de crítica, isso seria tomado como resistência, como expressão de transferência negativa, como uma personalidade narcisista ou uma neurose de caráter (Ferenczi, 1931/1992). Em tais casos, percebe-se que a teoria é forjada e cooptada com o único intuito de jogar a responsabilidade sobre o paciente, mantendo o analista inócuo quanto à sua forma de fazer clínica (Ferenczi, 1932/1990). Essa seria a manifestação mais grosseira e vil daquilo que Ferenczi chamou de "hipocrisia profissional": jogar a responsabilidade de uma análise falha no funcionamento do analisando, ao invés de o analista se submeter a uma autocrítica e a uma revisão de suas ações e suas atitudes (Ferenczi, 1933/1992). Ao adivinhar o descontentamento e o mal-estar de seus pacientes e creditar verdade às críticas emudecidas, Ferenczi encontra a oportunidade de olhar para si próprio e avaliar se não estaria indo longe demais e tão simplesmente repetindo um histórico de violência. Desta forma, o núcleo duro da clínica do trauma é, parece-nos, um questionamento sem reservas do analista a respeito dele próprio.

O próximo passo que se desenrola após a adivinhação da crítica muda dos analisandos e da revisão crítica de sua própria posição, é a sinceridade. Somente através da expressão de seus afetos e de se colocar realmente presente no processo analítico, incluindo aí confessar os erros que cometeu durante a condução da análise, é que se poderia realizar uma fratura na continuidade entre a hipocrisia que se dá no tratamento e aquela que predominou na relação entre a criança e os adultos (Ferenczi, 1933/1992). A sinceridade não é algo que possa ser fabricado e encenado; tampouco se circunscreve apenas no campo do discurso (Câmara, 2012). Ela se faz presente por todo o corpo e através deste se expressa, seja pela modulação da voz, pela rigidez muscular, pela direção para onde apontam os olhos... enfim, ao assumir uma postura sincera, diz Ferenczi (1932/1990), "o tom e os gestos tornam-se mais naturais, o diálogo mais leve, as perguntas e respostas mais naturais e fecundas" (pp. 31-32).

A sinceridade do analista provoca uma crise na maneira como o conceito de transferência pensa a relação analítica, e isso por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, a transferência é uma modalidade de relação na qual o passado se exprime no presente através da repetição, e todo o manejo clínico consiste em compreender, quando não remeter, através da interpretação, impressões e ações atuais do paciente como sendo meras repetições do passado infantil (Freud, 1914/2006). Ferenczi busca romper essa temporalidade ao criar uma relação inédita no presente, isto é, uma relação que não é entendida como - nem reduzida à - repetição do passado. Nela, a hipocrisia e o descrédito quanto às sensações não são repetidos, sendo, antes, substituídos pela sinceridade e pelo crédito quanto às produções espontâneas do analisando (Ferenczi, 1931/1992; 1933/1992). (Até porque o próprio ato de querer remeter apressadamente algo que acontece no presente como sendo algo do passado pode ser uma forma de desmentido).

De uma maneira completamente paradoxal, entretanto, nessa relação que se dá no presente, sem remissões ao passado, geram-se as condições ideais para a regressão, na qual o paciente volta, de certa maneira, a ser criança (Ferenczi, 1931/1992). Nesse contexto, ele pode, ao menos por algum tempo, "desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para se continuar existindo" (Ferenczi, 1929/1992, p. 51, grifos no original). Vale dizer que o respeito à regressão implica, necessariamente, em acolhê-la no presente da relação, sem que o analista se proteja no sentido de projetá-la para o passado. Em outras palavras, para que a regressão seja respeitada, ela deve ser vivida como algo atual, isto é, enquanto uma experiência que tem o direito de existir - e que emerge de forma legítima - no presente, bem como um processo que abre para vias inéditas de experiência. A esse respeito, Ferenczi (1932/1990) observa:

Assim, temos a escolha: levar realmente a sério o papel no qual nos colocamos como observadores benevolentes e prestimosos, ou seja, afinal de contas, fomos transportados com o paciente para esse período do passado dele (um modo de agir proibido contra o qual Freud me prevenira), tendo como resultado que tanto nós próprios quanto o paciente acreditamos nessa realidade, isto é, numa realidade existente no presente e não momentaneamente transposta para o passado (p. 57).

