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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte jan./jun. 2019
TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA
Quatro atos em cena1
Four acts on the scene
Carlos Antônio Andrade Mello
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Trata-se de uma breve abordagem do ato falho, do acting-out, da passagem ao ato e do ato analítico, elementos indissociáveis da teoria e da clínica, partindo de uma incursão pelos conceitos de ato e de cena nas obras de Freud e de Lacan.
Palavras-chave: Ato, Cena, Ato falho, Acting-out, Passagem ao ato, Ato analítico.
ABSTRACT
This is on a brief approach to Freudian slip, acting-out, passage to the act and analytic act, inseparables elements of theory and practice, starting from an incursion by the concepts of act and scene in the work of Freud and Lacan.
Keywords: Act, scene, Freudian slip, acting-out, passage to the act, analytic act.
Explicar uma anedota, uma piada, implica naturalmente a morte do humor. Este poderia ser também o destino funesto ao se tentar explicar o título de um texto, privando-o do interesse ou da curiosidade que viria a despertar. Porém, espero que este trabalho que ora lhes apresento sobreviva até a apreciação dos ouvintes, para que possa receber deles alguma contribuição, o que já valerá a pena ter tido uma vida, ainda que breve, sob a forma de texto.
Reportando-nos à psicanálise naturalmente, o ato está por toda parte, pois nosso trabalho começa justamente aí – o inconsciente faz ato. Esta sim poderia ser a primeira concepção do ato em psicanálise. É o que nos levou a desenvolver essa ideia de que lidamos com uma cena desenvolvida no palco, mas animada pelo que se passa nos bastidores, de onde emergem aparições fugazes que são captadas em seu disfarce figurado, o que lhes permite muitas vezes escapar-nos entre os dedos, ou melhor, entre os ouvidos.
E o analista, ouvinte e expectador de toda essa montagem, também se torna participante da cena e do ato na direção do tratamento, desde a autorização da análise até o seu término, como abordaremos mais tarde. Vemos, pois, evidenciado na clínica, que o ato percorre todo o processo, tanto da parte do analista quanto da parte do analisante.
A ideia de cena também permeia a psicanálise desde seus primórdios, utilizada por Freud, quando ele mesmo se refere à cena primária, à Urzene, como uma cena traumática, até então, inespecífica (FREUD, [1886-1899] 1974).
Só depois, em O homem dos lobos (FREUD, [1917-1918] 1974, p. 53), é que ele vai passar essa denominação à visão pela criança do coito parental, imprimindo aí o cunho da sexualidade à noção de cena primária. Posteriormente, em A interpretação dos sonhos, Freud introduz o inconsciente como um lugar que ele denomina, eine anderer Schauplatz [uma outra cena], dessa forma citado por Lacan ([1962-1963] 2005, p. 42) e, também, num dos últimos textos freudianos, Esboço de psicanálise (FREUD, [1938] 1974, p. 169).
Quanto ao Agieren, é esse o termo utilizado largamente na obra freudiana, cabendo a Lacan formalizar a noção de ato em psicanálise, a partir de sua aproximação da poesia, da poiesis, enquanto força criadora, deixando claro que no ato há sempre um começo, algo emerge daí.
Para ficar bem marcado esse aspecto de aproximação, vale citar Gilda Vaz Rodrigues, quando afirma que:
O ato poético, entretanto, se aproxima – mas não está no mesmo plano – do ato psicanalítico na medida em que a psicanálise, que se define como ciência do inconsciente, implica um trabalho que vai além do próprio inconsciente estruturado como uma linguagem, cernindo e discernindo o real da estrutura (VAZ RODRIGUES, 2017, p. 14).
Portanto, o ato, não importa de que modalidade, já se apresenta como aquilo que dá origem ao novo, algo não antevisto até então surge daí. Tomando um recurso marcante das artes plásticas, o ato bem poderia equivaler-se à linha de fuga, que na pintura permite a criação de outra dimensão, uma terceira dimensão, o surgimento de um outro espaço.
