Reverso
ISSN 0102-7395
Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007
RESENHA
Senha para novos saberes psi: "aprendizes da clínica"
Célio Garcia
Reis Filho, José Tiago dos; Franco, Vânia Carneiro (Orgs.). Aprendizes da Clínica: novos fazeres psi. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. 234 p.
Tenho em mãos "Aprendizes da Clínica. Novos fazeres psi", volume que reúne textos de colegas psicólogos ou ligados à área da Psicologia, contendo relatos ou reflexões que dão conta de experiências recentes cuja originalidade justifica o epíteto "novos fazeres psi". Trabalhando na PUC-Minas, os organizadores da publicação identificam a idéia que deu origem ao livro com o próprio processo de implantação do curso de psicologia no campus de Betim. "O curso foi pensado a partir de uma psicologia que articula suas teorias e concepções de homem visando a transformação social", nos diz José Thiago dos Reis Filho1.
Os temas abordados são estes por nós reconhecidos como fazendo parte das respostas que a prática da Psicologia trouxe frente ao desafio atual; sua enumeração, associando-se o título de cada texto a um comentário que nos ocorreu, é marca de nosso agradecimento e reconhecimento da valiosa contribuição que estes colegas registraram no livro.
1. Clínica-escola ou a questão da transmissão
Não o ensino, mas a transmissão. Aqui encontramos lugar para propor uma "elaboração forçada" (Lacan) ou "efetuação" (Cavaillès) quando se tratar de aprendizagem. Não é uma visão romântica que vamos adotar com relação ao aprendizado ou o aprendiz. Vamos falar de uma "escolha forçada" quando tivermos de mencionar a questão da liberdade para a qual há causa e consentimento; não se trata de garantia a ser esperada por força de uma escolha racional, como teriam preferido a burocracia e a taxonomia dos objetivos educacionais. Vamos admitir um lugar vazio e como o sujeito aprendiz vem aí se localizar.
Em vez de uma técnica de ensino que se baseia no falso democratismo de uma relação tida como simétrica entre professor e aluno, ou inexistente como pareceria ser o caso do programa informatizado, vamos adotar a noção de efetivo (Cavaillès), distinta de programação. Para Cavaillès a idéia de efetuação era distinta da idéia de programa.
Há sempre mais de um programa possível, cada um podendo em princípio percorrer o caminho que melhor lhe aprouver. Só no a posteriori o matemático/o analista de sistemas percebe o caráter necessário de cada teoria.
Nem todo aluno encontra-se automaticamente em situação de aceitar que para problemas há soluções. Pensar que os problemas de aprendizagem desapareceram por obra e graça do computador é confundir a programação com o "efetivo" (Cavaillès).
Se o programa de computador está isento quanto aos efeitos do sujeito (programador), em princípio o programa em nada nos garante quanto ao aprendiz o qual nem sempre está disposto a aceitar a prova.
Ao cumprir os passos de um programa, ele teria que pegar o gesto de quem fez o programa, de quem bolou a boa solução. Sendo verdade que o gesto não está no programa (o programador deixa um lugar vazio, ele não o preenche com a marca do autor), este gesto circula no programa, entre as linhas. Mais que ocupar o lugar de quem fez o programa, diria que o aluno deve pegar o movimento. Para isso deve colocar-se no lugar vazio deixado pelo programador o qual não comparecendo com sua "subjetividade" dá a impressão de total ausência. É justamente por encontrar esse lugar vazio que o aluno poderá numa primeira abordagem comparecer com sua subjetividade.
Só assim o programa de aprendizagem com a ajuda do computador evitará criar autômatos diante do computador, deixando de ser simples transmissor de inépcia diante das verdades matemáticas.
2. Atendimento de crianças, quase sempre trazidas por terceiros ou cujo atendimento responde a uma manifestação da escola
Pareceu-me que há dois tipos de fracasso que podemos constatar na escola:
1. fracasso do aprendiz frente à tarefa, questões ou problemas;
2. fracasso do candidato num processo de seleção por comparação e atribuição de classificação por notas, vestibular, "provão", ou outro tipo de classificação.
