Journal of Human Growth and Development
ISSN 0104-1282 ISSN 2175-3598
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.17 n.3 São Paulo dez. 2007
ESTUDO DE CASO CASE STUDY
Retornando para a Família de Origem: Fatores de risco e proteção no Processo de Reinserção de uma Adolescente Institucionalizada*
Back to the Original Family: Risk and Protective Factors in the Reunification Process of the Family of an Institutionalized Adolescent
Aline Cardoso SiqueiraI; Débora Dalbosco Dell'AglioII
IPsicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIDoutora em Psicologia do Desenvolvimento e Docente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da UFRGS. Correspondência sobre este trabalho deve ser enviada à segunda autora: Instituto de Psicologia, UFRGS. Ramiro Barcelos 2600, Porto Alegre, RS, 90035-003. Fone: (51) 3316-5253. E-mail: dalbosco@cpovo.net Fax: (51) 33165473
RESUMO
O objetivo deste trabalho foi investigar os fatores de risco e proteção presentes no processo de reinserção familiar de uma adolescente de 12 anos, que esteve abrigada por seis meses devido a suspeita de abuso sexual por parte do padrasto. Os dados foram coletados através de entrevistas com a adolescente, sua mãe, membros do abrigo, de uma ONG, do Conselho Tutelar e da escola. Foi utilizada a metodologia da inserção ecológica, acompanhando o caso ao longo de cinco meses. Os resultados indicaram a existência de expressivos e numerosos fatores de risco no ambiente familiar, resultando no reabrigamento da adolescente. Pode-se concluir que o processo de transição ecológica vivenciado pela adolescente, do abrigo para a família, ocorreu de forma inadequada, à medida que não estavam garantidas as condições para um desenvolvimento saudável no contexto familiar. Dessa forma, discute-se a necessidade de políticas públicas que assegurem um acompanhamento dessas transições, para que a reinserção familiar de crianças e adolescentes possa acontecer de forma segura e definitiva.
Palavras-chave: Reinserção familiar. Institucionalização. Adolescência.
ABSTRACT
The aim of this study was to investigate risk and protective factors in the family reunification process of a 12-year-old adolescent who had been under protective shelter for six months due to a suspicion of sexual abuse from her stepfather and, after the period of six months, returned to her original family. The data were collected through interviews with the adolescent, her mother, some of the shelter's employees, a social assistant working in a NGO, the Guardianship Council and the school's teacher. The methodology of ecological insertion was followed in this case for five months. The results showed expressive and numerous risk factors in the family, resulting in the adolescent's return to the shelter. It was concluded that the ecological transition process that the adolescent experienced, from the shelter to her home, happened in an inappropriate way, since the conditions for a healthy development in the family context had not been guaranteed. Thus, the study discusses the need for public policies that ensure that these transitions will be monitored, so that the reunification of these families can happen safely and definitively.
Keywords: Family reunification. Institutionalization. Adolescence.
Fatores de risco como violência intrafamiliar, pobreza, desemprego, alcoolismo, presença de doença física e mental dos cuidadores, entre outros fatores, têm motivado o abrigamento de crianças e adolescentes no Brasil. Essa medida de proteção provisória, preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é utilizada quando os direitos destes jovens estão sob ameaça ou são violados1. No entanto, o retorno de crianças e adolescentes abrigados às famílias de origem tem sido um tema pouco explorado cientificamente na realidade brasileira, apontando a necessidade de pesquisas que compreendam como este processo está ocorrendo.
A família é considerada o primeiro microssistema no qual a criança interage, constituindo uma dimensão importante da vida de todos os indivíduos. É a primeira rede de apoio da criança, iniciada muito cedo com as primeiras relações de apego2. Ela pode apresentar fatores de proteção e risco, dependendo do seu funcionamento e da sua dinâmica. Assim, diferentes aspectos interagem entre si num processo que pode produzir uma experiência estressora ou protetora em seus efeitos3. Práticas educativas saudáveis, bom funcionamento familiar, vínculo afetivo, apoio e monitoramento parental operam nas famílias como fatores de proteção4. Eles são entendidos como fatores ou processos que reduzem o impacto do risco e exercem efeitos positivos na saúde mental do indivíduo, podendo operar como pontos de apoio, contribuindo para uma adaptação bem sucedida e promovendo a resiliência3,5.
Por outro lado, a família pode apresentar fatores de risco. Mecanismos de risco são entendidos como condições ou variáveis que estão associadas a uma alta possibilidade de ocorrência de resultados negativos ou não desejáveis6. O risco, no entanto, não é entendido de forma estática, mas como processo, definido a partir de uma determinada situação, de suas implicações e dos seus resultados específicos7. Negligência parental, violência doméstica, padrões parentais de cuidado e supervisão inadequados, pobreza, rigidez nas práticas educativas e doença mental são considerados fatores de risco na família, que podem dificultar seu funcionamento8,9.
Os estudos sobre violência intrafamiliar têm destacado o fenômeno da multigeracionalidade10,11,12. Na multigeracionalidade, adultos que foram vítimas de violência intencional e repetitiva possuem um padrão cognitivo comportamental de funcionamento inadequado, baseado na violência e aprendido na infância10. Dessa forma, crianças que viveram situações de violência familiar aprendem a usá-la como mediadora de suas relações sociais na infância, adolescência e na adultez.
