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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.17 n.3 São Paulo dez. 2007

 

ATUALIZAÇÃO CURRENT COMMENTS

 

Família e saúde na França do século XVIII ao século XXI

 

Family and Health in France from the 18th to the 21st Centuries

 

 

Jean-Pierre Goubert

Prof. Dr. em História da Saúde na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris VI. Palestra proferida no Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, em 22 de março de 2006. Tradução: Elaine Pedreira Rabinovich

 

 


RESUMO

Entre o fim do século XVIII e o começo do século XXI, a sociedade francesa conheceu profundas mudanças. O modelo de família, assim como o nível de saúde, testemunham tais mudanças. Entretanto, mesmo à distância de dois séculos, família e saúde permanecem dois "pilares" da sociedade. Tal paradoxo é discutido em termos da "longa duração", sendo definidas as características, diferenças e semelhanças da família e da saúde no decorrer do tempo. Conclui-se que a família permanece a guardiã da saúde, recorrendo atualmente a uma medicina de tipo científica.

Palavras-chave: Família. Saúde. França.


ABSTRACT

Between the end of the 18th and beginning of the 21st centuries, the French society underwent deep changes. The family model, as well as the level of health, witnessed such changes. However, even with a distance of two centuries, family and health remain two "pillars" of society. This paradox is discussed in terms of "long duration", and the characteristics, differences and similarities of family and health throughout time are defined. The conclusion is that the family continues to be the guardian of health, currently resorting to scientific medicine.

Keywords: Family. Health. France.


 

 

Entre o fim do século XVII e o fim do século XX, a sociedade francesa conheceu profundas mudanças. O modelo de família, assim como o nível de saúde, testemunha tais mudanças. Entretanto, mesmo à distância de dois séculos, família e saúde permanecem dois valores essenciais, duas referências principais, dois "pilares" da sociedade. Tal é o paradoxo que proponho elucidar, apesar de ser uma comparação entre dois séculos distantes entre si, colocando a questão de sua transformação histórica na "longa duração" 1. Para isto, definiremos as características da família e da saúde de 1780 a 2000, discernindo em que diferem e como sobrevivem até nossos dias.

Família e saúde na França no final do século XVIII

Nesta época, duas características principais definiam a situação da família e da saúde:

1. a pregnância da Igreja católica romana;

2. a precariedade de vida da maioria dos franceses.

A pregnância da Igreja católica

Em uma época em que reina uma monarquia absoluta, de direito divino, e onde o rei é sagrado como um bispo, a religião católica romana é considerada a única verdadeira religião. A referência religiosa é central, onipresente, vivida no cotidiano. Os três grandes ritos de passagem – nascimento, união, morte – não poderiam ser concebidos sem a intervenção do padre. Ao nascimento físico, corresponde o batismo; à união, o casamento unicamente religioso; e à morte, o enterro em terra consagrada.

A sexualidade humana apenas podia se exercer no quadro do casamento, fonte de procriação de novos católicos. Os esposos se casam para toda a vida e a mulher deve obediência ao seu marido. Tanto quanto possível, toda família francesa e, portanto, católica, deve existir à imagem da Sagrada Família: unida, submissa ao destino de Deus, preocupada em assegurar a sua saúde, chamada a assegurar a perpetuação da espécie.

Como o mais importante é a saúde da alma, o padre católico tem um papel essencial. Sua presença é indispensável. Apenas ele está em condição de confessar e de perdoar os pecados e fornecer os sacramentos da Igreja, do nascimento até a morte. Igualmente, o território "natural" onde acontece o seu magistério é a paróquia que congrega as suas ovelhas. Ele é, assim, o pastor da tropa de fiéis. A hierarquia das três ordens – clero, nobreza, Terceiro Estado – reflete a predominância da Igreja.

No entanto, a família, nuclear ou conjugal, formada pelos dois pais e por seus filhos, não é a única que existe. Em grandes regiões, encontram-se famílias extensas, compreendendo tios e tias, sobrinhos e sobrinhas, algumas vezes também primos. Estreita ou extensa, a família é do tipo biológico e religioso. Como tal, ela forma o pilar central do edifício que constitui então uma sociedade fundada sobre a fé, sobre uma religião da salvação (salut).