O candidato pode ser considerado um fracassado pela instituição escolar, sem que por isso o insucesso frente à tarefa tenha sido fator decisivo na avaliação do desempenho, ou seja, o processo de seleção pesa por vezes mais que a solução do problema ou questão.
Queixas freqüentes e habituais fazem crer que estudantes se sentem ameaçados pelo processo de seleção a que são submetidos. Sem identificar com clareza o processo em que estão incluídos, declaram ter se sentido nervosos durante a execução da tarefa, ou da prova melhor dizendo. O termo prova sugere que o estudante terá que se submeter, ou atravessar experiência de provação, cujo resultado pode significar inclusão ou exclusão. Ora, o saber ou o conhecimento atingido por alguém não possuem necessariamente essa marca. Penso que antigamente esse processo de seleção não estava entregue precipuamente à escola, ele se dava por outros dispositivos. A escola parecia estar preservada; havia um certo pudor por parte de nossos educadores.
Certa vez sugeri uma "reforma do entendimento" como objetivo da escola, lembrando o título de Spinoza; em vez de aprovado numa seleção, e por isso merecedor de recompensas, salários, e benesses a serem auferidas, teríamos um jovem a quem coube uma abertura para as questões que a escola, ela mesma suscita. Em vez de "reforma do entendimento", sei que a escola está voltada para outros padrões.
Assim, a escola passou a ser instituição comprometida com duas missões, uma de transmitir ou fazer descobrir o conhecimento, outra que diz respeito à seleção dos mais capazes.
As duas se imbricam de tal sorte que já nem nos damos conta; para chegar a formular meus comentários exigi de mim um olhar ingênuo.
Pergunta: seria possível pensar uma escola que tivesse compromisso somente com o primeiro item, ou seja, aprender, descobrir, ter acesso ao conhecimento, sem que a seleção pesasse tanto?
3. Adolescentes trabalhadores e não somente adolescentes
Os programas assistenciais procuram resolver os problemas emergenciais levando os jovens mais rápida e facilmente ao mercado de trabalho, mas não desenvolvem a capacidade de resolver os conflitos através da palavra, sem tirar a liberdade ou a vida dos outros, o que só a condição de sujeito moral permite.
O que vimos foi uma incipiente reflexão sobre os direitos, iniciada ambiguamente a propósito da questão do trabalho, prevalecendo por vezes sua matriz bíblica "ganharás o teu sustento, pelo suor do teu rosto"; por outro lado, para estes programas o trabalho está mais associado ao dispêndio de energia – ao labor – do que à criatividade que o trabalho pode encerrar, ao quantum do trabalho e não ao trabalho qualitativo. É dever e mera necessidade de sobrevivência.
A sociedade do trabalho parece que foi a principal fonte na tentativa de reordenar a sociedade, pelo menos diante da ameaça de desagregação social vivida. E o resultado disto foi uma concepção de cidadania limitada porque montada nos deveres ou nos direitos parcelados, o que vinha substituir a cidadania regulada do período de regime militar autoritário.
Encontramos a mesma temática – a questão do trabalho – em se tratando de programas de atendimento ao usuário de serviços em saúde mental, assim como em programas destinados a meninos e adolescentes encontrados nas ruas dos centros urbanos; trata-se de rever nosso ideário que inspira e dá fundamento a essas intervenções na coletividade. Vale dizer, uma vez rastreados alguns pontos nesse ideário, rever encaminhamento para problemas atinentes a uma política de práticas sociais.
4. Loucura, saúde mental e oficinas onde alguma experiência do desvio/da loucura é possível
Os programas de atendimento ao jovem infrator têm admitido a idéia de recuperação graças ao trabalho executado nas Oficinas pelos sócio-educandos freqüentando a instituição. Os efeitos do trabalho nas Oficinas estão associados à idéia de que "na base do trabalho, no trabalho e por meio do trabalho o homem criou a si mesmo" (Karel Kosik, "Dialética do concreto").