As pesquisas sobre práticas educativas parentais e violência intrafamiliar têm contribuído para o entendimento do fenômeno da multigeracionalidade12,13. Pais abusadores usam, de forma indiscriminada, a punição física, aumentando os riscos da manifestação de comportamentos agressivos ou de distúrbios afetivos nas crianças e adolescentes14. O uso de técnicas coercitivas como principal estratégia de socialização infantil e a ausência de interlocução entre os membros da família podem trazer conseqüências negativas para o desenvolvimento emocional e nas interações futuras, contribuindo para a multigeracionalidade15.
Nos casos em que a família não desempenha o papel de fornecedora de apoio e proteção, colocando em risco o desenvolvimento e o bem-estar de suas crianças e adolescentes, tornam-se necessárias medidas de proteção, como o abrigamento1. No entanto, a literatura aponta que a institucionalização pode se constituir tanto como fator de risco quanto de proteção, não havendo um consenso16. Este desfecho dependerá dos mecanismos através dos quais os processos de risco operarão seus efeitos negativos sobre os abrigados15. Aspectos como acolhimento inadequado no momento do abrigamento, hostilidade entre crianças e monitores, práticas educativas coercitivas, rotatividade de funcionários, o alto índice de criança por cuidador, a falta de atividades planejadas, a fragilidade das redes de apoio social e afetivo e a não disponibilidade de investimento emocional podem ser considerados fatores de risco presentes no cotidiano dos abrigos17. Em contrapartida, fatores de proteção podem operar neste momento, tais como acolhimento no momento do abrigamento, compreensão e respeito às histórias individuais de cada um, vinculação afetiva entre os abrigados e entre eles e os funcionários/monitores, sentimento de proteção, entre outros, favorecendo o estabelecimento de novos relacionamentos e possibilitando o contato com uma estrutura organizada16,17. Estudos contemporâneos têm convergido em destacar o aspecto protetivo que um período de institucionalização pode proporcionar. São estudos que, diferente dos mais antigos, utilizam métodos de investigação científicos diferenciados, como entrevistas e instrumentos psicológicos, partindo, em especial, da perspectiva das crianças e jovens abrigados, e de observações sistematizadas16, 19, 20-23. Destaca-se, também, a influência do Estatuto da Criança e do Adolescente, que impulsionou mudanças na qualidade do atendimento oferecido pelos abrigos, preconizando o abrigamento em unidades pequenas, o atendimento individualizado, a não separação de irmãos, proporcionando um ambiente mais próximo do familiar1. Entretanto, a implementação dessas diretrizes não ocorre da mesma forma e ao mesmo tempo em todos os estados brasileiros, sendo necessário estar alerta para essas diferenças.
Para Siqueira e Dell'Aglio, além da mudança no modo de abordagem e de investigação do contexto institucional e da influência do ECA, esses estudos diferenciam-se dos mais antigos, também, por lançar mão de teorias mais adequadas para a análise desse contexto, tal como a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH)1,16,24,25. Para a TBDH, a pessoa, os processos, os contextos e o tempo são considerados elementos essenciais para o desenvolvimento. Além disso, essa teoria possibilita que as particularidades desenvolvimentais vivenciadas pelas crianças e pelos adolescentes, que se desenvolvem nesse contexto diferenciado, sejam enfatizadas, e não os déficits encontrados em função da comparação com crianças e adolescentes que se desenvolvem em contextos culturalmente esperados26. Dessa forma, a TBDH tem sido usada para reconhecer os processos evolutivos e os múltiplos fatores que influenciam o desenvolvimento.
A Teoria Bioecológica destaca a importância das transições que ocorrem no ambiente ecológico, as chamadas transições ecológicas, consideradas ao mesmo tempo produto e produtor de mudanças desenvolvimentais25. As transições ecológicas correspondem a uma função conjunta de mudanças biológicas e circunstanciais, ocorrendo sempre que a posição do indivíduo no meio ambiente ecológico é alterada em resultado de uma mudança de papel, ambiente ou ambos. As transições são entendidas como processos que resultam em uma reorganização qualitativa, tanto em nível psicológico quanto comportamental, além de serem geradoras de mudanças na percepção de si mesmo e dos outros24,25. Um indivíduo, ao longo de seu ciclo vital, vivencia inúmeras transições ecológicas, consideradas exemplos claros do processo de mútua acomodação entre o organismo e seu ambiente.
Reinserção Familiar
A reinserção familiar de crianças e adolescentes abrigados, apesar de corresponder a uma importante transição ecológica, tem sido pouco estudada no Brasil. O ECA contempla a questão da reinserção familiar ao definir o abrigamento como medida de proteção excepcional e temporária, estabelecendo que toda criança e adolescente têm o direito à convivência familiar, tanto junto à sua família de origem quanto a uma família substituta1.
