Reverso
ISSN 0102-7395
Reverso vol.37 no.70 Belo Horizonte jun. 2015
ARTIGO
Os sete pecados capitais: luxúria
Seven capital sins: lust
Léa Meilman
Faculdade Newton Paiva
RESUMO
A eterna contradição entre pecado e virtude é abordada no artigo. A luxúria é o foco principal. Os pecados trazem a ideia de excesso, que é condenável pela cultura ocidental. O amor recebe o aplauso do mundo. A luxúria é embaraçosa e envergonhada. Questiona-se arrebatar a luxúria da categoria de pecado à de virtude.
Palavras-chave: Pecado, Virtude, Desejo, Excesso, Transgressão, Vergonha, Culpa.
ABSTRACT
This article is about the contradiction between sin and virtue. The main focus of the article is lust. The sins relate to the idea of excess, which is condemned by western culture. Love gets applause from the whole world. Lust is embarrassed and ashamed. It is questioned in this article whether reclassifying lust from sin to virtue is worth it.
Keywords: Sin, Virtue, Desire, Excess, Transgression, Shame, Fault.
Não existe pecado do lado de baixo do Equador.1
O autor da frase é o holandês Gaspar Barlaeus (1584-1648), teólogo, historiador, professor de lógica da Universidade de Leiden, poeta e interessado em cartografia. Trata-se de um comentário feito por Barlaeus para explicar os desmandos da época colonial. Na Europa, acreditava-se de que, aquém da linha do Equador, não existe nenhum pecado, como se a linha que divide os hemisférios separasse também a virtude do vício.
No Brasil, a frase é particularmente lembrada pela citação feita por Euclides da Cunha (1866-1909) em À margem da história (1909), obra que só veio a público um mês após sua morte.
Sérgio Buarque de Holanda retoma o tema em sua obra principal Raízes do Brasil (1936). Mais tarde (1972), essas ideias são transpostas para a ópera Calabar, de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra, e a canção é popularizada na voz de Ney Matogrosso.
Considerações preliminares
A leitura do conto de Machado de Assis A igreja do diabo foi inspiradora. Relata que, certo dia, o diabo teve a ideia de fundar uma igreja e foi conversar com Deus a respeito. O conto trata da eterna contradição humana, pois contrapõe a virtude ao vício de forma curiosa. Pretendo trabalhar, no presente texto, tal contradição.
A palavra “luxúria” (do lat. luxuria(m)) significa lascívia, sensualidade, libertinagem, devassidão, incontinência animal, falta de castidade, além de “viço ou exuberância das plantas, que se enchem de folhagem e verdura, em virtude da riqueza do solo e da abundância de água”; “viçar” significa vicejar, desenvolver-se, abastar-se e ter ou praticar o vício; estar o animal no cio ou no vício. Podemos nos indagar: que terreno fértil é esse em que o “pecado” habita e prolifera?
Cogitemos uma aproximação com a palavra luxo (do latim luxus(m)), que quer dizer suntuosidade, ostentação, magnificência, prodigalidade.
O que essas palavras trazem em comum é o EXCESSO. É interessante pensar que, nas várias acepções do significado de “luxúria”, há elementos contraditórios que repelem, afastam, e ao mesmo temp, fascinam e atraem.
O pecado da luxúria é o excesso de busca insaciável pelos prazeres carnais, sexualidade extrema. Excesso de pulsão que visa contornar o incontornável, para tapar uma insatisfação funcional básica. É a procura da compensação, pela via da avidez, com relação a uma insatisfação sexual. É condenável, censurável pela cultura. Pressupõe uma impulsividade desenfreada. A luxúria busca sua própria gratificação, é precipitada, impaciente diante de qualquer controle, imune à razão.
De acordo com o psicanalista e escritor Rubem Alves, a luxúria não mora nos genitais. Mora nos olhos. É um jeito de olhar. David Hume (citado por BACKBURN, 2005) compreendia a luxúria não somente como deleite sensual, mas também como alegria da mente.
Já que representam os pontos fracos mais comuns do ser humano ou as falhas espirituais mais sérias, os sete pecados capitais remetem à inevitável questão: Qual é nosso pecado capital?
