30 56A relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade e a psicanálise: porta de saída ou pacto com o diabo? 
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 ISSN 0102-7395

Reverso v.30 n.56 Belo Horizonte out. 2008

 

ANGÚSTIA E TRABALHO

 

As relações de trabalho contemporâneas e a perversão1

 

Contemporary work relations and perversion

 

 

Lucas Eurico Gonzaga Júnior

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Teorias e práticas recentes em gestão de recursos humanos nas organizações apontam para a possibilidade de um controle absoluto do homem sobre o ambiente, assim como sobre si mesmo. Uma análise desse novo discurso a partir de conceitos advindos da psicanálise é capaz de indicar um elo entre elementos sutis de controle inseridos em certas práticas de gestão de pessoas e a perversão, fornecendo elementos de pesquisa e reflexão para gestores de empresas e para profissionais ligados à saúde mental.

Palavras-chave: Trabalho, Organização, Perversão, Montagem perversa, Empresa.


ABSTRACT

Recent theories and practices in human resources management indicate the possibility of a complete control of man over his environment as well as himself. The analysis of this new concept from a psychoanalytical point of view shows a close relation between control strategies that are part of some management practices and perversion, generating research elements for managers and other professionals in mental health field.

Keywords: Work, Company, Perversion, Perverse organization, Business.


 

 

“O que mais me interessa na questão das perversões não é tanto a estrutura perversa, que, evidentemente, é pouco comum, mas a facilidade com a qual o neurótico se prende em formações perversas. (...) O que me interessa é a maneira como o neurótico pode chegar a entrar numa montagem perversa que lhe torne possível uma vida social, ou seja, prender-se com os outros numa mesma montagem”2.

As teorias de administração de recursos humanos nas empresas que começaram a surgir na primeira metade do século XX, refletem o contexto social e histórico em que ocorreram. As mais recentes teorias sobre gestão de recursos humanos, disseminadas a partir da década de 1980 pelas economias capitalistas com grande poder de influência, apontam para a possibilidade de um controle absoluto do homem sobre o ambiente, assim como sobre si mesmo. Através da adoção de certos procedimentos e práticas, esse homem é visto como um ser capaz de atingir níveis cada vez maiores de produtividade e qualidade, de aproveitar ilimitadamente as oportunidades que se apresentam para ele.

Enriquez (1990) aponta que as sociedades contemporâneas geram condições para a expressão da perversão à medida que estabelecem um mundo que nega a castração. Um mundo onde o poder econômico, associado às técnicas disponíveis, constitui um indivíduo que pode, se desejar, se for competitivo e brilhante, tudo obter. Um mundo no qual se torna possível antecipar o futuro, submetê-lo aos modelos explicativos elaborados pelos especialistas da matematização ou, ainda, um mundo que quer instalar seu controle nos comportamentos dos indivíduos utilizando as mais variadas técnicas. Além disso, esse autor vem esclarecer, dentro desse contexto, o papel das organizações e das relações de trabalho estabelecidas na atualidade:

“Podemos afirmar que a criação das grandes organizações, que a generalização das ciências e das técnicas, que a transformação progressiva, em nossa sociedade, de relações sociais em relações de dinheiro e mercadorias foram criadoras de indivíduos que se situam numa posição perversa, ou permitiram a tais sujeitos encontrar na estrutura social conteúdo com o qual satisfazer suas pulsões”3.

 

Duas rupturas freudianas

As formulações de Enriquez articuladas a partir de um referencial psicanalítico somente são possíveis a partir da mudança do conceito de perversão iniciado por Freud, que apontou “quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão”4 e demonstrou como o comportamento considerado perverso está presente no que se convencionou ser normalidade. Freud ressaltou ainda não ser possível fazer uma distinção tão rigorosa e clara do indivíduo perverso, pois todos os indivíduos têm, em algum nível, comportamentos semelhantes àqueles atribuídos aos perversos.

