Reverso
ISSN 0102-7395
Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte jul./dez. 2021
PSICANÁLISE E TRANSMISSÃO
A transmissão da psicanálise em tempos de pandemia: um olhar para a saúde do analista1
The transmission of psychoanalysis in times of pandemic: a look at the health of the analyst
Alexandre Patricio de Almeida
Psicanalista. Mestre pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP (bolsa CAPES). Doutorando pelo mesmo programa e instituição. Pesquisador bolsista CNPq. Professor universitário (graduação e pós-graduação). Autor de livros e artigos sobre psicanálise e educação, principalmente. E-mail: alexandrepatriciodealmeida@yahoo.com.br
RESUMO
O nosso trabalho se propõe a discutir algumas vertentes da atual forma de transmissão da psicanálise neste período de pandemia que, ao ser comunicada pela modalidade on-line, começou a alcançar regiões inimagináveis. Mencionamos as dificuldades enfrentadas pelos psicanalistas dentro desse enquadre de transmissão e a necessidade do cuidado do próprio profissional. Nesse ponto, salientamos o fator indispensável da análise do analista, utilizando as ideias de Sándor Ferenczi referentes a uma suposta ética do cuidado (de si e do outro). Por fim, tecemos alguns comentários sobre o ensino psicanalítico interpelado pelas incertezas do nosso atual contexto.
Palavras-chave: Pandemia, Ensino, Transmissão, Psicanálise, Ferenczi.
ABSTRACT
Our work aims to discuss some aspects of the current form of transmission of psychoanalysis in this period of pandemic that, when communicated by the online modality, began to reach unimaginable regions. We will mention the difficulties faced by psychoanalysts within this framework of transmission and the need for professional care. At this point, we highlight the indispensable factor of the analyst's analysis, using the ideas of Sándor Ferenczi regarding a supposed ethics of care (of oneself and of the other). Finally, we will make some comments on psychoanalytic teaching challenged by the uncertainties in our current context.
Keywords: Pandemic, Teaching, Streaming, Psychoanalysis, Ferenczi.
Para início de conversa
Com o tempo será mais fácil aceitar
que as descobertas da psicanálise sempre estiveram alinhadas
com outras tendências orientadas para uma sociedade
que não viola a dignidade do indivíduo.
Caso o mundo sobreviva às próximas décadas,
descobrir-se-á que a ideia impopular das motivações inconscientes
tem sido um elemento essencial na evolução da sociedade [...].
Seria bom que a motivação inconsciente pudesse ser mais aceita
e mais estudada, antes que chegue o tempo de
o destino mudar nosso modo de soletrá-la para fait accompli.2
Winnicott, [1965] 1989, p. 182.
A psicanálise nunca esteve tão em alta - pelo menos em nosso país. Dadas as atuais situações de isolamento social ocasionadas pela pandemia do novo coronavírus (covid-19), é frequente vermos em veículos de comunicação (como a televisão e as próprias redes sociais) a participação de psicanalistas comentando sobre as atuais configurações de relacionamento, bem como as instabilidades que atravessam os modos de existir do ser humano diante de um período dominado por incertezas e inseguranças.
Para constatarmos tal premissa, basta procurar por temas relacionados à ansiedade, angústia, depressão e adoecimentos psíquicos que logo encontraremos uma live, um vídeo, um texto ou uma ponderação escrita a partir do exercício reflexivo de um determinado psicanalista ou de vários. Esses fatores nos remetem à citação de Winnicott que abre o nosso trabalho, mais especificamente quando o autor nos diz que
[...] caso o mundo sobreviva às próximas décadas, descobrir-se-á que a ideia impopular das motivações inconscientes tem sido um elemento essencial na evolução da sociedade. (Winnicott, [1965] 1989, p. 182).
Ao aceitar e estudar as profundidades de nossas vísceras psíquicas, nos deparamos com o que há de mais assustador e temível em nossa própria essência, mas que, supreendentemente fundamenta e estrutura a nossa maneira de ser e estar no mundo.
