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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte jan./jun. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Só o amor pode fazer o gozo condescender ao desejo1

 

Only love can make enjoyment indulge in desire

 

 

Marco Antonio Coutinho Jorge

I Corpo Freudiano - Seção Rio de Janeiro
II Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A estrutura da narrativa da obra As mil e uma noites ilustra com precisão o aforismo lacaniano “Só o amor pode fazer o gozo condescender ao desejo”. O presente artigo tematiza os embates entre amor e gozo, e entre amor e morte, como as faces mais pregnantes do conflito inerente a todo sujeito entre o imaginário e o real. É o simbólico que permite paliar os efeitos devastadores desse conflito, o que permite ler em As mil e uma noites um dispositivo simbólico semelhante ao de uma análise.

Palavras-chave: Amor, Desejo, Gozo, Perversão, Lei.


ABSTRACT

The narrative structure of One thousand and one nights perfectly illustrates the Lacanian aphorism “Only love allows jouissance to condescend to desire”. This article thematizes the clashes between love and jouissance, and also between love and death, as the most significant facets of the inherent conflict between the imaginary and the real in every subject. It is the symbolic which allows for mitigating the devastating effects of that conflict, enabling the reading of One thousand and one nights as a symbolic device akin to the process of analysis.

Keywords: Love, Desire, Jouissance, Perversion, Law.


 

Duas coisas me interessam em especial ao refletir psicanaliticamente sobre o amor. Uma delas é a relação entre o amor e o gozo – a problemática, a verdadeira guerra que existe entre o amor e o gozo em cada sujeito, pois a nossa estrutura implica amor, desejo e gozo. Por isso, a frase “só o amor pode fazer o gozo condescender ao desejo” funciona como uma verdadeira bússola de reflexão para nós, que seguimos a psicanálise com Lacan. Uma frase, dez palavrinhas, que contêm três termos caros à psicanálise: amor, desejo e gozo. São três conceitos, três dimensões essenciais da sexualidade humana que, podemos dizer, Lacan articula nessa única frase. Voltaremos a isso adiante.

O outro aspecto é a relação problemática, conflitiva e de guerra, entre o amor e a morte. Esses dois aspectos eu abordo no meu livro sobre A clínica da fantasia (2010). Essas duas dimensões – amor e gozo, amor e morte – são onipresentes na obra de Freud e no ensino de Lacan, assim como na literatura. Em toda criação literária, poética, ficcional, teatral e cinematográfica, especialmente – por ser uma arte que pode incluir várias artes em si –, essas duas polarizações radicais, que trazem conflito para o amor, são universais. Elas estão presentes na psicanálise, na obra dos grandes mestres. Estão presentes na fala do sujeito, do analisando. Estão presentes nas obras artísticas. E o que me interessa pensar é o que há de estrutural nessas duas grandes polarizações que incluem o amor.

 

Amor e gozo

As mil e uma noites é a obra da literatura universal que, a meu ver, identifica da forma mais excelente a polarização entre amor e gozo. É uma obra que foi escrita ao longo do tempo, através do recolhimento realizado a partir do século IX de pequenas histórias das culturas árabe, persa e indiana. Existem diferentes Mil e uma noites, não uma só. A edição de Antoine Galland, que verteu a obra para o francês em 1704, a partir de um manuscrito sírio do século XV, é uma das mais importantes e precursoras; a de Joseph-Charles Mardrus é outra versão importante, há ainda a de Richard Burton assim como a de Edward Lane. Uma nova tradução brasileira feita diretamente do árabe por Mamede Mustafa Jarouche surgiu recentemente.

Um grande especialista, que falava maravilhosamente bem sobre “as noites”, foi Jorge Luis Borges. Ele tem um livro, uma joia, chamado Sete noites. Trata-se de sete conferências que Borges deu em Buenos Aires, como ele costumava fazer em vários lugares do mundo – conferências com a erudição poética que só ele sabia enunciar – e uma das sete noites ele dedicou às “mil e uma noites”.