Em outra obra, Freud elucida os vínculos que constituem os grupos e rompe com a diferenciação entre o individual e o coletivo ao afirmar que “cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal de ego segundo os modelos mais variados”5. Assim, todo indivíduo traz dentro de si vá-rios grupos dos quais faz parte, como o grupo familiar, o do trabalho, o de amigos, etc. Ou seja, cada um tem o comportamento fortemente influenciado pelo grupo no qual está inserido. O contrário também ocorre simultaneamente, com um grupo se tornando a expressão dos conteúdos individuais daquelas pessoas que o constituem.

Essas duas questões apontadas por Freud de forma extremamente inovadora para os conceitos vigentes na época geraram um amplo espaço para pesquisa. A partir daí, a perversão pôde ser estudada em outras áreas, ampliando conhecimentos surgidos na atividade clínica. Faz-se necessário ressaltar que a montagem perversa – ou ainda manifestação perversa, comportamento perverso ou simplesmente perversão – apontada neste trabalho não é a mesma que a estrutura perversa sobre a qual Freud desenvolveu seu trabalho.

A elaboração freudiana sobre a perversão continuou a ocorrer durante toda sua obra, sempre com novas considerações que ampliavam esse conceito sem descartar descobertas anteriores. Esse artigo não abordará detalhadamente essas contribuições, mas é fundamental ressaltar que em um artigo inacabado datado de 1939, com o título “A Divisão do Ego no Processo de Defesa”, Freud indicou novas questões instigantes. A idéia desenvolvida neste trabalho, de um ego clivado ou cindido, funcionando em dois registros não só diferentes, mas contraditórios, pôs em xeque uma idéia anterior de uma função sintética do ego, busca neurótica para o conflito edípico.

 

O aporte lacaniano e a montagem perversa

Lacan vem depois indicar como o processo de constituição de um indivíduo perverso pode ser compreendido sob a ótica do desejo na criança em torno da noção de “ponto de ancoramento da escolha perversa no contexto da lógica fálica e no terreno da dinâmica edipiana”6. O horror à castração faz com que o gozo do perverso não possa encontrar nenhuma saída senão a de um compromisso, expressão de uma divisão, já indicada por Freud.

Enquanto o neurótico se encontra enlaçado pelo desejo do Outro, colocando-se como objeto de gozo desse Outro, posição à qual ele não é capaz de renunciar, o perverso se apresenta perante essa mesma demanda como instrumento de seu gozo e como “saber” sobre as modalidades desse gozo – na estrutura perversa, estas duas posições estão no mesmo sujeito, e isso define o fantasma perverso. Mas, se ocorre de um neurótico atingir essa distribuição de lugares, mesma do fantasma perverso, temos então uma montagem perversa (CALLIGARIS, 1986).

Ou seja, o neurótico, enlaçado pelo desejo do Outro e colocado na posição de objeto de gozo, busca sair dessa condição através de uma montagem perversa. Pois esse gozo do neurótico, ligado à sua posição de objeto, fará com que ele tente se defender, porém sua defesa nunca lhe parece suficientemente segura. Assim, o neurótico está pronto a aceitar entrar numa montagem perversa para aliviar seu sofrimento.

Faz-se necessário, então, esclarecer por quais motivos um neurótico inserido numa montagem perversa imagina ter seu sofrimento aliviado: o gozo que se obtém é o de ser instrumento do saber, que assegura um domínio do gozo do Outro, e isso gera uma grande recompensa. Além disso, numa montagem perversa, que pode conter qualquer número de pessoas, cada um é, ao mesmo tempo, instrumento e saber. Calligaris (1986) salienta que a montagem perversa é um mecanismo buscado pelo neurótico para reduzir seu grau de angústia perante o desejo do Outro. Exemplo clássico de montagem perversa, citado por este e outros autores, é o nazismo alemão.

Impossível dizer que a Alemanha nazista era um país habitado por milhões de perversos, do ponto de vista estrutural. Muito pelo contrário, era um país de neuróticos, pais de família cumpridores de seus deveres que, a partir de um líder específico (este, sim, provavelmente um perverso de estrutura), passaram a agir numa montagem perversa – “o gozo era de ser tomado numa montagem, na qual, cada um é, ao mesmo tempo, instrumento e saber, e, numa montagem que nada persegue, com o gozo do Outro, senão o seu próprio funcionamento”7.

