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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007

 

AULA INAUGURAL

 

A psicanálise Kleiniana1

 

The Kleinian psychoanalysis

 

 

Flávio José de Lima Neves

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor apresenta as principais contribuições de Melanie Klein à psicanálise. Partindo da psicanálise clássica, Klein desenvolveu alguns conceitos de Freud (fantasia, mundo interno, complexo de Édipo, entre outros) e elaborou outros conceitos originais (o conceito de posição, as idéias sobre as etapas mais primitivas do desenvolvimento, os mecanismos e as defesas utilizadas nas fases iniciais do desenvolvimento). A partir da apresentação das contribuições teóricas, são mencionadas também algumas importantes implicações das idéias kleinianas na técnica e na prática clínica da psicanálise, tal como concebida e preconizada por Melanie Klein e seus seguidores.

Palavras-chave: Fantasia inconsciente, Posição, Mecanismos primitivos, Mundo interno, Setting, Interpretação.


ABSTRACT

In this paper the author presents the main contributions made by Melanie Klein to Freud’s psychoanalysis. Some concepts stem from Freudian classical theory, like the Oedipus complex, sexual development, object relationship, however others have been amplified by Klein. On the other hand, some original contributions are mentioned, such as the concept of position – both schizoparanoid and depressive, the description of the early stages in child’s development with its most important mechanisms. The importance of Klein’s views on transference, the inner world and inner object relations are emphasized. A view on technical and clinical aspects of Kleinian psychoanalysis is also presented as a natural consequence of Klein’s theoretical developments.

Keywords: Phantasy, Position, Early mechanisms, Inner world, Setting, Interpretation.


 

 

I – Considerações iniciais

Desde os anos 40 do século passado, quando as famosas discussões controversas envolveram apaixonadamente os membros da Sociedade Britânica de Psicanálise entre 1942 e 1944, o sistema kleiniano de psicanálise se consolidou de forma progressiva e definitiva dentro da própria Sociedade Britânica e, a seguir, se expandiu para outros países: inicialmente, países latino-americanos e, posteriormente, para outros países da Europa, onde as idéias de Klein começaram a ser reconhecidas e onde passaram a ter importância cada vez maior. Por último, formaram-se alguns grupos de orientação kleiniana nos Estados Unidos, o perene e absoluto baluarte da psicologia do ego, inspirada no trabalho de Heinz Hartmann e respaldada por Anna Freud.

Hoje, vou apresentar os componentes do sistema kleiniano que são essenciais, específicos e definidores de uma escola de psicanálise. Por sistema, deve ficar entendido que eu me refiro aqui a uma resultante da integração entre a teoria e a prática clínica, tal como Melanie Klein e seus seguidores concebem e exercem a psicanálise.

Em primeiro lugar, gostaria de lembrar que Melanie Klein sempre se considerou e fez questão de ser vista como uma seguidora de Freud. Um de seus maiores desapontamentos deveu-se à indiferença que Freud demonstrava em relação a seus trabalhos em psicanálise de crianças, que divergiam radicalmente da orientação do mesmo trabalho desenvolvido por Anna Freud. É famosa uma passagem sua, quando em conversa com Betty Joseph, uma das mais importantes analistas inglesas contemporâneas, Klein protestou ao ser chamada de "kleiniana", visto que se considerava "freudiana". Ao que Joseph respondeu: "Tarde demais, você é uma kleiniana, queira ou não queira"2. Na opinião de Elias Mallet da R. Barros, esta passagem nos coloca diante de um problema epistemológico: o de quando um autor com um pensamento psicanalítico próprio e original, pode ou não ser considerado como tendo se desviado, ou simplesmente ter desenvolvido o pensamento psicanalítico criado por Freud3.

Também é importante recordar aqui que as contribuições de Melanie Klein à psicanálise se desenvolveram a partir de alguns dos textos mais tardios de Freud, como "Além do Princípio do Prazer" (1920), "O Ego e o Id" (1923) e "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926).

 

II – Alguns componentes específicos da psicanálise kleiniana

1. Principais desenvolvimentos teóricos em Klein

Classicamente, são consideradas como as principais contribuições de Klein à psicanálise as seguintes formulações:

1. Conceitos sobre as etapas mais primitivas do desenvolvimento psicossexual, à luz da segunda teoria dos instintos de Freud, sobre as fantasias inconscientes e as primeiras defesas contra a angústia.

