41 77Da Verwerfung em Freud à foraclusão em LacanSó o amor pode fazer o gozo condescender ao desejo 
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 ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte jan./jun. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

A psicanálise no mundo contemporâneo

 

Psychoanalysis in the contemporary world

 

 

Luciene dos Santos

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se discutir a posição da psicanálise no mundo contemporâneo, conturbado pelas diversas mudanças provocadas pela tecnologia e pela primazia que os dispositivos móveis adquiriram na disposição e organização da vida humana, tornando-se objetos de mais-de-gozar e extensionando a noção de corpo que passa a habitar os fluxos digitais, navegando por uma dimensão de real. Diante do mal estar contemporâneo promovido pela cultura digital, pretende-se responder à questão: por que a psicanálise em um cenário pouco simbólico?

Palavras-chave: Psicanálise, Tecnologia, Gadget, Mais-de-gozar.


ABSTRACT

We intend to discuss the position of psychoanalysis in the contemporary world, troubled by the various changes brought about by technology and the primacy that mobile devices have acquired in the disposition and organization of human life, becoming objects of over-enjoyment and extension of the notion of body that starts to inhabit the digital flows, navigating a real territory. Faced with the contemporary discontentment promoted by digital culture, we asl: why psychoanalysis in a little symbolic scenario?

Keywords: Psychoanalysis, Technology, Gadget, Over-enjoyment.


 

O mundo contemporâneo está assentado sobre os auspícios da tecnologia e da concretização prática do modelo teórico do sistema capitalista de que todas as coisas podem ser organizadas em função da eficiência de produtividade e da prospecção de resultados. Tal concepção também se instaura na forma de estabelecer os juízos sobre a vida e sobre as relações sociais.

A compreensão de produtividade na mutação do capitalismo contemporâneo implica não somente a relação com mercadorias e produção desses produtos, mas também uma produção que se espalha para todo tipo de ação humana e gera as mais variadas ofertas de serviços e todos os tipos de mercadorias, inclusive as mais abstratas como as sensações e os desejos.1

Lipovetsky (2004), ao tratar das questões relativas ao consumo na lógica de organização do sistema capitalista, aponta uma terceira fase do consumo nas últimas décadas do século XX, em que surge uma nova relação do consumidor com as mercadorias: o consumo emocional, marcado por um processo de hiperindividualização da demanda e destinado “[...] a propiciar experiências afetivas, imaginárias e sensoriais” (LIPOVESTY, 2004, p. 45). Enfatiza também que o consumo se dispõe cada vez mais a propiciar uma função identitária. Mesmo que de forma superficial, o hiperconsumidor buscará conferir sentido ao mundo e a sua própria existência.

No entanto, quando identificou tais relações do consumidor com os produtos, o autor encontrava-se em outro momento histórico, em que a tecnologia ainda não havia atingido as proporções atuais, que recolocam a proposta de agregar emoções e experiências imaginárias e sensoriais a objetos matéricos, para coadunar os usuários em uma experiência direta com as sensações e os estados afetivos.2 A experiência da virtualidade é mais relevante que a própria realidade material. No avanço dessa perspectiva tecnológica surgem os gadgets.3

Os gadgets são equipamentos complexos eletrônicos de uso prático no cotidiano, tais como celular, smartphone, tablet, notebook, GPS, entre outros, que a partir da primeira década do século XXI e nos anos subsequentes assumiram a primazia como objeto de consumo e na dinâmica com que se apresentam: como algo que se faz devorar e ao mesmo tempo devora os indivíduos em suas relações com as máquinas, apresentando muitas vezes um corte temporal do corpo com a realidade física do ponto de vista perceptivo e sensorial.

Baudrillard (1991) já havia percebido o caráter perverso dessa relação com as imagens, quando distinguiu as imagens contemporâneas da realidade e acusava a prática dessas imagens de forjar a realidade, como se a realidade existisse totalmente separada das imagens pelas quais nos apropriamos dela.

Para Baudrillard (1991, p. 7),

[...] na perspectiva [...] clássica (mesmo cibernética) a tecnologia é um prolongamento do corpo. É a sofisticação de um organismo humano, que lhe permite igualar-se à natureza e investir contra ela.