Em segundo lugar, a transferência é uma forma de relação assimétrica, que muito facilmente pode ser tornar verticalizada - principalmente com sujeitos que apresentam uma questão traumática. Quando esse é o caso, em uma relação verticalizada fica muito difícil, para ambas as partes, sustentarem uma posição de sinceridade (Ferenczi, 1932/1990). Um precisa manter-se em um papel superior, de autoridade, e o outro não se sente autorizado em criticar este que se mantém no papel de superioridade, sentindo-se, pelo contrário, impelido a se identificar ansiosamente com ele. Ferenczi percebera claramente esse aspecto da transferência em sua breve análise com Freud, e a primeira vez em que conseguiu falar sobre essa experiência com alguém foi com Groddeck (Ferenczi & Groddeck, 1982; Câmara, 2018). Com ele, Ferenczi não se sentia em uma relação com um superior, mas com um parceiro, um amigo, isto é, com alguém que está no seu mesmo nível. Ferenczi confiava em Groddeck e admirava sua sinceridade, não apenas em relação a ele e com figuras de autoridade como Freud, mas também com seus pacientes. Não à toa, Ferenczi credita textualmente ao amigo a inspiração para criar a técnica do relaxamento e neocatarse por um lado, e compreender a importância da posição sincera do analista por outro (Ferenczi, 1930/1992; 1932/1990).

 

A expressão do analista e a expressão do analisando

Uma das consequências maiores do desmentido é fazer a criança se sentir completamente abandonada. Aqueles em quem ela mais confiava protagonizaram o cenário de violência e, assim, sem ter ninguém mais com quem contar, a criança só tem a si própria. Ela continua a se relacionar com os outros, é certo, e até o faz de modo exemplar, na medida em que se identifica às demandas, anseios e desejos expressos por eles; mas uma parte sua - justamente aquela que, de acordo com uma paciente de Ferenczi (1932/1990), é a mais importante - permanece totalmente fora de alcance. Em outras palavras, o fato clínico da identificação com o analista mostrou a Ferenczi que toda uma análise pode se desenrolar e até mesmo terminar sem que se consiga entrar em contato com essa parte isolada da personalidade - observação, aliás, que foi constatada por outros autores que lhe sucederam (Balint, 1967/2014; Winnicott, 1967/1983).

Nesse contexto, Ferenczi começou a adivinhar a ausência de alguma parte do analisando, justamente de suas vivências afetivas, percebendo progressivamente que todo o trabalho realizado se dava de uma forma mecânica demais. Fiel à regra fundamental da análise, sentiu que a associação livre não era, afinal, tão livre assim, pois muitas vezes - senão sempre - parecia se dar ainda como uma seleção de pensamentos (Ferenczi, 1931/1992). Para além disso, algo se dava na relação mesma entre analista e analisando, levando à criação de pontos cegos, verdadeiras zonas de exclusão do que poderia ser trocado entre eles - o que interferia na própria condução da análise. Tornava-se, pois, urgente criar condições de promover maior liberdade à expressão do analisando, o que teria de abarcar, necessariamente, outros modos de expressão além da linguagem, conforme veremos dentro em breve.

Ofertar maior liberdade implica, necessariamente, que seria fundamental que a relação entre o analista e o analisando fosse permeada pela confiança. Na medida em que o analista se deixa ser afetado pelo paciente, expressando através de suas emoções um reconhecimento sincero da dor que este último está passando, a relação antes verticalizada começa a se tornar mais horizontal - passo decisivo, sublinhe-se, para o desenvolvimento da confiança. É importante salientar, a esse respeito, que a dimensão da expressão envolve, na clínica do trauma, não apenas as produções do analisando, mas também as do analista.