A partir do ato fundador de Freud, ao criar a psicanálise, vamos passar aos quatro atos sobre os quais me proponho a conversar com vocês, lembrando que será uma passagem breve e superficial por um vasto campo no qual se apoia e se desenvolve toda a prática clínica, impossível de se abarcar em uma exposição sumária como esta. Trata-se, neste nosso trabalho, mais de uma pesquisa conceitual vinculada à clínica do que de um aporte inovador, o que certamente, faria mais justiça ao caráter do ato, como já adiantamos, em seus efeitos inesperados e criadores.
Importante, desde já, acentuar dois traços marcantes do ato. Um deles é esse seu caráter criador, já delineado antes, dando origem ao novo. Daí, desse novo começo marcado pelo ato, pode-se deduzir o surgimento de um sujeito, não como agente, mas como seu efeito, radicalmente modificado.
A esse respeito, afirma Quinet:
O ato é promotor de ultrapassamento, franqueamento, provocando uma mudança radical no sujeito, pois no que se refere a ele, nada será como antes. O ato é acéfalo, pois o sujeito não é agente de seu ato, ele é agido (QUINET, 1991, p. 119-120).
Já a outra marca indissociável do ato é sua dimensão significante, distinta da motricidade, também assinalada por Quinet (1991, p. 119), referindo-se à
[...] descrição por Freud, tanto do ato falho – uma fala recalcada – como no Agieren, com aspecto de fala impossível e por isso mesmo atuada.
Portanto, segundo Lacan ([1953] 1986, p. 64), sempre “ato de palavra” e ainda no Seminário 14: a lógica da fantasia (1966-1967, lição de 22 fev. 1967):
O Ato é significante [...] é um significante que se repete [...] é a instauração do sujeito como tal, ou seja, de um ato o sujeito surge diferente em razão do corte, sua estrutura é modificada.
E ainda, nesse mesmo seminário:
O ato é tão próximo quanto possível do significante, que significaria a si mesmo (LACAN, 1966-1967, lição de 15 fev. 1967).
Nessa referida dimensão significante do ato, é valioso lembrar o recurso de Freud a Goethe, quando este se referiu ao livro sagrado, transformando a afirmação lá contida de que No princípio era o verbo para No princípio era o ato. E Freud tomou essa locução justamente quando considerou como ato criador da civilização o parricídio, abordado em Totem e tabu, (FREUD, [1912-1913] 1974, p. 169-170). Essa conexão entre o verbo e o ato nos parece já bem evidenciada a essa altura na concepção freudiana.
A esse propósito, afirma Coutinho Jorge:
Vê-se que, passando do verbo ao sentido e da energia à ação, ele passa do simbólico ao imaginário e deste ao real (JORGE, 2017, p. 116).
Iniciemos, então, nosso percurso, pelo ato falho, que, sabemos muito bem, é sempre um discurso bem-sucedido.
O ato falho é bem-sucedido porque produz a falta e põe o sujeito em causa – abertura do Inconsciente (QUINET, 2009, p. 136).
E Lacan (1953] 1998, p. 269) corrobora:
Quanto à Psicopatologia da vida cotidiana, outro campo consagrado por uma outra obra de Freud, está claro que todo ato falho é um discurso bem-sucedido ou até formulado com graça e que no lapso, é a mordaça que gira em torno da fala, e justamente pelo quadrante necessário para que um bom entendedor encontre ali sua meia palavra.
Podemos considerá-lo como algo que sai dos bastidores e se apresenta de cara limpa. Lembremo-nos daquele exemplo de Freud ([1901] 1987, p. 65) da autoridade que começou sua fala diante de uma assembleia de abertura de atividades, dando por encerrada a sessão! E também, na clínica, de um analisante que, tendo desenvolvido uma intolerância insuportável por alguém que, até então, fora o seu melhor amigo, quando todos se cumprimentavam à meia-noite do Réveillon, querendo lhe desejar também feliz Ano Novo, deixou escapar enfaticamente: tchau!
