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Junguiana

 ISSN 0103-0825

Junguiana vol.35 no.1 São Paulo jun. 2017

 

ARTIGOS

 

O fim da análise*

 

The end of the analysis

 

El fin del análisis

 

 

Maria Carolina Barrieu**, I; Silvana Parisi***, II, III

I Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA
II
Instituto Junguiano de São Paulo – IJUSP
III Universidade Paulista – UNIP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo trata do fim da análise, o que não implica em cura, alta ou individuação, pois esta última pode ter continuidade mesmo após o encerramento das sessões. São discutidos os términos abruptos e que podem mobilizar sentimentos de impotência, fracasso e aspectos da sombra do terapeuta – algumas situações são ilustradas com casos clínicos. O arquétipo da criança e as análises intermináveis também são abordados, assim como a operação alquímica separatio em relação ao fim da análise. As imagens do médico e do enfermeiro são utilizadas como analogia para o papel do terapeuta: além de curador, cuidador. Por fim, são apresentadas reflexões sobre o mistério que envolve os processos de vida e morte, e dor e sofrimento que afetam os analistas e constituem desafios em seu processo de individuação, na aprendizagem da humildade de conviver com o não saber.

Palavras-chave: Análise junguiana, fim da análise, fracasso, individuação, sombra.


ABSTRACT

This article analyses the end of the analytical process, which does not mean healing neither release nor individuation. The latter may go on even after sessions stop. Sudden analytical process endings which may result in a sense of helplessness and failure are also examined here, as well as the interference of the therapist's shadow components. Some clinical cases illustrate such situations. The child archetype and the endless analysis are also dealt with in this article as well as the alchemical separatio operation. The images of the doctor and of the nurse are used as an analogy of the role of the therapist, both as a healer and as a caretaker. Last, the article considers the mystery that involves the process of life and death and pain and sorrow that affects analysts – whose own individuation process is challenged and who needs to learn about humbleness in order to cope with the unknown.

Keywords: Jungian analysis, the end of analysis, failure, individuation, shadow.


RESUMEN

El artículo trata del final del análisis, lo que no implica la cura, el alta o la individuación, porque ésta última puede continuar incluso después del cierre de las sesiones. Se discuten los finales repentinos que pueden movilizar sentimientos de impotencia, fracaso y aspectos de la sombra del terapeuta y se ilustran algunas situaciones en casos clínicos. Se abordan también el arquetipo del niño, los análisis interminables y la operación alquímica separatio relacionada con el fin del análisis. Además, se utilizan las imágenes del médico y de la enfermera como analogías del papel del terapeuta: además de curador, cuidador. Finalmente, se presentan reflexiones acerca del misterio que comprende los procesos de vida y muerte, dolor y sufrimiento que afectan a los analistas y constituyen desafíos en su proceso de individuación, en el aprendizaje de la humildad de convivir con el no saber.

Palabras clave: analisis junguiano, fin del analisis, fracaso, individuación, sombra.


 

 

Este artigo é fruto das reflexões que surgiram em um grupo de estudos formado por psicoterapeutas junguianas, que se reúnem há mais de dois anos para a discussão de temas da atualidade e da prática clínica. Nos encontros, foram levantadas inúmeras questões que constituem o pano de fundo deste artigo. O fim da análise é um tema pouco discutido entre colegas de profissão, uma vez que esbarra na sombra do analista e pode, em algumas de suas facetas, macular a imagem de terapeuta bem-sucedido, bastante trabalhado e consciente, constelando o outro polo do binômio sucesso/fracasso.

De forma a contextualizar "o fim", objeto do presente artigo, surgem alguns questionamentos, tais como: o fim é quando há cura e acaba o sofrimento? Analistas junguianos podem utilizar o termo alta?

Muito embora ainda levemos em nossa bagagem o modelo médico, Jung aponta um caminho que vai além da cura de neuroses, alívio de sintomas ou adaptação social ao considerar o processo de individuação como meta central da análise. Jung (2000) é bastante claro ao reconhecer que "a análise não é uma cura que se pratica de uma vez para sempre, mas, antes do mais e tão somente, um reajustamento mais ou menos completo" (par. 142). Além disso, o autor também afirma ser improvável que uma terapia elimine todas as dificuldades, as quais são necessárias, uma vez que o objetivo da análise não é o estado de felicidade, mas possibilitar ao paciente "suportar" o sofrimento (JUNG,1981, par. 185). Em seu entendimento:

A experiência, porém, mostra que há um número relativamente grande de pacientes para os quais a conclusão aparente do trabalho junto ao médico não significa de modo algum o fim do processo analítico. Pelo contrário, o confronto com o inconsciente continua do mesmo modo que no caso daqueles que não interromperam o trabalho junto ao médico. (JUNG, 1991, par. 4).