Com efeito, já na primeira anotação do Diário clínico pode-se justamente encontrar reflexões a respeito do problema da expressão do analista. Ao tentar adivinhar o sofrimento mudo dos pacientes ante sua posição de neutralidade e indiferença, Ferenczi (1932/1990) a eles dá voz através desta construção: "Você não acredita em mim! Não leva a sério o que estou lhe comunicando! Não posso admitir que fique aí sentado, insensível e indiferente, enquanto me esforço por imaginar algo trágico da minha infância!" (p. 31). A expressão do analista, portanto, que de acordo com as regras técnicas seria a de manter-se neutro, passa a ser um problema central para Ferenczi. A posição teórica de neutralidade redunda na expressão de indiferença e insensibilidade ante o que é comunicado pelo paciente, podendo reatualizar o desmentido:

Parece que os pacientes não podem acreditar, pelo menos não completamente, na realidade de um evento, se o analista, única testemunha do que se passou, mantém sua atitude fria, sem afeto e, como os pacientes gostam de dizer, puramente intelectual, ao passo que os eventos são de natureza tal que devem evocar em toda pessoa presente sentimentos e reações de revolta, de angústia, de terror, de vingança, de luto, e de intenções de fornecer uma ajuda rápida, a fim de eliminar ou destruir a causa ou o responsável (Ferenczi, 1932/1990, p. 57).

Uma vez que se aferrar à posição técnica de neutralidade faz o analista expressar insensibilidade e indiferença, levando o paciente a duvidar de si próprio e a ser lançado na confusão sobre suas próprias sensações, Ferenczi reconsidera criticamente a expressão do analista (Câmara, 2018). Entra em questão, portanto, em primeiro lugar, tanto sua disponibilidade emocional quanto suas expressões corporais, e, em segundo lugar, a própria técnica psicanalítica em geral. Não à toa, o problema da expressão do analista é um dos fatores que motiva a criação e experimentação da análise mútua, bem como um dos pivôs para a modificação da técnica analítica padrão.

A conclusão a que chega nesse processo de questionamento, citando nominalmente Groddeck e Clara Thompson, é a de que "a naturalidade e a honestidade do comportamento (...) constituem o clima mais adequado e mais favorável à situação analítica" (Ferenczi, 1932/1990, p. 32). A expressão do analista torna-se, neste sentido, um elemento significativo na clínica do trauma: ela é um fator que pode reatualizar o desmentido ou, pelo contrário, que pode estabelecer um marco diferencial entre as relações pretéritas, caracterizadas pela hipocrisia, e a relação atual, baseada na sinceridade. Quando a expressão do analista se torna mais natural e honesta, colocando em cena as ressonâncias dos afetos que circulam na relação, a própria qualidade da relação objetal entre os parceiros analíticos se modifica de maneira decisiva. Nesse caso, a expressão do analista se torna um fator terapêutico.

À medida que Ferenczi se permite expressar suas reações afetivas, a confiança começa a aparecer, e é posta à prova em diversos momentos e através de diversos jogos. Se o analista consegue sustentar esse difícil processo, não deixando que a situação analítica repita a hipocrisia vivida na infância, mas, ao mesmo tempo, dando condições para que o analisando possa regredir sem que por isso seja julgado, ridicularizado por trás ou punido pela frente, a confiança torna-se mais forte (Ferenczi, 1932/1990). O fragmento que havia se moldado no sentido de proteger e cuidar do outro fragmento de personalidade a qualquer custo, encontra enfim, no analista, não um intruso ou alguém com que deve se identificar ansiosamente, mas alguém em quem pode confiar - isto é, encontra alguém que pode cuidar deles (de ambos os fragmentos, bem entendido) e consegue, por assim dizer, relaxar. O sistema fechado no qual uma parte cuidava da outra abre-se e deixa "alguém de fora" assumir a função de cuidado: a relação narcísica transforma-se, aos poucos, novamente, em uma relação objetal. O sujeito clivado deixa de se identificar ansiosamente com o analista e, progressiva ou repentinamente, a parte infantil, mantida isolada por tanto tempo, encontra, enfim, as condições para se expressar com liberdade. Vale, aqui, transcrever suas palavras:

