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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007
TEORIA PSICANALÍTICA
Um olhar sobre o fetichismo
Looking at fetishism
Un regard sur le fétichisme
Carlos Antônio Andrade Mello
Circulo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
O texto põe em evidência uma visão ao mesmo tempo histórica e conceitual do fetichismo, não só em sua relação mais particular com a perversão mas, também, no que se refere aos destinos da sexualidade.
Palavras-chave: Perversão, Fetichismo, Objeto fetiche, Desmentido, Recusa da castração, Clivagem do eu.
ABSTRACT
A view of fetishism, both historical and conceptual, not only in relation to that which is specific to perversion but, also, concerning the vicissitudes of sexuality.
Keywords: Perversion, Fetishism, Fetish, Denial castration, Splitting of ego.
RESUMÉ
Le texte met en évidence un regard, à la fois, historique et conceptuel sur le fétichisme, pas seulement dans son rapport plus particulier à la pérversion, mais aussi avec les autres destins de la sexualité.
Mots-clés: Pérversion, Fétichisme, Objet fétiche, Déni de la castration, Clivage du moi.
Ó tosão que até a nuca encrespa-se em cachoeira!
Ó cachos! Ó perfume que o ócio faz intenso!
Êxtase! Para encher à noite a alcova inteira
Das lembranças que dormem nessa cabeleira
Quero agitá-la no ar como se agita um lenço!1
O interesse de Freud pelo Fetichismo perpassa sua obra, desde "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" (1905), até "A Divisão do Ego nos Processos de Defesa" e "Esboço de Psicanálise", ambos de 1938, distribuindo-se em inúmeras abordagens que, direta ou indiretamente, são contribuintes ao estudo do tema.
Em "Três Ensaios", após enunciar a existência de situações em que o "... objeto sexual normal é substituído por outro que conserva alguma relação com ele, mas é inteiramente inadequado para servir ao objetivo sexual normal"2, denominando-o fetiche, Freud já estabelece duas condições fundamentais em sua ocorrência:
Estabelece a diferença entre os casos em que o objetivo sexual, considerado normal, é inteiramente abandonado em favor do objeto substituto e aqueles em que tal objeto deve preencher uma condição fetichista para que o objetivo sexual seja atingido.
Citando textualmente, "Certo grau de fetichismo, portanto, está habitualmente presente no amor normal, especialmente naqueles seus estágios em que o objetivo sexual normal parece inatingível ou sua consumação é impedida".3
São comuns situações como esta na vida amorosa e, na literatura, os exemplos são inesgotáveis. Mas, neste ponto, Freud vem marcar a diferença, advertindo que "A situação só se torna patológica quando o anseio pelo fetiche passa além do ponto em que é meramente uma condição necessária ligada ao objeto sexual e efetivamente toma o lugar do objetivo normal, e, mais, quando o fetiche se desliga de um determinado indivíduo e se transforma no único objeto sexual".4
Mas, em se tratando de normal e de patológico, de objeto e de substituto, é hora de verificar-se, a esta altura da obra freudiana, a que se referem tais posições.
Aqui é considerado como objetivo sexual normal a união dos órgãos genitais na cópula, que conduz ao alívio da tensão sexual. Porém, marca o texto, estas denominações de normal e patológico também podem servir de base para a sua classificação. "As perversões são atividades sexuais que a) se estendem, num sentido anatômico, além das regiões do corpo que se destinam à união sexual ou b) demoram-se nas relações imediatas com o objeto sexual, que devem normalmente ser atravessadas rapidamente no caminho em direção ao objetivo sexual final".5
Vê-se como Freud estava apenso ao critério de normalidade quanto à anatomia da sexualidade e, até, ao critério de tempo para o desenvolvimento do ato sexual, conferindo à perversão o equivalente de uma conduta sexual desviante. O catálogo das perversões era uma herança do direito canônico para a medicina do século XIX e ele, Freud, estava coerente com o pensamento de sua época.
O que se pode dizer quanto ao objeto e seu substituto? O termo fetiche, em sua origem, refere-se a "Objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto, ou então, objeto inanimado ou parte do corpo considerada como possuidora de qualidades mágicas ou eróticas. Em sua origem mais remota, de 1605, sortilégio, amuleto, do português feitiço, do latim factitius".6
Apropriado pela psicanálise, refere-se a algo que é colocado em lugar do objeto sexual, podendo ser uma parte do corpo, inapropriada para as finalidades sexuais, ou algum objeto inanimado que tenha relação atribuível com a pessoa que ele substitui, como uma peça de roupa, um adereço ou até um brilho no nariz, tomando o exemplo com que Freud inicia o texto Fetichismo, em 1927 (Glance at the nose e Glanz auf der Nase).