Podemos justificar tal demanda por esse conhecimento como um movimento resultante da falência de algumas "próteses do Eu" que vinham sendo utilizadas com frequência antes do ápice pandêmico. Explicamos melhor: diante da situação caótica da pandemia, práticas que antigamente serviam como muletas de apoio ao fragilizado Eu humano, acabaram por não se sustentar no terreno inóspito que emergiu da ocasião de quarentena.
O fechamento de lojas, academias, bem como as demissões em massa foram alguns dos fatores que passaram a impedir a sustentação ilusória desse Eu debilitado. Sem isso, os indivíduos começaram a procurar recursos de cultura e lazer que contrabalançassem o vazio gerado pela ausência da antiga rotina. Com o passar dos dias de confinamento, o excesso de incentivo à produtividade mostrou ser também ineficiente. Acordar com frases motivacionais em meio a esse contexto caótico virou quase um insulto. Logo, restou a nós o recolhimento às mazelas de nossa própria subjetividade. Ler, ouvir uma boa música e aproveitar os momentos de solidão vieram a configurar as matrizes de uma nova realidade.
Aqui, então, nos deparamos de imediato com o adubo propício a enriquecer o solo da psicanálise, pois o contexto de pandemia nos mostrou o quanto é insuficiente "codificar o déficit, medir a deficiência ou quantificar o trauma". (Roudinesco, 1999, p. 42).
Aparentemente, o tempo sonhado de Winnicott - em que a psicanálise deveria ser mais aceita e mais estudada - chegou com o avanço da disseminação do vírus e da ocasião de isolamento social. A busca por cursos, grupos de estudos e a própria utilização do recurso on-line para a realização de psicoterapias tem demonstrado a concretização desse ideal winnicottiano.
Simultaneamente a isso, os psicanalistas passaram a se adaptar aos novos parâmetros da normalidade: o divã virou a tela do celular (ou do computador) e o setting se tornou o lar dos pacientes, ou o carro, ou a rua, ou qualquer refúgio onde se pudesse preservar uma mínima parcela de intimidade. O movimento foi rápido e conjunto, pois até algumas posturas mais conservadoras passaram a ser desconstruídas - dada a ameaça de morte iminente imposta pelo impiedoso vírus que não deixou outra opção àqueles analistas mais resistentes. Fomos derrubados pelo invisível e o que mais pregávamos como moral, ou seja, a premissa freudiana de que não somos senhores de nossa própria casa (Freud, 1917) 3, passou a ser a nossa realidade, mas só que agora, infligida de fora, na medida em que o contágio viral destruía os nossos alicerces de onipotência.
A virada da atuação clínica aconteceu mais rápido do que o esperado. Grande parte dos analistas mostrou sua capacidade adaptativa de forma satisfatória, passando a atender seus pacientes na modalidade on-line. Em contrapartida, sabemos que a psicanálise, infelizmente, ainda é restrita a uma parcela muito pequena da população. Principalmente, na atual circunstância econômica (e política) de nosso país, em que pouquíssimas pessoas podem ter acesso a um tratamento psicanalítico de qualidade.
Paradoxalmente, a busca pela ciência freudiana aumentou significativamente. Além da já citada presença de analistas em meios de informação, a quantidade de canais do Youtube, de páginas virtuais e de conteúdos digitais relacionados à psicanálise proliferou em meio ao caos da pandemia. É admirável e, ao mesmo tempo, impressionante o interesse das pessoas por um assunto que há muito sofre os ataques de um cientificismo ortodoxo.
Além disso, é no mínimo curioso que, em meio a um ideal predominante de um governo fascista que ataca massivamente as bases das ciências humanas, esse interesse apareça de modo espontâneo e legítimo. Estaríamos diante de uma flor que nasce no asfalto? - parafraseando Drummond.4
A questão é que, ao ser comunicada pela modalidade on-line, a psicanálise começou a alcançar regiões inimagináveis. O pensamento freudiano ganhou um brilho e uma vivacidade que talvez nunca foram imaginados. Esse sentimento de vazio (e inexistência) produzido pelo isolamento social despertou o impulso da população para o conhecimento do inconsciente. Neste ponto, adentramos o território que pretendemos explorar neste artigo: a psicanálise sendo transmitida de modo virtual.