No que tange à discussão sobre o direito à convivência familiar das crianças e adolescentes em situação de risco, a preservação da criança ou do adolescente na família de origem deve ser tomada como prioridade, a fim de evitar a separação e os problemas associados27. Contudo, sendo a separação inevitável, é preciso trabalhar em prol da manutenção do vínculo familiar e de uma reintegração rápida, para que essas crianças e adolescentes sintam-se inseridos em um ambiente familiar. Entretanto, o direito à convivência familiar não tem sido garantido, sobretudo com crianças e adolescentes de famílias empobrecidas. As maiores dificuldades para o retorno das crianças e adolescentes às suas famílias de origem, relatadas pelos dirigentes de abrigos, são as precárias condições socioeconômicas (35,45%), a fragilidade, ausência ou perda do vínculo familiar (17,64%) e a ausência de políticas públicas e de ações institucionais de apoio à reestruturação familiar (10,79%), entre outros28.
Foram encontrados estudos internacionais que focalizavam a "reunificação familiar", entendendo-a como reunião física de crianças e adolescentes, que estavam sob cuidados não-familiares, com suas famílias de origem28. Destaca-se que a leitura realizada desses estudos levou em consideração as diferenças sociais e culturais entre os países, não transpondo os achados internacionais à realidade brasileira. Esses estudos têm destacado a pobreza como o principal motivo para a saída de casa, sendo considerada também, em muitos casos, o principal obstáculo para a reinserção familiar, aspecto corroborado em pesquisas brasileiras28,30,31. As visitas freqüentes dos pais às crianças retiradas de casa foram consideradas um poderoso fator para a efetivação da reunificação familiar, sendo que aqueles que receberam visitas, conforme recomendado pela Assistência Social, tiveram mais chances de voltar para casa32. Já o estudo de Festinger apontou os fatores de risco familiares mais relevantes para o reabrigamento (reincidência da institucionalização), como habilidades parentais pobres, ausência ou pobre apoio social e recusa de serviços externos necessários, como um programa de treinamento de habilidades parentais33.
A partir dessas considerações teóricas, é possível constatar a importância do tema e a necessidade de desenvolver estudos sobre o desligamento institucional e a reinserção familiar, visto a carência de trabalhos dessa natureza no Brasil. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi investigar o processo de reinserção familiar, através do estudo de caso de uma adolescente que esteve abrigada numa instituição de proteção, e que foi acompanhada por um período de cinco meses.
METODOLOGIA
Participante
Esse estudo consistiu em uma pesquisa qualitativa e longitudinal, cujo delineamento foi de Estudo de Caso Único34. Participou deste estudo uma adolescente de 12 anos, que será chamada pelo nome fictício de Manuela. A adolescente é a primogênita de oito irmãos, numa família composta por 10 membros, que vivem em condições socioeconômicas desfavorecidas. Foi abrigada em função da suspeita de abuso sexual por parte do padrasto, em um abrigo não-governamental, durante seis meses. Manuela freqüentava a terceira série do Ensino Fundamental de uma escola pública.
Instrumentos
Foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas, nas diferentes etapas do estudo, com a adolescente, sua mãe e uma monitora do abrigo. Entrevistas informais também foram realizadas com uma de suas professoras, a assistente social de uma Organização Não-Governamental (ONG) e a assistente social do abrigo. Foram também coletados dados junto ao prontuário da família, disponibilizado pelo Conselho Tutelar.
Procedimentos
A participante do estudo foi indicada por uma assistente social de uma instituição não-governamental da região metropolitana de Porto Alegre, pois atendia aos critérios de inclusão (ter entre 12 e 16 anos de idade e tempo de abrigamento de pelo menos seis meses) estabelecidos para esse estudo. Elencaram-se estes critérios em função da intenção de investigar este processo em adolescentes e por entender que um afastamento de seis meses possibilitaria novos processos no contexto familiar que seriam modificados com o retorno da jovem. Esse caso indicado se referia a uma adolescente que já havia sido desligada há cerca de dois meses. O abrigo, a Direção da ONG que acompanhava a família de Manuela, o Conselho Tutelar e a escola consentiram em fornecer informações sobre o processo de reinserção familiar através do Termo de Concordância. Após o contato e o consentimento da mãe da participante, que assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, enquanto responsável legal por Manuela, a adolescente foi convidada a participar do estudo, recebendo todas as informações sobre a pesquisa.
O processo de coleta de dados foi realizado com base no procedimento da inserção ecológica35. Esse método propõe um mergulho no ambiente ecológico da participante da pesquisa, com o objetivo de conhecer a sua realidade, a partir de entrevistas formais e informais e observações. Nessa pesquisa, a inserção ecológica incluiu visitas à família de origem, ao abrigo onde ela esteve, à ONG, ao Conselho Tutelar e à sua escola. Foram realizadas 10 visitas domiciliares, durante as quais foram observados também os irmãos e o padrasto de Manuela.
A coleta de dados ocorreu em quatro momentos distintos: três, quatro e seis meses após o retorno da adolescente à família de origem, e um mês após o seu retorno à instituição de abrigo, totalizando cinco meses de acompanhamento. As três primeiras entrevistas com a adolescente foram realizadas na ONG, e a última, no abrigo. As entrevistas realizadas com a mãe ocorreram em seu domicílio. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para a análise. Os dados da inserção ecológica, as conversas informais e as observações, foram sistematicamente registrados em um diário de campo. Estas anotações incluíram, além de dados objetivos, percepções e sentimentos pessoais dos pesquisadores quanto aos membros envolvidos no caso.