As manifestações descritas deixam clara a constituição de linguagem do ato, sua ponta significante, o ato quer dizer alguma coisa. Daí, podemos já inferir que é através de suas coordenadas simbólicas que o ato se faz presente, não se valendo da ação motora.
Freud já havia deixado muito claro na Psicopatologia da vida cotidiana a ocorrência não só dos atos falhos, atos casuais e sintomáticos, como também, dos esquecimentos, dos equívocos, dos lapsos de fala, de leitura e de escrita, como manifestações do inconsciente.
A esse propósito, afirma:
[...] podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas o expressa pela atuação, ou atua-o (FREUD, [1901] 1974, p. 196).
Tal como ocorre nos sonhos,
[...] fica evidente que o inconsciente ao qual Freud buscava dar corpo conceitual não poderia, por definição, mostrar-se de outra forma que não pelo retorno do recalcado. Assim, o inconsciente apresenta-se por suas formações, que são relações de compromisso entre duas cadeias de representação, uma de livre acesso à consciência e outra sob recalque (TORRES, 2010, p. 99).
A partir daí podemos inferir que o ato falho, tal como o sintoma, surge assim como algo que escapa ao recalque, mas não todo, no sentido de uma realização de desejo inconsciente, nem sempre da ordem da fala, mas sempre guardando sua dimensão significante, portanto da ordem da linguagem, ainda que atuada. Portanto, são coordenadas simbólicas, isentas de ação motora, como vale a pena mencionar novamente. É aí que surge uma característica do ato que é seu efeito surpresa, com o surgimento do novo. Tal como nos sonhos, algo de novo surge, permitindo emergir o recalcado sob nova roupagem, estabelecendo o que Freud denominou formação de compromisso, também aplicável a outras formações do inconsciente, como nos lapsos, nos esquecimentos, nas lembranças encobridoras e nos sintomas, tendo como visada forte a realização de desejo.
Também na direção da realização de desejo, enveredemos agora pelo acting-out. Abre-se uma nova cena, um novo ato, sobre o que já afirmara Lacan: “O acting-out certamente se produz no caminho da realização analítica do desejo inconsciente”, fazendo distinção importante quando prossegue,
É extremamente instrutivo, porque, se examinarmos de perto o que caracteriza os efeitos do acting-out, encontraremos toda sorte de componentes absolutamente necessários do que se chama de ato falho, ou seja, do que chamo aqui, mais apropriadamente de ato bem-sucedido, a saber, um sintoma, na medida em que ele deixa transparecer claramente uma tendência (LACAN, [1957-1958] 1998, p. 433).
Vem à cena pela primeira vez a menção por parte de Freud do Agieren, do qual viria a formalização do acting-out, quando expõe o caso Dora,
Assim, ela atuou uma parte essencial de suas lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-las no tratamento (FREUD, [1905] 1974, p. 116).
É importante frisar como a atuação [acting-out] vem no lugar de uma recordação, como compulsão à repetição, como forma de resistência à transferência e como caminho de satisfação pulsional como bem demonstra Torres. Vai mais além esse autor quando assinala que “[...] essa duplicidade funcional do acting-out – descarga e defesa – o faz assemelhar–se às formações do inconsciente” (TORRES, 2010, p. 114), de que nós aqui tratamos há pouco a propósito do ato falho.
A respeito da repetição Torres (2010, p. 128) assinala:
Todavia, devemos ver de que repetição se trata. Como vimos, não deve ser da mesma ordem da repetição do sintoma, uma vez que essa se articula primordialmente ao significante e à recordação, enquanto aquela se liga ao objeto que não se presta à recordação. Por outro lado, como nos indica Lacan, o acting-out encontra-se fortemente referenciado ao Outro e à transferência, o que nos indaga como seria essa repetição na transferência pela via do objeto.
Como já dissemos antes, no lugar da recordação vem a atuação, o Agieren freudiano como evidenciado no caso Dora, que podemos explorar daqui a pouco, colocando em cena a repetição que, juntamente com a resistência e a sugestão, é uma das três formas da transferência. A propósito da transferência, vale a pena lembrar que é referida por Lacan como a colocação em ato [mise en acte] da realidade do inconsciente (LACAN, [1964] 1973, p. 143), que é estruturado como uma linguagem.