Nestas condições, o que importa primeiramente não é saúde (santé)2 do corpo, mas a sua salvação. O corpo é considerado o "envelope carnal" da alma. Por causa disto, e apenas por isso, ele é cuidado segundo uma dupla tradição. Uma é pré-cristã, que se funda sobre uma "medicina dos humores", tanto popular quanto erudita, e que vê na saúde um equilíbrio entre quatro humores do corpo e, na doença, o seu desequilíbrio. A outra tradição é de tipo cristão. Trata-se de alimentar os que têm fome, vestir os que estão nus, dar um teto aos que não o possuem.

Entretanto, um século depois, a sociedade dominante não se espelha mais na imagem de um Cristo pobre. Havia o costume de distinguir entre os pobres "bons" e os "maus". Entre esses, figuravam os mendigos, os vagabundos, os representantes da ralé do povo, eventuais fatores de distúrbios. Em nome da ordem social, as autoridades se dedicam a persegui-los e a trancá-los, para uma minoria em estabelecimentos denominados "hospitais gerais", enquanto os doentes eram recolhidos aos sanatórios (hôtel-Dieu).1

Fundados para assegurar a sua salvação por pessoas ricas, os estabelecimentos hospitalares eram mantidos e gerenciados pela Igreja; e são religiosas, ajudadas por domésticas (laicas) que asseguram os cuidados aos pobres doentes.

De acordo com os preceitos da "Santa Igreja", as pessoas hospitalizadas devem, na medida do possível, rezar, se confessar, comungar e assistir à missa dominical. E, apenas o seu estado de saúde avaliado como muito deficiente permite escapar aos "dias magros", o da sexta-feira e os da Quaresma.

Pela mesma razão – a da caridade cristã – existem distribuições alimentares, mais frequentemente à base de sopas, em particular durante o inverno, ou em caso de escassez, quando os infelizes não têm mais suficientemente do que se alimentar.

Precariedade da vida da maioria dos franceses

Em uma sociedade francesa até então 85% rural e pobre em sua maioria, a principal preocupação na vida prática era assegurar a alimentação, prevenindo-se dos azares climáticos susceptíveis de arruinar as colheitas e, portanto, a renda.

Mesmo que isto choque a nossa mentalidade atual, a doença e a morte, inclusive a de uma criança, são tão comuns em uma época em que as epidemias frequentemente grassavam que fazem parte do cotidiano. Que o indivíduo tenha sido batizado e que ele tenha recebido os últimos sacramentos, eis o que era essencial.

No cotidiano, na prática, o que realmente importa é satisfazer as necessidades primárias, começando pela alimentação, base da saúde para a família. O camponês, a esposa, a mãe, abastece-se do que tem de melhor na fazenda. Frutas e legumes da estação estão à sua disposição, assim como animais do galinheiro e porcos. As refeições não são variadas. A sopa, às vezes acrescida de um pedaço de toicinho, com um pedaço de pão ou bolo, constitui a base da refeição cotidiana. Segundo a nossa dietética atual, esta alimentação parece insuficiente em quantidade (calorias) e desequilibrada (insuficiência de proteínas e de lipídios). Além do mais, este regime alimentar depende das estações e da renda, que diferem segundo os anos. Enfim, a qualidade sanitária deixava a desejar, começando pela água que era a bebida cotidiana, enquanto o vinho permanecia o apanágio dos camponeses com boa situação econômica e de uma sociedade favorecida economicamente. Insuficiente, frequentemente incerta, esta alimentação ainda é mais precária por alimentar pessoas que utilizam uma grande força física. 3,4

A isto se acrescenta que as bocas para alimentar são numerosas na ausência de limitação de nascimentos, salvo – precisamente – na alta nobreza e na grande burguesia. Como as famílias com 5 a 6 crianças era a maioria, o desmame de bebês colocava problemas. Mingaus e sopas tinham o risco de se tornarem indigestos. E, também porque, conforme os preceitos da Igreja, as mulheres tinham um filho a cada 18 meses ou a cada 2 anos, e deviam trabalhar durante a sua gravidez ou retornar ao trabalho logo após o parto 5.