Contextualização: A História de Manuela
Manuela residia com seus irmãos, cinco irmãs de nove, oito, sete, três anos e um bebê de cinco meses e dois irmãos de quatro e dois anos, sua mãe e o padrasto, em uma casa simples de dois quartos. Seu pai é falecido, entretanto, mesmo antes de seu falecimento, não mantinha contato com a filha. Ela foi cuidada pelos avós maternos, cuja avó já é falecida, e pela tia materna quando tinha entre quatro e sete anos. Durante a coleta de dados deste estudo, tanto dona Maria quanto o padrasto estavam desempregados e recebiam ajuda de entidades filantrópicas e de uma ONG.
Dona Maria é HIV positiva desde os 17 anos, sendo que as filhas de nove, oito anos e cinco meses são portadoras do vírus. Manuela foi abrigada devido à denúncia de suspeita de abuso sexual, realizada pela escola, onde comentou com uma colega e uma professora que o padrasto "se passava com ela" na hora do banho. O padrasto de Manuela não foi afastado do convívio familiar, apenas foi chamado ao Juizado da Infância e da Adolescência.
Manuela esteve abrigada numa instituição de abrigo não-governamental, localizada na região metropolitana de Porto Alegre, distante da área urbana e da moradia de sua família de origem. É composta por três casas-lares, nas quais moram cerca de 10 crianças e adolescentes em cada, com idades entre sete e 15 anos. Durante a institucionalização, Manuela freqüentou uma escola pública e encontrou com sua mãe e seus os irmãos em três momentos. Os dois primeiros encontros ocorreram no Conselho Tutelar e o terceiro, na casa de Manuela, sendo estabelecido o desligamento subseqüentemente. Dona Maria não a visitou nenhuma vez no abrigo, mesmo não havendo impedimento. No momento de seu desligamento, a instituição presenteou Manuela com roupas e calçados, além de doar para sua família um fogão e colchões.
Segundo uma das monitoras, durante o período em que esteve abrigada, Manuela era uma menina calma e quieta, aceitava as orientações e gostava muito de brincar no pátio e mexer na horta. Ela mencionava, ainda, sentir saudades da mãe e principalmente dos irmãos, apesar de sentir-se chateada pela mãe não ter acreditado nela no momento da revelação do abuso.
A ONG, que acompanha a família de Manuela há pelo menos cinco anos, prestava ajuda material, fornecendo alimentos, roupas para as crianças, gás, entre outros. Além disso, a partir de visitas domiciliares periódicas e longas conversas com a mãe e o padrasto, a assistente social da ONG esclareceu o que significava "abuso sexual", destacando os prejuízos ocasionados às vítimas, e explicando que não se tratava somente de intercurso sexual.
Após o desligamento institucional, Manuela só retornou à escola depois de um mês de iniciadas as aulas. Uma das professoras informou que seu desempenho escolar não estava satisfatório, havendo falta de assiduidade. Quando perguntada sobre o motivo de faltar às aulas, Manuela respondia que saía com a mãe, ou ficava com os irmãos para a mãe poder sair. Segundo a professora, Manuela mantinha um bom relacionamento com as colegas. Por outro lado, em algumas situações, ela foi para a escola com odor de urina, sendo motivo de riso e provocações por parte dos meninos. A mãe nunca havia comparecido a nenhuma reunião da escola, e nunca justificou as faltas reincidentes da filha.
Durante o período de reinserção de Manuela, sua mãe teve o oitavo filho, tendo permanecido hospitalizada durante 20 dias, devido a problemas de saúde. Durante esse período, Manuela assumiu as obrigações e tarefas domésticas, juntamente com sua irmã de nove anos, e faltou à escola durante todo o período de internação da mãe, perdendo, inclusive, provas trimestrais.
Nas entrevistas, dona Maria descreveu Manuela como uma menina desobediente, rebelde e preguiçosa, sempre a desvalorizando, e demonstrando não acreditar nos relatos sobre o abuso do padrasto. Dona Maria relatou não ter bom relacionamento com sua própria família. Ela foi vítima de abuso cometido pelo seu próprio pai quando tinha sete anos de idade, e quando contou para a sua mãe, levou uma surra do pai. Para dona Maria, Manuela mentiu sobre o abuso a mando do seu avô, que quer afastar o padrasto da família. Na educação de seus filhos, dona Maria usa principalmente ameaças, xingamento e punição física como forma de educar, em especial com Manuela, demonstrando pouca paciência e flexibilidade quanto às relações de amizade da filha.
Sobre o abrigamento de Manuela, dona Maria considerou como se fosse um castigo para a adolescente, e não uma proteção. Quanto ao retorno de Manuela para casa, apesar de achar que "foi bom", expressava somente reclamações e queixas sobre a adolescente. Para ela, Manuela sempre queria gritar mais alto, não obedecia, não queria tomar banho e levantar pela manhã para ir para a ONG e só ajudava nas tarefas domésticas quando queria. Relatou que quando Manuela desobedecia, ameaçava chamar o Conselho Tutelar para levá-la para o abrigo, como uma punição. Segundo dona Maria, Manuela tem bom relacionamento com os irmãos pequenos.