Neste texto, vai-se direto ao estabelecimento de que o fetiche é um substituto para o pênis e, para ser fiel ao autor, "...não se trata de um substituto para qualquer pênis ocasional, e sim para um pênis específico e muito especial, que foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido... Para expressá-lo de modo mais simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que – por razões que nos são familiares – não deseja abandonar. O que sucedeu, portanto, foi que o menino se recusou a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem pênis".7
Um horror instalado que agia em causa própria, pois, a partir de agora, seu próprio pênis corria risco semelhante de desaparição.
Esta recusa, esta "negação" da percepção, em nada alterou sua crença de que as mulheres possuem, de fato, um pênis. Segundo Freud, "No conflito entre o peso da percepção desagradável e a força de seu contra-desejo, chegou-se a um compromisso, tal como só é possível sob o domínio das leis inconscientes do pensamento – os processos primários".8
A mulher teve um pênis e, agora, algo substituto tomou seu lugar e o mesmo interesse que aquele merecia, desmentindo sua inexistência.
"O horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação deste substituto, fazendo do fetiche um indício do triunfo sobre a ameaça da castração e uma proteção contra ela... Na vida posterior, o fetichista sente desfrutar de ainda outra vantagem de seu substituto de um órgão genital. O significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de modo que não é retirado do fetichista; é facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação sexual ligada a ele. Aquilo pelo qual os outros homens têm de implorar e se esforçar pode ser tido pelo fetichista sem qualquer dificuldade".9
Freud, após admitir que nenhum indivíduo do sexo masculino é poupado do susto da castração diante da primeira visão do genital feminino, não consegue explicar por que alguns se tornam homossexuais, outros fetichistas e a grande maioria supera o fato.
O fetiche, assim, funciona como um memorial que está no lugar de algo, do vazio. Porém, ao colocar algo no lugar, marca-se, mais que tudo, a existência da falta, operação da ordem do simbólico, como presença de uma ausência.
A natureza deste objeto substituto é de uma variedade infinita, mas intimamente ligada à cena relatada acima, via de regra tem relação de deslocamento a partir do olhar para o pênis faltante. É então que a defesa é acionada, através do deslocamento do olhar, não só no espaço, mas também no tempo, recuando até o último elemento vislumbrado, ilusório da completude. Neste aspecto, funciona como uma lembrança encobridora. Há o congelamento da imagem que antecedeu à descoberta da falta, representada por um objeto qualquer, e seu estabelecimento como fetiche.
A partir da posição da criança, o foco do seu olhar pode dirigir-se ao pé, ao sapato, às roupas íntimas, aos pêlos pubianos, a qualquer objeto capturado por este olhar desviante. É importante assinalar como os cabelos se prestam com facilidade a esta função, não só pela sua associação com a anatomia genital mas, principalmente, com o fato apaziguador de voltarem a crescer quando cortados. Enfim, o fetiche é um objeto não sexual, mas que deve estar intimamente associado ao corpo, visível e inanimado.
Dois aspectos devem agora ser examinados detidamente: Um deles é o processo utilizado da recusa, rejeição, ou desmentido – Verleugnung. Freud já havia utilizado este conceito antes, em 1924, nos textos "A Organização Genital Infantil", "A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose" e em "Algumas Conseqüências Psíquicas na Diferença Anatômica entre os Sexos" e vem a ser o modo de defesa próprio da perversão.
Esta recusa da realidade tem um correspondente no jargão jurídico que é a Refutação, sendo estabelecido na lei que, para se refutar, é preciso conhecer primeiro. Não é um recurso exclusivo da estrutura perversa, mas de todos os seres sexuados, na medida em que teriam um eu perverso, a partir de sua clivagem, como preço da diferença sexual. O eu reconhece a realidade, mas faz de conta que não.
"Eu sei, mas mesmo assim..."10 Curiosa a gramática da Verleugnung. Só há mesmo assim, por causa do eu sei, ou seja, só há fetiche porque o fetichista sabe que a mulher não tem o falo. Percebe-se, concentrado na adversativa mas, todo o apelo à recusa. Esta colocação vem ao encontro do que se propõe abordar agora, a clivagem.
Para introduzir o segundo aspecto anunciado, a clivagem do eu, considera-se que, em termos da lógica aristotélica, que obedece ao princípio da não contradição, as questões são falsas ou verdadeiras, as coisas são ou não são. No entanto, há outras modalidades lógicas que regem o aparelho psíquico e o inconsciente não segue, necessariamente, ou isto ou aquilo e sim, isto e aquilo, é e não é, comportando tanto o excludente como o conjuntivo. Duas proposições antitéticas coexistem sem que uma anule a outra.