O comandante de Auschwitz, Rudolf Hess, escreveu trezentas páginas de memórias antes de ser enforcado, justificando sua atuação no extermínio dos judeus com o argumento de ter sido um funcionário exemplar. Calligaris chama a atenção para fatos como esse, afirmando que devemos acreditar nessas respostas, pois elas mostram que o gozo de um homem como esse não está no fato de ter matado milhões de pessoas, mas seu gozo era de estar em uma montagem perversa com os outros de seu partido, e que para ter esse gozo estava disposto a pagar qualquer preço.

Além disso, esses indivíduos têm grande necessidade de controle, de criação de um contexto que pode ser conduzido por eles em todos os detalhes, e que para atingir tal objetivo o saber passa a ser um instrumento útil, pois “o saber que ele proclama já descreve o modelo da realidade. A realidade deve se adequar ao modelo construído. Se ela difere, o modelo será conservado. O perverso fará tudo para reintegrar a realidade nesse esquema, pela persuasão ou pela força”8.

 

Montagem perversa – manifestação em múltiplas faces

Feitas essas considerações, esclarecido o conceito de montagem perversa, chega-se o momento de confrontar o que foi visto até aqui com fatos e estratégias adotadas na gestão de pessoas nas empresas e nos ambientes de trabalho contemporâ-neos. Não para identificar os “culpados”, líderes perversos (de estrutura) que impõem suas formas predadoras aos seus subordinados, mas sim para compreender que tipo de laço mantém esses indivíduos ligados além do contrato formal de trabalho. Também não para ajudar as “vítimas”, profissionais que foram colocados em posição desvantajosa devido a fatores que não podem modificar, mas sim para compreender melhor o que se passa nesses ambientes, o que ocorre nessas subjetividades, o que seus sintomas e suas falas têm a nos dizer – desafios urgentes em nossa sociedade.

Uma ampla e rigorosa pesquisa efetuada por Lima (1994) destaca práticas de gestão de pessoas geradoras de controles sutis para mobilizar tanto os que comandam quanto seus comandados. E, mais ainda, como essas práticas criam um laço baseado no saber, no controle sobre o gozo, na tentativa de negar a castração e a diferença. As principais delas de forma sucinta são:

Controle sutil: implantam-se políticas de individualização, de relações indivíduo-empresa, com as quais se obtém uma redução ou o enfraquecimento das reivindicações coletivas.

Prática de conjugação da exigência e da precisão com a flexibilidade: o regulamento passa a ser apresentado com um sentido positivo, incluindo a necessidade de melhoria, qualidade e inovação, e com reduzida menção a limites ou restrições.

Conjugação de controles explícitos com outros sutis: ampliam-se o fluxo de informações e a conexão entre diversos departamentos e unidades, e, a partir do momento em que isso ocorre, a atuação de certo profissional ou departamento passa a ser conhecida por profissionais de outras áreas.

Adoção de políticas de recompensa: conjugam-se recompensas econômicas às simbólicas, como medalhas, diplomas, títulos ou outro meio capaz de atingir determinado grupo de trabalhadores.

O conhecimento e o tecnicismo: a organização passa a incorporar a utilização de conceitos das Ciências Humanas, segundo especialistas organizacionais, em referenciais científicos. Assim, essas formas de gerenciamento assumem uma posição de verdade ou de conhecimento que não pode ser contestado pelos profissionais que não detêm esse conhecimento.

Pressão exercida pelos pares: os programas de capacitação e treinamento oferecidos contribuem com um ambiente de competição interna e incentivo a uma constante superação de objetivos.

Controle através da autonomia outorgada: o trabalhador tem a permissão de usufruir da sua liberdade de uma maneira que corresponda aos objetivos da empresa. Ele também deve estar apto e disponível para mudanças ao mesmo tempo em que não pode abrir mão das metas e dos planos traçados pela organização. O controle deixa de pertencer especialmente à figura do chefe e passa a ser despersonalizado, se tornando mais sutil, mais global e difícil de ser confrontado.

Atenção dada ao cliente e a concentração sobre o exterior: perante um mercado altamente competitivo a empresa se vê constantemente ameaçada. Assim, os empregados precisam de união e de esforço constante diante das ameaças e demandas externas – um constante cenário de batalha no qual cada trabalhador deve estar preparado para assumir sua cota de empenho e dedicação.

