33 61Humor: dor e sublimaçãoO desejo do analista e a não especificidade da clínica psicanalítica 
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 ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.61 Belo Horizonte jun. 2011

 

Do sim e do não1 - comentários sobre a denegação

 

From the yes to the no - comments about denial

 

 

Dimas Barreira Furtado

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Negativa (Verneinung) mereceu de Freud um pequeno, porém extremamente denso texto, em 1925. Freud mostra como ela pode encobrir uma afirmação, e que isto constitui uma suspensão, mas não uma aceitação do recalcado. Em outro texto, no qual analisa o Homem dos Lobos, ele trata de uma negação bem mais radical, a Verwerfung. Freud, e mais tarde Lacan, tratou ainda de uma afirmação (Bejahung), ligada à ideia de incorporação, e de uma expulsão, ambas fundamentais na constituição do sujeito, a partir da distinção entre o dentro e o fora. O texto analisa esses conceitos e tece consideração sobre suas inter-relações.

Palavras-chave: Negação, Afirmação, Forclusão e Expulsão.


ABSTRACT

Freud wrote a small, although dense, text in 1925, named the denial (Verneinung). He shows how denial may act as a disguise for an statement. It makes a suspension, but not an repression acceptance. In another text in which Freud analyses the wolf's man, he talks about a more radical denial, the Verwerfung. Freud, and Lacan many years later, worked on the meaning of an affirmative statement (Bejahung) which is linked to the idea of assimilation and expelling, both fundamental in the construction of subjectivite. So the subject is builded from the distinction between inner and outer influences. This text analyses these concepts and makes considerations about their interconnections.

Keywords: Denial, Affirmation, Forclosure, Expelling.


 

 

"Que o teu sim seja sim, que o teu não seja não" (Evangelho de S.Mateus - Cap.5, vers.37).

"Em nossa interpretação, tomamos a liberdade de desprezar a negativa e de escolher apenas o tema geral da associação." (FREUD, A Negativa)

Este trabalho se propõe a discutir o que poderia ser anunciado como a confiabilidade do sim. Ao contrário do que recomenda a norma evangélica, nem sempre o sim é sim, e às vezes chega mesmo a querer significar um não. Para comentar e explicar esse desencontro, Freud (1915-1916, p.258) cita o caso do casal de camponeses diante da possibilidade de três pedidos ao gênio. O desentendimento dos dois consome todas as oportunidades de terem no mínimo uma saborosa refeição. Nem sempre, ou talvez raramente, o Ego se concilia com o Isso ou com o Supereu. Em seu texto de 1925, A Negativa, Freud apresenta o conhecido diálogo em que o paciente diz a respeito de um sonho ou uma fantasia: "... esta não é minha mãe". Esse 'não', diz Freud, pode ser desprezado, pois é exatamente da mãe que se trata (FREUD, 1925, p.295).

Portanto, o que pareceria à primeira vista tratar-se de uma negativa, trata-se na realidade de uma afirmação. Estamos diante de dois conceitos, a afirmação e a denegação, de grande importância na psicanálise. Para sua análise, será útil passar também por outros conceitos que se ligam ou se opõem a eles. São eles: Ausstossung (expulsão), Vereinigung (incorporação ou introjeção), e Verwerfung (forclusão ou foraclusão), além de Verneinung (negação ou denegação) e Bejahung (afirmação). Para sua composição, tradução e breve conceito, ver quadro no final do trabalho.

O estudo da psicose nos leva necessariamente à questão da Verwerfung, o mecanismo da rejeição do significante primordial, o Nome-do-Pai, bem como sua ligação com outros conceitos, entre eles, em primeiro lugar, a Ausstossung. Como diz Thom (2005), "Essa distinção [Ausstossung e Verwerfung] pode parecer sem importância e o debate terminológico um pouco árido, um pouco escritural; contudo, as definições da neurose e da psicose dependem dele." (THOM, 2005, p.146). É que a Ausstossung, ao contrário da Verwerfung, se refere a um processo comum aos futuros neuróticos.

Procuraremos analisar, portanto, as semelhanças e distinções possíveis entre esses dois conceitos, o que exige a consideração dos citados conceitos correlatos.