Nestas condições, quando surge uma epidemia ou alguma doença infecciosa, seja a rubéola, a caxumba, a escarlatina, a varíola, são organismos frequentemente já enfraquecidos, tanto o das crianças quanto o dos adultos, que sofrem o seu assédio. A precariedade é, portanto, dupla, não apenas alimentar mas também sanitária.

Os riscos expostos acima ocorrem em particular quando dos partos. Assunto de mulheres, de onde o homem está em geral excluído, o parto acontece na moradia, o mais frequentemente sem a presença de um médico. Está presente uma comadre, quer dizer, uma vizinha do vilarejo, geralmente idosa e que teve ela própria várias crianças e que é avaliada como tendo experiência na questão. Também a mortinatalidade é elevada, particularmente no caso de um mau posicionamento da criança ou de distoxia.

Para os adultos ou adolescentes, os perigos apresentados pelas doenças são também consideráveis, mesmo se eles não desidratam tão rapidamente quanto os bebês. Há legiões de parasitas, começando pelas pulgas, os piolhos e os vermes. As infecções microbianas e virais se propagam rapidamente em caso de ajuntamentos, por exemplo, na missa aos domingos, nas procissões ou nas rezas em comum. Ou ainda, quando movimentos de tropas militares propagam o tifo e as doenças venéreas. Tal situação pode ser resumida em uma frase: a grande maioria dos franceses não ultrapassa a idade de 40 anos.

Não apenas as condições alimentares, mas as de higiene são geralmente deficitárias. Sem esquecer que, em caso de escassez de víveres, inúmeros camponeses comem qualquer coisa, aí compreendendo trigo verde ou centeio bichado. Sem, enfim, omitir que a má qualidade da água produzia epidemias de tifo e diarréias crônicas.6

Contudo, isto não significa que as famílias não cuidavam de si mesmas em caso de doença. Existiam remédios populares, geralmente à base de plantas e de chás, outras vezes à base de vinho, especiarias e de álcool. Tinham por meta expulsar os "humores perniciosos", julgados como causadores da doença. Ou ainda, o costume era fazer com que o doente suasse; sobre ele, colocam-se acolchoados e cobertores, sempre com o mesmo objetivo de expulsar os humores. À base de purgantes, lavagens intestinais e de sangrias, a medicina não procede de modo diferente. A esta auto-medicação dominante, acrescentam-se os conselhos e os remédios propostos por curandeiros e curandeiras, bruxos e bruxas e outros leitores de sorte. Sem esquecer as rezas dirigidas a Deus, aos santos e à Virgem.

Contudo, no século XVIII, século das Luzes, da Enciclopédia e da medicina de observação, uma minoria de franceses, mesmo sendo católicos, podem ter uma atitude diferente quanto à saúde, em particular nas grandes cidades. Lá se encontram médicos, mestres experientes em cirurgia, parteiras diplomadas, um número relativamente numeroso de farmácias, assim como sanatórios. As premissas de uma medicalização da saúde emergem, ao menos para as elites abonadas e cultas, que permanecem, contudo, ávidas por remédios que nada têm de medicamentosos!

Na sociedade francesa de há dois séculos, a esperança na salvação vem temperar a precariedade vivida, em que a presença da morte e da doença nas famílias constitui o símbolo. Guardiã da fé, a Igreja católica vê na instituição familiar, de acordo com os seus desígnios, a garantia da ordem divina. Atarefada em viver, ou mesmo em sobreviver, a maioria da sociedade tem o olhar dirigido para a salvação, sem esquecer de prover a sua saúde, pelo menos de prover a sua alimentação terrestre.

Nas elites, se o saber médico tende a progredir, os meios terapêuticos ainda faltam, do que os médicos têm consciência e lamentam. Falando de um modo geral, a responsabilidade pelos cuidados da sociedade permanece de tipo religioso. A filiação biológica constitui a norma, a família é a base do edifício e a saúde é relativamente secundária7.

Família e saúde na França no começo do século XXI

Como é hoje em dia? A norma biológica está, sob muitos aspectos, ultrapassada. A família instituída explodiu. A saúde tornou-se uma prioridade. E a pregnância da igreja católica não mais existe, salvo para uma minoria. Tudo somado, uma verdadeira revolução ocorreu.