Mas, após ter-se conseguido criar uma atmosfera de confiança [Atmosphäre des Vertrauens] um pouco mais sólida entre médico e paciente, assim como o sentimento de uma total liberdade, sintomas histéricos corporais [hysterische Körpersymptome] faziam bruscamente sua aparição, com frequência pela primeira vez, numa análise de vários anos de duração; parestesias e cãibras nitidamente localizadas, movimentos de expressão violentos lembrando pequenas crises histéricas, variações bruscas do estado de consciência, ligeiras vertigens e mesmo perda da consciência, seguida amiúde de amnésia retroativa. (...) Em certos casos, esses acessos histéricos assumiam as proporções de um verdadeiro estado de transe [Trancezustand], no qual fragmentos do passado eram revividos, e a pessoa do médico era então a única ponte entre o paciente e a realidade [Realität]... (Ferenczi, 1930/1992, p. 62; 1930/1939, p. 481, grifos no original).

Recomposto do terror de ser testemunha dessas crises, Ferenczi começa a encontrar, aos poucos, nos movimentos corporais caóticos e de agonia, os modos de expressão anteriores à linguagem, os quais se organizam em torno dos gestos e das vivências alucinatórias (Ferenczi, 1913a/1992; 1939/1992). Cada vez mais atento às expressões singulares que se desencadeiam quando da emergência do fragmento por tanto tempo clivado e, simultaneamente, encontrando meios de manter contato com ele - através da pressão firme de suas mãos sobre as do paciente ou sobre sua cabeça, como se assegurasse, por meio do contato do seu corpo, que o analista está presente e que continua cuidando dele -, Ferenczi se deixa impressionar pelas expressões corporais das crises histéricas (Câmara, 2018). Nesse processo impressivo, emergem figurações: o que o corpo expressa no presente, na atualidade daquele momento, são as reações afetivas e corporais a uma violência que foram desautorizadas de se manifestarem.

 

Da catarse à expressão: a mutualidade expressiva

Um dos objetivos que Ferenczi perseguiu ao longo de suas experimentações na clínica do trauma, e mais especificamente com relação às expressões corporais dos pacientes quando em estados de exceção, baseou-se na seguinte hipótese: com a repetição das crises histéricas, seria possível liquidar gradativamente um suposto excesso de afeto represado - hipótese claramente baseada na teoria Breuer-Freud da ab-reação (Freud & Breuer, 1895/2006). Entretanto, esse objetivo, ainda que amplamente explorado e trabalhado, não se sustentou diante dos dados acumulados pela experiência, conforme podemos verificar nesta anotação:

As expectativas presentes da psicanálise justificavam a esperança de que, com cada uma dessas explosões, uma certa quantidade do afeto represado fosse emocionalmente e muscularmente revivido, e de que, uma vez esgotada a quantidade total, o sintoma cessaria por si mesmo. (...) Mas, na realidade, a acumulação de experiência confronta-nos, a esse respeito, com decepções cada vez mais frequentes. (...) O que é de importância fundamental em tudo isso é o fato de que a ab-reação das quantidades traumáticas não basta, a situação deve tornar-se diferente do que é propriamente traumático, para que seja possível uma outra saída possível (Ferenczi, 1932/1990, pp. 144-146).

Em um livro no qual critica toda uma tradição da psicanálise que conceberia linguagem e afeto como duas entidades separadas, a primeira tendo a função de controlar ou exorcizar o segundo, Schneider (1993) faz uma inflexão decisiva quanto à ideia de a ab-reação ser um processo no qual se busca mitigar um excedente de afeto. Longe de se pautar em uma lógica do esvaziamento afetivo, o que se buscaria com a catarse seria a criação de condições pelas quais o afeto pudesse se expressar e, no próprio ato de se expressar assim possibilitado, se desenvolver. Isso porque "o traumatismo inicial", diz a autora em consonância à teoria ferencziana do trauma, "seria menos o afeto excessivo que o afeto reduzido ao silêncio e desta forma privado de desenvolvimento, e também, talvez, do poder de crescer que lhe permita prender-se e prender o outro" (Schneider, 1993, p. 45).