2. O conceito de posição.

3. Os conceitos sobre a formação do ego, do superego e sobre a situação edipiana.

4. O conceito de mundo interno.

5. O novo status dado ao objeto e, sobretudo, às relações internas de objeto.

6. O conceito dos mecanismos de introjeção e projeção como atuantes desde o início da vida psíquica em bebês.

A interação entre introjeção e projeção foi posteriormente desenvolvida intensivamente nos estudos que culminaram na conceituação da identificação projetiva.

2. Características importantes e específicas da psicanálise kleiniana

a) O setting psicanalítico

Este é um conceito técnico muito caro aos analistas da escola inglesa em geral e se refere ao cenário onde a análise acontece. É o conjunto de recursos e procedimentos colocados no atendimento e oferecidos ao paciente, desde o início o espaço físico do consultório com seus móveis e objetos, o número de sessões semanais com seu ritmo próprio, até a pessoa do analista com sua atitude adequada e as interpretações que ele dá ao analisando. Segall (1982), ao escrever sobre a técnica de Melanie Klein, diz que "a técnica kleiniana é psicanalítica e se fundamenta rigorosamente em conceitos psicanalíticos freudianos, sendo seu contexto formal o mesmo da análise freudiana... Não é só o cenário formal que é o mesmo da análise clássica: respeita-se também, em todos os aspectos essenciais, os princípios psicanalíticos tal como foram apresentados por Freud". Segall cita como fatores constituintes da psicanálise kleiniana o setting psicanalítico, a freqüência de sessões semanais (ideal o número de cinco sessões), o uso do divã, e ressalta a interpretação como o instrumento essencial de trabalho do analista, que deve evitar rigorosamente todas as formas de crítica, apoio, conselho, julgamento, encorajamento e reasseguramento4.

b) A interpretação

Na psicanálise kleiniana a interpretação visa buscar e possibilitar contato que seja emocionalmente vivo com relação a experiências vivenciadas pelo analisando. Melanie Klein considera a experiência emocional como a base da vida psíquica, como o que lhe dá significado e que existe e acontece tanto no consciente como no inconsciente. Para Freud, a emoção é um subproduto da vida pulsional, constituindo-se como uma vivência consciente, isto é, um elemento que indica a presença de um conflito pulsional inconsciente. A importância conferida às emoções inconscientes como fator central da vida psíquica dos indivíduos, que a organiza e lhe dá significado, é uma característica básica do sistema kleiniano que o diferencia de outras linhas de psicanálise. Depois de Klein, Bion enfatizou o fato de que, para que a mente possa desenvolver-se, é necessário que a experiência emocional das relações seja pensada.

O objeto da interpretação é a fantasia inconsciente, que pode ser apreendida basicamente pelo que o paciente diz na associação livre (incluindo-se aqui o relato dos sonhos), através da transferência e através da contratransferência. Em síntese, a interpretação deve abranger tudo que, de alguma maneira, o paciente mostra ao analista, tudo que faz parte de um convite que o paciente faz ao analista para que este conheça e participe do seu mundo interno, tal como o paciente o conhece e experimenta. As fantasias inconscientes devem ser interpretadas e trabalhadas no aqui e agora dentro da sessão e, sempre, as interpretações devem abranger a situação transferencial global: fantasias relacionadas ao analista, à análise, e ao setting. Ao interpretar, o analista deve procurar no material inconsciente as relações entre a experiência emocional do paciente e o movimento da sessão. Esta é a forma de interpretação considerada como a mais terapêutica. É a que Strache5 denominou "interpretação mutativa", a que tem condições de colocar o paciente em contato direto com uma fantasia que está em ação naquele instante, possibilitando assim conexões e insights que propiciam autêntica mudança psíquica. Mudanças nas fantasias inconscientes se relacionam com mudanças psíquicas e com o funcionamento global do paciente. A interpretação deve ser descritiva dos movimentos e da dinâmica interna do paciente. Então, sabemos que em seu mundo interno, a pessoa tem tudo: representação de si mesma, objetos, relações e conflitos causados pelos mais diversos estados e experiências emocionais.