Para tanto, iniciamos o nosso texto com algumas considerações do próprio Freud a respeito do ensino e da transmissão da psicanálise. Nesse aspecto, salientamos a diferença entre a transmissão da teoria psicanalítica e a transmissão da experiência psicanalítica. Enquanto a primeira se limita aos conceitos basilares da descoberta freudiana, a segunda advém da análise pessoal e da vivência prática de atendimentos e supervisão.
Posto isso, adentramos o segundo aspecto da discussão, mencionando as dificuldades enfrentadas pelos psicanalistas dentro desse enquadre de transmissão e a necessidade do cuidado do profissional que exerce essa atividade. Neste ponto, salientamos o fator indispensável da análise do analista, utilizando as ideias de Sándor Ferenczi referentes a uma suposta ética do cuidado (de si e do outro). Por fim, tecemos alguns comentários sobre o ensino psicanalítico interpelado pelas novas configurações que, inevitavelmente, são assinaladas pelas incertezas do nosso atual contexto.
Freud e a transmissão da psicanálise
No belíssimo texto Caminhos da terapia psicanalítica, escrito em 1918 e publicado originalmente em 1919, Freud nos apresenta a seguinte reflexão:
Os senhores sabem que a nossa eficácia terapêutica não é muito intensa. Somos apenas um punhado de gente, e cada um de nós, mesmo com um grande esforço, só pode se dedicar a um número pequeno de pacientes em um ano. [...] Agora, suponhamos que através de alguma organização conseguíssemos multiplicar o nosso número, de modo que fôssemos suficientes para o tratamento de massas de maiores pessoas. (Freud, [1919/1918] 2017, p. 201).
Esse ensaio foi lido no V Congresso Internacional de Psicanálise, ocorrido na academia de Ciências de Budapeste, tendo na plateia a presença de representantes do governo da Alemanha, da Áustria e da Hungria, entre 28 e 29 de setembro de 1918. O caráter político do artigo, principalmente no que tange às suas últimas partes, explica-se, pelo menos em parte, por esse público em particular. Freud não perderia a chance de falar sobre o futuro da psicanálise no pós-guerra, especialmente sobre as expectativas de sua extensão para as camadas mais pobres da população, através de serviços públicos de saúde. Sua fala pode ser interpretada como um misto de presságio e desabafo.
No entanto, foi somente após o término da Primeira Guerra Mundial que Freud pensou em discutir as diretrizes e os caminhos futuros da psicanálise. O autor escreve nesse texto:
[...] sinto-me estimulado a rever o estado da nossa terapia, à qual, enfim, devemos a nossa posição na sociedade humana, para observar em que direções ela poderia se desenvolver. (Freud, [1919/1918] 2017, p. 191, grifos nossos).
Ou seja, ficar de braços cruzados sem refletir o contexto inédito que estamos vivendo seria a mesma coisa que deixar cair por terra os próprios ideais freudianos.
Hoje, diante das novas configurações que demarcam a nossa subjetividade e que são resultantes do quadro de pandemia, precisamos pensar que, para se manter viva, a ciência freudiana deve, mais do que nunca, admitir a incompletude de seu conhecimento e aprender coisas novas, ao mudar as ortodoxias que antes sustentavam o seu procedimento. Propor reflexões sobre o momento atual implica fazer viver a criação de Freud, adaptando-a às demandas que emergem do cenário caótico a que assistimos.
Nas palavras do próprio mestre de Viena:
Os senhores sabem que nunca nos orgulhamos da completude e do fechamento do nosso saber e de nossas habilidades; estamos sempre dispostos, tanto antes quanto agora, a admitir a incompletude do nosso conhecimento, a aprender coisas novas e mudar em nosso procedimento aquilo que pode ser substituído por algo melhor. (Freud, [1919/1918] 2017, p. 191).