O processo analítico não é, de fato, indispensável para que ocorra a individuação. Entretanto, o convite ao exame da vida interior e do mundo das imagens e dos sonhos e o enfrentamento das questões cruciais da existência humana são um estímulo para a individuação. Mesmo que se encerre o encontro com o analista, o processo iniciado pode ter continuidade.

Assim, uma análise pode terminar por consenso entre as duas partes, em que, de forma harmoniosa, o paciente segue seu processo de individuação e sai satisfeito com suas conquistas e ampliação de consciência. O analista, por sua vez, fica realizado com seu trabalho, na certeza de que auxiliou o paciente e cumpriu seu papel. Esse é um modelo ideal, mas que nem sempre ocorre no consultório.

Também há motivos concretos ou plausíveis que ocasionam um término ou interrupção do processo analítico, tais como: alívio dos sintomas ou das queixas que motivaram a busca por análise, mudança de residência (embora, hoje em dia, a internet e o mundo globalizado tenham facilitado esses casos), doenças graves, dificuldades financeiras ou a transferência/contratransferência erótica que impede o vínculo profissional.

Nem sempre o término da análise se dá de forma simples ou bem resolvida. E quando traz desconforto para o paciente ou para o terapeuta? E quando ocorre uma interrupção abrupta por parte do paciente, sem aviso, sem aparente explicação? É comum entender essas situações como resistência do paciente: ele não quer mais investir no processo, ele está fugindo do confronto com seu inconsciente ou reagindo de forma "complexada". E aí o problema fica fora, nele, e não no terapeuta – lá, e não cá. Mesmo que tudo isso possa ser verdadeiro em relação ao paciente, também representa uma maneira segura de proteção do terapeuta contra eventuais sentimentos de impotência e fracasso.

Pode-se pensar que a desistência do paciente foi por inabilidade do terapeuta, que este não trabalhou bem, que algo lhe escapou – ou seja, que falhou. Essa visão o aproxima de sua sombra, mas pode também não ser totalmente verdadeira, à medida que um complexo provavelmente foi ativado, intensificando o sentimento de incompetência ou culpa.

Vale trazer alguns exemplos de casos clínicos para ilustrar os questionamentos levantados a partir da práxis analítica.

Uma paciente de meia-idade procurou atendimento psicológico por apresentar sintomas relacionados a ansiedade e depressão, que surgiram após uma situação de violência seguida de morte no seu contexto familiar. O acontecimento a deixou muito abalada e em situação de extrema crise emocional. Seu pai era uma figura conhecida por sua agressividade, principalmente no que diz respeito à educação dos filhos; no entanto, jamais haviam presenciado tamanha violência na família. Ela estava totalmente descontrolada e desamparada frente a esse trágico ocorrido, e o vaso terapêutico propiciou a transferência da mãe boa que acolheu seu sofrimento e iluminou um pouco seu caminho. O processo terapêutico durou quase três meses, configurando-se uma psicoterapia breve com enfoque no atual momento de crise. Certo dia, a paciente resolveu que voltaria a morar perto da família e se mudaria para sua região de origem, onde tudo aconteceu, e encerrou a terapia sem avisar, ainda que houvesse um combinado prévio de fazer uma sessão de finalização, que nunca ocorreu. Antes de partir, presenteou a analista com um artigo de decoração que claramente remetia à situação vivida. O presente soou um tanto quanto fúnebre, o que, a princípio, dificultou o real entendimento do significado daquele símbolo. Após o término da análise, concluiu-se que a paciente precisava transferir para a terapeuta o peso da morte e da violência, representado de forma simbólica pelo presente, a fim de que ela pudesse continuar a viver em paz. Nesse caso, a paciente interrompeu abruptamente a análise, sem a abertura de qualquer tipo de devolução por parte da analista. No entanto, foi possível compreender que esse era seu único caminho de salvação, o que, de certa forma, preencheu o vazio que ela deixou ao abandonar a análise sem se despedir.