Por mais liberal que se possa ser, a luxúria não causa boa impressão. É a mosca na sopa, a ovelha negra da família, a prima grosseira e desprezível de íntegros membros da família do amor e da amizade. Vive no lado errado dos trilhos. O amor recebe o aplauso do mundo. A luxúria é furtiva, clandestina, envergonhada e constrangida.
O filósofo alemão Herbert Marcuse, em sua obra Eros e a civilização (1956), lança mão de conceitos psicanalíticos para uma melhor compreensão da repressão sexual utilizada por nossa sociedade para sua autoconservação. Supondo que a proibição pode gerar desejo, instala-se o desconforto.
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud já nos fala do antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as restrições impostas pela civilização, do estabelecimento e do fortalecimento do sentimento de culpa, na medida em que busca a domesticação do homem para o convívio em sociedade.
Dimensões históricas
Recapitulemos. No século VI, Gregório, o Grande, foi o criador dos sete pecados tradicionais. A lista evoluiu para os sete pecados, que hoje conhecemos: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça e soberba. A noção dos sete pecados capitais não se originou na Bíblia.
É fato que as transgressões ao estabelecido sempre se constituíram em preocupação para a sociedade. Em contraposição a essas violações (pecados capitais), os teólogos cristãos classificaram as sete virtudes celestiais como:
• Cardinais: prudência, temperança, justiça e coragem;
• Teológicas: fé, esperança e caridade.
Tratando de virtude e pecado, não podemos deixar de registrar a obra de Aristóteles Ética a Nicômaco, composta por 10 livros, provavelmente notas de aulas dadas a seu filho Nicômaco. Nascido na Macedônia no ano 384 a.C., Aristóteles busca definir quais são as coisas boas para o homem e determina o sentido do Bem, ou bem supremo.
O livro discorre acerca da excelência moral e da excelência intelectual. Aristóteles entende a ética como a parte da ciência política que permite determinar qual o bem supremo, isto é, a felicidade, e a finalidade da vida humana – a contemplação.
A inteligência age para atingir mediante a abstração a essência dos seres. O aristotelismo foi incorporado e adaptado à teologia cristã por S. Tomás de Aquino. Para Aristóteles, o homem tem um único objetivo a ser perseguido: o bem.
A virtude não é um dom e pode ser adquirida mediante o ensino. Para isso, o homem precisa ser educado, justo, comedido e razoável. A virtude se opõe ao mal e tem um valor mediador. O homem é, pois, segundo Aristóteles, responsável por sua virtude e seus vícios. Deve-se evitar o vício, a incontinência e a bruteza.
A felicidade é um bem supremo procurado por todos os homens. A felicidade é atingida quando o homem se liberta dos males terrestres, mas não pode ser contínua. Por isso, é preciso ser virtuoso e respeitar os valores morais.
Quando a perseguição da feitiçaria explodiu na Europa a partir do século XVI, uma acusação frequente contra as mulheres era que elas tinham feito sexo com o demônio, que as visitava em maléficas formas fálicas à noite.
Para contextualizar no âmbito do Brasil, vale mencionar o considerado primeiro documento de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, dirigida ao Rei de Portugal, Dom Manuel e datada de 1º de maio de 1500. Alguns fragmentos:
[...] pela praia [...] dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas [...] também andavam [...] quatro ou cinco mulheres moças, mas como eles [...]. Suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas [...] Vossa alteza, que tanto deseja acrescentar a Santa Fé Católica, deve cuidar de sua salvação [...] Se alguém vier, não deixe logo de vir um clérigo para os batizar [...] Uma mulher moça, à qual esteve à missa e a quem dera um pano com que se cobrisse; assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior.2
Podemos observar que o viço dos nativos inquietou os portugueses. Não havia pecado na terra descoberta por Cabral. Surgiu um incômodo, razão pela qual foi solicitado o clérigo, para salvar as almas daqueles que andavam nus.