Os gadgets se aproximam na empiria das abstrações filosóficas contemporâneas que tratam o corpo em um sentido mais desencarnado e menos totalitário das concepções tradicionais. Como Jean-Luc Nancy (2003, p. 18), que o compreende como “[...] pura exterioridad, espacialidad, espaciamiento, existencia (que es siempre para Nancy, co-existencia)”. Assim, a compreensão corpórica de Nancy não passa por pensar o corpo como um indivíduo, um sujeito ou uma consciência, ou seja, uma totalidade, um organismo, uma unidade bem formada, mas “[...] remite a lo abierto, a lo desorganizado, a la fragmentariedad, a la dispersión” (NANCY, 2003, p. 15).

Ao se referir aos gadgets na conferência La tercera, Lacan ([1974] 1980, p. 186) afirma que o futuro da psicanálise dependerá do que ocorrer com o real, se os gadgets se impuserem “[...] que verdadeiramente cheguemos a estar animados pelos gadgets”.

Lacan vislumbra a possibilidade, mas acha pouco provável, que eles deixem de ser um sintoma, como se apresentavam naquele momento. Claro que ele não se referia aos equipamentos digitais contemporâneos, mas já percebia que a relação com os dispositivos maquínicos poderia modificar as formas do viver, caso ocorresse realmente uma predominância do real no aparato maquínico, e não apenas uma representação da realidade. Na descrição de Lacan o real não “[...] é o mundo, não há nenhuma esperança de alcançar o real pela representação” (LACAN, [1975] 1981, p. 164). O real é imanente à representação e impossível de ser simbolizado.

No transcorrer do tempo, os gadgets de fato assumiram a perspectiva de apresentar o real, na medida em que a tecnologia digital se aprimorou e se formulou com dispositivos que passaram a animar a nossa vida.

Para Baudrillard (1981), as imagens digitais são operações genética e nuclear, e não especular e discursiva; dessa forma, não podem ser representadas.

É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já não são do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real (BAUDRILLARD, 1981, p. 8).

E por que os gadgets nos animam? Porque nesses dispositivos em que ocorre a aparição do real, nosso corpo emerge não somente por extensionalidade, espacialidade, no dizer de Nancy (2003), que se alcança por sensação, sensorialidade ou pelos perceptos, mas porque nesses dispositivos nos colocamos com um corpo que fala e goza.

Na perspectiva da psicanálise lacaniana considera-se o corpo sexual e gozoso e não o orgânico e assim o corpo, é determinado por dois parâmetros: a fala e o sexo. E pode ser considerado a partir de três pontos complementares: do ponto de vista do Imaginário (o corpo como imagem), do ponto de vista do Simbólico (o corpo como significante) e do ponto de vista do Real (o corpo articulado ao gozo).

Para Lacan ([1966-1967] 2008, p. 388), é preciso haver um corpo para que haja gozo: “não há gozo senão do corpo”. E nos gadgets há um corpo falante, que é o corpo marcado pelo Simbólico tomado como um conjunto de elementos significantes que se apresenta em rede, na trama social complexa da internet, mas que também é falante no sentido de produção de uma fala que reverbera, incide sobre seu próprio corpo (articulado ao Real) em um mais-de-gozar e o atravessa para atingir o corpo do outro, para fazê-lo se fazer devorar e, assim, poder gozar às expensas do outro.4

 

A dimensão comunicacional na contemporaneidade

É inegável a relevância das experiências comunicacionais no mundo contemporâneo, mas principalmente da invasão da comunicação audiovisual em diversas áreas e instâncias da vida com um amplo espectro de vídeos que circulam por diversas plataformas, suportes e dispositivos.

Com os avanços das pesquisas tecnológicas ligadas à internet das coisas, as propostas dos Wearables Technologies buscam através dos materiais eletrônicos ampliar o desempenho humano das funções e dos sentidos corporais e de suas relações com os ambientes e as coisas, mantendo uma constante conectividade (de informações, comunicação e entretenimento).

Assim também a realidade virtual, por meio do artifício de uma interface tecnológica, forja a recriação da sensação de realidade através dos estímulos visuais e auditivos a partir de um ambiente virtual. Ao fazer uso desse sistema operacional objetivo, o indivíduo adota essa interação como uma de suas realidades temporais. As bases para ocorrência do fenômeno são os displays estereoscópicos como óculos e headsets. Observa-se que os óculos podem se associar a diversos setores de serviços e oferecer aos usuários uma experiência de imersão anterior à tomada de decisão de compra dos serviços.

Os dispositivos digitais eletrônicos na contemporaneidade assumem o lugar em que os discursos se cruzam, se entrecruzam e são agenciados, assim como aparecem novas formas de manifestação da subjetividade, ao generalizar a partir da ampla classe dos dispositivos foucaultianos e da própria concepção herdada da teologia dos padres latinos, na qual Foucault também havia se referenciado,

Agamben (2005, p. 40) elabora a definição de dispositivo como:

[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.