c) O mundo interno

Mundo interno é uma descoberta essencial da psicanálise de Freud: a dimensão da realidade psíquica correlativa à existência consciente e consensual da realidade externa e, ao mesmo tempo, seu negativo e sua origem. Este é um conceito que Melanie Klein toma diretamente de Freud e amplia de modo genial. Caper (1988)6 faz um estudo muito interessante sobre a constituição e a evolução do conceito de mundo interno, inicialmente em Freud e, depois, em Klein. Este autor usa como elemento condutor de investigação desta evolução conceitual a teoria da ansiedade em Freud (ansiedade como efeito e conseqüência da repressão da libido e posteriormente da ansiedade como sinal) e em Klein (ansiedade como efeito da pulsão de morte no ego), articulando a ansiedade com a formação das fantasias e com a identificação, e usa o caso do pequeno Hans como material ilustrativo.

Segundo Klein, o mundo interno é um espaço povoado por objetos e carregado de pulsões, instintos, funções e relações. Com os objetos internos, totais ou parciais, o sujeito vive relações pessoais marcadas pelas identificações. É um lugar onde predomina a onipotência do pensamento mágico infantil primitivo, o que lhe confere ora os mais deslumbrantes aspectos de magia, ora o mais intenso colorido de terror. É um lugar onde nada é caracterizado com nitidez e estabilidade, podendo objetos, impulsos e funções passar de um extremo a outro, do prazer mais intenso ao horror mais insuportável. O mundo interno da psicanálise kleiniana é um espaço, uma dimensão que, embora relacionada com as funções do id, do ego e do superego, não coincide com estas instâncias psíquicas, mas como que as supera e as contém. Nas etapas mais primitivas do desenvolvimento, o mundo interno é essencialmente corporal, com movimentos de fusão e de sincretismo com os objetos e até mesmo com partes do mundo externo. Com o desenvolvimento, vai se fazendo alguma diferenciação entre corpo próprio, objetos internos ou externos, mundo externo, eu e não eu, diferenciação esta que progressivamente se torna mais nítida.

Aqui, cabe lembrar a diferença existente entre Freud e Klein em relação às pulsões e como estas são consideradas no processo psicanalítico. Para Freud, as pulsões são sempre inconscientes, podendo ser representadas por idéias inconscientes ou serem manifestadas através de um estado afetivo. Em relação a este estado, quando se fala de "emoções inconscientes", fala-se das vicissitudes do fator quantitativo associado ao impulso, como resultado da repressão. Em seu texto sobre o inconsciente, Freud diz que "idéias inconscientes continuam a existir depois da repressão como estruturas vigentes no sistema Ics, enquanto tudo que corresponde neste sistema aos afetos inconscientes é um começo potencial que fica impedido de desenvolver-se"7.

Melanie Klein não admitia a possibilidade de serem consideradas as pulsões dissociadas de um objeto. Ao longo de toda a sua obra, ela nunca se refere às pulsões como tendo vida e atividade isoladas de um objeto ao qual se dirigem. Segundo Klein, a pulsão atua sobre o objeto, criando, assim, tanto uma relação com este objeto como uma experiência emocional inconsciente. Isto tem uma conseqüência importante, tanto teórica como clínica: ao não colocar a pulsão como foco primordial de seu interesse, ela toma a experiência emocional como elemento privilegiado do trabalho psicanalítico, atribuindo à ansiedade um papel preponderante na estruturação da vida psíquica do indivíduo. Daí, surgem algumas diferenças fundamentais entre os dois sistemas, o freudiano e o kleiniano: para Freud, a emoção é uma derivação da atividade pulsional, constituindo-se como uma vivência consciente, isto é, um elemento indicador da presença de um conflito pulsional inconsciente. Para Klein a emoção é a base da vida mental, aquilo que lhe dá significado e que existe tanto no consciente como no inconsciente.

d) Transferência e contratransferência

Freud conceitua a transferência como o processo por meio do qual certas relações e acontecimentos do passado, junto com seus componentes afetivos, são repetidos (ou reeditados) na relação com o analista, sob a influência do princípio da compulsão à repetição. No caso Dora (1905) Freud já define e caracteriza o fenômeno transferencial em seus componentes essenciais8.