Um exemplo bem posterior de rebeldia às exigências da civilização foi dado pelo pintor francês pós-impressionista Paul Gauguin (1848-1903), que foi para o Taiti em 1891, pois necessitava de uma natureza virgem, não ver nada mais que selvagens. Evadiu-se da sociedade de sua época para encontrar um entorno e gente não corrompida pelo progresso, as condições de autenticidade e ingenuidade primitiva onde pudesse florescer sua pintura. Explorou a natureza, familiarizou-se com indígenas e tomou uma delas como companheira.
Considerações psicanalíticas
Em seu artigo Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna (1908), Freud observou que a civilização faz exigências extraordinárias à capacidade de contenção sexual, principalmente entre os que pretendem uma certa cultura: ela requer que as pessoas se abstenham de relações até o casamento e, a seguir, restrinjam sua atividade sexual a um único parceiro.
A maioria dos seres humanos, pensava Freud, acha impossível obedecer a tais exigências, ou obedece a elas a um custo emocional exorbitante. Ficam neuróticos ou sofrem danos sob outras formas.
Apenas uma minoria consegue esse domínio através da sublimação, através do desvio das forças sexuais instintivas para finalidades culturais mais elevadas, e mesmo então, apenas de maneira intermitente (FREUD, [1908] 1975, p. 198).
Desde que o ser humano nasce, seu funcionamento psíquico é regido pelo princípio do prazer, que se relaciona ao processo primário. Com o passar do tempo e com o desenvolvimento do indivíduo, entra em ação o princípio de realidade, que já traz a carga da cultura do que convém, do que é adequado, oportuno e conveniente.
O psiquismo faz uma espécie de malabarismo para sobreviver saudável: além de lidar com a pulsão de vida, Eros, libido, supereu, cultura, tem que encontrar satisfação que o gratifique a ponto de continuar desejando e buscando satisfação. A repressão é um dispositivo da cultura que pretende conter toda a irrupção de forças que emanam do humano.
Em 1933, na Conferência XXXI: A dissecção da personalidade psíquica – depois de haver apresentado a instância do supereu (particularmente em O mal-estar na civilização) como um censor por delegação das instâncias sociais junto ao eu –, Freud forneceu o quadro exaustivo da formação do supereu e de suas funções.
No entanto, ele afirma que, quanto mais o sujeito se abstém dos seus prazeres, mais aumenta a severidade do supereu. Há um paradoxo aí, que mostra ser insaciável essa exigência superegoica.
Pergunto então: Como o sujeito, tendendo no sentido da virtude, pode se sentir ainda mais culpado? Não seria porque todo cerceamento ao pecado aumentaria mais e mais a gana em pecar?
Podemos retomar Freud para lembrar que o supereu mergulha suas raízes no isso. Como diz Freud (1923 [1975]), o eu forma seu supereu a partir do isso. Sendo assim, na própria base do supereu há algo de incontrolável, de excessivo e de indomável. Sabemos que todo castigo exagerado, a partir do dizer dos próprios masoquistas, aumenta ainda mais o gosto por ele.
Ilustração
Vamos comentar uma situação em que o sexo traz não prazer físico e satisfação emocional, mas aquilo que foge ao controle e provoca atitudes autodestrutivas. O campeão de golfe Tiger Woods teve a reputação abalada com a revelação de mais de dez amantes e uma esposa sueca enfurecida.
Ele tomou o caminho mais natural nesses casos, pelo menos nos Estados Unidos: internou-se numa clínica de reabilitação de viciados em sexo. Em seguida, pronunciou um pedido de desculpas ao mundo inteiro e declarou antes de voltar para a clínica:
É difícil admitir, mas preciso de ajuda. Durante 45 dias do fim de dezembro de 2009 ao começo de fevereiro de 2010, fiquei internado, recebi orientação sobre meus problemas. Ainda tenho um longo caminho a percorrer.
Essas clínicas vão ampliando sua clientela. Existem hoje uns dez estabelecimentos que oferecem programas de “rehab” para sexo compulsivo nos Estados Unidos. Os métodos, em geral, consistem em meditação, terapia individual, de grupo e familiar, além de adesão a programas passo a passo. (O mea-culpa de Tiger Woods foi justamente um desses passos). É tudo muito parecido com o sistema popularizado pelos alcoólicos anônimos. Comenta-se o “efeito Tiger Woods”, que eleva a procura por terapia contra compulsão sexual.