Além disso, considera que, na fase presente do capitalismo, há uma proliferação de dispositivos dessubjetivantes – artefatos tecnológicos e midiáticos, como celulares e propagandas e os

[...] processos de subjetivação e processos de dessubjetivação tornaram-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral (AGAMBEN, 2005, p. 49).

Pode-se considerar que a inovação tecnológica observada recentemente nesses dispositivos está na produção das novas experiências em que um real nos toca e nos anima no sentido conceitual de dispositivo, de Agamben, e com isso nos afasta de posições estabelecidas tanto sociais quanto psíquicas e ao mesmo tempo demarca a impossibilidade da realização dos nossos desejos. Na perspectiva foucaultiana, o dispositivo

[...] está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam (FOUCAULT, 2006, p. 246).

Não são apenas máquinas mediadoras de circulação de discursos e consequentemente de movimentação de conteúdos imaginários, mas são máquinas que interagem com os usuários e produzem afecções. Na funcionalidade digital, o usuário navega nos fluxos da rede [internet] através de uma aplicação adequada [browser] dos dispositivos eletrônicos, mas parafraseando Paulinho da Viola: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar, é ele que me carrega, como nem fosse levar”.

E boa parte da imposição dos gadgets sobre a vida diz respeito à sobreposição cada vez maior para uma propensão à interação mental. As experiências no campo da inteligência artificial destinadas à criação de máquinas potencialmente capazes de elaborar pensamentos e produção de estados de sentimentos e emoções ainda estão em fase preliminar, mas a nossa relação com as máquinas em termos de uma interação comunicativa já ocorre.

Gunkel (2017, p. 13), a partir do teste de Turing, afirma que:

[...] o comportamento comunicacional, que ela exibe, por exemplo, no jogo da imitação, gera um efeito em nós e em nossas interações sociais e relacionamentos.

Para o autor, mesmo que haja dúvidas sobre o alcance da “IA forte”, não se pode negar, contudo, que nosso mundo

[...] já é povoado por artefatos semi-inteligentes, robôs sociais, algoritmos capazes de aprender e sistemas de tomada de decisão autônomos que exponencialmente ocupam o lugar do outro nas relações sociais e na interação comunicativa (GUNKEL, 2017, p. 13).

Os socialbots operam nos espaços virtuais, em jogos e redes sociais como Twitter e Facebook realizando intervenções de algoritmos que utilizam comunicações entre usuários e entre usuários e máquinas criando, modificando ou canalizando comunicações e interações, tornando difícil a identificação das ações no espaço virtual de uma comunidade. Exemplo disso foram os comentários gerados contra a exposição de arte realizada em outubro de 2017 pelo Banco Santarder (Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira), que levaram a instituição a suspender o evento.

 

Psicanálise e a experiência da rede

A internet nos colocou diante de um novo paradigma cognitivo em relação à capacidade de apreensão das categorias de espacialidade e temporalidade. O tempo não pode mais ser entendido como sequencial, mas está dentro de uma completa simultaneidade que o impõe como um tempo real devido à interação em vários eventos e fenômenos e ao mesmo tempo dilui as distâncias. E à medida que essa experiência é vivenciada somos contaminados por uma noção de temporalidade que contamina a realidade com uma outra noção perceptual de tempo e espaço.

A temporalidade é percebida cada vez mais em um presente presente, em que a velocidade com que percebemos o tempo apaga a nossa percepção espacial. Ocorre uma temporalização do espaço, essa redução do tempo é agudizada por nossas experiências no espaço digital, marcado por uma velocidade temporal que impede a compreensão da noção de espaço. O aqui se iguala ao agora e produz o instantâneo.

A instantaneidade passou a ser uma constância em nossa percepção cotidiana com as coisas o que levou o aqui se igualar ao agora do ponto de vista cognitivo e perdemos a capacidade de compreender o antes e o depois (o devir). Ficamos presos em um presente, mas em um presente que só é presença. E perdemos a noção de totalidade que é da ordem do devir, do que há de vir, que só é possível ser pensado a partir da compreensão do que já foi, numa perspectiva aristotélica de temporalidade.

A decorrência dessa experiência de viver na imediaticidade atinge nossa capacidade de nos constituirmos como sujeitos históricos, dotados de uma capacidade de elaboração de histórias que conectam esses tempos e nos permite a partir das construções de fantasias que operam no nível do simbólico e do imaginário, requerer que a vida transcorra guiada pelas narrativas ficcionais que constituem a experiência do viver e da formação dos laços sociais.