Construção ou ênfase, pela organização, de fundamentos éticos: a valorização do trabalho como uma tentativa de tornar a empresa em algo mais do que um simples local de trabalho, como empresas que criam organizações esportivas, clubes de viagem, ou outros tipos de grupos como corais, teatro, etc. Além disso, a disseminação de histórias ou personagens “heróicos” na organização colabora para criar um ambiente cultural envolvente e recompensador.

• Individualização dos salários e dos assalariados: vinculados a planos de carreira que, por sua vez, indicam aos trabalhadores oportunidades de promoções. Os objetivos financeiros da organização passam a ser “estendidos aos indivíduos que são avaliados em função do potencial financeiro que representam”9. Esse vínculo direto entre o que o profissional pode gerar de resultados financeiros e sua posição não surge de forma clara, mas sim disperso em uma série de outros parâmetros como iniciativa, eficiência, inovação, bem-estar, etc.

Lima (1994) conclui que essas novas práticas citadas têm um caráter ambíguo e contraditório, pois, ao mesmo tempo em que falam de participação, de iniciativa, de inovação e de maior liberdade conjugada com as novas responsabilidades que o indivíduo assume na organização, elas também destacam a conformidade às normas, a necessidade de consenso e adesão aos projetos que a empresa propõe.

Já Enriquez (1990) ressalta como essas ações vêm associadas a um saber, que se torna um elemento soberano, mais forte e fundamental que o próprio indivíduo que utiliza esse saber e, além disso, aponta a posição perversa nesse tipo de relação com o saber:

“O saber enunciado possui propriedades específicas: não apenas é um saber organizacional e regulamentar, mas sobretudo um saber contabilizável. O perverso só se interessa pelos planos, pelas cifras, pelo número de pessoas destruídas ou seduzidas. Sob tais condições, os seres humanos são intercambiáveis, são apenas instrumentos, ou devem vir a sê-lo”10.

De forma geral, pode-se afirmar que a atitude dos profissionais mais valorizada e almejada pelas organizações, identificada e selecionada através da área de recursos humanos, é uma atitude vinculada ao perfil de um estrategista, pois essa capacidade estratégica não deve mais estar restrita a uma elite possuidora de conhecimentos excepcionais, mas deve se estender a todos os profissionais.

“A empresa necessita de indivíduos sutis, capazes de tomar iniciativas e de reagir o mais rapidamente possível, provando leveza e flexibilidade frente aos acontecimentos imprevisíveis, constantes e numerosos com os quais são confrontados. Todo mundo torna-se um jogador, tentando ganhar e devendo ter sucesso, mesmo nas piores condições”11.

Mesmo nas situações nas quais não seja possível contar com um profissional estrategista, a organização buscará engajar indivíduos cujos comportamentos são adequados ao estilo da empresa ou, caso isso não se torne plenamente possível, ela agirá para transformá-los, seja pelo trabalho, pela pressão do grupo, pela ideologia dominante da empresa ou ainda pelos está-gios de formação. Enfim, as organizações contemporâneas utilizarão as mais variadas e sutis práticas de desenvolvimento e gerenciamento de pessoas para moldar e/ou ajustar os profissionais em função dos objetivos que precisam ou planejam alcançar.

 

Apresentação de dois casos ilustrativos

Caso 1

Esta empresa apresenta excelentes oportunidades para os jovens profissionais que ingressam como trainees após superarem um árduo processo de seleção que chega a ter mais de 1.000 candidatos por vaga. Um dos principais atrativos para esses jovens é a universidade corporativa da empresa, que tem como objetivo aprimorar o conhecimento com um enfoque prático, de acordo com o que se espera e se exige no dia-a-dia. Entretanto, a maneira como essa proposta efetivamente ocorre apresenta características bastante incomuns em relação a outros ambientes de ensino e aprendizagem. É inegável o fato de que esses ambientes sempre geram algum nível de competição e disputa entre alunos, mas o que se detecta nessa empresa é algo bem além disso. Os cursos dessa universidade corporativa se tornam um verdadeiro campo de batalha, no qual a competição, a capacidade de ser o número um e de derrotar os colegas é bastante valorizada. Todo o ensino ocorre em um ambiente de severa concorrência, apontando que os menos capazes devem ser punidos.