Portanto, como vimos, a transferência é condição para o acting-out, que sempre tem um endereçamento, um destinatário. Esse é seu aspecto indissociável, podemos dizer, sua marca registrada. Algo na condução da análise, tal como o analista, abandonando o seu discurso em direção a outro, vem a possibilitar a instalação do que Lacan denominou transferência selvagem.
Vejamos o que diz a esse respeito:
Diferentemente do sintoma, o acting-out, bem, ele é o começo da transferência. É a transferência selvagem. Não é preciso análise, como vocês desconfiam, para que haja transferência. Mas, a transferência sem análise é o acting-out. O acting-out sem análise é a transferência (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 140).
Abre-se aí uma outra cena, já entrevista por Freud ([1938] 1974, p. 169) e fartamente referida por Lacan. No Seminário 10: a angústia, ele faz menção à “cena dentro da cena” (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 44-46). Isso, curiosamente, nos remete a um conceito, mise en abyme, originário das artes plásticas e aplicado à literatura, para expressar uma imagem dentro de outra, puro trabalho criador, que guarda estreita relação com o ato, enquanto poyesis.
A expressão “outra cena” também lá estava em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, ([1957-1958] 1998, p. 523). Verifica-se que Freud utiliza essa expressão, “cena de ação psíquica”, tanto em A interpretação dos sonhos (FREUD, [1900] 1974, p. 572), quanto ao se referir a Fechner na carta a Fliess (FREUD, [1904] citado por MASSON, 1986, p. 299).
Portanto, é nessa outra cena que se descortina uma mostração daquilo que clama por uma interpretação, ao contrário do sintoma. Há que haver, pois, uma transferência para que essa mostração seja referida a um Outro inserido na cena.
Afirma Lacan ([1962-1963] 2005, p. 140):
Não, não é essencialmente da natureza do sintoma ter que ser interpretado. Ele não clama pela interpretação como faz o acting-out [...] convém dizer, aliás, que o acting-out clama pela interpretação, mas a questão é saber se esta é possível.
Portanto, não podendo interpretar essa demanda, cabe ao analista rever e modificar sua posição transferencial, levando o analisante a trocar sua encenação por uma simbolização, reinserindo-se no discurso.
Freud admite ter sido apanhado desprevenido quanto à instalação da transferência a ele da ação de Dora em relação ao Senhor K. (FREUD, [1905] 1974, p. 116). Cabe aqui, mais uma vez, ressaltar o papel do acting-out como resistência à recordação, encenando, colocando em ato o que deveria ter sido rememorado, fazendo disso uma forma de repetição e de resistência, sendo ambas, além da sugestão, formas da transferência. Resultante disso, voltando ao caso, seria o abandono do consultório de Freud e da análise como fizera Dora ao sair da casa do Senhor K.
Mais uma vez vamos recorrer à casuística freudiana ao relatar agora o caso da jovem homossexual (FREUD, [1920], 1974, p. 184-212). Sem tempo para nos determos nas particularidades da história dessa paciente, é um exemplo clássico a sua atuação, ao dar-se a ver por todos, em especial pelo pai, quando desfila pelas ruas de Viena, na companhia da Dama de má reputação. É uma mostração, um ato que tem um destinatário e, se nos enveredarmos pela história desse caso, veremos que, embora seja uma ação motora, carrega uma mensagem dirigida ao Outro.
Lacan ([1957-1958] 1998, p. 433) afirma: “O acting-out sempre comporta uma elemento altamente significante, justamente por ser enigmático”. Portanto, há um apelo ao Outro, movido pela angústia, sob a forma de perturbação, de algo fora da ordem que se faz mostrar ao olhar do Outro.