Na descrição dos efeitos constatados, tem sido mencionada a "reinserção social" como sendo um critério a ser adotado quanto ao sucesso das medidas socioeducativas.
O "trabalho" está orgânica e estruturalmente ligado à idéia de social, sociabilidade, sociabilização; assim não seria demasiado adotar o critério "reinserção social" como objetivo de uma medida socio-educativa acompanhada do atendimento indicado.
Quando atendemos um jovem na instituição, um universo de saberes emerge a partir de competências a serem organizadas e reconhecidas. O universo em questão vem a ser amálgama de saberes já codificados ao lado de saberes "malditos", "saberes de vida" e "saberes de morte". Por vezes, saberes que têm a ver com a violência e com a contravenção, nem por isso menos astuciosos e inventivos. Até então tais saberes permaneciam (malditos, dizemos) inviabilizados politicamente em nossa democracia social, seus detentores, mantidos em exclusão, praticando tão-somente ou quase sempre uma linguagem da violência como meio da expressá-los (malditos, dizemos uma segunda vez). Para que pudéssemos levá-los em conta, necessário se fazia uma análise que os reconhecesse e que a maldição fosse levantada.
5. o idoso isolado/acolhido pela instituição, ou seja, privado da condição de mais antigo, que tem experiência
Posso trazer uma pequena nota sobre a modernidade contemporânea (era do apogeu da ciência) e a experiência... que já não se encontra. [Para entender a expressão "não se encontra", basta lembrar expressão do coloquial mineiro, quando nossas secretárias, ao responderem a procura por alguém, dizem Dr. Fulano não se encontra. Entenda-se não está, sumiu sem deixar notícia. Foi o que aconteceu com a experiência na era do advento da modernidade.] O termo experiência se presta a uma exploração de nossas questões sabendo-se que o encontramos tanto no discurso da ciência quanto nos caminhos da Psicanálise quando ela se debruça sobre a vida pessoal de cada um. Igualmente quando nossas instituições acolhem e protegem, mas isolam não permitindo que cada um viva sua experiência da loucura, da velhice, do desvio social.
6. liberdade: responsabilidade e risco
O termo responsabilização ou responsabilidade espera até hoje exame da carga semântica, moral, religiosa que ela carrega (como outros termos de uso freqüente em nosso vocabulário); propomos aqui assinalar o termo-raiz "resposta" (inicialmente na sua forma latina "responsa") na composição do nosso termo "responsabilidade". Pois bem, a responsabilidade será para nós argüida através da "resposta" dada pelo interessado em situações anteriores e/ou atuais. Quando ele se der conta, vai encontrar a responsabilidade já assumida escamoteada ou não, no lugar oportuno. Oportuno quer dizer antes que tudo tenha acontecido.
Nossos melhores programas em "saúde mental" poupam o louco da responsabilidade subjetiva (ele é dito inimputável), mantendo a responsabilidade objetiva; nesse caso, demandar que ele venha a reparar o dano causado é reconhecer sua humanidade.
O fundamento do argumento é jurídico, não se solicita a psicologia para nada, desta vez.
O objeto jurídico nunca é radicalmente objeto, esclarecem os juristas; na verdade, ele sempre estará ligado à subjetividade. Aliás, falar em objeto não significa obliterar o sujeito. Nem arruiná-lo.
A solução, como vemos, é dualista; o que era unívoco apresenta-se agora como equívoco. Para o louco, coube a responsabilidade objetiva; para o normal, responsabilidade objetiva e responsabilidade subjetiva.
Para sair desse equívoco, recorre-se ao argumento da eqüidade.
O argumento da eqüidade faz a necessária mediação em casos singulares (cas d’espèces, dizia a Filosofia), para encontrar a Persona que se distingue da coisa.
À coisa, nenhuma imputabilidade; à Persona é possível imputar seus atos.
O louco não sendo uma coisa, é sujeito a quem faz falta persona (jurídica), continua afirmando a montagem jurídica. Nesse caso, a exigência para com a subjetividade aumenta, concluem.