“Nas salas de aula do curso, atualmente em sua quarta edição, os alunos disputam o tempo todo. Querem fazer as perguntas mais inteligentes, dar as respostas certas, apresentar os melhores trabalhos. Sobre suas mesas, há dezenas de pequenos tomates vermelhos de tecido. Cada vez que um palestrante ou aluno fala algo considerado tolice, voam tomates de todos os lados. Literalmente. Alguém faz uma pergunta boba? Tomate nele. (Ou nela. Num ambiente de hipercompetição como o da Ambev, o cavalheirismo não tem vez.) Alguém agiu de maneira considerada ingênua, pouco esperta? Carregará o apelido de Pato Novo até que um outro infeliz tome o seu lugar. É brincadeira. É sério. É divertido e é, ao mesmo tempo, cruel. Pode parecer o inferno corporativo. O surpreendente é que as pessoas que fazem a empresa parecem adorar o calor de suas labaredas”12.

O trecho acima indica um ambiente no qual, além da competitividade acirrada, não existe espaço para a diversidade. A sala de aula deixa de ser um espaço de troca para se tornar um campo de luta. Uma palavra ou resposta indesejada não está sujeita a um debate, mas sim a uma condenação sumária. Como Calligaris (1986) e Enriquez (1990) apontam, o discurso do perverso é um discurso do saber, do qual ele é o transmissor e através do qual seres humanos “são intercambiáveis, são apenas instrumentos, ou devem vir a sê-lo”13.

Outro importante aspecto a ser observado é a surpresa da jornalista que relatou os fatos com o prazer que os profissionais demonstram na disputa pelo saber. Tal fenômeno pode ser explicado pela análise de Lima (1994), que salienta como os processos de recrutamento e seleção capturam indivíduos já psiquicamente adequados aos modelos e comportamentos vigentes na organização, como também por Enriquez (1997), que indica como os profissionais devem se tornar jogadores preparados para o confronto permanente, além de demonstrarem ainda leveza e flexibilidade.

 

Caso 2

Neste caso apresentamos a situação de uma profissional após trabalhar por um período de 12 anos na empresa. Depois de receber promoções, oportunidades de desenvolvimento e se considerar satisfeita com os resultados obtidos, ela percebe que a carga de trabalho assumida não estava coerente com outros objetivos que tinha em sua vida pessoal. Uma experiência difícil levou-a a rever sua carreira.

“Nos 12 anos em que esteve na Brahma, depois Ambev, a publicitária Rita Nunes, de 33 anos, sempre trabalhou muito. E quando diz muito era muito mesmo! ‘Passava pelo menos 12 horas por dia na empresa e cheguei a participar de reuniões que começavam às 4 horas da manhã’, conta a mineira de Belo Horizonte. Graças às horas infindáveis no escritório, Rita dava conta do recado e foi recompensada por isso. Ganhou bônus quase todos os anos (a Ambev paga a seus executivos até 18 salários a mais, além dos 14 que todos recebem) e chegou a gerente de marketing. Com uma vida profissional que consumia seu tempo, ela postergou por dez anos o plano de ter filhos. Até que, aos 31 anos, a natureza decidiu por ela. A gravidez, porém, não aliviou sua agenda. As reuniões de madrugada continuaram até o sétimo mês, quando, mais uma vez, a natureza reagiu. Submetida a um estresse violento, Rita saiu da Ambev de ambulância. No hospital, teve 14 contrações em 10 minutos. ‘Quase perdi minha filha’ diz. Ela ficou uma semana internada. ‘Nunca mais voltei na empresa, nem para pegar minhas coisas’”15.