Nesse sentido, seguindo as linhas propostas por Freud, além da prática do atendimento virtual, tivemos que repensar também as formas de transmissão da teoria psicanalítica. O que antes era feito em escolas, instituições, universidades, grupos de estudos e outras modalidades presenciais, passou a ser realizado com o recurso das videoconferências, dentro do espaço da nossa própria casa (ou consultório). Essa virada de atuação nos colocou diante de um panorama um tanto quanto atípico, ao mesmo tempo que nos deparávamos com alguns dos mesmos obstáculos e dificuldades encontrados na realização dos atendimentos on-line.
De um dia para o outro, os professores tiveram que aprender a trabalhar com uma série de plataformas digitais que, até antes da pandemia, muitos mal sabiam que sequer existiam. De repente, em nosso vocabulário cotidiano passamos a incluir os termos Zoom, Teams, Facetime e Google Meet (alguns dos nomes das principais ferramentas utilizadas para as aulas on-line).
Aprender a lidar com todos esses aparatos foi uma competência que exigiu muito dos educadores. Alguns não se adaptaram e acabaram por ser fatalmente desligados das instituições de ensino às quais pertenciam. Outros sofreram intensamente com as inseguranças resultantes das bruscas modificações estruturais. Somam-se a isso todos os inconvenientes gerados pela instabilidade das conexões de internet; a precariedade dos equipamentos utilizados por alguns profissionais; e, por último, mas não menos importante, a falta de 'intimidade' com os recursos tecnológicos.
Tivemos pouquíssimo tempo para nos moldarmos a uma rotina completamente diferente daquela com que estávamos acostumados. Além disso, devemos considerar o nível de cansaço, tensão e estresse proveniente dessa nova formatação. "Vocês estão me ouvindo?" ou "perdão, a conexão caiu" passou a ser algumas das expressões mais frequentes ouvidas (ou ditas) por todos durante as aulas - expressões que acabavam por distrair os alunos e fazer o professor perder o fio da meada da discussão. Trata-se de apenas alguns dos diversos problemas técnicos que exigem de todos um mínimo de equilíbrio emocional e psíquico para serem superados. Falaremos mais a respeito desse assunto na próxima seção.
No entanto, nem só de dores vive o homem. Das grandes dificuldades surgem as belas e mais profundas transformações. Ao sair da nossa antiga redoma de vidro sustentada pela segurança do espaço físico, pudemos oferecer a transmissão da psicanálise para um público nunca antes imaginado.
Uma série de eventos, seminários e até congressos passaram a ser frequentados por pessoas de todo o Brasil e de outras partes do mundo. O uso dos recursos tecnológicos permitiu que muita gente pudesse ter acesso a conteúdos de qualidade. Consecutivamente, passamos a assistir uma série de lives e encontros virtuais que discutiam questões da contemporaneidade e as novas formatações da prática analítica. Um vasto material construído com ética e responsabilidade começou a ser divulgado gratuitamente, o que produziu ainda mais interesse e curiosidade pela teoria (e prática) psicanalítica.
Muitas universidades que oferecem na grade curricular a disciplina de psicanálise passaram a oferecer vagas em seminários virtuais para alunos ouvintes. Grupos de estudos ganharam uma dimensão muito mais ampla e abrangente, dando a muitas pessoas a oportunidade de se aproximar de analistas que antes eram conhecidos apenas pelo calibre de sua obra escrita.
Passamos a acompanhar uma popularização da psicanálise, o que de fato nos é muito gratificante. Participar de trocas, debates e comunicações com um amplo leque de público estende a visão de mundo do próprio analista/professor e enriquece a sua conduta de pesquisador e clínico, uma vez que clínica e pesquisa em psicanálise são fatores altamente intrincados.5
Entretanto, é importante salientar que, por mais que a criação freudiana tenha ganhado espaço por meio das mídias digitais, assistir a lives e vídeos disponibilizados gratuitamente no Youtube não autoriza ninguém a exercer a prática psicanalítica. Como sabemos, a formação em psicanálise é longa e permanente - costumo até dizer aos meus alunos que se trata de um projeto de vida. Por mais que ela esteja em alta neste momento, corremos o risco de encarar uma espécie da banalização da ciência psicanalítica, mesmo porque sabemos que não são todos os psicanalistas que se dedicam ao tripé estrutural da formação, constituído por análise pessoal, supervisão e horas de estudo teórico.