Nas entrevistas realizadas com Manuela, ela afirmou que morar no abrigo foi bom, pois podia brincar no pátio do abrigo, ajudar em algumas tarefas domésticas, tomar banho no lago, cuidar da horta, e participar de festas de aniversário, entre outras atividades. Entretanto, sentia saudades de seus irmãos, e quando estava triste, ficava quieta ou conversava com outra adolescente. A sua primeira impressão, quando chegou ao abrigo, não foi positiva, Manuela lembrou que não queria ficar, porque pensava que era um hospício e que ia tomar injeções. A assistente social do abrigo recebeu-a e acolheu-a de forma acessível, e assim ela foi ficando. Entretanto, Manuela relatou ter conflitos com uma menina, e que durante uma das brigas com ela, "uma monitora bateu com uma vara".
Manuela, quando falou sobre a suspeita de abuso, afirmou que o padrasto tinha "se passado" com ela. Mencionou não gostar do padrasto, porque ele batia nos seus irmãos menores e na irmã de nove anos, além de proteger a sua irmã de sete anos, a primeira filha dele com dona Maria.
A adolescente apresentou manifestações contraditórias a respeito de sua mãe, ora chamando-a de mentirosa, ora afirmando que podia contar com a mesma e que sentia saudades dela quando estava no abrigo. Manuela comentou que não dormia direito, pois ficava se acordando durante a noite. Além disso, sua mãe afirmava que Manuela urinava na cama. No abrigo, ao contrário, Manuela não apresentou insônia e nem enurese noturna.
Após este período de reinserção com a família, Manuela retornou ao mesmo abrigo, por determinação judicial. Esse abrigamento baseou-se em dois pontos: no relatório de uma visita domiciliar produzido pelas assistentes sociais do Juizado; e nas novas suspeitas de abuso sexual por parte do padrasto, ocorrido durante o período de internação hospitalar de dona Maria. Já no abrigo, foi realizada uma nova entrevista, na qual Manuela relatou estar bem, apontando que reencontrou algumas amigas e fez novas amizades no abrigo. Quanto ao motivo de ter voltado ao abrigo, Manuela repetiu o mesmo motivo do primeiro abrigamento: que o seu padrasto "se passava" com ela, não detalhando de que forma isso acontecia. Parecia estar feliz, mencionou sentir saudades dos irmãos, mas não da mãe. Segundo Manuela, ir para o abrigo "foi bom, porque eu tô melhor do que em casa (...)" e "a diferença é que aqui eu tenho vários amigos e em casa eu não tenho quase ninguém". Quanto ao seu futuro, Manuela acreditava que um dia ela voltaria para casa. Entretanto, segundo suas palavras "eu gostaria que eu me comportasse mais e que seguisse a minha vida (...), tando aqui, me comportando e não voltar para casa".
DISCUSSÃO
Os dados das entrevistas semi-estruturadas, com a adolescente, com a mãe e o representante da instituição, e da inserção ecológica foram analisados de forma qualitativa. A principal unidade de análise foi o processo de reinserção familiar, sendo que as sub-unidades foram os fatores de proteção e risco identificados nos contextos da família e do abrigo, em três níveis ecológicos: pessoa, microssistema/mesossistema e exossistema.
Os fatores de proteção identificados na família são os seguintes: no nível da pessoa, Manuela possuía facilidade em fazer amigos, comportamento pró-social com os irmãos e saúde física; no microssistema, ela manteve vínculo afetivo com as irmãs de nove e oito anos e, em especial, com os seus irmãos mais novos, cuidando-os e protegendo-os. A relação afetiva entre irmãos é um importante fator de proteção descrito na literatura, indicando que as crianças e adolescentes que estiveram sob cuidados não-familiares caracterizam mais suas relações com irmãos com sentimentos positivos do que suas relações com suas mães36. Além disso, a relação entre irmãos pode ser mais duradoura do que a relação entre pais e filhos, constituindo o sistema familiar primário para as relações adultas29.
No mesossistema, observou-se o apoio social externo recebido da ONG e o trabalho de conscientização realizado pela ONG com o padrasto. Este trabalho representou uma tentativa de prevenir futuras práticas abusivas, tendo sido trabalhado o conceito de abuso e dadas orientações quanto aos cuidados que estes pais deveriam ter com a filha. Além disso, a ONG supria as necessidades básicas da família, como alimentação e vestuário, constituindo-se na principal rede de apoio da mesma.
