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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.80 Belo Horizonte jul./dez. 2020

 

ENTREVISTA

 

Freud deprimido: os anos 19201

 

Freud, depressed: the Roaring Twenties

 

 

Juliette Cerf; Tradução: Bernardo Maranhão

 

 


Palavras-chave: História da psicanálise, Freud, Le Rider, Roudinesco.


Keywords: History of psychoanalysis, Freud, Le Rider, Roudinesco.


 

 

Enquanto a psicanálise triunfa por toda parte, Sigmund Freud vive o pós-guerra com desconforto. Enlutado, envelhecendo, ele ausculta a sociedade. E refunda a teoria do inconsciente.

"Vejo hoje, ao olhar para você, como estou velho, porque você tem exatamente a idade da psicanálise", escreve Sigmund Freud (1856-1939) a sua filha Anna em 6 de dezembro de 1920, no dia em que ela comemora seus 25 anos.

Cinco meses depois, por seu 65.° aniversário, ele recebe de presente um busto com sua efígie,

[...] duplo de latão, fantasmagórico e ameaçador: Dei subitamente um passo em direção ao verdadeiro envelhecimento. Desde então, a ideia da morte não me deixa e tenho por vezes a impressão de que sete órgãos ainda disputam a honra de poder dar fim à minha vida.

Anos loucos, os da década de 1920? Para o pai da psicanálise, não exatamente. Nenhum elixir da juventude no horizonte. Antes, a travessia de um longo caminho sem alegria.

Confirma sua biógrafa, a historiadora da psicanálise Élisabeth Roudinesco:

Em janeiro de 1920, Freud não manifesta simpatia alguma pelas aspirações das jovens gerações. Pouco sensível aos ímpetos da modernidade, ele pensava em sua própria morte, na de seus próximos, no envelhecimento dos corpos e dos rostos.

Tanto mais que a década se abre com a perda de Sophie, sua filha adorada, que sucumbe à gripe espanhola em 1920, e se encerra com a morte de sua própria mãe -"não poderia me perdoar se morresse antes dela", angustiava-se o patriarca.

Em 1923, seu neto Heinz, um dos dois garotos de Sophie, morre aos 4 anos, de uma meningite tuberculosa. Freud acabava de descobrir um câncer na mandíbula que lhe imporia trinta e duas operações - e uma invasiva prótese bucal que ele chamava de "o monstro".

"Aqui vivem espectros solitários", deplorava o polemista Karl Kraus (18741936), evocando Viena em 1922. O entreguerras termina de destruir o mundo cosmopolita da Europa central, onde eclodira a psicanálise, e sobre cujas cinzas começa a se fabricar o monstro do nazismo. Ao sair do primeiro conflito mundial, acossada por uma inflação galopante, a cidade, órfã do vasto império multicultural austro-húngaro, ainda que se deixe untar de chantili pelo compositor Richard Strauss no balé de mesmo nome,2 tem dificuldade em encontrar seu caminho:

Viena é a capital superdimensionada de um pequeno país de menos de 6.500.000 em 1919, em lugar dos 54 milhões com que contava a Áustria-Hungria, analisa o historiador Jacques Le Rider. A cidade não é mais a metrópole cultural da Europa central do Danúbio. A brilhante vida universitária, intelectual, literária e artística da Belle Époque se mantém na aparência, até a anexação da Áustria pelo Reich nazista em 1938, que coloca um estarrecedor ponto final na modernidade vienense, embora Viena já esteja engajada em um processo de provincialização.

"O futuro da psicanálise não está mais em Viena", confirma Élisabeth Roudinesco, mas em Berlim, onde o Instituto Psicanalítico, inaugurado em fevereiro de 1920, erige-se como modelo internacional. Em torno de Karl Abraham e Max Eitington, e logo de Melanie Klein, que desenvolve a psicanálise de crianças, prospera a vanguarda dos debates sobre a teoria e a prática analíticas. "Laboratório extraordinário, o Berliner Psychoanalytisches Institut se torna o centro nevrálgico de uma expansão da psicanálise pelo mundo ocidental e oriental". Mas ainda vêm a Viena numerosos discípulos para fazer análise com Freud. Como Marie Bonaparte (1882-1962), sobrinha-neta de Napoleão Bonaparte, casada com o príncipe Georges, da Grécia, e cuja análise, iniciada em 1925, termina em 1938 com a partida forçada do mestre para Londres, que ela própria providencia. Acolhida no círculo íntimo de Freud, essa princesa frígida, obcecada por uma cirurgia que permitiria transferir o orgasmo clitoridiano para a zona vaginal, sustenta financeiramente seu terapeuta e introduz a disciplina freudiana na França, onde é fundada em 1926 a Sociedade Psicanalítica de Paris.

Analisa Élisabeth Roudinesco:

Para Freud, essa internacionalização é ao mesmo tempo um triunfo e uma despossessão. Ele aceita essa posição de mestre, e não de chefe, e confia a direção do movimento ao inglês Ernest Jones (1879-1958). Como militante pragmático de uma concepção médica da cura, Jones foi ao mesmo tempo o destruidor do freudismo original - aquele do romantismo e da Mitteleuropa - e o salvador de uma comunidade que, em face da ascensão do nazismo, não tinha escolha a não ser se exilar no mundo anglófono.