Nesse sentido, o perigo relacionado à ampliação do pensamento psicanalítico é nos depararmos com a comercialização de cursos de péssima qualidade que apenas iludem o indivíduo interessado com falsas promessas que são asseguradas por um certificado, por uma carteirinha ou até mesmo por um distintivo de psicanalista. Certamente, não são esses objetos que garantem uma boa formação. Para muitas pessoas, infelizmente, a seriedade envolvida no processo de construção de um psicanalista ainda é algo muito distante e inconcebível. Muitos ainda acreditam que um ou dois anos de curso teórico são o suficiente para que o candidato possa exercer o ofício clínico.
Sobre isso, em 1912, no texto Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico, Freud ([1912] 2017, p. 100) nos dirá que
[...] todo aquele que quiser executar uma análise dos outros deverá primeiro submeter-se a uma análise junto a um especialista. Quem levar a tarefa a sério deveria optar por esse caminho, que promete várias vantagens: o sacrifício de ter se aberto diante de outra pessoa sem a pressão de uma doença existente é largamente recompensado. Não apenas realizaremos em um tempo muito mais curto e com menos esforço afetivo a intenção de conhecermos o oculto de nós mesmos, mas também adquiriremos impressões e convicções no próprio corpo que em vão buscamos alcançar a partir do estudo de livros e ouvindo conferências. (Grifos nossos).
Sendo assim, podemos pensar que, por mais que a situação catastrófica da pandemia tenha aberto um espaço que há muito tempo não víamos no campo psicanalítico, esse espaço restringe-se às reflexões de cunho eminentemente teórico e, quando prático, ao debater as vicissitudes da clínica on-line, por exemplo, restringe-se a uma explanação mais dirigida aos analistas que já exercem sua atividade ou estão em um processo formativo específico. O fato é que não há como transmitir a experiência psicanalítica de modo unicamente remoto e predominantemente teórico. Para se trabalhar com a clínica, é necessário dedicação a um projeto de vida que, preferencialmente, deve se iniciar com a própria análise do indivíduo.
Os avanços, nesse sentido, obviamente foram inúmeros, mas os cuidados também são necessários. Banalizar uma formação que envolve a ética do tratamento humano pode resultar numa excessiva simplificação que em nada corresponde à prática da disciplina freudiana. Porém, os esforços e a seriedade dos psicanalistas que estão fortemente engajados nesses eventos e debates on-line atrelados à transmissão da psicanálise merecem ser destacados e comentados, principalmente no que corresponde à elevada carga de trabalho e aos percalços encontrados nesse fazer. Abordaremos essa questão a seguir.
Sobre o cuidado do analista em tempos de pandemia
Como já comentamos anteriormente, a incidência da pandemia trouxe uma nova realidade de trabalho tanto para os analistas que praticam a atividade clínica quanto para aqueles que se dedicam ao ensino e à transmissão da psicanálise. A mudança para a modalidade virtual originou uma série de obstáculos ao nosso cotidiano, mas, paradoxalmente, também veio acompanhada de facilitações. O trajeto até o consultório, por exemplo, passou a não ser mais necessário, bem como as horas perdidas no trânsito das grandes cidades. Em contrapartida, a adaptação repentina aos recursos tecnológicos exigiu muito de vários profissionais. Fora isso, acrescentemos as dificuldades diárias de trabalhar em casa: filhos correndo, cachorros latindo, vizinhos com obras, telefones tocando - só para citar as principais e mais comuns.
É necessário lembrar que esse trabalho exige a eficiência das conexões de internet que, convenhamos, não são as melhores em nosso país. As interrupções inesperadas de aulas e sessões com pacientes acabam gerando um nível de angústia e estresse que assolam a integridade física e emocional do analista. Por estarmos exercendo o nosso ofício em um ambiente onde tudo se encontra fusionado, ou seja, o nosso próprio lar misturado com o local de trabalho, as separações delineadas pelo espaço físico e pela organização da rotina deixaram de existir.