Existe outra pequena obra da psicanalista Betty Milan chamada E o que é o amor?, em que ela também toca nessa questão. No meu primeiro livro, Sexo e discurso em Freud e Lacan, há um capítulo sobre essa história. E em A clínica da fantasia, eu retomo de outra maneira essa obra que vai mostrar a questão do gozo encarnada pelo sultão Schariar.

Schariar tinha um irmão, e ambos receberam duas partes diferentes do sultanato quando o pai deles morreu. Os sultanatos de ambos ficavam bem distantes e um dia Schariar decide visitar o irmão, Schazenan. Schariar prepara a caravana para essa viagem e, quando estavam um pouco distantes do palácio, ele lembra que deixara um dos presentes mais importantes que iria levar para o irmão. Ele retorna ao palácio e, ao entrar, uma verdadeira orgia se apresenta aos seus olhos. No centro dessa orgia, estava a mulher dele com os escravos e as escravas, Schariar fica completamente furioso e manda matar todos. Não só a mulher, como todos os que participavam dessa festa orgiástica.

Inteiramente desolado, Schariar volta para a caravana e vai visitar seu irmão. Chegando lá, o irmão dele vê que ele está outra pessoa, não tem nenhuma vitalidade nem alegria, está cabisbaixo, muito fechado, não consegue falar. O irmão manda trazer todas as diversões possíveis para alegrá-lo – música, teatro, dança, o que havia de melhor – e ele continua ensimesmado. Um dia, Schazenan tem uma ideia: “Vamos caçar!”, e prepara a caravana para a caça, à qual seu irmão era bastante aficionado. Na última hora, contudo, Schariar diz: “Eu não vou, não vou porque não estou bem, eu não quero ir”. O irmão insiste, ele acaba ficando, e a caravana da caça vai embora. Mal a caravana partiu, Schariar, que estava recluso num dos aposentos do palácio, vê uma movimentação acontecer. Ele procura ver o que era, e tratava-se de uma orgia no palácio, no centro da qual estava a mulher de seu irmão.

Quando volta para o seu sultanato, convencido de que todas as mulheres traem seus maridos, Schariar baixa uma lei que vai ditar o seguinte: a cada noite ele iria possuir uma virgem, uma linda virgem que, ao raiar do sol, seria decapitada. Vejam que estrutura poderosa, o que eu falei até agora são as setenta primeiras páginas do livro, que contém mais de mil páginas. É uma estrutura. E essa estrutura é que mais nos interessa do ponto de vista psicanalítico. Essa estrutura que se apresenta de maneira violenta para um homem, aquilo que o confronta e arrebenta a sua relação amorosa privilegiada com uma mulher. E o que é? É a dimensão do gozo. O gozo e o amor são rivais dentro de cada sujeito. Essa rivalidade pode aparecer e aparece com uma certa frequência, poderia até dizer que ela é onipresente. E desperta nesse homem, a título de uma figura que pode muito bem exemplificar a posição do homem nesse caso – a perversão.

Schariar adquire uma posição perversa em que ele é a lei, em que ele não admite a diferença e não aceita que haja um desejo que transcenda a pessoa dele. Ele cria um gozo do qual ele é o único proprietário e do qual o outro, no caso, a mulher, não pode partilhar. Vejam que o que está em jogo nessa história não são só o amor e o gozo, são o amor e a morte também. Porque ele vai mandar decapitar cada virgem por ele possuída e, conforme conta a história, isso vai se repetindo longamente. Schariar constrói, assim, um dispositivo erótico em que o gozo está totalmente conectado à morte e no qual a morte do outro impede a intersubjetividade amorosa. Esta talvez seja a melhor definição da perversão: a objetificação do outro em prol do gozo e a consequente anulação do outro como sujeito. Não é difícil também ver nele uma espécie de variação da necrofilia, posto que, fadado à morte, o objeto do qual Schariar extrai gozo tem a morte inscrita nele.

Essas mil e uma noites, como diz Borges, são uma metáfora do infinito, esse “mil e um”, esse um a mais no mil, significa que essas noites se eternizam. Mas o que é ainda mais interessante nessa história é a habilidade, a sagacidade da mulher que se chama Scheherazade, que é descrita como sendo a mais linda, a mais inteligente, a mais culta do sultanato.