Um primeiro par de oposições a considerar é constituído pelas operações de introjeção (Vereinigung - ver quadro no final) daquilo que é bom, que é prazeroso. E, do outro lado, a expulsão (Ausstossung) daquilo que é mau, desprazível. Em O Instinto e suas Vicissitudes, de 1915, Freud se detém na consideração do Ego-prazer. Nesse texto ele já esclarecia a atividade de introjeção e expulsão de dentro do Ego [no alemão, que não teme ser redundante: Ausstossung aus dem ich]:

"Na medida em que os objetos que lhe são apresentados constituem fontes de prazer, ele os toma para si próprio, os 'introjeta' (para empregar o termo de Ferenczi); e, por outro lado, expele o que quer que dentro de si mesmo se torne uma causa de desprazer"2 (FREUD, 1974, p.157).

A Ausstossung, mais que a Vereinigung, tem especial importância porque marca o início do processo da constituição do sujeito, o rompimento da sua simbiose com a mãe. Segundo Ana Maria Rudge (1998), (...) "A expulsão fundamental é o momento inaugural da constituição do sujeito da psicanálise, sujeito pulsional que se localiza no campo do real" (RUDGE, 1998, p.52). Jean Hyppolite (1998), no seu famoso comentário sobre A Negativa, solicitado por Lacan no seminário de 1953-54, diz que a distinção entre o estranho e o sujeito, que exatamente está em processo de constituição, constitui uma operação de expulsão (HYPPOLITE, 1998, p. 899). E ainda: "Isso, portanto, torna-se inteiramente mítico: dois instintos que estão, por assim dizer, entremeados no mito que sustenta o sujeito: um, o da unificação, outro, o da destruição" (HYPPOLITE, 1998, p. 900).

O conceito de Ausstossung merece atenção especial também por sua proximidade com o conceito típico da psicose, a Verwerfung. Trataremos disso adiante. Já a incorporação, muitas vezes considerada na psicanálise como sendo de caráter canibalesco, interessa para nossos objetivos imediatos, especialmente enquanto oposição à expulsão. O termo alemão para a incorporação ou introjeção, Vereinigung (não confundir com Verneinung) é derivado de Einig, que significa unido ou único.

A respeito do par Vereinigung-Ausstossung, igualmente importante é a ligação que cada um deles tem. Diz Freud, no citado texto de 1925: "A afirmação - como substituto da união, pertence a Eros; a negativa - o sucessor da expulsão - pertence ao instinto [à pulsão] de destruição." (FREUD, 1925, p. 300). Jean Hyppolite (1998) chama a atenção para a distinção entre substituto (empregado para a dupla afirmação-união) e sucessor (empregado para a expulsão-denegação), que em traduções francesas foram traduzidos com o mesmo termo.3 Diz ele:

"[...] é preciso reconhecer uma dissimetria expressa por duas palavras diferentes no texto de Freud, embora elas tenham sido traduzidas pela mesma palavra em francês, entre a passagem para a afirmação, a partir da tendência unificadora do amor, e a gênese, a partir da tendência destrutiva, dessa denegação que tem a verdadeira função de gerar a inteligência e o próprio posicionamento do pensamento." (HYPPOLITE, 1998, p.896 - grifo nosso).

O termo alemão Verneinung4 tem sido traduzido por negação, bem como por negativa. No entanto, a palavra denegação tem sido mais usada na psicanálise. A respeito, citemos um trecho de Thom (2005, p.128), que também apresenta o aspecto talvez mais importante deste conceito: "A questão é que a negação descrita no ensaio 'Die Verneinung' diz respeito à relação que associa o recalque ao retorno do recalcado: o emprego da palavra 'denegação' ajuda a separar esse uso da operação mais comum...".