Acontece que o estatuto de objeto assim reservado ao louco é algo aceitável em nossos tempos. Ou se quiserem, o louco tem subjetividade frágil e deve ser protegido.
Protegê-lo é demonstração de legalidade, é bem verdade; mas não se examinou a legitimidade do dispositivo. Protegido (respeitada sua irresponsabilidade, o que o dispensa de cumprir a pena assim como comparecer diante do tribunal), ele não voltará a cometer tais atos. Sua liberdade será protegida, assistida.
7. famílias e saúde mental
É comum dizermos que a família está em crise. Possivelmente estamos vislumbrando nos tempos que passam novas formas de organização familiar; já não encontramos os mesmos personagens, nem os mesmos lugares no cenário que chamamos lar. A família monoparental é bem um exemplo, encontrando-se só a mãe ou só o pai marcando presença na casa, ou responsável diretamente no dia-a-dia no cuidado dos filhos.
A família recomposta, que resulta da reunião de marido e mulher em segundas núpcias com filhos provenientes de dois casamentos distintos, nos leva a adotar prática capaz de revolucionar nossos usos estabelecidos, até mesmo crenças que contavam com respaldo de sabedoria secular. As acusações tão freqüentes por ocasião de uma separação, a noção de culpa-critério para que o juiz confiasse a guarda dos filhos a esse ou aquele cônjuge, tudo isso passou a ser visto sob novo ângulo. Uma inovação como a guarda compartilhada vem desempenhar papel importante no acompanhamento da família.
Já surgem os casais com parceiros do mesmo sexo, logo pretendem eles adotar filhos. Assim vai se diversificando a instituição tida como a célula mater da sociedade.
Entendo que se a Psicanálise se apresenta como uma abordagem no atendimento de família, a Psicanálise deve estar acompanhando todas essas experimentações que atravessam a instituição família. Por isso que os colegas argentinos haviam criado o termo "Clínica das Transformações Familiares" no Centro Descartes para nomear o trabalho de orientação psicanalítica com a família. Assumia decididamente a equipe de psicanalistas do Centro Descartes a fase atual de transformações por que passa a família, sem nenhuma preferência por esta ou por aquela forma de organização.
8. PCC, a violência
Se a vingança foi institucionalizada, sendo substituída por montagens jurídicas e instrumentos de reparação, desapareceu o código de honra que presidia na sociedade feudal e aristocrática vingar uma afronta (ver as regras de um duelo). Se a sensibilidade de uma época leva à transformação da vingança, com a conseqüente condenação da vingança, há lugar para um discurso que vem substituir o anterior. Qual é esse novo discurso? Minha hipótese: é o discurso da vítima.
Se a vítima não está mais autorizada a falar em vingança contra quem a ofendeu, o discurso * vitimário surge como disponível. O poder da compaixão em nossa sociedade, em nossa cultura, é um * viés tomado em nossa época pela exigência democrática.
Por outro lado, o estatuto de vítima prevê um discurso e um relato plausível, crível, confiável, graças ao qual a pessoa apresenta o drama de uma vida ordinária.
Como lidar com essa figura enigmática? Os operadores do antigo Direito Romano, ao incluírem essa vida humana marcada pela forma da exclusão na ordem jurídica, admitiram tratar-se de figura reveladora da chave dos direitos, das liberdades formais e da soberania assim como dos códigos do poder político. Com isso queriam significar os romanos o que havia por trás do processo semeado de conflitos através dos quais os direitos e liberdades formais foram estabelecidos; o Homo sacer poderá ser morto sem que sua eliminação física seja ocasião para inculpação, nem rituais.
Parabéns aos colegas que, com este livro "Aprendizes da Clínica", tanto nos ensinaram.
Endereço para correspondência
Rua Santa Maria do Itabira, 87
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Tel.: (31)3221 5684
E-mail: celiogar.bh@terra.com.br
Recebido em 15/06/2007
Aprovado em 27/06/2007
1 Esta resenha é uma ocasião para homenagear a memória de José Tiago, que tão cedo nos deixou.