Vejam que é uma mulher com um poder real, simbólico e imaginário. A mais linda, a imagem mais maravilhosa. A mais culta e erudita, conhecia tudo – medicina, filosofia, literatura, poesia, música – um simbólico poderoso. E real, porque ela vai se apresentar como um objeto que não pode ser capturado pelo sultão. Então, ela propõe um acordo a seu pai, que era o grão-vizir, braço direito do sultão: “Eu vou me apresentar como uma dessas mulheres que vai ser decapitada”. O pai fica desesperado: “Não, minha filha, não faça isso, você vai ser morta, você é minha filha querida!”. Ela diz: “Não, papai, eu tenho um plano”. O pai tenta demovê-la, não consegue, e o plano dela é executado. Ela vai passar a noite com o sultão que, evidentemente, quando ela se propõe a isso, fica muito satisfeito, já que possuiria Scheherazade.

Conta a estória que, quando está se aproximando a manhã do dia em que ela ia ser decapitada, ela pede ao sultão: “Eu poderia, magnânimo sultão, me despedir de minha irmã Dinarzade? Seria possível dizer adeus para ela?”. O sultão, claro, muito generosamente, diz: “Óbvio, mandem chamar Dinarzade”. Dinarzade chega nos aposentos, na alcova do casal, e, por sua vez, pede para Scheherazade: “Minha querida irmã, conte para mim uma daquelas suas lindas histórias, antes de você desaparecer para sempre”. Scheherazade se volta para o sultão e pondera: “Eu faria isso com grande prazer, caso o magnífico sultão o permita”. E o magnífico e generoso sultão afirma: “Mas é claro! Eu jamais impediria que isso acontecesse, você contar uma história para sua querida irmã, que pede isso com tanta ternura”.

E Scheherazade começa a contar uma história, uma das maravilhosas histórias das mil e uma noites. Mas, ao chegar o momento em que o primeiro raio de sol ia despontar, Scheherazade se interrompe e diz: “Infelizmente...” – e a história estava no seu ápice! O sultão já começando a ficar seduzido e envolto naquilo, porque as histórias de Scheherazade, como disse Betty Milan, são histórias do passado dele, da família dele. Ela fala como se fosse ele falando, são histórias que o envolvem profundamente porque ela fala dos seus ancestrais, de seu passado e de sua cultura – “...eu não vou poder continuar, porque, nesse momento, conforme a lei do magnífico sultão, eu serei decapitada, minha querida irmã”.

O sultão fica sem saber o que fazer porque desejava saber o resto da linda história. E aí, Scheherazade, percebendo seu interesse, diz: “A não ser que o sultão permita que eu continue essa história amanhã. Isso é uma coisa que só ele pode decidir”. “Mas é claro que eu permito. Amanhã você continua a narrar essa história para concluí-la”, responde Schariar. E isso vai se prolongar durante todas as mil e uma noites, ao longo das quais Scheherazade engravida do sultão. Então, o sultão faz um édito e suspende aquela lei tenebrosa, e eles podem viver felizes para sempre. Não são só os americanos que gostam do happy end. Os árabes também gostavam. Aliás, todos nós gostamos, todos nós queremos o happy end. Isso faz parte da estrutura.

Esse amor, mencionado anteriormente por Ana Suy, é um amor que, a meu ver, Lacan situa na sua obra como um amor já adquirido a partir de um processo de análise. Lacan vai falar do “amor dom ativo”, e diz no Seminário 1: “Desse amor, que é raro, só duas pessoas são capazes: o pai, e o analista”. Porque é um amor que se tem pelo outro, mas não se aspira à reciprocidade, você ama o outro para que ele vá gozar desse amor em outro lugar, com outra pessoa. Mas o amor nosso de cada dia, a meu ver, não é esse. Nosso amor é narcísico, nós queremos a completude, não abrimos mão dela. E qualquer falha que se apresente para o nosso amor será recebida com toda violência.