Quanto aos fatores de risco na família, pode-se observar: no nível da pessoa, a baixa auto-estima e a despreocupação de Manuela com sua higiene e autocuidado, além do fato de apresentar enurese noturna. Estes comportamentos podem estar relacionados à situação abusiva, especialmente em relação à situação do banho, durante a qual o padrasto a tocava. No microssistema, o tamanho da família (grande número de filhos), mãe com SIDA e duas irmãs HIV+, mãe com história de abuso sexual na infância, práticas educativas coercitivas e punitivas, baixo nível de escolaridade da mãe, descrédito da mãe quanto ao abuso, falta de valorização da escola, ausência de rotina familiar e suspeita de abuso sexual pelo padrasto; e no nível do exossistema, desemprego e instabilidade laboral (mãe/padrastro), carência de relações de amizade próximas e recíprocas, conflitos e rompimento nas relações com a família materna, e ausência de comunicação entre a família e escola. Observou-se que, apesar de ter história de abuso na infância, dona Maria não reconheceu a situação de abuso de sua filha, não conseguindo agir de forma protetiva frente a esta situação e agindo passivamente, da mesma forma que sua própria mãe agiu na época em que revelou que estava sendo abusada. Este aspecto demonstra a manutenção do ciclo multigeracional de violência nesta família. O abuso sexual pode levar a um estilo de parentalidade caracterizado como agressivo para as mães e negligente para os pais11. Estudos sobre a multigeracionalidade demonstram a influência da vivência de violência e das práticas educativas coercitivas na infância para a parentalidade na idade adulta, afirmando que pais com história de violência na infância tendem a apresentar habilidades parentais pobres e a usar a violência física na educação de seus filhos12,13,37.
Quanto ao descrédito da mãe frente ao relato de Manuela, constatado através do não reconhecimento de dona Maria quanto à possibilidade do abuso, a literatura aponta o apoio materno como importante para o funcionamento psicológico geral das vítimas, diminuindo a probabilidade de um afastamento familiar e do ingresso em abrigos38. Da mesma forma, o apoio parental incrementa as estratégias de coping adaptativas e as competências sociais e acadêmicas, sendo importante para o desenvolvimento de processos de resiliência39. A mãe de Manuela parece estar travando conflitos constantes com seus familiares, visto que deposita toda a rebeldia e a desobediência de sua filha na influência negativa do avô, e com os vizinhos, limitando o contato da adolescente com pessoas da vizinhança. Esse comportamento pode ser compreendido como uma forma de proteger o abusador e conservar o segredo na família, ao restringir o acesso de Manuela a outras pessoas, e agir de forma persecutória com os vizinhos. Essa conduta persecutória afasta as possibilidades de dona Maria construir laços de amizade com outras pessoas, fazendo com que ela só se relacione com as pessoas que lhe prestam alguma ajuda, como alimentos e roupas. A presença do segredo tem sido identificada como uma característica presente em famílias nas quais ocorre abuso intrafamiliar37. Quanto à ausência de comunicação entre a família e a escola de Manuela, pode-se constatar que, mesmo diante das constantes ausências de Manuela, a escola também não tinha buscado compreender o motivo das faltas, não chamando a mãe para conversar.
Os fatores de proteção observados no abrigo foram: no nível da pessoa, foram constatados, durante o período de abrigamento, boa auto-estima de Manuela, observada a partir de seu cuidado com a aparência, higiene e saúde, construção de vínculos afetivos, sentimentos de proteção e segurança relacionados às amigas e monitoras, melhor desempenho acadêmico; no nível do microssistema, estímulo às atividades escolares, espaço para desenvolver brincadeiras, rotina estável e flexível, participação nas tarefas coletivas de organização do ambiente, estímulo a interações sociais, fornecimento de apoio emocional e instrumental; no nível do exossistema, diálogo entre abrigo e um centro de atendimento a vítimas de violência (avaliação psicológica), diálogo entre abrigo e escola e o planejamento do abrigo-ONG para o retorno da menina à família.
No abrigo, constatou-se a existência de valorização e estímulo às atividades escolares, o que ocasionou a recuperação acadêmica de Manuela e sua aprovação para a terceira série durante os seis meses de abrigamento. O apoio instrumental, destacado por Manuela ao enfatizar os objetos e roupas que ganhou no abrigo, é entendido como o apoio mais relevante para a população de nível socioeconômico desfavorecido39. Diversos autores destacam, ainda, que o apoio emocional é considerado o mais importante para o incremento dos processos de resiliência individual e para a promoção da superação de adversidades. Esse apoio pode ser identificado, segundo o relato de Manuela, no suporte emocional fornecido por algumas monitoras e meninas do abrigo, nos momentos em que a adolescente sentia-se triste. Um estudo sobre redes de apoio social e afetivo de adolescentes institucionalizados indicou que tanto o apoio emocional e afetivo quanto o instrumental foram considerados como os principais apoios fornecidos pelos membros do abrigo, ao passo que, o principal apoio fornecido pelos membros da família foi o instrumental23.
No nível do exossistema, a comunicação estabelecida entre o abrigo e a ONG norteou o planejamento da reunificação de Manuela e sua família, juntamente com o trabalho de orientação direcionado ao padrasto e dona Maria. É possível observar um esforço conjunto do abrigo e da ONG em planejar e realizar o desligamento. Ainda assim, a família não reagiu de forma positiva frente ao retorno de Manuela, transformando-a no "bode expiatório" dos problemas da família. O planejamento e a orientação, dentro de uma comunicação constante e em via dupla entre os órgãos responsáveis, na prática, não parecem ser a regra nos processos de desligamento40. Assim, apoio, orientação e acompanhamento das famílias podem contribuir para a efetivação do caráter provisório da medida de proteção do abrigamento, sendo necessário um trabalho efetivo e eficaz com a família, no período de abrigamento, a fim de potencializar as capacidades da família e promover sua reorganização.