Melanie Kelin considera a transferência como o resultado da externalização de relações internas de objeto sob a pressão exercida pela ansiedade e cujas origens remontam aos mesmos processos que, no passado, promoveram as primeiras relações objetais, ou seja, introjeção e projeção, cisão, identificação projetiva, idealização, etc. Para os analistas kleinianos o essencial na transferência não reside na relação entre passado e presente, mas sim na relação existente entre mundo interno e mundo externo. Daí, pode ser inferido que as relações com as figuras parentais reais já contêm elementos de uma transferência porque a criança não se relaciona nem reage aos pais reais tal qual eles são e como existem, mas sua percepção deles já está colorida e marcada por suas introjeções e projeções. Assim, o que está em jogo na transferência não são as imagos dos pais (ou de quaisquer objetos) como representações de lembranças e de vivências reais acontecidas no passado. Melanie Klein (1952) afirma que "minha concepção de transferência como algo enraizado nos estágios iniciais do desenvolvimento e nas camadas mais profundas do inconsciente é muito mais ampla, envolvendo uma técnica através da qual, a partir da totalidade do material apresentado, são deduzidos os elementos inconscientes da transferência. Por exemplo, relatos de pacientes sobre suas vidas, relações e atividades cotidianas não só nos oferecem uma compreensão do funcionamento do ego, mas revelam igualmente as defesas contra a ansiedade suscitadas na situação de transferência, caso exploremos seu conteúdo inconsciente. O paciente está fadado a lidar com conflitos e ansiedades, revividos na relação com o analista, empregando os mesmos métodos a que recorreu no passado. Isto quer dizer que ele se afasta do analista como tentou se afastar de seus objetos primários; tenta cindir a relação com eles, mantendo-os como figuras boas ou más; deflete alguns dos sentimentos e atitudes vividos em relação ao analista para outras pessoas em sua vida cotidiana, e isto é parte da situação"9.

A partir da conceituação inicial de Melanie Klein, a psicanálise kleiniana vê a transferência como uma situação total e não só o que aparece no material verbalizado na sessão, relacionando-se a conflitos, sentimentos relativos a situações repetidas, etc. A partir de Klein, a transferência é sempre vista como dirigida ao analista, que deve então interpretar a e na transferência, mostrando que o que aparece na análise é a realidade do mundo interno emergindo, se expressando e sendo experimentada naquele momento.

Esta é a questão mais básica e essencial da análise kleiniana: a perenidade e a dimensão ampla da experiência emocional como material primordial e contínuo do trabalho da análise. Assim, além do material falado, há o material não verbal (gestos, mímica facial, movimentos). Enfim, tudo que, de alguma maneira, o paciente mostra ao analista. Somente assim o analista poderá perceber e sentir o mundo interno do paciente, como ele funciona, e como se dão as relações entre o paciente (seu ego), seus objetos e também as relações dos objetos entre si. É esta visão de conjunto que dá à transferência uma concepção dinâmica de movimento ininterrupto, do mesmo modo como se dá a emergência e o funcionamento das fantasias.

Freud descreve a contratransferência como o resultado de aspectos do analista que interferem na análise. Esta concepção tem uma conotação negativa, de entrave ou de impedimento para o andamento da análise. O exemplo clássico desta visão é o caso da reação de Breuer a Anna O., analisada posteriormente por Freud que identificou a transferência amorosa da paciente e a reação não elaborada e atuada do analista a ela10.

Aos poucos, vários autores ampliaram o conceito de contratransferência, que cresceu, se expandiu e passou a abarcar outras coisas. Paula Heimann (1950) foi a primeira psicanalista a apresentar esta nova visão em um congresso internacional da IPA, causando surpresa e até mesmo reações violentas de analistas conservadores. Heimann abriu um caminho de investigação que foi percorrido por vários analistas que trouxeram contribuições importantíssimas para este conceito. Contratransferência passou a ser considerado como tudo o que o analista vive e experimenta em sua relação com o paciente. Em determinado ponto de seu artigo, Heimann diz: "Do ponto de vista que estou ressaltando, a contratransferência do analista não é somente parte integrante da relação analítica, mas é criada pelo paciente, é parte da personalidade do paciente"11. A pergunta fundamental é: como usar isto? Se o analista experimenta algo, é porque algo do paciente o atingiu. Se o analista é capaz de perceber o que ele experimenta e se é capaz de compreender o que viveu, separar o que é dele do que é do paciente ou até mesmo do que não é dele, ele passa a ter uma visão de alguma coisa do paciente espelhada por sua própria introspecção. Algo como se acontecesse uma visão em duas direções, servindo para detectar aspectos internos que se passam na relação e que causam impacto no analista. O uso da contratransferência é muito importante, devendo o analista ser capaz de utilizar o que ele experimenta e não apenas dizer ao paciente o que ele percebeu e identificou.