Assim como esse caso deixou claro, algumas vezes fica exclusivamente a cargo do terapeuta a elaboração da interrupção ou término da terapia, que funciona como depositário dos conteúdos que o paciente não consegue integrar. No caso exposto, isso se deu de forma concreta, por meio do presente oferecido à terapeuta. Em outras situações, pode acontecer de o paciente não realizar o pagamento das sessões, deixando uma porta entreaberta para que possa manter algum tipo de vínculo com o terapeuta.

Outro caso relevante para ilustrar a presente reflexão foi o de uma jovem imigrante que trouxe, como queixa inicial, a sua dificuldade de se relacionar com as pessoas, tanto em relacionamentos amorosos como em amizades ou relações de trabalho. Apresentava certos episódios depressivos e foi diagnosticada com doença neurológica incapacitante. Na primeira entrevista, contou sobre sua triste história familiar de abandono e negligência por parte da mãe biológica e o desconhecimento do pai. Era uma pessoa globalizada, com carreira internacional. Sempre adaptou-se às mais variadas realidades de todos os continentes nos quais morou. Entretanto, não conseguiu criar raízes em nenhum lugar. Teve um filho, fruto de um relacionamento com um colega de trabalho, com o qual nunca se casou, nem sequer morou junto. Conquistou tudo sozinha e nunca pôde contar com a ajuda de ninguém, sofrendo de forma totalmente solitária, o que contribuiu para a sua descrença nas relações humanas. Construiu uma persona dura, rígida, muito dominada pelo animus, apática, em certa medida depressiva e totalmente sozinha se não fosse pelo filho, sua razão de viver. A cada nova mudança, ela recomeçava do zero. Sonhava repetidamente com casas, que construía e depois destruía. A paciente faltava frequentemente na terapia e, por vezes, desaparecia por um longo período sem dar nenhuma satisfação, deixando a analista no limbo. Como consequência, demandava uma postura ativa da analista para trazê-la de volta à análise. Esse movimento era correspondido pela paciente, que, então, aparecia para a sessão e agradecia que a terapeuta não tivesse desistido dela. No entanto, logo em seguida tornava a faltar. Diversos tipos de contato foram experimentados, com o intuito de garantir a assiduidade e continuidade do processo. Porém, após muitas tentativas, ela parou de se comunicar e não acertou os valores devidos. Após muitos meses, finalmente quitou a dívida, de forma que o único motivo de comunicação se extinguiu. Esse caso tratou de um término não abrupto, porém silencioso. A paciente não deixou explícito que gostaria de finalizar a análise, e quem precisou colocar um fim foi a terapeuta, já que a paciente dificultou qualquer tipo de contato ou proximidade. A paciente não conseguiu conversar, refletir, elaborar sobre o fim. Em vez disso, sufocou e matou lentamente qualquer resquício de vínculo.

Por fim, cabe descrever um caso de psicoterapia infantil, já que é frequente o término ou interrupção da análise imposto pelos cuidadores. O paciente era um menino de 6 anos que tinha sido adotado aos 3 anos de idade. Ele fora acolhido em uma casa lar (abrigo) aos 2 anos de idade, após denúncia de abuso sexual praticado por membro de sua família biológica. Após a adoção, ele mudou-se para outro estado. A queixa dos pais adotivos girava em torno de seu comportamento opositor. Ao longo do processo terapêutico, que durou aproximadamente um ano e seis meses, foi visível sua mudança de comportamento. A partir desse momento, a proposta da análise passou a ser a de oferecer um espaço de expressão e elaboração dos traumas provenientes da sua sofrida história durante a primeira infância. Os pais adotivos resistiram, alegando que era uma patologização da criança, e quiseram interromper o processo. De forma incisiva, comunicaram que a criança só teria mais uma sessão. Foram alertados para a necessidade de haver mais de uma sessão, para que o término ocorresse de forma mais sutil, propiciando à criança um espaço de elaboração desse fim. Entretanto, os pais estavam irredutíveis. No dia da última sessão, a mãe revelou que o seu filho estava apreensivo porque achava que nunca mais voltaria a ver a terapeuta. Portanto, conclui-se que os pais adotivos estavam repetindo inconscientemente a história de abandono vivida pelo paciente em relação aos pais biológicos. Nesse caso, a decisão em relação ao fim da análise foi unilateral, o que gerou uma grande frustração e sentimento de falha, impotência e anulação por parte da terapeuta. Porém, vale lembrar que a resistência era dos pais e não da criança, que, por sinal, estava muito vinculada.