Os fatores de risco observados no abrigo foram: no nível da pessoa, constataram-se conflitos com uma adolescente abrigada e saudades dos irmãos; no microssistema, o uso de punição física em uma situação vivenciada, a rotatividade de funcionários e a falta de contato com a família; no nível do exossistema, a ausência de comunicação entre o abrigo e a ONG com o Conselho Tutelar, e a realização de poucos encontros entre Manuela e sua família. Durante o período em que Manuela esteve abrigada, houve demissões e admissões de funcionários, evidenciando a alta rotatividade dos mesmos. Esse fator é apontado na literatura como relevante para o desenvolvimento emocional dos abrigados, podendo levar a uma dificuldade na construção de vínculos afetivos estáveis e duradouros15,16.
A presença do Conselho Tutelar durante o processo judicial de Manuela foi entendida como irrelevante pela assistente social do abrigo, apontando para a existência de conflitos e um senso de descrédito do abrigo para com o Conselho Tutelar. A dificuldade de interação e comunicação entre instituições que trabalham com crianças e adolescentes abrigados consiste num dos principais fatores que dificultam a provisoriedade da medida de abrigamento40. Quanto às visitas familiares, observou-se que este aspecto não foi contemplado pelos órgãos que promoveram a reinserção da adolescente, visto que ela teve contato com sua família apenas três vezes durante os seis meses de abrigamento. O estudo de Davis, Landsverk, Newton e Ganger destaca que as crianças e adolescentes que receberam visitas periódicas possuíam mais chances de serem reunificadas, sugerindo que esse fator é importante para uma reconexão dos laços familiares rompidos32.
Frente aos fatores de risco e proteção dos dois principais contextos de inserção de Manuela, família e abrigo, pode-se constatar que os fatores de risco presentes na família são mais numerosos, freqüentes e expressivos do que os de proteção. O contrário ocorre no abrigo: os fatores de proteção se sobrepõem aos de risco, fazendo com que esse microssistema se caracterize como um contexto que possibilita desenvolvimento, promovendo os processos de resiliência da adolescente.
Ao final de seis meses de reunificação familiar, Manuela foi reabrigada na mesma instituição em que esteve anteriormente, vivendo assim uma nova transição ecológica. As transições ecológicas exigem um novo posicionamento da pessoa, como o exercício de novos papéis, e também novas respostas do ambiente, podendo favorecer ou prejudicar o desenvolvimento, dependendo da forma como ocorrem. Tendo em vista a dinâmica familiar disfuncional e a presença de fatores de risco relevantes, pode-se compreender que o retorno ao abrigo tenha sido uma medida de proteção para a adolescente, oferecendo-lhe a oportunidade de desenvolver relações proximais mais abrangentes do que se ela estivesse em sua família de origem. De acordo com a percepção de Manuela quanto ao seu retorno à instituição, pode-se considerar o abrigo como um espaço benéfico para o seu desenvolvimento, por favorecer o estabelecimento de novos relacionamentos e possibilitar contato com uma estrutura organizada. O abrigo possuía características que poderiam incrementar os processos de resiliência de Manuela, contribuindo para a superação dos efeitos dos riscos aos quais ela estava exposta antes de ser abrigada. Essa consideração baseia-se no fato de que a resiliência pode ser entendida como resultado da interação entre aspectos individuais, contexto social, quantidade e qualidade dos acontecimentos no decorrer da vida e dos fatores de proteção encontrados no meio social e familiar41. Nesse sentido, tendo em vista as limitações e riscos do ambiente familiar, o abrigo pode possibilitar condições para o desenvolvimento da potencialidade dos abrigados42.
No que diz respeito à possibilidade de sucesso na reinserção familiar, habilidades parentais pobres e a ausência ou pobre apoio social são fatores de risco que contribuem para a não manutenção da criança no ambiente familiar33. Por outro lado, contatos freqüentes entre a família e criança durante o período de afastamento, assim como a presença de pelo menos um dos pais biológicos, são fatores que favorecem uma reinserção bem sucedida29. Entretanto, no presente estudo de caso, a pobre habilidade parental de dona Maria e os fatores de risco desempenharam papel decisivo para o fracasso nessa reunificação. Na etapa final, um mês após o reabrigamento, Manuela mostrou clareza sobre sua situação, avaliando que, apesar da saudade dos irmãos, o abrigo era o melhor lugar para ela naquele momento.
As visitas realizadas ao longo de cinco meses possibilitaram uma análise contínua e processual da reinserção, apontando que as práticas abusivas e a violência implícita nas práticas educativas da mãe de Manuela continuavam presentes. A supervisão da ONG atuou como um agente social regulador, mas não alterou as práticas no interior da família. Também foi possível perceber os efeitos desse contexto sobre o comportamento e a auto-estima de Manuela, pois ela foi progressivamente perdendo o interesse no auto-cuidado. Assim, este estudo aponta não apenas as dificuldades desta família, mas o insuficiente investimento em ações planejadas e na formação de profissionais voltados para este tipo de intervenção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos dados indica que a família de Manuela possuía inúmeros e severos fatores de risco. Em casos como esse, em que os fatores de risco na família são mais expressivos do que os de proteção, e frente à ausência de uma rede familiar extensa, o abrigamento pode ser a única estratégia de proteção possível.