Frequentemente, psicanalistas relatam casos clínicos em que os indivíduos que os procuram com a disposição à análise, movidos pelos desconfortos de uma angústia que os consome ou mesmo por sentir os desconfortos das repetições de situações desagradáveis e desajustes emocionais que os perturbam no trânsito social, no processo subsequente às queixas, não conseguem interrogar sobre sua existência, apresentam uma espécie de apagamento de suas histórias, confere pouca metaforização de suas dores e demostram uma falta de conexão com o passado. Assim, não conseguem conectar-se com sua própria história. Outros analisantes aparecem silenciosos, apáticos, quase não conseguindo descrever suas queixas e muito menos ainda expressar algum tipo de demanda, dispostos em um vazio e sem apresentar um potencial para a clínica.

Observa-se que a clínica dos novos sintomas se manifesta como a clínica além do recalque, configurada pela passagem ao ato, pela desagregação do caráter simbólico do sintoma e pelo retorno do gozo no real, como a caracteriza Massimo Recalcati (2004). Não oferece o tempo da ocorrência da associação livre e da possibilidade de escuta do analista seguida de sua pontuação. É um cenário pouco simbólico. Abre-se a questão: se considerarmos a associação livre o ato mais importante do processo de análise, seria o fim da linha da psicanálise na sociedade contemporânea?

Em Além do princípio de prazer, Freud ([1920] 1976, p. 43) alertava que a psicanálise se interessa pelos processos mentais inconscientes:

[...] e que toda a vida mental apenas determinados atos e partes isolados são conscientes. [...] Ela define o que é mental, enquanto processos como o sentir, o pensar e o querer, e é obrigada a sustentar que existe o pensar inconsciente e o desejar não apreendido.

Portanto, aparentemente difícil mas não impossível de ser realizada, a psicanálise não se encerra na inoperância da associação livre. Freud em sua clínica se deu conta de que o objetivo da análise não era a rememoração e reviu suas teorias ao se interessar pelas repetições, principalmente pelas desagradáveis, se dando conta de que nem todo psíquico é regido pelo princípio do prazer.

A perturbação mental induzida pelas interações com o gadgets coloca as pessoas cada vez mais de frente com experiências que sustentam o real, desloca da possibilidade de imaginar para sentir, ser tocado por explorações sensoriais que afetam diretamente as sensações e as emoções no corpo e na mente, em tempos extremamente rápidos, mas que operam muitas vezes na contramão dos desejos e da lógica do inconsciente, assinalando um desencontro entre o que deseja o sujeito e o que recebe dos dispositivos ou, ao contrário, atingem a organização pulsional de um sujeito que solicita sempre mais do prazer oferecido, criando uma relação de excessos pulsionais que esbarram na adicção.

Mas os gadgets oferecem uma ‘onda’ que é contínua e cuja abstinência é muito mais devastadora em termos de separação do sujeito do objeto de prazer. As sensações físicas de ligação do corpo com os gadgets é muito mais ampla e produz uma satisfação em ritmo constante e sem cortes nítidos de temporalidade, o que dimensiona a exigência pulsional menos barrada e exigente cada vez mais de satisfação.

O que está em jogo é o gozo e a implicação do analisante no seu sintoma. Se este não estabelece possibilidade de trabalho com a fantasia imaginária porque não constrói associações livres, porque não fornece a palavra como significante que possibilita o registro da significação diante dos seus sintomas, ele apresenta a repetição (de ações, de gestos, palavras, atitudes) e o enigma da pulsão, a verdade do Outro em que reside sua castração está ali esperando um trabalho de construção.

A intervenção de um ato analítico bem calculado na construção de uma frase com os restos dessa repetição irá fazer aparecer a fantasia fundamental, da qual não há nada a dizer; nem o analista, nem o analisando. No entanto, o reconhecimento do analisante de que o que faz está atrelado à fantasia fundamental, vai promover a mudança de posição do sujeito diante da vida, o que vai levar o inconsciente a encontrar outra forma de gozar e fazer com que aquilo que causa angústia se transforme em desejo.

 

A psicanálise se atualiza em terreno árido

Recolocando a questão: por que a psicanálise em um cenário pouco simbólico? Porque o sujeito pode ser confrontado pelo que pode ser obtido para além da demanda e implicado com a falta.