Nota-se, neste caso, como a conquista de bônus não se encontra atrelada a uma simples dedicação maior para a conquista de melhores resultados. A carga de trabalho que deve ser suportada para que se atinja um desempenho satisfatório por aqueles que desejam receber as melhores recompensas financeiras excede um limite saudável e coloca em risco a saúde do profis-sional – não parece surgir nenhuma busca de equilíbrio, tanto por parte da organização como da profissional. Segundo Enriquez (1997), a organização contemporânea exige indivíduos que querem ser sujeitos de seu destino e sua história, sujeitos presos nas identificações heróicas e prontos para se comportarem como heróis. Além disso, esses profissionais tomam a si mesmos como o ideal e “não conhecem, com efeito, nem dúvida, nem angústia, nem remorso”16.

Apesar da proximidade de um desfecho trágico para seu excesso de trabalho e da decisão de sair da empresa, a profissional citada não se mostrou arrependida ou ressentida com a empresa, como podemos notar em seu relato: “Trabalhar lá foi uma das coisas mais importantes da minha vida. Aprendi a ser agressiva.(...) A companhia não respeitou meus limites, mas eu também tive minha parcela de culpa”17.

Nota-se ainda neste caso o encontro que ocorre entre a proposta de trabalho oferecida pela empresa e a profissional escolhida para o cargo (LIMA, 1994). A saúde da profissional se mostra (até o momento em que a sua vida e a de sua filha estão em risco) como um elemento secundário ou de menor relevância, tanto pela empresa quanto por ela própria.

 

Comentário final

Sabe-se que historicamente as relações de trabalho foram marcadas a partir do conflito instaurado pelo modo de produção capitalista, ou seja, capital versus trabalho. Os empresários, como representantes do capital, versus trabalhadores, sujeitos a esse capital. O estudo e o entendimento da perversão no ambiente organizacional não podem ser elaborados sob essa mesma ótica e, assim, apontam para um outro olhar, que surge do entendimento de um laço social constituído em determinadas circunstâncias. Esse outro olhar não aceita papéis de vilões ou vítimas posicionados rigidamente dentro de uma hierarquia organizacional ou social. Ao contrário disso, esse outro olhar, apresentado neste estudo, indica como os componentes da estrutura organizacional, incluindo a área de recursos humanos e os próprios trabalhadores, são em certo grau agentes que sustentam os comportamentos observados nas organizações. A questão da manifestação da perversão não pode ser situada claramente em determinada classe ou segmento profissional, pois essa manifestação surge a partir de um “acordo” estabelecido, uma intrincada e sutil rede de valores e relações que permeiam a organização e, de forma mais ampla, toda a sociedade.

 

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Endereço para correspondência
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Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008

 

 

Sobre o Autor

Lucas Eurico Gonzaga Júnior
Consultor em Recursos Humanos. Psicólogo. Economista. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

1 Versão resumida de Monografia de mesmo título apresentada ao CPMG em 2007.
2 CALLIGARIS, C. Perversão – um laço social? Salvador: Cooperativa Cultural J. Lacan, 1986, p. 19.
3 ENRIQUEZ, E. Da horda ao estado – psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p.302.
4 FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In ESB, v.VII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.150.
5 FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego. In ESB, v.XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.81.
6 KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.419.
7 CALLIGARIS, C. Perversão – um laço social? Salvador: Cooperativa Cultural J. Lacan, 1986, p.15.
8 ENRIQUEZ, E. Da horda ao estado – psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p.301.
9 LIMA, M. E. A. Os equívocos da excelência. Petrópolis: Vozes, 1995, p.29.
10 ENRIQUEZ, E. Da horda ao estado – psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p.301.
11 ENRIQUEZ, E. O Indivíduo Preso na Armadilha da Estrutura Estratégica. RAE - Revista de Administração de Empresas, v.37, n.1. São Paulo, jan/mar 1997, p.21.
12 CORREA, C. No Limite. Revista Exame. São Paulo: Abril, 13 dez. 2000, p.32.
13 ENRIQUEZ, E. Da horda ao estado – psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p.301.
14 DIAS, A. Até onde você agüenta. Revista Você. São Paulo, abr. 2004, p.16.
15 ENRIQUEZ, E. O indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica. RAE - Revista de Administração de Empresas, v.37, n.1. São Paulo, jan/mar.1997, p.16.
16 DIAS, A. Até onde você agüenta. Revista Você. São Paulo, abr. 2004, p.16.
17 Ibidem.

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