O abrigo foi considerado, pela participante do estudo, como um contexto no qual ela possuía uma rotina de higiene, tarefas domésticas e escolares, além de relações afetivas e recíprocas. No abrigo, Manuela pôde ampliar a sua rede de apoio e desenvolver relações proximais mais abrangentes. Salienta-se que o abrigo pode ter sido percebido de forma positiva pela participante por possuir certas características que não são comuns a outras instituições. É uma instituição que funciona na modalidade de casa lar, possuindo um atendimento individualizado em uma casa com cerca de 10 crianças e adolescentes, em ambiente amplo e arborizado, propício para atividades lúdicas. No entanto, o abrigamento é uma medida de proteção excepcional e temporária1, não podendo substituir a família, sendo necessário planejar o retorno à família.
A reinserção familiar é preconizada no ECA, sendo de responsabilidade do abrigo desenvolver um plano de desligamento e acompanhamento de egressos1. O caso de Manuela mostra uma tentativa do abrigo e da ONG de acompanhar o retorno da adolescente, orientando sua mãe e padrasto. Entretanto, o trabalho realizado não considerou aspectos do funcionamento familiar, bem como não promoveu uma progressiva adaptação, tanto da família quanto da adolescente, através de visitas mais freqüentes e entrevistas sistematizadas. Estes aspectos mostram o pouco preparo dos profissionais da Assistência Social para promover o retorno da adolescente e a ausência do Sistema Judiciário nesse processo. Torna-se importante investir na formação de profissionais que desenvolvam ações planejadas neste tipo de intervenção.
Dessa forma, tendo em vista a necessidade de minimizar os possíveis danos de uma reinserção mal sucedida, torna-se necessário um plano de intervenção que priorize: (1) visitas freqüentes da família às crianças e adolescentes e vice-versa; (2) entrevistas regulares com os abrigados e também com seus familiares; e, (3) visitas domiciliares de um técnico do abrigo à família, a fim de investigar a situação física e econômica, como também a motivação, os sentimentos e os medos relacionados ao retorno do abrigado. A partir desses procedimentos, será possível avaliar objetivamente se, de fato, a situação familiar se modificou durante o abrigamento, assegurando que o risco ao qual a criança e o adolescente estavam expostos não existe mais ou, pelo menos, que a família está buscando minimizá-lo. Esta intervenção possibilitaria um questionamento sobre o significado das práticas abusivas para esta família, atuando de forma preventiva com relação aos demais membros da família. A situação da família não se modificará sem uma intervenção consistente e planejada.
Desenvolver estratégias sólidas e seguras de avaliação e intervenção nos processos de reinserção familiar representa uma tarefa crucial, visto que falhas nesse processo podem levar ao reabrigamento, e conseqüentemente, a novos rompimentos de vínculos afetivos, dificultando ainda mais a próxima tentativa de reinserção. No caso de Manuela, espera-se que a vivência desta nova transição ecológica possa ajudá-la a superar sua história de abuso e promover estratégias positivas de enfrentamento frente a novas situações que possam surgir. Além disso, espera-se que uma conscientização sobre a violência sofrida possa funcionar como um fator de proteção em sua vida, prevenindo a repetição destes comportamentos na educação de seus próprios filhos e quebrando com o ciclo de violência.
Destaca-se a iniciativa daqueles abrigos que estão alerta para essa problemática e que procuram implementar a reinserção de forma responsável. Em muitos casos, os abrigos não possuem um plano de desligamento e acompanhamento de egressos, seja pelas dificuldades em desenvolver esses programas isoladamente ou pela falta de apoio de políticas públicas que os auxiliem. Além disso, as famílias não podem ser esquecidas e nem ignoradas nesse processo, devem ser auxiliadas e preparadas para o retorno de seus filhos. Sabe-se que essa preparação envolve outros aspectos macrossistêmicos complexos, como a baixa escolaridade, falta de emprego, desigualdade social, entre outros. Estes aspectos chamam a atenção para a responsabilidade dos órgãos governamentais que devem estar envolvidos e focalizar de maneira mais direta a vulnerabilidade das famílias, investindo em educação, empregos, cursos profissionalizantes, programas de geração de renda, entre outras estratégias. Assim, possibilitaria uma progressiva e efetiva melhora na qualidade de vida da população, fazendo com que, a médio e longo prazo, as famílias estejam mais capacitadas para criar e educar suas crianças e seus adolescentes.
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Recebido em:18/06/2007
Modificado em: 16/11/2007
Aprovado em: 05/12/2007
* Esse artigo está baseado na Dissertação de Mestrado "Instituições e abrigo, família e redes de apoio social e afetivo em transições ecológicas na adolescência", defendida em março de 2006, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento/UFRGS, realizado pela primeira autora, sob orientação da segunda. Apoio do CNPq.