Lacan diz no Seminário 20 – um dos pontos mais altos de seus seminários – que “o verdadeiro amor desemboca no ódio”. E ele fala disso de uma maneira muito surpreendente: “A verdadeira amor desemboca no ódio” – [la vraie amour]. Ele não quer saber do gênero da palavra, ele feminiliza o termo – a verdadeira amor desemboca no ódio. Essa frase é uma referência essencial, porque ela resume o que Freud mostra inúmeras vezes: amor e ódio são as duas faces da mesma moeda. Não existe amor verdadeiro que não leve ao ódio. Porque se quando eu amo o outro me completa – e completa mesmo, não é ilusão, o amor completa sim (aí nós temos duas versões do amor, eu acho, uma feminina e uma masculina, que já vão dialogar) – o sujeito não abre mão dessa sensação de completude; e se ele perder essa completude, ele perdeu tudo. Porque se ele conseguiu o objeto a que ele tanto aspirou, se ele teve a sensação, a vivência real de ter conseguido esse objeto, concordo com Ana Suy, é ilusório, claro que é ilusório, mas a vivência do sujeito não é ilusória, é verdadeira e toma todo o ser dele. Mesmo as pessoas analisadas amam e amam dessa maneira narcísica. Eu não conheço ninguém tão analisado que não ame. Freud afirmava que a análise deve levar o sujeito a ter condições de poder amar e trabalhar.

Então, amor e ódio são as duas faces da mesma moeda. E se o sujeito encontrou aquilo que o completa, ele deu sentido à vida, porque a gente vê isso claramente na vida cotidiana. O sujeito, quando ama de um dia para o outro, sua vida adquire todo o sentido. Antes não fazia sentido nenhum, ele estava ali, naquela vidinha morna, sem graça, o céu azul e o sol brilhando, mas... “Não tem muita graça”. No dia seguinte chove, e tudo cinza, mas se ele ama... “Ah, que chuva maravilhosa... que tempo deslumbrante, a natureza é tão forte!” O real adquire sentido, e essa é a força do amor, é dar sentido ao real, ao que não tem nenhum sentido.

O amor dá sentido ao real, dá sentido a tudo aquilo que nos acossa durante a vida, seja de fora, de uma maneira violenta, traumática, seja de nosso próprio interior, do pulsional. Somos traumatizados pelos desejos e pulsões que vêm de dentro de nós, ou seja, somos como uma película suave, tênue, contudo bastante poderosa, e que a análise ajuda a reforçar para enfrentar o que vem de fora da ordem do real e o que vem de dentro igualmente da ordem do real. O amor e a análise – eu acho que grande parte do que a gente pode atribuir à força da análise, é ao amor que ela desencadeia – o amor de transferência. Freud não hesita em afirmar que entre o amor e o amor de transferência não existe diferença nenhuma.

O amor dá sentido, o amor é da ordem do imaginário. O imaginário no sentido lacaniano não tem a ver com a imaginação, mas com o que tem sentido, um sentido fechado: “Eu amo essa pessoa”. “Por que você ama?”. “Não interessa!”. “Mas como é que você começou a amar?”, “Não sei”. “Por que você ama?”, “Sei lá eu, mas eu amo!”. E é só isso que interessa a quem ama, mais nada. E vá você dizer alguma coisa contra esse amor, vá você tentar dizer assim: “Poxa, mas você não acha que essa pessoa que você ama tem alguma coisa que...”. O quê? Perdeu a amizade ao dizer isso, deixou de ser amigo.

 

Amor e morte

Amor e morte. Amor e morte são também outro tema que se liga a isso tudo, tudo isso é uma coisa só. O amor não tolera nada que implique a separação, a ruptura, algo que anuncie de longe ruptura, separação, perda, falta – morte nem pensar. O grande inimigo do amor é a morte. E se o amor faz sentido e dá sentido para a nossa vida, é porque no nosso horizonte nós temos essa figura odienta, que é o nosso perecimento.