O psicanalista deve se perguntar: o que essa dinâmica de diversidade de novos sintomas, de escassez simbólica, de tempos breves nos provoca? Deve ter clareza de que sua capacidade de escutar é também ver e que o contrário também procede. Deve ter acuidade com a repetição, o que o levará a produzir atos analíticos precisos, logicamente calculados, com a ética de quem sabe que o tempo da análise se tornará cada vez mais curto, em um cenário de poucas associações e produção de significação, mas nem por isso menos rico do trabalho analítico que sabe reconhecer que o ser falante do inconsciente não está apenas nas palavras, mas invade e atravessa o corpo em seus movimentos gestuais e na riqueza cênica com que se apresenta.

Em Construções em análise, Freud ([1937] 1977) já nos alertara que o analista, assim como um arqueólogo, procura por uma história primitiva nas estruturas psíquicas do analisante. Mas, distinto dos objetos do passado escavados pelo arqueólogo, todos os elementos essenciais da estrutura psíquica estão preservados, mesmo

[...] coisas que parecem completamente esquecidas estão presentes de alguma maneira e em algum lugar e simplesmente foram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo (FREUD, [1937] 1977, p. 294).

E Freud descreve o material que é colocado à disposição do analista para construir ou reconstruir as experiências e os impulsos afetivos por elas invocados, os quais o analisante esqueceu: sonhos, associações livres e

[...] há sugestões de repetições dos afetos pertencentes ao material reprimido que podem ser encontradas em ações desempenhadas pelo paciente, algumas bastante importantes, outras triviais, tanto dentro quanto fora da situação analítica (FREUD, [1937] 1977, p. 292).

Portanto, se os analisantes não falam no consultório do analista, falam em excesso no contínuo espaço dos fluxos das redes nos gadgets, ali praticam acting out variados, principalmente gozam. E como diz Lacan ([1957] 1988, p. 521): “Sou ali onde não penso, é dizer que sou ali onde eu gozo. Portanto ali onde eu gozo, não penso”.

Por isso, o sujeito perde a cabeça, perde a razão quando está gozando e só começa a pensar depois de ter gozado. Perde o controle das ações, o sujeito se queixa depois de todas as bobagens que fez alegando que não estava pensando. Estava, claro, satisfazendo seus impulsos sexuais agressivos, ou seja, a pulsão. O sujeito se entregou ao gozo. É com esse gozo no real propiciado pelos gadgets que o analista e o analisando terão que se deparar, fazer frente, para prosseguir com o trabalho analítico, pois afinal a transferência em análise e o próprio alcance dos efeitos analíticos não se limitam ao que ocorre no âmbito do consultório do analista.

Corroborando essa estreita ligação entre acting out e neurose de transferência, Freud ([1920] 1976, p. 32), dirá que as repetições da vida sexual infantil se apresentam com surpreendente exatidão, e que “[...] invariavelmente são atuadas (acted out) na esfera da transferência”, na relação entre o analisante e o analista.

 

Considerações finais

Concluímos que a psicanálise na contemporaneidade deve considerar a pregnância das modificações tecnológicas produzidas na cultura, assim como a perda dos paradigmas tradicionais científicos, filosóficos e culturais que inevitavelmente se impõem à tessitura das novas subjetividades. Para isso, é preciso se atualizar no trabalho da clínica sem, contudo, perder de vista o escopo da teoria psicanalítica, pois desde os primeiros ensinamentos Freud nunca foi hermético conceitualmente e dogmático no conjunto das proposições téoricas, mas se completava ao longo do tempo com novas reflexões frente ao mundo e aos próprios sintomas colocados na clínica.

Do mesmo modo, Miller (2014) nos suscita a pensar que Lacan não veio para destituir Freud, mas prolongá-lo e ao mesmo tempo atualizar a teoria psicanalítica:

Os remanejamentos de seu ensino se fazem sem fissuras utilizando-se os recursos de uma topologia conceitual que garante a continuidade sem interditar a renovação (MILLER, 2014).