Em A Negativa (1925), Freud indica que "a percepção não é um processo puramente passivo". Ela seria então o resultado de "pequenas quantidades de catexias [de investimentos]" enviadas pelo Ego para o sistema perceptual. Freud liga esse processo à ação de julgar. Ele deve ser considerado como sendo, de início, uma "experimentação", "uma apalpação motora, com pequeno dispêndio de energia" (FREUD, 1925, p.299). Estamos no estágio anterior ao surgimento do sujeito. No princípio, podemos dizer, era o princípio do prazer. O pequeno ser humano, ainda não constituído como sujeito, experimenta a satisfação de ter sua fome e outras necessidades atendidas por seu cuidador, o Nebenmensch. Logo vai acontecer que se repetem os atendimentos, mas, "para seu grande benefício", nem sempre eles chegam ou chegam imediatamente.

As ausências do Nebenmensch ensejam o surgimento da etapa seguinte. Começa a existir o dentro e o fora. A criança começa a desacreditar de suas alucinações. Até então, com a ausência do seio, ela o alucinava. Trata-se agora da criação do mundo exterior.

Podemos abrir um parêntesis para dizer algo da qualidade desse objeto buscado, processo típico do juízo de atribuição. Veremos que o bom é que foi introjetado. Thom (2005) destaca que, no entanto, por meio do recalque primitivo, ele poderá ser encontrado como representação (THOM, 2005, p. 135). Note-se ainda que o sim e o não estão ambos no juízo de atribuição (se eu gosto: eu engulo; se eu não gosto: eu cuspo), e ambos no juízo de realidade (se é perceptível: é real; se não é perceptível: não é real).

Com o interno e o externo, com o dentro e o fora, temos o juízo de atribuição e em seguida o juízo de existência, conceitos herdados da filosofia por Freud. Em 1925, ele falava do Ego-prazer original e o opunha ao Ego-real. Sob a égide do juízo de atribuição, ligado ao princípio do prazer, Freud (1925) afirma em A Negativa que "(...) o Ego-prazer original deseja introjetar para dentro de si tudo quanto é bom, ejetar de si tudo quanto é mau." E acrescenta "que aquilo que é mau, que é estranho ao Ego, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos." (FREUD, 1976, p.297).

Já em 1895, Freud ligava o desejo a uma alucinação. Com relação a esse estágio, dirá ele no texto de 1925: "Agora não se trata mais de uma questão de saber se aquilo que foi percebido (uma coisa) será ou não integrado ao Ego, mas uma questão de saber se algo que está no Ego como representação pode ser redescoberto também na percepção (realidade)." (FREUD, 1976, p.297-8). Ou no trecho logo adiante: "Assim, originalmente a mera existência de uma representação constituía uma garantia da realidade daquilo que era representado. A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início" (FREUD, 1976, p.298).

Com o juízo de existência, trata-se de confrontar a representação com a percepção, o que implicará na queda da representação alucinada. A respeito disso, explica Rudge (1998) que a perda do objeto é condição para o surgimento do sujeito, uma vez que a delimitação de fronteiras entre o campo subjetivo e o exterior é condição indispensável para haver distinção entre a mera representação e a realidade do representado (RUDGE, 1998, p. 45).

A denegação permite ao juízo de existência tomar o lugar do juízo de atribuição. O princípio da realidade substituindo, ou melhor, acrescentando-se ao do prazer. Freud (1925) é muito didático quanto a isso. Em um trecho de A Negativa, ele explica:

"O desempenho da função de julgamento, contudo, não se tornou possível até que a criação do símbolo da negativa dotou o pensar de uma primeira medida de liberdade das consequências da repressão [do recalque], e, com isso, da compulsão do princípio do prazer" (FREUD, 1976, p.300).

No início desse impressionante texto, ele tinha escrito: "A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que está reprimido [recalcado]; com efeito, já é uma suspensão da repressão [do recalque], embora não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido [recalcado]" (FREUD, 1976, p.296). A negação marca a operação do recalque e seu correlato, o retorno do recalcado.

Na página seguinte, Freud tira uma das conclusões desta afirmação. Diz ele que "o juízo negativo é o substituto intelectual da repressão [recalque]" e, logo adiante, trata do pensamento. Esta é outra importante consequência: a criação do pensamento. Desse trecho, Jean Hyppolite destaca a palavra suspensão (HYPPOLITE, 1998, p. 895), e diz tratar-se de um termo tipicamente hegeliano, o Aufhebung, palavra de sentidos antitéticos, pois ao mesmo tempo quer dizer negar, suprimir e conservar (o que, por sua vez, mostra a precisão do termo escolhido por Freud).