Moustapha Safouan tem uma definição para o amor deslumbrante, assim como as de Roland Barthes. Ele vai dizer: “O amor é todas as fibras do ser dirigidas a um objeto”, é maravilhoso isso! Todas as fibras do ser, isso é corporal, é muscular, é neuronal, é “palavral”, é tudo, é tudo voltado para o objeto. O amor dá sentido à vida, dá sentido “à vida”, ou seja, a morte fica posta de lado. Esse é o grande perigo do amor. O perigo do amor é que essa ilusão ‘encegueça’ e você esqueça – muito mais do que deveria – que existe a morte – sim, porque esquecer um pouco que a morte existe é salutar e necessário –, que existe a falta, que existe a perda, que existe a separação e que existe o gozo do outro, que em algum momento pode deixar de olhar para você, e olhar para o lado, coisa que o amor não tolera. Não tolera porque não pode tolerar, não tem como tolerar.

No Cântico dos cânticos, por exemplo, vocês vão ler, que é um dos mais lindos poemas de amor, senão o mais lindo poema de amor: “O amor é forte, ele é como a morte”. O rei Salomão aproximou o amor e a morte. Ele não disse: “O amor é mais forte que a morte”. Ele não ousou dizer isso. Nós, no nosso cotidiano humano, frágil e às vezes desesperado, nós às vezes somos levados a dizer: “O amor é mais forte do que a morte”.

Vou dar um exemplo, um lindo livro chamado “102 minutos”. É o trabalho de dois jornalistas norte-americanos, Jim Dwyer e Kevin Flynn, que fizeram um trabalho de investigação sobre o ataque às torres gêmeas de Nova York. Eles investigaram tudo o que aconteceu dentro das torres nesses 102 minutos, que são o tempo que transcorreu entre o primeiro bombardeio, o primeiro avião que se chocou contra a Torre Sul, e o momento em que caiu a Torre Norte. Foram 102 minutos. Foi um trabalho jornalístico invejável, eu aconselho a leitura desse livro. É impressionante.

O que mais me chamou atenção nesse texto foi algo que eles mencionam dando alguma ênfase, mas nós, psicanalistas, podemos dar mais ênfase a isso. É o fato de que eles descobrem que, no momento em que aquelas pessoas que estavam presas dentro das torres, descobrem que não têm saída, descobrem que não há mais escadas nem elevador, e começam a subir ao topo – ou seja, a pior coisa num incêndio é subir –, elas começam a mandar mensagens, e-mails, tudo o que elas podem, deixar recados na caixa postal, na secretária eletrônica para as pessoas que elas amam, dizendo, todas elas, e eles fazem um repertório disso: “Eu estou ligando para você, para dizer que eu estou preso aqui no World Trade Center, eu não sei o que aconteceu, se é um incêndio, se é uma bomba, o que é, mas não tem saída, e eu vou morrer, eu acho que vou morrer, eu só queria te dizer uma coisa: que eu te amo”.

Isso é de uma força! Do que é que, diante da morte, da iminência da morte, o sujeito vai lançar mão? Da declaração de amor! Existe essa expressão – você declara o seu amor. E eu me perguntei durante muito tempo por que o sujeito, diante da iminência da morte, vai declarar o seu amor? O que é que o move? Perguntei isso para várias pessoas, em encontros de psicanalistas, encontros de amigos, pessoas que eu prezo muito, cuja opinião eu queria saber, perguntei para muita gente. E vieram muitas respostas diferentes, todas interessantíssimas, que diziam, por exemplo: “É você perpetrar a sua vida num outro”, alguém me disse. Betty Fuks me deu uma resposta linda, ela falou: “É como se você quisesse envelopar a pessoa amada num momento anterior ao trauma que vai ser a perda depois. Você segura ela num abraço imaginário que diz: Eu te amo, eu vou morrer, morrer depois, mas eu te amo!”.