Muitos de nós já acordamos organizando a casa, arrumando o nosso local de estudo, preparando as nossas leituras e colocando a nossa agenda de atendimentos em ordem. Todo esse caldo é engrossado pelas arrebatadoras notícias de morte e de contágio acrescidas das peripécias do nosso atual presidente que nos envergonha como representante de chefe de Estado. Não é raro ouvir de muitos colegas que três ou quatro atendimentos virtuais cansam muito mais do que um dia inteiro de clínica presencial. Afinal, quando levamos em conta todos esses aspectos, não fica difícil compreender tal queixa.
Neste período atípico de incertezas e mal-estar, a nossa carga horária de trabalho aumentou consideravelmente. Diante de tais circunstâncias, muitos de nós nos sentimos obrigados a ampliar a nossa frequência semanal de análise pessoal ou de supervisão. É sempre bom lembrar que, apesar de lidarmos com saúde mental, não estamos imunes ao adoecimento psíquico. Somos tão vulneráveis quanto todo mundo.
A situação fica ainda mais delicada quando paramos para analisar a atual condição de trabalho de psicanalistas que são também professores ou estão de algum modo envolvidos em eventos de transmissão da psicanálise através do uso de recursos virtuais. Nesse quesito, estamos nos referindo às horas de estudo e preparação das aulas, além da disponibilidade de tempo para dialogar com os participantes e administrar os recursos digitais (como redes e plataformas de vídeos) - habilidades que, seguramente, não faziam parte de nosso ofício antes da pandemia.
Aqui, precisamos mencionar a importância da manutenção e do cuidado da saúde do analista e, para isso, é indispensável usar algumas ideias de Sándor Ferenczi. Em A elasticidade da técnica psicanalítica, Ferenczi ([1928] 2011) reforça a necessidade de colocar uma "segunda regra fundamental" da psicanálise - a análise do analista - no mesmo patamar da regra fundamental da associação livre postulada por Freud em seus escritos técnicos.
Depreende-se que, segundo Ferenczi, a condição para a associação livre acontecer é, antes,
[...] o analista ter sido analisado, o que nos levaria a presumir que, de fato, a análise do analista seria a primeira e não a segunda regra, para que qualquer análise pudesse ocorrer. (Kupermann, 2019, p. 115, grifos do autor).
Para o autor húngaro, apenas a análise do analista, atuando sobre as suas resistências, poderia assegurar o acesso à sensibilidade empática.
Em uma nota do seu Diário clínico, de 3 de junho de 1932, Ferenczi ([1932] 1990, p. 154) dirá que "o melhor analista é um paciente curado". Por essa via, podemos ponderar que, além de ser imprescindível ao trabalho terapêutico, a análise do psicanalista garante minimamente um certo equilíbrio das faculdades emocionais, assegurando algumas condições de salubridade necessárias ao momento obscuro e incerto que estamos vivenciando.
Atravessados pelo atual cenário social e político, corremos o risco de ser acometidos por adoecimentos e paralisações criativas - questões que o processo psicanalítico tenderia a evitar. Sendo assim, a análise pessoal é uma condição necessária para a nossa própria sobrevivência. Além disso, enquanto questiona a postura do analista frio e ortodoxo, Ferenczi apresenta um estilo empático e aponta que
[...] a sobrecarga à qual o analista está exposto obrigaria o campo psicanalítico a uma reflexão acerca de uma 'higiene particular do analista' - que aqui chamamos de saúde do analista. (Kupermann, 2019, p. 118).
Portanto, a análise do terapeuta serviria para resolver seus próprios complexos e traumas, a fim de elaborá-los e não os projetar na relação com o paciente.
Assim, um bom recurso para lidar com a quantidade significativa de dúvidas, angústias e ansiedades que nos acometem, somadas ao cansaço físico e emocional, seria a reafirmação do comprometimento do analista com o seu processo de análise pessoal - por mais que a correria cotidiana seja um impeditivo a tal prática. Portanto, o que antes era somente um aspecto essencial de sua própria formação - como bem salientou Ferenczi - diante do nosso atual contexto, se tornou um dos maiores mecanismos para a nossa sobrevivência.