Hyppolite se dispõe a explicar-nos essa questão. Freud separa aqui o intelectual do afetivo. No entanto, Hyppolite é explícito ao dizer que não existe o afetivo puro de um lado, inteiramente engajado no real, e o intelectual puro de outro (HYPPOLITE, 1998, p. 897). Daí por que o ilustre aluno de Lacan destaca o sim do não, analisa-os como etapas do diálogo do psicanalista com seu paciente, em que este primeiro nega, para depois negar a negação, e conclui que essa gênese do pensamento, que sabemos ser da ordem da história, é também do mito.

Detenhamo-nos um pouco para tratar especificamente da negatividade.

Ainda nos apoiando nesse autor, devemos distinguir a denegação da negatividade, característica de alguns psicóticos. Quanto à negatividade, esse filósofo lembra o mito hegeliano dos dois combatentes, o Senhor e o Escravo, no qual, em um primeiro momento ("a verdadeira negatividade" substitui o "apetite de destruição"), ele vê uma negação ideal, já que "não haverá ninguém para constatar a vitória ou a derrota de um ou do outro..." (HYPPOLITE, 1998, p.896). Thom (2005) explica que "O negativismo da psicose deriva de uma falha no recalque primitivo e representa uma negatividade não-capturada pela negação e não-assimilável à oposição entre o intelecto e o afeto" (THOM, 2005, p.131).

Freud diz que "O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente ser encarado como sinal de uma desfusão de instintos [de pulsões]..." (FREUD, 1925, p.300).

Hyppolite (1998), que procura destrinchar o texto de Freud, também procura entender esse negativismo, que Freud inclui logo em seguida na distinção entre sucessor e substituto, com relação aos dois pares5. Diz ele que se pode deduzir que "possa haver um prazer de negar, um negativismo que resulta simplesmente da supressão dos componentes libidinais" (HYPPOLITE, 1998, p. 900).

Ao confrontarmos a Bejahung com a Verneinung, logo constatamos que a primeira com certeza não é do mesmo nível da segunda. A partícula da afirmação, o sim, aparece menos no discurso afirmativo do que sua correspondente aparece no discurso negativo. O senso comum parece expressar isso com o dito "quem cala, consente". Para afirmar basta calar. Para negar, porém, é preciso dizer não. É preciso ser mais explícito. Hyppolite assim se expressa a respeito disso: "A afirmação primordial não é outra coisa senão afirmar; mas negar é mais do que querer destruir" (HYPPOLITE, 1998, p.898).

A Bejahung é uma precondição para o ingresso em uma ordem simbólica (THOM, 2005, p. 135). No Seminário As Psicoses, em que trata do assunto em mais de uma lição, Lacan a define como uma admissão no sentido do simbólico, e acrescenta que pode ela própria faltar (LACAN, 1985, p. 21). Faltar no sentido de o sujeito recusar o acesso, ao seu mundo simbólico, de alguma coisa que ele experimentou, explica Lacan logo adiante, e "que não é outra coisa senão a ameaça da castração" (Idem).

Vimos que ela se liga, que ela é um substituto da união, da incorporação (Vereinigung) primitiva do pequeno ser humano. Por sua vez, no entanto, porque justamente se trata do início da simbolização, a Bejahung se dá em um momento cronologicamente posterior. Não parece haver nisso contradição com o fato de Lacan quase sempre referir-se a ela como primitiva. Primitiva, mas não primeira. No entanto, devemos entender que a Bejahung (bem como a Verneinung) se repetirá frequentemente, em futuras ocasiões.

Já vimos como a afirmação liga-se diretamente à denegação, que se liga por sua vez ao recalque, como fica claro logo no início do texto A Negativa, no caso do 'esta não é minha mãe'. A esse respeito, diz Thom que é na afirmação precedente que a denegação trabalha. Enquanto que a Verwerfung não é um registro, nem uma inscrição, mas um repúdio radical de uma percepção (THOM, 2005, p.135).