Moldado no espaço-tempo da Europa central da Belle Époque, Freud recusa, de início, deixar Viena. Como que devorado pela causa que o tornou célebre, ele lamenta que tenha passado

[...] o tempo em que era visto como um descobridor solitário. Isso porque ele não aceita a maneira como seus numerosos discípulos interpretam sua doutrina, fazendo-a viver no ritmo vibrante dos Anos loucos. Ele sente que uma brecha irreparável se abriu entre 'ele e os outros'.

Seja ele americano ou comunista, o novo homem desses anos não encontra nenhuma graça a seus olhos. Os avanços sociais da "Viena vermelha" lhe são indiferentes. Entre 1923 e 1934, o partido social-democrata, majoritário na capital austríaca, faz construir, no entanto, mais de sessenta mil moradias, repartidas em trezentos e oitenta imóveis comunais, crisol de uma sociedade nova dotada de bibliotecas, creches e consultórios médicos. O mais célebre entre eles, o Karl Marx Hof, dito o "Versalhes dos operários", abriga cinco mil habitantes.

Juliette Cerf - Tradução: Bernardo Maranhão - Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

"Para Freud, não cabia à psicanálise servir de auxiliar a uma política de reformas sociais e culturais, esclarece Jacques Le Rider. No entanto, muitas personalidades de destaque da psicanálise vienense, convencidas da importância do fator social na construção do eu, foram próximas do governo municipal social-democrata. Siegfried Bernfeld - investido no movimento sionista -, Otto Fenichel, Paul Federn e Wilhelm Reich são os mais conhecidos entre esses psicanalistas engajados e frequentemente seduzidos pela convergência do "freudo-marxismo".

O mestre prefere se engajar numa contrarrevolução. Alarga seu espectro, focalizando não somente o indivíduo, mas também a sociedade, nutrindo seu trabalho clínico com uma visão antropológica. É a esse intelectual que se dirige Albert Einstein em 1933 para refletir sobre a guerra. Como explica a psicanalista Ruth Menahem em um estudo esclarecedor, o pensamento freudiano atinge entre 1920 e 1939 "sua plena maturidade". E se revela em sua face mais sombria: "escolhi agora como alimento o tema da morte".

Essas palavras magníficas endereçadas por Sigmund Freud em julho de 1919 a sua confidente, a mulher de letras germano -russa Lou Andreas-Salomé (1861-1937), anunciam sua grande virada teórica: nos costados da pulsão de vida, ele agora leva em conta a pulsão de morte. "A finalidade de toda vida é a morte e, ao remontar regressivamente, o não vivo lá estava antes do vivo", escreve Freud.

Publicado em 1920, Além do princípio de prazer refunda a teoria do inconsciente e promove a substituição das três instâncias - inconsciente, pré-consciente e consciente - pelo isso, o eu e o supereu. Reservatório caótico de pulsões, o tenebroso "isso" se lança, com o mais moral e construtivo "eu", em um conflito permanente, que o "supereu" cultural tenta, bem ou mal, dominar. "Como todos os intelectuais de sua geração, Freud viveu a Primeira Guerra e o pós-guerra como um terrível assombramento do mundo, e enterrou o pouco que lhe restava de otimismo e de adesão à ideia de progresso", conta Le Rider. Esse pessimismo foi mal recebido por muitos de seus discípulos ou minimizado por exegetas convencidos de que ele se explicava pela pressão dos eventos e pelo luto de sua filha Sophie... O debate permanece aceso, enquanto se celebra o centenário de Além do princípio do prazer. Um colóquio está previsto no Hospital Necker, em Paris, em novembro, e a revista Figures de la Psychanalyse traz à tona a "deflagração" que esse livro "revolucionário, genial, perturbador, melancólico" representou.

Em plenos Anos loucos, Freud mergulha nos arcanos psíquicos e mitológicos do homem mais primitivo, esse lobo do homem dilacerado entre Eros e Tanatos. Sobre essa extrema tensão se funda toda a civilização, revela a obra magistral de 1930, O mal-estar na civilização, que vem pôr um ponto final na terrível década e interroga o destino da espécie humana: "Seu desenvolvimento cultural terá êxito, e em que medida, em dominar as perturbações da vida em comum causadas pela pulsão humana de agressão e autoaniquilação?". Um século mais tarde, a interrogação freudiana permanece intacta.φ

 

Bibiliografia

ASSOUN, P-L. et al. LAu delà du principe de plaisir. Cent ans après. Revue Figures de la Psychanalyse, Paris: Érès, n. 39, 2020/1, 2020.         [ Links ]

LE RIDER, J. A modernidade vienense e as crises de identidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 1993.         [ Links ]

LE RIDER, J. et al. Em torno de "O mal-estar na cultura", de Freud. São Paulo: Escuta, 2002.         [ Links ]

MENAHEM, R. Sigmund Freud, 4: 1920-1939. Paris: PUF, 2000.         [ Links ]

ROUDINESCO, É. Freud na sua época e em nosso tempo. Rio: Zahar, 2016.         [ Links ]

ROUDINESCO, É; PLON, M. Dicionário da psicanálise. Rio: Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello
1 Texto publicado originalmente na revista semanal francesa Télérama, Paris, n. 3678, 8 jul. 2020.
2 Schlagobers, suíte orquestral (Op. 70) escrita por Richard Strauss em 1932 para um balé. (NT).

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