Outrora 85% rural, a sociedade francesa se tornou 93% urbana. Outrora majoritariamente pobre, ela possui um nível de vida entre os mais elevados no mundo, mesmo no mundo ocidental. Outrora único modo, o casamento católico diz respeito apenas a uma minoria. Outrora uma monarquia de direito divino, a França se tornou uma democracia republicana. O casamento civil existe há muito tempo, assim como o divórcio, entendido ocorrer por consentimento mútuo. Há alguns anos apareceu o PACS – Pacto Civil de Solidariedade – tanto para os casais heterossexuais quanto para os casais homossexuais. Mas o que domina na geração jovem (20-35 anos) é a co-habitação. O casamento acontece, se for o caso, quando um nascimento é anunciado ou já ocorreu. Instituição bem estabelecida antigamente e até há 40 ou 50 anos, o casamento, como a religião, se tornou uma questão individual, onde a livre escolha é a regra. Sem esquecer os "casamentos forçados", que se tornam freqüentes entre os franceses de origem magrebiana e africana, devido a que a França, em razão de seu passado colonial, tornou-se pluriétnica 8.

Outrora precária e frágil, o nível da saúde dos franceses se tornou um dos mais elevados do mundo, o segundo depois do Japão, levando em conta a esperança de vida no nascimento que dobrou em dois séculos. A alimentação? Ela coloca apenas problemas menores em comparação com a situação de outrora; e isso mesmo se desequilíbrios subsistem, dando conta do sobrepeso ou mesmo obesidade de uma minoria crescente de franceses. Mesmo se, também, "restaurantes grátis" oferecem uma quantidade crescente de refeições a cada inverno.

A precariedade sanitária? Ela não existe mais, e é ainda demais que exista para uma minoria vítima de desemprego, marca indelével de uma sociedade onde crescem as diferenças sociais.

Indubitavelmente, família e saúde se transformaram amplamente, mesmo que inversamente, de dois séculos até hoje. O divórcio está banalizado ao ponto de se referir a 40% do número de casamentos em 2004 (igual à taxa de divórcio) na escala nacional e mais de 60% na região parisiense (11,2 milhões de habitantes para 62,7 milhões na França). Os progressos da democracia (social), a igualdade dos sexos, o controle da contracepção e o divórcio por consentimento mútuo aboliram as restrições e permitiram a liberdade de escolha. O casamento, antes indissolúvel, tornou-se um contrato de caráter geralmente temporário e a instituição tradicional da família conjugal foi substituída pela procura de satisfação pessoal. De rupturas em reconstituições, os percursos de vida se diversificam e o parentesco se desdobra em variantes às vezes complexas, ou mesmo, inéditas.9

Assim, as crianças podem crescer sucessivamente no seio de uma família conjugal tradicional, depois monoparental e, por fim, recomposta. Basta que haja um divórcio entre os seus pais e que um dos dois pais tenha a seguir a guarda das crianças e, então, se o pai que tem a guarda encontrar um novo companheiro ou companheira, este ou esta tendo filhos, passa a fazer parte de uma família recomposta, mesmo na ausência de casamento. Deste modo, a norma antiga, segundo a qual pais biológicos e pais afetivos eram os mesmos com a bênção da Igreja ou então por consentimento da autoridade laica (casamento civil), parece em desuso.8

O número de casamentos, civis e/ ou religiosos, está em baixa constante e regular (-5,9% em 2004 em relação a 2003), enquanto que a porcentagem de PACSs (Pacto Civil de Solidariedade) não cessa de aumentar (+20% em relação em 2003).

A idade da mulher no primeiro parto só faz avançar: em 2004, uma mãe sobre duas tinha tido o primeiro parto com mais de 30 anos. Isso porque 75% das mulheres trabalham e têm um emprego e o uso da contracepção lhes permite, assim, adiar a sua primeira gravidez.

O número crescente de adoções e de recurso à procriação assistida (11000 por ano, 15% dos casais sendo inférteis) coloca em evidência as funções de genitor e de pai, sem esquecer o aumento das famílias recompostas. Outra novidade, devida a uma mudança de costumes tornada possível pelas inovações científicas, as famílias homoparentais existem de fato: eram mais de 10000 na França em 2004. Contudo, seu direito à adoção e à procriação assistida suscita ainda polêmicas particularmente vivas.