Hyppolite se pergunta: que significa a dissimetria entre a afirmação e a negação; e responde:

"Significa que todo o recalcado pode ser novamente retomado e reutilizado numa espécie de suspensão, e que, de certo modo, em vez de ficar sob a dominação dos instintos de atração e de expulsão, pode produzir-se uma margem do pensamento, um aparecimento do ser sob a forma do não ser, (...)" (HYPPOLITE, 1998, p.901).

Essa dicotomia corresponde aos dois elementos da brincadeira do fort-da, em que o fort (o mesmo que 'sumiu' da brincadeira similar das nossas crianças pequenas) corresponde à negação, enquanto o da (o mesmo que 'achou') corresponde à afirmação.

A Verwerfung opõe-se à Bejahung e à Verneinung (e ainda à Verleugnung, que indica o processo típico da perversão). Estamos diante de uma afirmação e de três diferentes formas de negação, e, a cada uma delas, a Verwerfung se opõe de uma forma diferente. Assim, a Verwerfung opõese à Bejahung, pois esta é uma afirmação. Opõe à Verneinung e à Verleugnung, pois, apesar de ambas serem negações, portanto da mesma ordem da Verwerfung, são de teores diferentes.

A Bejahung forma um par dicotômico com a Verwerfung, como afirma Lacan, no Seminário As Psicoses (1985):

"Ao nível dessa Bejahung pura, primitiva, que pode realizar-se ou não, estabelece-se uma primeira dicotomia - o que teria sido submetido à Bejahung, à simbolização primitiva, terá diversos destinos, o que cai sob o golpe da Verwerfung primitiva terá outro" (LACAN, 1985, p.98).

"Há, portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou Verwerfung.", afirma ele logo adiante. A afirmação do que é deve ser entendida como julgamento de existência. Daí sua oposição à Verwerfung, na qual não se dá juízo de existência (lembremos que, em havendo tal juízo e não havendo afirmação, o que teríamos seria denegação, Verneinung, que, ao contrário da Verwerfung, é da ordem do discurso).

Já com relação à Verneinung, sabemos que não há na Verwerfung a negação da afirmação; mas uma falha no discurso, com um elemento que não foi simbolizado. Na Verwerfung, explica Freud que se trata de uma falha do julgamento de existência. Diz ele, ainda em 1894:

"Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida [do que na denegação]. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como 'confusão alucinatória'" (FREUD, 1986, p.63-64).

Tratando do assunto em 'Resposta ao comentário de Jean Hyppolite' (1998)6, Lacan procura explicar a distinção entre os dois conceitos. Para falar da denegação, diz ele, citando Freud, que da castração esse sujeito nada queria saber no sentido do recalque. Quanto à Verwerfung, continua Lacan, "Seu efeito é uma abolição simbólica" (LACAN, 1998, p.388). Na denegação, destaca Thom, não há "... obliteração nem anulação do significante. Na projeção paranoica [Verwerfung], entretanto, há uma não-afirmação..." (THOM, 1998, p.140).

No Seminário As Psicoses, Lacan (1985) é muito claro:

"O que cai sob o golpe do recalque retorna, pois o recalque e o retorno do recalcado são apenas o direito e o avesso de uma mesma coisa. (...) o que cai sob o golpe da Verwerfung tem uma sorte completamente diferente" (LACAN, 1985, p.21).

E acrescenta sua conhecida opinião: "tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real" (LACAN, 1985, p. 21).

Já vimos o que representa a negação da Verneinung. É típica da neurose, porque falha ao tentar negar a castração. Não exclui também o significante Nome-do-Pai, tal como ocorre na Verwerfung. Existem na Verneinung o recalque e o retorno do recalcado, enquanto na psicose o significante primordial é rechaçado sem deixar nenhuma simbolização.

Quanto à Verleugnung, típica da perversão, a diferença em relação à Verwerfung é que não se trata de um rechaço, mas de uma não aceitação daquilo que foi constatado, ou seja, a castração.

Outra distinção, ainda em relação à Verwerfung, é quanto à Ausstossung.