No desmentido, as expressões emocionais decorrentes da violência sofrida compõem em conjunto, talvez, a primeira experiência concreta a não obter reconhecimento pelo outro. Aqueles em quem a criança confia não se permitem ser afetados pelas marcas trazidas por ela; pelo contrário, ao recusar serem afetados, os adultos abortam as condições mínimas para que o afeto pudesse se desenvolver. Daí o motivo de toda a vida afetiva da criança ser, a partir de então, clivada e mantida longe de qualquer contato humano. Somente se os adultos fossem mobilizados pelo sofrimento da criança conseguiriam, de fato, reconhecer o estado de radical fragilidade e precariedade em que ela se encontra, viabilizando, assim, que os afetos pudessem ser reconhecidos, partilhados e desdobrados. Ora, o que Ferenczi percebeu a propósito da expressão do analista - tanto no que diz respeito aos danos provocados pela indiferença, quanto às vias terapêuticas da sinceridade e naturalidade -, é que o afeto se desenvolve na relação, e mais especificamente na participação, na qual ambos se afetam e são afetados (Câmara, 2018). Quando essa experiência é recusada, o afeto é imobilizado, paralisado, impossibilitado de circular e, portanto, de se desenvolver.

Assim, toda a experiência afetiva da criança violentada mantém-se, após o desmentido, enclausurada em um fragmento clivado, banida de toda e qualquer relação objetal, sem possibilidade de se desdobrar (Ferenczi, 1916/1992; 1932/1990). Isso leva a questões críticas quanto à condução do tratamento, sobretudo no que diz respeito ao afeto. Em uma reflexão presente no Diário clínico, à questão "Qual é o conteúdo do Ego clivado?", Ferenczi (1932/1990) responde: "Antes de tudo, uma tendência, provavelmente a tendência para acabar a ação interrompida pelo choque" (p. 50). Essa observação traz algumas consequências importantes. Em primeiro lugar, compreende-se que o conteúdo clivado não é uma unidade de memória cristalizada ou estática, mas algo dinâmico. Em segundo lugar, se, no desmentido, o afeto não pôde se desenvolver, não obstante ele se apresenta como uma tendência, como um impulso que busca se expressar e, portanto, se desenvolver. Isso traz esperança à possibilidade de o processo analítico resgatar um afeto que foi banido, bem como esboça a direção que ele deve seguir (Câmara, 2018).

Essa compreensão da natureza do conteúdo clivado materializa-se em uma mudança de postura de Ferenczi em sua clínica: se, em um primeiro momento, quando da emergência das crises histéricas, ele interrompia esse acontecimento -, fosse com a intenção de poupar o paciente do visível sofrimento que apresentava, fosse como forma de conseguir explicações sobre as sensações e impressões que o acometiam -, ele percebeu depois a necessidade de alterar sua abordagem: "os sintomas reforçaram-se, e eu deixei que se instalassem e se desenvolvessem sem interrompê-los (...) Indicação importante: não se deve deixar que o sofrimento se imponha sobre nós, isto é, não se deve interromper prematuramente o sofrimento" (Ferenczi, 1932/1990, pp. 63-64).

Ora, o que significa interromper prematuramente a explosão de emoções e movimentos corporais de agonia, mesmo sob o argumento de proteger o paciente de um novo sofrimento? Isso não seria também uma maneira de se defender da experiência de ser afetado por esse sofrimento e, em última instância, de ter de entrar em contato com a sua própria vulnerabilidade? Em outras palavras, não seria um movimento análogo ao dos adultos que, diante da expressão de sofrimento da criança, preferiram, talvez pelo caráter insuportável disso, não enxergá-la, não acolhê-la, não protegê-la? Estabelecer as condições para que a expressão do sofrimento se atualize e se desenvolva sem interrupções exige uma posição na qual o analista possa se abrir às impressões das quais testemunha. E, também, que consiga refleti-las, através da expressão de suas próprias emoções desencadeadas por tal testemunho, para o paciente, como em uma caixa de ressonância. A esse respeito, Schneider (1993) afirma com precisão que, "quando parece ao sujeito que nada repercutiu, não há somente nascimento de um afeto cercado de silêncio; trata-se, antes, de um processo entravado, inacabado, deixando o sujeito desconcertado sobre o que acabou de viver" (p. 49).