Por ora, não vamos abandonar esse caso, pois a cena que se segue vai agora ser explorada. Diante do olhar enfurecido do pai e da reação da Dama, decidindo encerrar o relacionamento, a jovem se atira sobre uma linha férrea, naturalmente sofrendo graves consequências físicas de seu ato, e o episódio foi determinante para que os pais a levassem ao atendimento por Freud.
Nesse breve apanhado, estamos às voltas com dois atos, o acting-out e o que viria ser denominado passagem ao ato. Aqui, a identificação é absoluta ao objeto, sem qualquer apelo ao Outro. Nesse novo ato já não é mais uma cena, é uma saída de cena, um atirar-se ao nada. Ao contrário do acting-out, não há um direcionamento, não há um destinatário para esse ato, é mesmo um salto no vazio [niederkommt] literalmente “atirar-se de um lugar alto”, “deixar-se cair” e também“dar à luz”, o que remete a aspectos da história da jovem, em que não vamos adentrar aqui. Esse atirar-se ao vazio, além da cena, é aquilo que não tem retorno, uma viagem apenas de ida a lugar algum. Aqui entra em cena o objeto, que Lacan introduz como objeto a. Parece-nos mais clara ainda essa identificação ao resto, não como sujeito da ação, mas àquilo que se deixa ejetar da cena, mais que um objeto, um dejeto. É o que nos faz pensar esse “deixar-se cair”.
Vejamos o que diz Lacan no Seminário 10: a angústia a propósito do objeto a. Afirma ele:
Essa possibilidade essencial, em relação que podemos dizer universal, porque, em todos os níveis, vocês sempre a encontrarão concernido ao a – e é sua conotação mais característica, uma vez que está ligada justamente à função de resto –, eu a chamei, com um termo tomado de empréstimo ao vocabulário de Freud a propósito da passagem ao ato que lhe foi levada por seu caso de homossexualidade feminina, de largar de mão [laisser tomber], o niederkommen lassen (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 129).
Assim, na tentativa de evitação da angústia, do embaraço maior causado pela identificação do sujeito ao objeto que ele é para o Outro, impossível de qualquer simbolização, ele se deixa cair justamente como um objeto.
Agora somos nós que deixamos essa cena tão forte, não só no plano teórico, mas especialmente na clínica e vamos abordar outra modalidade de ato que, de fato, já está presente desde o início da análise e até sua finalização, como operação inerente não só a esses dois momentos, de entrada e término da análise, como a todo o seu percurso. Falamos do ato analítico! Agora é o que entra em cena.
O ato analítico é o ato realizado a partir do advento do sujeito como objeto, quando o sujeito se destitui como analisante para instituir-se como analista, podendo suportar bancar o objeto causa de desejo para um analisante. É este mesmo ato que, uma vez deposto o sujeito suposto saber encarnado pelo analista, fará esse analisante reinstaurá-lo já como analista para um outro sujeito, ao dar início a uma análise (QUINET, 1991, p. 110).
Como é próprio do ato, o ato analítico também é desprovido de um cálculo e de uma antecipação de seus efeitos, dos quais só se dá conta no a posteriori, diante de suas consequências. E o sujeito, como já foi dito, radicalmente modificado, que surge como efeito desse ato é seu efeito e também seu testemunho. É curiosa e instigante uma afirmação de Lacan de que o ato analítico seria “uma passagem ao ato esclarecida” (LACAN, 1967-1968, p. 217).
Além disso, parece ficar claro que o ato analítico não é fruto nem de um sujeito, nem de um saber, embora ressalte Quinet (1991, p. 123):
Se não há saber no ato analítico, este não deixa de estar em relação com um saber:
• O saber adquirido pela própria análise pessoal em que o analista como analisante experimentou-se como objeto e se separou dele, esvaziando-o de gozo. E também saber relativo ao impossível de ser dito, ao impossível da relação sexual.
• Saber adquirido do inconsciente de seu analisante que vai se depositando naquela análise específica e que poderíamos denominar como saber que envolve as relações do sujeito com o objeto a. É o saber que virá ocupar o lugar da verdade que sustenta o ato analítico, tal como está formulado no matema do discurso analítico.