Lacan parece não diferenciar a Verwerfung da Ausstossung originária, o que tem gerado algumas controvérsias. O entendimento de muitos é no sentido de a Ausstossung não se relacionar com o significante primordial, ao contrário da Verwerfung, exatamente porque a Ausstossung seria mais primitiva, ocorrendo no campo apenas pulsional, antes da entrada no domínio do simbólico (e que justamente abre as portas ao fort-da).

Rudge é explícita ao dizer que "A palavra Verwerfung, que designa o operador característico da psicose, não deveria ser utilizada para a expulsão - chamada por Freud de usstossung - que é correlativa à Bejahung na constituição do primeiro dentro e fora." (RUDGE, 1998, p. 53). Essa autora argumenta que as duas acepções de expulsão devem ser pensadas diferentemente, baseando-se no fato de que apenas o psicótico tem uma maneira peculiar de linguagem. E em que "todo o simbólico é real". Donde conclui que "há uma expulsão constituinte do real [a Ausstossung] e outra expulsão (ou uma característica especial nessa expulsão) que é anômala e que dá origem à psicose" (RUDGE, 1998, p.47).

O leitor possivelmente percebeu que estivemos tratando de conceitos difíceis, e cuja análise nem sempre é unânime. Justamente por isso nos animamos a empreender essa tarefa, pois podemos esperar que se torne mais clara sua compreensão. O esforço, por outro lado, pode gerar algumas perguntas pertinentes. Levantemos algumas:

A Ausstossung é um processo exclusivo da neurose? Os paranoicos não passariam também por ela? Alguns autores fazem referência à Ausstossung primitiva e à Bejahung primitiva: quererão eles dizer efetivamente que há uma e outra que não sejam primitivas, ou apenas destacam o caráter primitivo que de fato ambas apresentam? Com Freud, conforme seus primeiros escritos, podemos dizer que no princípio era o princípio do prazer; com Lacan parece ser diferente. Trata-se efetivamente do mesmo tema, ou de duas situações diferentes? Como se dá a questão da distinção entre o dentro e o fora, para o paranoico? A questão do negativismo do psicótico parece exigir maior aprofundamento. Tem razão Lacan em não distinguir Ausstossung de Verwerfung?

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. As neuropsicoses de defesa (1894). Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1986, v.3.         [ Links ]

FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v.14.         [ Links ]

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FREUD, S. A negativa (1925). Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.19.         [ Links ]

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LACAN, J. O Seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.         [ Links ]

LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.         [ Links ]

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

RUDGE, Ana Maria. Pulsão e linguagem: esboço de uma concepção psicanalítica do ato. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

THOM, Martin. Verneinung, Verwerfung, usstossung: uma questão de interpretação em Freud. In Paulo Ottoni (Org.) Tradução: a prática da diferença. Campinas: SEMPRE: UNICAMP, 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
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E-mail: dimasfurtado@gmail.com

RECEBIDO EM: 01/03/2011
APROVADO EM: 11/04/2011

 

 

Sobre o Autor

Dimas Barreira Furtado
Sociólogo. Mestre em Educação. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

 

 

1. O prefixo ver-reforça uma ideia (no caso de Verwerfung e Verleugnung) ou é formador de verbo (em verneinen > Verneinung e vereinen > Vereinigung); o prefixo be transforma em verbo (em Bejahung); o sufixo - ung, é substantivador.
2. Aus, preposição, usada aqui como prefixo, significa para fora.
3. Trabalho de conclusão de cartel, ocorrido ao longo de 2010, no CPMG, dedicado ao estudo da Psicose, especialmente nos textos do primeiro ensino de Lacan. As discussões do cartel ajudaram na construção deste texto, especialmente as observações do "mais um", o psicanalista Breno Ferreira Pena, a quem o autor agradece.
4. Lembremos que em seguida à incorporação vem o processo de identificação, como Freud entende, desde muito cedo.
5. Dessa confusão escapamos nós, pois a tradução da Standard Edition já faz a distinção, como vemos na citação acima.
6. Substantivo derivado do verbo verneinen, negar (ver quadro anexo).
7. Vereinigung-Bejahung e Ausstossung-Verneinung.
8. LACAN, Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinung" de Freud, in Escritos, 1998.

 

 


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