e) Identificação projetiva e a função de continência do analista

Devido às limitações do tempo e para encerrar, penso ser importante dizer algo sobre estes dois tópicos, importantíssimos na dinâmica da psicanálise kleiniana de nossos dias. Os principais desenvolvimentos sobre a identificação projetiva, a função do pensamento e a função continente do analista devem-se a Wilfred Bion, que foi discípulo de Melanie Klein. Graças a suas idéias e formulações originais, Bion tornou-se a maior referência para grande número de analistas kleinianos contemporâneos. Pode-se dizer que os chamados "bionianos" formam um grupo bem definido e caracterizado dentro da psicanálise kleiniana hoje. De novo, repete-se a coisa dos nomes: se antes havia a questão sobre ser "freudiano" ou "kleiniano", hoje agrega-se a questão de ser "bioniano" como um "kleiniano" que tecnicamente trabalha primordialmente utilizando as idéias de Bion.

Em seu artigo "Attacks on linking" (1959)12, Bion introduz e começa a desenvolver seu modelo de identificação projetiva como meio de comunicação na relação de alguém (bebê ou paciente) com um objeto do tipo recipiente, que ele denomina continente. A situação é descrita em termos de uma relação entre conteúdo e continente, ou em uma terminologia mais atual, entre continente e contido. Enquanto continente, o analista deve exercer ativamente uma função de receber, processar, elaborar e devolver aquilo que o paciente projeta para dentro de sua mente. O mecanismo psicodinâmico deste modelo de relação é a identificação projetiva e, historicamente, ele se baseia na relação mãe-bebê. Dizendo em outras palavras, a relação da dupla analítica repete a relação primitiva do bebê com sua mãe, na qual a forma de comunicação era essencialmente pré-verbal.

Bion criou uma expressão para designar a função materna que atua dentro desta relação: a "capacidade de revêrie". Esta função pode ser compreendida como a capacidade da mãe de, recebendo os conteúdos emocionais do bebê com toda sua carga de ansiedade associada, relacioná-los à sua própria capacidade de processar este conteúdo, inicialmente intolerável (por isto mesmo excindido e projetado pelo bebê), por meio da função do pensamento. Depois disto, a mãe deve dar uma devolução adequada e aceitável que possa ser reintrojetada pelo bebê sem causar ansiedade insuportável, vivência catastrófica de horror ou de aniquilamento dentro dele.

Ao introduzir este modelo, Bion nos mostra a enorme importância do ambiente representado pela mãe para a sobrevivência psíquica e para o posterior desenvolvimento da criança. É através da experiência repetida das constantes projeções de seus conteúdos para dentro da mãe, seguida pela elaboração e transformação da experiência emocional inicialmente insuportável em outra experiência mais assimilável, que o bebê vai constituindo um núcleo do objeto bom que, por seu turno, vai constituir o núcleo de base de um ego integrado. Fica claro, a partir destas idéias, que a função analítica se torna essencialmente algo da ordem da função de conter. Para Bion, a função de conter é algo ativo, uma capacidade de transformar, por meio da função do pensamento, experiências emocionais inicialmente insuportáveis em experiências assimiláveis, pois a transformação lhes confere uma sinificação mutativa.

O instrumento que permite ao analista o exercício da continência é a interpretação. Transformando-se num objeto continente por meio de sua capacidade de interpretar, que dá um significado às experiências emocionais do paciente, o analista, na análise, se torna o núcleo do objeto bom introjetado. Na condição de objeto pensante e capaz de transformar a experiência emocional do paciente, o analista torna-se então desejável para o paciente. Sua presença é sentida como importante e necessária, como facilitadora dos processos de mudança psíquica autêntica. Se não existe uma constância e um ritmo intensivo no trabalho analítico, o analista é vivido como objeto ausente, experimentado como atacado, danificado, morto e perdido. Dizendo de outra forma, pela identificação projetiva, o objeto ausente é transformado num objeto mau, representado internamente como abandonando a criança (ou o paciente). Como se trata de um processo dinâmico, uma infinidade de combinações é possível nestas experiências emocionais.