Contrariando o cogito cartesiano, o analista opera do lugar do “eu não penso”, sustentado pelo ato inaugural da transferência estabelecida, pelo desejo, pela suposição de um saber atribuída pelo analisante e é também tomado pela surpresa do efeito do seu ato e até mesmo tomado de horror (LACAN, 1980, p. 13).
Em relação ao efeito surpresa do ato, Lacan se pergunta:
Qual deve ser esse desejo do analista, para sustentar-se neste ponto de extrema cumplicidade aberta à surpresa (LACAN, 1964-1965, lição de 19 maio 1965).
E quando acima mencionamos o efeito de seu ato, constatamos agora que dizer esse “seu” ato é questionável, uma vez que não foi ele, o analista, quem o operou, e sim a sua função, como se fosse uma representação.
Faz lembrar uma afirmação de Marie Claire Boons (1996, p. 15) quando diz:
Toda análise se desenrola entre dois atos essenciais: a entrada e a saída. O tempo dessa análise que ninguém sabe antecipadamente o quanto vai durar é um entreato, ou seja, um intervalo, uma espécie de intermezzo teatral, representado por dois parceiros que dividem entre si os atos em questão.
Essa afirmação é certamente atribuída ao ato analítico, como aquele que marca o início de um percurso de análise, até o seu término, com a deposição do sujeito suposto saber encarnado pelo analista e a investidura do analisante, então como analista, para um outro analisante, agora sim, ele investido como sujeito suposto saber para um outro sujeito. Como já tivemos oportunidade de mencionar em trabalho referenciado à Gradiva, de Jensen,
Ao se autorizar analista, só resta avançar, mesmo sabendo que chegará um dia em que esse trajeto será interrompido e será destituído de toda a luz que portava, sob a forma de um saber suposto, atribuído, que até então iluminara o percurso orbitário do processo analítico. Bem sabemos que esse apagamento resultante da destituição no final de cada análise é a condição já entrevista no ato de autorização como analista que ele mesmo se impôs (MELLO, 2018, p. 5).
Mas devemos também nos lembrar de que esse entreato delimitado pelos dois marcos – um de entrada em análise, outro de seu final – está pontuado pelos outros atos que já passaram pelas cenas dessa nossa conversa, ou seja, o ato falho, o acting-out e a passagem ao ato. Tanto neles como no ato analítico, que está agora sob nosso olhar, seus protagonistas, analista e analisante, estão sob as mesmas prerrogativas. Não são agentes de seus atos, são agidos por ele e, não importa a natureza do ato, ele guarda a dimensão significante.
E é sendo tomado pelo desejo, acima mencionado por Lacan, capaz de fazê-lo, como citado há pouco, “sustentar-se neste ponto de extrema cumplicidade aberta à surpresa” (LACAN, 1964-1965, lição de 19 maio 1965) que o analista se aproxima do poeta, nas palavras de Wilker França, com que se encerra esta última cena, deste último ato:
O psicanalista e o poeta são aqueles que não devem se deixar cair em um determinismo utilitarista ou consolador do que está posto, e devem apostar nas fontes inventivas da contingência, do equívoco e dos encontros. Ambos se utilizam da contingência para tratar o impossível, fazendo contorno ao indizível. Se o ato analítico é o que autoriza a tarefa do psicanalista, como bem pontuou Lacan, a poesia é aquilo que autoriza a tarefa do poeta. Ambos apresentam sua dimensão de significante, pois dizem algo e fazem ecoar (FRANÇA, 2014, p. 7).
Referências
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Endereço para correspondência:
E-mail: carlosaamello@gmail.com
Recebido em: 18/02/2019
Aprovado em: 15/04/2019
Sobre o autor
Carlos Antônio Andrade Mello
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
1 Mantida a forma coloquial com que foi apresentado em sessão plenária na XXXVI Jornada de Psicanálise do CPMG, em 21 set. 2018, bem como as numerosas citações obtidas na pesquisa realizada sobre o tema.