Portanto, na contramão da sociedade tecnologizada sob o controle do capitalismo de eficácia produtiva, sustentada por uma via fantamástica de se acoplar às máquinas e formar corpos hibridizados perfeitos, a psicanálise não promete a ninguém eficácia de ações, resultados sempre positivos sobre o exercício do viver e muito menos o abandono da sua condição de humanidade. Àqueles que estiverem dispostos a enfrentar uma clínica do real, a psicanálise propõe, ao final da análise, a defrontação com a falta, tendo que se haver com o reconhecimento das frustrações, das perdas e seus danos. Afinal somos seres humanos e não maquínicos e dessa forma constitutivamente desamparados devida a nossa própria condição de humanidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: luciene44@hotmail.com

Recebido em: 17/09/2018
Aprovado em: 15/04/2019

 

Sobre a autora

Luciene dos Santos
Psicanalista da clínica do CPMG.
Candidata em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (2º tempo).
Filósofa, historiadora.
Mestre em comunicação social.
Especialista em historia da arte.
Pesquisadora em imagens, semiótica e processos interativos e perceptuais com as imagens e telas digitais.

 

 

1 No sistema capitalista o trabalhador está submetido à alienação dos resultados de atividade que passa à propriedade de outrem. A força de trabalho é transformada em uma mercadoria, condição básica para o modo de produção capitalista. Portanto não é novidade no sistema capitalista a transformação de um valor em mercadoria, ou da incorporação de uma abstração à condição de mercadoria. Marx já havia indicado que o valor econômico extinguia a atividade sensível dos produtos, e estes, como representantes materiais do trabalho abstrato podiam ser transformados na forma de encarnação do dinheiro. Na forma abstrata dos produtos que se expressa pelo preço em dinheiro os processos vivos assumem a propriedade de objetos mortos. Mas a novidade na contemporaneidade são as estratégias de levar o consumidor ao consumo de mercadorias abstratas independentemente de suas apresentações sensíveis e de certa apropriação do conhecimento científico para produzi-las, portanto a apropriação do trabalho mental convertida em valor econômico e de sua circulação como dinheiro no mercado.
2 Observa-se que não se trata mais de falar em consumidor, mas em usuários, reconhecendo o papel ativo dos indivíduos em uma sociedade tecnológica já que produção e consumo estão quase superpostos. Com as novas tecnologias digitais o usuário é também em muitas situações produtor ao produzir conteúdos, serviços e produtos para outros usuários, não necessitando de empresas ou indústrias que controlem sua produção, a não ser as empresas de tecnologias digitais que oferecem as plataformas que os conectam a uma rede global. O modelo de negócios dessas empresas de tecnologia subverte conceitos fundantes do sistema capitalista e propõe novos modelos de negócio: o foco não é mais no produto, mas no consumidor global; o cliente é grátis (redefine a noção central do mercado capitalista baseado na transação, há consumo mesmo não havendo transação), a abordagem com o consumidor é relacional: o cliente passa a ser um usuário que tem algum tipo de ligação com o produto. O discurso capitalista da sofisticação tecnológica é muito mais perverso do que a indústria cultural por condicionar o mesmo lugar para o consumo e a produção. São mecanismos disciplinares individualizantes, que servirão ao modo de produção de mercadorias, ao modo tradicional de reprodução do capital. Torna o usuário produtor/consumidor de si.
3 O termo “gadget” para designar um equipamento complexo criado para facilitar uma função específica e útil no cotidiano já era utilizado por cientistas há um bom tempo. Se retrocedermos no tempo, é possível encontrar uma equivalência nas invenções de Leonardo da Vinci em relação ao princípio pragmático que orienta esses objetos. Na França eram designados como gachette (peças mecânicas variadas). O termo ganha força no campo da engenharia eletrônica e se torna popular com o avanço dos dispositivos comunicacionais nas sociedades do século passado.
4 Nos anos 1970 a questão do valor de gozo se reapresenta na vertente mais-de-gozar do objeto a, para Lacan (Televisão, 1972). A noção de mais-de-gozar tem por função estender o registro do objeto a para além dos objetos naturais. Uma proliferação de objetos feitos para causar o desejo e obturar a falta, gerando novas formas de gozo.
5 A máquina intervém direta e autônoma na produção em meio digital. Os robôs atuam como um tipo de prótese cognitiva/operacional capaz de reconhecer erros e consertá-los. São responsáveis por significativa parte das edições de publicações. Exercem tarefas de natureza mecânica de editoração e vigilância sobre os conteúdos produzidos. O programa não para de apresentar opções de palavras, numa espécie de interação autoral com o usuário, modificando o texto e buscando a precisão de sentido. Em termos de circulação e apropriação dos conteúdos dos saberes, as máquinas (robôs) determinam as taxas, as direções e as probabilidades do fluxo de uma quantidade de informação através do controle e de operações codificadas.
6 Pesquisa da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que dos 778 mil tweets publicados, 8,6% foram postados por bots, que sequestraram parte do debate e produziram ambiente de polarização.

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