É muito comum na psicoterapia infantil a intervenção dos pais na análise dos filhos, uma vez que têm expectativas diferentes em relação ao processo e não o vivenciam diretamente. Tal intervenção pode decorrer da melhoria das queixas ou da dificuldade de enxergar os próprios filhos e suas necessidades. De qualquer forma, o terapeuta sente essa ruptura como um aborto, uma vez que seu trabalho é podado e ele dificilmente poderá fazer algo para mudar essa condição.

O espaço analítico é o temenos, o lugar protegido em que a alma pode se manifestar em toda sua dor e fragilidade, expondo seus medos e emoções mais profundas e escuras; onde há empatia, aceitação e segurança. Sem dúvida, é um lugar no qual a criança1 – ou, antes, o arquétipo da criança – encontra abrigo para sua vulnerabilidade e é chamada a se manifestar. Hillman (1981), em seu texto "Abandonando a criança", chama atenção para "a fantasia do crescimento" que está alojada na forma como encaramos a psicologia e a psicoterapia. A ideia presente em geral é a de que essa criança deve crescer, uma vez que a meta é o desenvolvimento e o crescimento da personalidade. Mas, alerta Hillman, ao caminharmos nesse sentido, abandonamos a criança, porque "o arquétipo da criança não cresce – permanece sempre como um habitante do país da infância, como um estágio do ser" (HILLMAN, 1981, p. 45).

É essa criança que pode aparecer no paciente que chega falando em parar a análise e quer a opinião do analista. Mesmo que esse desejo seja legítimo e costume revelar uma atitude de maturidade no relacionamento, às vezes o paciente parece um jovem que pede autorização dos pais para sair de casa. O analista pode agir como um pai superprotetor, identificado contratransferencialmente com a figura parental, acreditando que o paciente não está suficientemente maduro para sair do ninho. Ainda, pode interpretar seu desejo como resistência, ou apontar que tal e tal complexos não foram bem trabalhados. Como discriminar se é de fato uma resistência ou um desejo de poder do analista? Não vamos nos aprofundar aqui, mas vale lembrar como Guggenbühl-Craig (2004) nos chama atenção para vários aspectos da sombra do analista, e como podemos atuar a partir da figura do charlatão prendendo o paciente à análise.

Outra possibilidade é o paciente (a criança) se rebelar e sair, virando as costas repentinamente, e o analista, assim como pais de adolescentes, viver o sentimento de perda, o ninho vazio.

Às vezes, é o terapeuta que empurra o paciente para fora ou indica a ele um colega, pois a teimosia da criança ou sua enorme carência é insuportável, já que dialoga com a sua própria criança abandonada que tanto quer reprimir ou negar. Outra possibilidade é o terapeuta incentivar o paciente (a criança) a dar o passo, o salto no ar em direção ao mundo, com medo, tremendo junto com ele e prendendo a respiração no momento do voo.

Não podemos deixar a criança para trás para nos tornarmos adultos, maduros. Ela está sempre conosco. Nos momentos mais difíceis da vida ou quando vivemos perdas, é a criança órfã que pede acolhida e aceitação.

Em sua formação e treinamento, geralmente o terapeuta passa por algumas experiências como paciente, eventualmente vivendo vários tipos de términos, desde os mais tranquilos aos mais difíceis – isso compõe sua bagagem como analista. Ter passado por alguns fins dolorosos, se não contaminá-lo e não se cristalizar, colabora para que o analista fique mais atento e cuidadoso em relação às saídas dos seus pacientes e ao que esses términos lhe refletem e espelham.

É interessante observar as oscilações que afetam o consultório como um todo. A progressão e a regressão da libido se manifestam nas fases em que o consultório fica cheio, há muita procura por horários, entrevistas e consultas. E há momentos em que, em uma ou duas semanas, vários pacientes decidem parar a terapia por motivos os mais diversos, para aflição do terapeuta iniciante. O que esses movimentos dizem para o analista naquele momento?