Em outras palavras, para que o afeto possa se desenvolver, é preciso o outro seja mobilizado. Como em uma caixa de ressonância, analisando e analista abandonam gradativamente as reservas de serem impressionados pelo outro e de expressarem para o outro seus afetos. De uma relação em que os personagens se encontram bem definidos como pontos e bem localizados em polos diametralmente opostos, essa experiência de abertura desfoca os pontos, desterritorializa os polos, e faz os movimentos de impressão e expressão descreverem não mais linhas que afastam um do outro, mas um círculo que se espirala em um vai-e-vem composto por diferentes velocidades e sinuosidades. Nessa mistura, nessa atmosfera de mutualidade na qual aqueles que são impressionados e se expressam confundem suas fronteiras, o afeto encontra condições de se desenvolver.

Designamos esse processo de mutualidade expressiva, com a intenção de valorizar, por um lado, seu caráter mútuo, visto envolver a participação de ambos os atores da cena analítica; e, por outro, sua natureza eminentemente expressiva, posto referir-se à abertura deles ao impacto afetivo em sua dimensão corporal, sensível e de superfície. Dessa forma, ao abrir-se, sem defesas, à expressão por parte do analisando de todo sofrimento que fora desmentido, o analista se deixa ser impressionado pela violência desse acontecimento e, correlativamente, expressa, também pelo seu corpo, as reações de ser impressionado e afetado por tal testemunho. Liberado do automatismo de identificação ao analista, o paciente é impressionado pela expressão genuína do analista e, assim, expressa com uma espontaneidade, cada vez maior, o seu afeto clivado, desenvolvendo aí o que fora amordaçado, suspenso, interrompido por tanto tempo.

Concluímos este artigo com a esperança de que o termo "mutualidade expressiva" tenha desempenhado a função de formalizar uma das modificações mais decisivas realizadas por Ferenczi na técnica analítica, sobretudo no que diz respeito às regras de neutralidade e anonimato, quando do tratamento do sujeito traumatizado. No que diz respeito à neutralidade, essa regra pode redundar na percepção, por parte do analisando, da indiferença do analista, repetindo assim o desmentido. A quebra da neutralidade só pode ocorrer com a relativização do anonimato, na medida em que o analista decide expressar aspectos de sua vida afetiva, sobretudo os relacionados à reação ante a expressão de sofrimento do analisando.

Se, em termos de crítica da técnica analítica, a mutualidade expressiva leva à reavaliação dessas duas regras, as consequências de sua assunção, por parte do analista, tocam diretamente em dois problemas. Em primeiro lugar, o da construção de confiança, passo necessário para o remanejamento do circuito narcísico da dinâmica do cuidado da clivagem; em segundo lugar, o do desenvolvimento da vivência afetiva que, quando do desmentido, fora interrompida e suspensa. Em relação a este último ponto, o afeto clivado e abortado só pode se desenvolver na ressonância com o outro, isto é, se este é capaz de se deixar afetar. Sem dúvida, a mutualidade expressiva adquire toda sua potência aí, revelando a sua dimensão inequivocamente relacional.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Leonardo Câmara
E-mail: lcpcamara@ufscar.br
Regina Herzog
E-mail: regherzog@gmail.com

 

 

*Psicanalista, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (DPsi/UFSCar), professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGPsi/UFSCar), mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGTP/UFRJ), membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).
**Psicanalista; membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi; professora associada aposentada do Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; coordenadora do Curso de especialização da PUC-Rio - Psicanálise e Contemporaneidade: trauma e urgências subjetivas.

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