Mas a resposta que eu mesmo daria a essa pergunta só veio muito tempo depois. Eu escrevo isso em meu livro sobre a fantasia, e a resposta não está aqui, porque depois de tanto perguntar, de tanto pensar sobre isso, é que eu acabei encontrando a minha resposta, e ela está na Clarice Lispector, indiretamente. Ela não fala assim, mas eu descobri alguma coisa que remete a isso, a nossa santa Clarice, queridíssima. Eu acho que o sujeito na iminência da morte declara o amor por um fator: para não morrer sozinho. Só para isso. Porque a pior coisa do mundo deve ser você morrer sozinho. Nem os animais querem morrer sós. Eles se juntam aos outros, aos corpos dos outros ou aos seus donos. O livro de Olga Borelli – que foi a amiga dela no final da vida – conta que, quando ela ia morrer, ela disse: “Me dá sua mão”. E ela morre segurando a mão da amiga.

O amor é poderosíssimo, ele enfrenta a morte. Ele quer lutar com o adversário mais terrível que nós temos. Em Freud e em Lacan ele é essencialmente narcísico porque ele tem essa estrutura. De onde vem esse amor todo? Talvez vocês pudessem me dizer também, em relação a essa pergunta, o que vocês acham, vocês devem ter ideias sobre isso. Mas de onde vem esse amor todo? A resposta de Freud é muito consistente. Ele vem de um narcisismo primário. O que é o narcisismo primário? É aquilo que, ao chegar o bebezinho no mundo, os pais depositam todo o desejo e todo amor deles naquele serzinho, que ainda não é uma pessoa, ainda não é um sujeito, mas recebe tudo o que implica o desejo de vida. Então, esse narcisismo primário do qual Freud fala seria a fonte, pois “o ego é o reservatório da libido”, o reservatório da libido do narcisismo.

Freud chegou a dizer isso: “Aquela criança que foi muito amada pelos pais, ela já entra na vida com um saldo positivo”. E Sándor Ferenczi ([1929] 2011) fez um belíssimo texto, que é uma das joias da psicanálise, chamado A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. Gosto de ler esse texto com a ótica lacaniana, evidentemente, porque Ferenczi vai tematizar exatamente aquilo que Lacan mostra com a noção de Grande Outro: quando o sujeito vem ao mundo é o amor e o desejo do Outro que vão vitalizar o corpo e a mente desse futuro sujeito, que nem é sujeito ainda, dando a ele um futuro de sujeito e transformando a pulsão de morte, que está lá desde o começo, em pulsão de vida. Pode-se ver que até aí o amor está fazendo frente à morte, o amor transforma a pulsão de morte em pulsão de vida.

 

Referências

BORELLI, O. Clarice Lispector - esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.         [ Links ]

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DWYER, J.; FLYNN, K. 102 minutos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.         [ Links ]

FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: WMF Martins Fontes, 1992. p. 47-51. (Obras completas, v. 4).         [ Links ]

GALLAND, A. Les mille et une nuits. Lausanne: La Guilde du Livre, 1960.         [ Links ]

JAROUCHE, M. M. Livro das mil e uma noites. São Paulo: Globo, 2006.         [ Links ]

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - v. 2: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.         [ Links ]

JORGE, M. A. C. Sexo e discurso em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

MILAN, B. E o que é o amor? São Paulo: Brasiliense, 1983.         [ Links ]

SAFOUAN, M. Estudos sobre o Édipo. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: macjorge@corpofreudiano.com.br

Recebido em: 15/04/2019
Aprovado em: 15/04/2019

 

Sobre o autor

Marco Antonio Coutinho Jorge
Psiquiatra.
Psicanalista.
Diretor do Corpo Freudiano - Seção Rio de Janeiro.
Membro da Association Insistance (Paris) e da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise (Paris).
Professor associado e procientista do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde leciona no curso de Pós-Graduação em Psicanálise.
Autor da série Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - v. 1: as bases conceituais (2000); v. 2: a clínica da fantasia (2010); v. 3: a prática analítica (2017) publicada pela Zahar.

 

 

1 Texto estabelecido por Macla Nunes a partir da palestra proferida pelo autor sob esse título, no encontro promovido por Lacaneando sobre “O amor e seus discursos”, realizado em São Paulo, em março de 2016. Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ezBf6z9L7dg>.

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