Este segundo aspecto é alcançado através de um salto pela obra freudiana até o ano de 1938, nos textos "A Divisão do Ego no Processo de Defesa" e também no "Esboço de Psicanálise" (cap. VIII).
O primeiro, texto tardio, postumamente publicado, é o testamento freudiano em relação ao eu, afirmando que este, ao invés de ser o lugar da síntese, está irremediavelmente dividido. É descrita a suposição de um conflito entre uma exigência por parte do eu e uma proibição por parte da realidade. Diante disto, o sujeito, no caso a criança, não toma nenhum desses rumos, ou melhor, toma ambos, simultaneamente. Responde ao conflito por duas reações contrárias. Por um lado, utilizando certos mecanismos, desmente a realidade, pelo outro, reconhece o perigo dessa realidade e assume o medo desse perigo com um sintoma.
"Ambas as partes envolvidas na disputa obtêm sua cota: permite-se que a pulsão conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no eu, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão do eu".11
Freud estava referindo-se à situação do menino ameaçado de castração pela prática da masturbação. E como se continuasse sua exposição, desta vez já dire-cionada ao fetichismo, afirma, em "Esboço de Psicanálise"
"Convenci-me pela primeira vez disto nos casos de fetichismo. Esta anormalidade... baseia-se, como é bem sabido, em que o paciente (que é quase sempre do sexo masculino) não reconhece o fato de que as mulheres não possuem pênis – fato que lhe é extremamente indesejável visto tratar-se de uma prova da possibilidade de ele próprio ser castrado. Nega, portanto, a sua própria percepção sensorial, que lhe mostrou que falta um pênis aos genitais femininos, e aferra-se à convicção contrária. A percepção negada, contudo, não fica inteiramente sem influência, pois, apesar de tudo, ele não tem a coragem de afirmar que realmente viu um pênis. Em vez disso, o paciente apodera-se de alguma outra coisa – uma parte do corpo ou algum outro objeto – e lhe atribui o papel de pênis sem o qual não pode passar... As duas atitudes persistem lado a lado durante toda a vida, sem se influenciarem mutuamente".12
Portanto, o fetiche guarda essa dupla vertente no inconsciente: recusa e afirma a castração, a partir da clivagem do eu, como duas correntes, contínuas, paralelas e autônomas.
No desenvolvimento pós-freudiano, esta coexistência de presença/ausência reforçou a atenção para o caráter simbólico desta operação. Em a "Significação do Falo", Lacan afirma que o pênis dá uma certa fachada equívoca ao falo, portanto é deste que se trata o tempo todo. No Seminário A Relação de Objeto, lembra de uma passagem em que Freud, referindo-se à posição fundamental de negação na relação com o fetiche, diz que se trata de fazer manter-se de pé (aufrecht zu halten) essa relação complexa, como se falasse de um cenário. Daí talvez tenha lhe ocorrido, a Lacan, a imagem de uma cortina, interposta entre o sujeito e o objeto, vinculado a um mais-além, que é falta, que é falo que falta, que é símbolo.
"O fetiche não é o falo, mas o véu por trás do qual se deixa desenhar a possibilidade de sua presença escondida".13
Véu que, como a cortina, ante uma cena, mostra e esconde, vela e desvela.
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Endereço para correspondência
Av. Brasil, 283/1502 - Santa Efigênia
30140-000 - BELO HORIZONTE - MG
Tel.: (31)3241-4647
E-mail: andrademello@terra.com.br
Recebido em 15/06/2007
Aprovado em 27/06/2007
SOBRE O AUTOR
Carlos Antônio Andrade Mello
Médico. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
1 Baudelaire, C. A cabeleira in As flores do mal (edição bilíngüe) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985 (Tradução e notas de Ivan Junqueira)
2 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB. Rio de Janeiro: Imago,1976, v.VII.
3 Idem
4 Idem
5 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.VII.
6 HOUAISS, A.; VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
7 Freud, S. Fetichismo. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XXI.
8 Idem.
9 Idem.
10 Mannoni, O. Eu sei mas mesmo assim... in Psicose – uma leitura psicanalítica. 2. ed. Org. por Chaim S. Katz. São Paulo: Escuta, 1992.
11 Freud, S. Divisão do ego no processo de defesa. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XXIII.
12 Freud, S. Esboço de psicanálise. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XXIII.
13 Valas, P. Freud et la pérversion. in Ornicar? Revue du Champ Freudien, n.45, 1988 ( Trad. do autor).