A instituição tradicional da família, portanto, explodiu. Outrora estável ou relativamente estável, em uma época onde as normas biológicas eram intangíveis ou reputadas como tal sob a palmatória da Igreja católica e onde a mulher tinha apenas um papel secundário, a família atual escapa de toda definição unívoca. O modo de vida familiar "à la carte" se caracteriza pelo seu movimento e por sua instabilidade. As mutações familiares andam paralelas aos achados científicos, com as mudanças sociais e, sobretudo, com as aquisições femininas: tornadas autônomas financeira e juridicamente, as mulheres não são mais estigmatizadas quando aspiram à realização profissional e sentimental. Mas esta liberação tem seus revezes. Uma separação, um divórcio significa frequentemente encargos mais pesados para a mãe que obtém a guarda de seus filhos. Como somente um terço das mães conseguem ter um novo companheiro, o estatuto de chefe de família monoparental rima frequentemente com pauperização.

O declínio do casamento e a fragilidade das uniões significam, no entanto, o desaparecimento da família? Se acreditarmos nos resultados de pesquisas realizadas em 1998 e em 2003, parece que não. Com efeito, entre os valores preferidos dos franceses, a família se situa no primeiro lugar, antes da realização profissional e da saúde.

Certamente, as normas e as práticas mudaram consideravelmente em dois séculos. Mas a família permanece um valor essencial, um valor de refúgio, um quadro de solidariedade face à rapidez das mudanças de toda ordem e ao estresse imposto pelo trabalho e pela vida urbana.

Acontece que as formas da família se tornaram mais complexas, mais mutantes, mais difíceis de serem discernidas. Eis alguns índices. O número de famílias monoparentais aumentou 20% em 10 anos. Aquelas que recebem salário mínimo (RMI= Revenue Minimum d'Insertion) aumentaram 53%. No total, cerca de 25% das crianças vivem em lares monoparentais. 55% dessas famílias são de baixa renda; e 14% vivem abaixo de limiar da pobreza. Entre os pais sozinhos, 86% são mulheres das quais ¼ não tem nenhum diploma. 54% das mães tendo uma criança de menos de 3 anos têm um emprego, para 71% das que convivem maritalmente (dados de 2004). O elo entre monoparentalidade e precariedade é, portanto, forte, particularmente para as mães. Bastante logicamente, o nível de saúde, o grau de conforto ou desconforto da moradia e o acesso aos cuidados médicos estão ligados com a precariedade típica das famílias monoparentais, principalmente femininas.

Salvo para uma minoria desfavorecida, a procura de um teto ou de alimentação não constitui mais hoje em dia uma preocupação cotidiana. As epidemias de outrora desapareceram. Permanecem as doenças cardiovasculares e os diferentes tipos de câncer. Uma medicina cientificamente fundamentada, e amplamente exercida, dispondo de um arsenal terapêutico frequentemente eficaz relegou, aparentemente, a onipresença da morte ao esquecimento. A moda é "se fazer" jovem e ativo, cuidar da estética, pelo menos para aqueles e aquelas que dispõem dos meios!

A laicização dos costumes e das instituições (casamento, ensino, medicina, hospital, enterro) fez escapar da marca da Igreja católica o modelo antigo de família.10 Família, profissão (emprego) e saúde constituem os valores refúgios de uma sociedade em movimento que tenta se adaptar às injunções de sua época. Mesmo transformada, móvel e multiforme, a família, aí compreendida a homoparental, permanece, em geral não sacramentada ou mesmo santificada. Em nome da solidariedade, ela permanece a guardiã da saúde física e moral, mesmo se a salvação, na França, não representa apenas o apanágio de uma minoria de cristãos, católicos e protestantes, mas também de muçulmanos, pois estes últimos são mais de 3 milhões atualmente.

Se, globalmente, a esperança de vida ao nascimento dobrou na França: de 40 para 80 anos, enquanto que as taxas de mortalidade neonatal, infantil e global, baixaram mais ainda, as diferenças sociais entre pessoas favorecidas e desfavorecidas tendem hoje a crescer. Instituída há pouco, a C.M.U. (Cobertura Médica Universal), destinada aos mais desprovidos, não responde realmente ao seu objetivo: somente alguns cuidados ou um certo número de cuidados, por exemplo, para os dentes ou olhos, são gratuitamente oferecidos.