Há aqueles pacientes que vão e voltam tempos depois, em outros momentos da vida, às vezes muitos anos depois. Há aqueles que nunca interrompem a análise. Um exemplo retrata esta última situação. Uma mulher está em terapia há cerca de 20 anos. Ela teve uma infância muito difícil, com uma separação traumática dos pais. Sua mãe teve um surto quando a paciente era muito nova. Durante um longo tempo, sonhou com animais feridos, machucados ou presos. Depois, os animais começaram a aparecer em seus sonhos de formas mais saudáveis. Uma clara imagem de seu processo.

Há alguns anos, ela manifestou a vontade de interromper a análise, mas decidiu continuar com frequência quinzenal. A terapeuta se perguntava se ainda havia sentido atendê-la. Era um processo de muitos anos e, em certos momentos, parecia não haver muito progresso. Assim como em outros processos que podem ser considerados "intermináveis", a terapeuta sente que a acompanha em sua vida e que a análise ofereceu a ela um eixo e uma base que lhe faltaram muito cedo. Recentemente, a paciente trouxe um sonho com a terapeuta, em que esta lhe falava que era o momento de parar a análise, o que incomodou a paciente. Será agora esse momento? A questão que se faz sempre presente em casos como esse é: qual é o sentido da permanência na terapia? É necessário investigar se a permanência está a serviço do Self do paciente ou da sombra do terapeuta, que precisa se sentir útil e imprescindível.

É importante assinalar que uma separatio2 se anuncia quando o tema do encerramento da análise surge na sessão. Uma separatio que pode ser vivida objetiva ou subjetivamente, de modo concreto ou simbólico, e que manifesta a necessidade do ego de sair do estado de participation mystique que pode ocorrer na análise. A separação ou a diferenciação entre sujeito e objeto, entre os opostos, é passo importante para o processo de individuação e sempre precede a coniunctio. Tornar-se um indivíduo implica estar "separado", o que é um ato da consciência. Mas, como afirma Edinger: "Ao separar os opostos, o Logos traz clareza; mas ao torná-los visíveis, traz também o conflito" (EDINGER, 1990, p. 207). Essa característica de discórdia presente na separatio pode ser a causa de alguns fins complicados de análise, resultado de uma aplicação errônea da separatio.

Uma analogia interessante relacionada à análise é a diferença entre médico e enfermeiro. O médico, identificado com o arquétipo do curador, e que geralmente carrega essa projeção, faz o diagnóstico, passa as prescrições, mas se retira. Quem cuida, mede a pressão, colhe o sangue, limpa a sujeira, alimenta, lava, troca o soro e a sonda é o enfermeiro ou o técnico de enfermagem. O médico, o dr. X, detém o poder, nada é feito sem sua assinatura; mas a enfermagem, em seu anonimato, cuida dos detalhes e fica mais tempo com o paciente. Além de ativarmos o lado ferido na equação curador/paciente para que a relação analítica possa fluir e ativar o arquétipo do curador no paciente, precisamos convidar o enfermeiro, com seu olhar atento, prático e constante, a participar do espaço analítico. Essa figura anônima, mas prestativa, é quem cuida de nossa vulnerabilidade exposta e frágil, de nossos fluidos e lamentos. O enfermeiro nos remete à atitude paciente, empática e humilde no trato diário com as tarefas de rotina, como ouvir as repetitivas lamúrias dos pacientes, nas incontáveis sessões, meses ou anos a fio, pondo em cheque muitas vezes as certezas e convicções dos terapeutas. Lembremos o que Jung (1990, 1981) sempre falou a respeito de não ficarmos do lado de fora mas, sim, junto do paciente, dentro do vaso. Recomendava abandonar as teorias e permanecer junto ao mistério vivo da alma humana. Quando alguém está sofrendo na nossa frente, é inútil explicarmos que ela está dominada por seu complexo. Mais vale, nesse momento, estar ali em silêncio, em sintonia com sua dor, apenas trocando os curativos, como bons enfermeiros.