O ator Michael Douglas internou-se no Arizona por uma temporada, em 1990. O casamento com a atriz Catherine Zeta-Jones parece ter resolvido o problema, mas existe um acordo pré-nupcial prevendo, em caso de divórcio, multa de US$ 3 milhões para cada infidelidade que ela documentar.
Vendo esses exemplos, podemos formular a pergunta: Essas tentativas estrambóticas de controle da luxúria não estimulariam ao invés de arrefecer o vício? Se eles podem pagar por pecar, podem pagar para pecar, ou seja, cada pagamento dá um salvo-conduto para pecar novamente, e cada declaração de arrependimento se torna desculpa de um novo pecado e uma nova declaração de arrependimento. Não seria essa a lógica dos “rehab”? Haja vista as incidências de retorno.
O filósofo Schopenhauer (1788-1869, quase profetizando que ocorreria a presidência Clinton nos Estados Unidos, disse:
A luxúria é o objetivo definitivo de quase todas as empreitadas humanas, exerce uma influência adversa sobre os assuntos mais importantes, interrompe os negócios mais sérios a qualquer momento, às vezes confunde, por algum tempo, até as mentes mais grandiosas, não hesita, com sua tolice em perturbar as negociações de políticos e as pesquisas de eruditos, tem a tendência a introduzir as suas cartas de amor e seus anéis de cabelo até mesmo em portfólios ministeriais e manuscritos filosóficos (SCHOPENHAUER citado por BLACKBURN, 2005, p. 17).
Conclusão
Se considerarmos a história da humanidade, a história de nosso país inserida neste cenário e se cotejarmos esse caminhar com os princípios do funcionamento psíquico, vamos verificar que a civilização impõe restrições e exigências aos seres humanos, que, se obedecidas, custam muito caro. E mais: se são descumpridas, o preço também é elevado.
É uma forma violenta de represar, restringir o comportamento. Tudo em nome de uma organização, segurança, da “domesticação” do homem para o convívio em sociedade.
Indago: não seria esse um arranjo equivocado? A finalidade não é simplesmente a conservação da integridade e existência do indivíduo, mas da sociedade em primeiro lugar? Estaria dentro do limite do tolerável? Ou os impedimentos, as proibições chegam a machucar mais do que proteger? No caso do pecado da luxúria, haverá uma saída saudável? E a vida segue, sem que a cultura nos apresente outras alternativas.
Como vimos na menção do caso Tiger Woods, é preciso saber se sexo faz mal. É uma resposta que só pode ser dada por quem está se prejudicando, a ponto de procurar ajuda terapêutica.
Sou inclinada a concordar com Simon Blackburn (2005, p. 18) quando diz:
A luxúria tem características que a qualificam. Na verdade isso a suaviza, pois ela não é meramente útil, mas essencial. Nenhum de nós estaria aqui sem ela. Assim, a tarefa a que me impus é limpar um pouco a lama e socorrê-la das denúncias que ecoam de velhos dos desertos, libertá-la dos pálidos e invejosos confessores de Roma e da repulsa do Renascimento, destruir os pilares e os pelourinhos dos puritanos, separá-la de outras coisas que sabemos que a arrastam para baixo e assim elevá-la da categoria do vício à de virtude.
Referências
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http://www.correios.com.br/sobre-correios/a-empresa/historia/carta-de-pero-vaz-de-caminha. Acesso em: 15 abr 2013. [ Links ]
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Endereço para correspondência: Endereço para correspondência
Rua Rio Grande do Norte, 355/309 - Bairro Funcionários
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E-mail: leameilman@gmail.com
Recebido em: 09/05/2015
Aprovado em: 06/06/2015
Sobre a Autora
Léa Meilman
Psicóloga.
Psicanalista. (Formação iniciada em 1985, no CPMG).
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais entre 1991 e 2008.
Professora de Psicossomática da Pós-Graduação da Newton Paiva.
1 Tradução do original em latim “Ultra aequinotialem nos peccari”.
2 Disponível em: http://www.correios.com.br/sobre-correios/a-empresa/historia/carta-de-pero-vaz-de-caminha. Acesso em: 15 abr 2013.