Em um de seus últimos trabalhos, que foi publicado depois de sua morte em 22 de setembro de 1960, "Sobre a saúde mental" (1960)13, Melanie Klein faz uma revisão de suas idéias sobre o desenvolvimento da personalidade e suas vicissitudes. Revê os mecanismos mais básicos do desenvolvimento da criança, fala da importância inicial da mãe e dos objetos e, no último parágrafo do texto, ela trata do que chama de impulso à integração. Klein diz que este impulso se origina de um sentimento de que as diferentes partes do self são distantes e estranhas umas às outras. Também faz parte dele "o conhecimento inconsciente de que o ódio só pode ser mitigado pelo amor e se os dois sentimentos forem mantidos separados, esta mitigação não pode se dar. Klein diz que todo processo de mudança e de integração implica numa experiência de dor, pois a excisão do ódio, da destrutividade e suas conseqüências acarreta sentimentos de angústia e sofrimento. Ela diz ainda que, numa pessoa normal, mesmo quando há alguma oscilação entre os efeitos causados por experiências perturbadoras, internas ou externas, o impulso à integração entra em ação, conduzindo-a de volta ao equilíbrio. É tudo muito dinâmico e não existe a integração completa, mas quanto mais o indivíduo se esforça nesta direção, mais insight ele terá sobre seus impulsos e sobre suas ansiedades, mais forte será o seu caráter e maior seu equilíbrio mental.

A psicanálise kleiniana tem como objetivo proporcionar aos analisandos um meio de obtenção de mudança psíquica. Somente através do trabalho reiterado das fantasias inconscientes, do vivido transferencial e da redução das dissociações internas com a conseqüente integração do ego e melhor capacidade para lidar com a realidade, torna-se possível um ganho de qualidade no viver, nas relações com as pessoas, no trabalho e na criatividade. Em outras palavras, a análise visa proporcionar o predomínio de Eros sobre Tânatos. Isto é crescimento pessoal e só pode ser conseguido com muito trabalho e não sem sofrimento. Porque na vida nada é de graça.

 

 

Endereço para correspondência
Rua São João Evangelista, 451/102 - São Pedro
30330-140 - BELO HORIZONTE - MG
Tel. (31)3293-6520
E-mail: fjlneves@uol.com.br

Recebido em 15/06/2007
Aprovado em 27/06/2007

 

 

SOBRE O AUTOR

Flávio José de Lima Neves
Psicólogo. Psiquiatra e psicanalista.. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

1 Trabalho apresentado em painel na aula inaugural do CPMG em 05/03/2007.
2 GROSSKURTH, P. O mundo e a obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
3 BARROS, Elias M. R. Melanie Klein: evoluções. São Paulo: Escuta, 1989.
4 SEGALL, H. A obra de Hanna Segall. Rio de Janeiro: Imago, 1982.
5 STRACHEY J. The nature of the Therapeutic Action of Psychoanalysis (1934), In: Int. J. Psycho-Anal., 15:127-159.
6 CAPER, R. Fatos imateriais. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
7 FREUD, S. The Unconscious (1915) SE v. XIV. The Hogarth Press, London, 1974.
8 FREUD, S. Fragments of an Analysis of a case of Hysteria (1905 [1901]), SE v. VII, The Hogarth Press, London, 1974.
9 KLEIN, M. As origens da transferência (1952). Inveja e gratidão e outros trabalhos. 1946-1963. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
10 FREUD, S. Studies on Hysteria, Fräulein Anna O. (Breuer) (1893-1895), SE v. II, The Hogarth Press, London, 1974.
11 HEIMANN, P. On Countertransference, In: Int. J. Psycho-Anal. 1950, n. 35, 81-84.
12 BION, W. Attacks on linking (1959), In: Int. J. Psycho-Anal., n.40.
13 KLEIN, M. Sobre a saúde mental (1960). Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963).Rio de Janeiro: Imago, 1973.

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