Uma última analogia. No hospital, os médicos não conseguem prever o momento da morte, falam em semanas ou em dias. Quando não há mais o que fazer, a sombra da impotência se faz presente e, ao mesmo tempo, é o que os humaniza. Poder conviver com o mistério da vida e da morte nos aproxima de nosso tema. Quando entramos na jornada de atender um novo paciente em análise, não sabemos aonde ela vai nos conduzir, quais os caminhos que juntos iremos percorrer. Podemos intuir, sentir e perceber, já nas primeiras sessões, os sinais de sua intensidade, sofrimento e profundidade. Mas não sabemos qual, como ou quando será seu término. E nem como seremos afetados por tudo. Talvez esse seja o grande desafio de individuação do analista. Jung (1986) nos ensina isso dizendo que aprendeu muito mais com os fracassos do que com os casos bem-sucedidos. Nas vicissitudes dos términos mal resolvidos, dos pacientes que se vão sem explicação, fins sem finalização, temos oportunidades para aprender a humildade de conviver com a nossa ignorância diante do mistério que o outro representa.

Segundo Hillman, a análise, como a conhecemos, é interminável:

O "Conhece-te a ti mesmo" é seu próprio fim e não tem fim. É Mercurial. É uma arte hermética paradoxal tanto direcionada a um fim quanto sem fim, muito como o velho Freud disse da análise, em seu último ensaio antes do exílio de Viena, tanto de seu fim como objetivo quanto de seu fim no tempo: "Não só a análise do paciente, mas a do próprio analista, deixaram de ser termináveis e se tornaram uma tarefa interminável". Não há outro fim senão o ato em si de fazer alma, e a alma não tem fim. (HILLMAN, 2010, p. 127).

Guggenbühl-Craig ressalta a importância do arquétipo curador-ferido e como é difícil para a psique suportar a tensão das polaridades, o que pode levar à cisão do arquétipo e, portanto, à vivência cristalizada de um só polo. A fim de evitar a cisão enrijecida em que vive o analista, diz Guggenbühl: "Ele tem que ser sacudido. O senil 'eu sei, eu sei' deve transformar-se no socrático 'eu não sei'" (2004, p. 137). Essa mesma ideia é expressa em linguagem poética por Clarice Lispector no seguinte trecho:

Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade. (LISPECTOR, 2004, p. 74).

 

Referências bibliográficas

EDINGER, E. F. Anatomia da psique – o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 1990.

GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. São Paulo: Paulus, 2004.         [ Links ]

HILLMAN, J. Estudos de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.         [ Links ]

HILLMAN, J. Ficções que curam: psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Campinas, SP: Verus, 2010.         [ Links ]

JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. (Obras completas de C. G. Jung, v.8/2).         [ Links ]

JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981. (Obras completas de C. G. Jung, v.16/1).         [ Links ]

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JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.         [ Links ]

LISPECTOR, C. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Carolina Barrieu
E-mail: mcbarrieu@gmail.com

Silvana Parisi
E-mail: silparisi@gmail.com

Recebido em: 6/3/2017
Revisão: 26/5/2017

 

 

* Material apresentado originalmente em português, com o título "O fim da análise", sob a forma de palestra no XXIII Congresso Nacional da AJB: A Práxis Analítica, um evento da Associação Junguiana do Brasil, filiada à International Association for Analytical Psychology, em Ouro Preto (Minas Gerais), 2016.
** Psicoterapeuta junguiana formada pela PUC-SP. Trainee da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA, filiada à International Association for Analytical Psychology – IAAP, em Zurique (Suíça). Aprimorada pela Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic – PUC-SP em psicoterapia de casal e família.

***
Psicoterapeuta junguiana formada pela PUC-SP. Trainee do Instituto Junguiano de São Paulo – IJUSP, filiado à Associação Junguiana do Brasil – AJB e à International Association for Analytical Psychology – IAAP, com sede em Zurique (Suíça). Doutora em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Coordenadora de curso de expansão no Sedes Sapientiae e professora e supervisora no curso de pós-graduação latu sensu Psicoterapia Junguiana da Universidade Paulista – UNIP.
1 A referência à criança não significa que o paciente seja visto como uma criança, mas se relaciona à manifestação do arquétipo da criança, à criança interior.
2 Separatio é uma operação alquímica que produz ordem a partir do caos, promovendo a separação dos opostos e a criação da consciência. Medir, cortar e pesar são símbolos da separatio.

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