Em outro texto muito interessante e teoricamente profundo, intitulado Princípio de relaxamento e neocatarse, Sándor Ferenczi ([1929] 2011, p. 77) escreve as seguintes palavras:
Pulsões mal controladas fazem com que mesmo educadores e pais sérios sejam frequentemente levados a cometer excessos em um ou outro sentido. Nada é mais fácil do que, a coberto das exigências de frustração, usar os pacientes ou as crianças para dar largas à satisfação de nossas próprias tendências sádicas inconfessadas; por outro lado, formas e quantidades excessivas de ternura para com os pacientes e as crianças podem servir mais às próprias tendências libidinais, talvez inconscientes, do que promover o bem-estar daqueles de quem nos ocupamos.
Neste vértice do nosso trabalho, encontramos o ponto crucial do que viemos desenvolvendo ao decorrer de nossa escrita. Não adianta um analista descontar covardemente em seus pacientes a sua insatisfação com o trabalho, com as condições do atendimento on-line, com os planos e estratégias do governo para conter as mortes da pandemia, etc. Todos esses fatores certamente representam um peso gigantesco na escuta analítica, mas o nosso paciente, desamparado e assolado por suas próprias angústias, não merece ser alvo de nossas insatisfações pulsionais.
Em contrapartida, ser extremamente carinhoso e permissivo com os nossos analisandos também é um grave desvio da técnica psicanalítica. Beiramos, portanto, o linear de uma corda bamba, em que o equilíbrio precisa ser mantido. Para ser mais preciso com Ferenczi (1928), beiramos a tira elástica que, quando esticada em demasia, se arrebenta e perde a sua funcionalidade.
Nesse âmbito, o equilíbrio que sustenta a ética de nossa escuta só poderá ser encontrado pela via de nossa própria análise pessoal (atualmente, realizada de forma remota) - uma ferramenta preciosa de autocuidado que irá sustentar as tramas da empatia impreteríveis no trato com o outro. Afinal, só pode se dispor a cuidar quem, um dia, também recebeu tais cuidados.φ
Referências
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FERENCZI, S. Diário clínico (1932). São Paulo, SP: Martins Fontes, 1990. [ Links ]
FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica (1928). In: ______. Psicanálise IV. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2011. [ Links ]
FERENCZI, S. Princípio de relaxamento e neocatarse (1929). In: ______. Psicanálise IV. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2011. p. 61-78. [ Links ]
FREUD, S. Caminhos da terapia psicanalítica (1919 [1918]). In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução: Cláudia Dornsbusch. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2017. p. 191-204. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 6). [ Links ]
FREUD, S. Conferência 18: A fixação no trauma, o inconsciente (1917). In: ______. Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). Tradução: Sergio Tellaroli; revisão da tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014. p. 364-380. (Obras completas, 13). [ Links ]
FREUD, S. Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico (1912). In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução: Cláudia Dornsbusch. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2017. p. 93-106. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 6). [ Links ]
KUPERMANN, D. Por que Ferenczi? São Paulo, SP: Zagodoni, 2019. [ Links ]
NAFFAH NETO, A. A pesquisa psicanalítica. Jornal de Psicanálise, São Paulo, SP, v. 39, n. 70, p. 279-288, 2006. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-58352006000100018&script=sci_abstract. Acesso em: nov. 2020. [ Links ]
ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1999. [ Links ]
WINNICOTT D. W. O preço de desconsiderar a pesquisa psicanalítica (1965). In: ______. Tudo começa em casa. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1989. [ Links ]
Recebido em: 20/01/2021
Aprovado em: 16/04/2021
1 Trabalho realizado com o apoio de financiamento do CNPq.
2 "Fato consumado" em nossa tradução livre.
3 Na Conferência 18: A fixação no trauma, o inconsciente, Freud ([1917] 2014, p. 381) escreve a seguinte passagem: "a mania de grandeza humana deve sofrer da pesquisa psicológica atual, que busca provar ao Eu que ele é nem mesmo senhor de sua própria casa, mas tem de satisfazer-se com parcas notícias do que se passa inconscientemente em sua psique".
4 No poema A flor e a náusea (1945).
5 Aqui, recomendamos a leitura de Naffah Neto (2006).