Quanto a aqueles ou aquelas que só dispõem da Previdência Social, seus gastos medicais são apenas em parte reembolsados, por exemplo, 65% para os medicamentos. Para ter o direito a um reembolso de 95%, é necessário se associar a um fundo mútuo, o que implica em uma relativa riqueza.

A separação social é particularmente evidente entre ricos e pobres nas pessoas idosas que têm uma aposentadoria baixa e quando seus filhos por ter salários baixos, não podem ajudar a pagar uma Casa de Repouso para Idosos, medicalizada ou não, nos casos em que a falta de autonomia, total ou parcial, cria limitações em seu viver cotidiano.

A causa essencial desta mudança considerável reside no desenvolvimento econômico do país, unido às mudanças científicas e técnicas e à laicização da vida em sociedade. A busca da santidade foi substituída pela busca da saúde do corpo. O aumento do nível de vida global permitiu chegar a resultados positivos, impensáveis há dois séculos atrás ou mesmo há metade de um século. O desenvolvimento do poder do Estado, a realização de um sistema de previdência social (1945) e de uma legislação social contribuiu largamente para este movimento. Em conseqüência, o nível de vida média melhorou consideravelmente.

Contudo, as diferenças sociais existem ou mesmo se aprofundam entre os mais favorecidos e os mais desfavorecidos. Assim, a cidade de Paris tornou-se inacessível à imensa maioria dos habitantes da região em razão do preço elevado das moradias. No domínio médico, um fosso existe segundo o preço das consultas ditas do setor 1 e as do setor II, os honorários dos especialistas podem variar de uma a três vezes, por exemplo, para os oftalmologistas e dentistas. Também os mais desprovidos, em caso de doença, procuram o Pronto Socorro dos hospitais públicos, que asseguram gratuitamente os cuidados necessários, mesmo quando não se trata de uma emergência em sentido literal.

Outro índice dessas diferenças sociais, a esperança de vida dos grupos sociais é diferente segundo se trata da população operária ou da burguesia. Em média, os operários têm uma esperança de vida de cerca de 12 anos a menos do que a dos grupos favorecidos, entre os quais figuram os padres e os professores.

Malgrado as mudanças consideráveis ocorridas em dois séculos, a relação entre família e saúde se mantém. Certamente, não há mais um único modelo da família de tipo cristão-católica como outrora. E a saúde não é mais tão precária. Entretanto, mesmo na nossa época de igualdade entre os sexos, a mãe (ou a sogra, ou a companheira do momento) realiza o essencial das tarefas domésticas. Faz as compras e arruma a casa, prepara as refeições, ao menos a da noite em razão da prática dominante da "jornada contínua" nas grandes cidades. Ela cuida das crianças. Ela as leva ao médico. Ela cuida delas em casa no caso de um resfriado ou de um machucado, após ter consultado o farmacêutico do bairro.

Assim, o tipo de economia, o tipo de sociedade, o tipo de mentalidade mudaram com o tempo, a família não permanece o que era, mas o que ela se tornou – adaptada e móvel. Ela permanece a base sobre a qual se constrói uma sociedade secularizada, com o predomínio, de certo modo, da norma biológica, individualista, pronta a procurar uma satisfação pessoal através do sucesso no percurso profissional e a manutenção apenas da saúde.

Família e saúde se tornaram assim secularizadas, ou mesmo laicizadas. O modelo tradicional de família explodiu em múltiplas formas. Graças à elevação do nível de vida médio, aos preceitos científicos e aos progressos sociais, a saúde, o nível de saúde, melhorou. A despeito dessas mudanças maiores, a família está longe de ter perdido o seu valor como espaço de solidariedade. Pelo seu lado, a saúde se tornou um valor essencial. Enfim, a família permanece a guardiã da saúde, recorrendo a uma medicina de tipo científica. Valores eternos e universais, transformaram-se sem se perderem.

 

REFERÊNCIAS

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9. Godelier M. Métamorphoses de la parenté. Paris : Fayard ; 2004.        [ Links ]

10. Ariès P, Duby G. Histoire de la vie privée. Paris: Seuil; 1986.        [ Links ]

 

 

Recebido em:10/04/2007
Modificado em: 30/06/2007
Aprovado em: 10/07/2007

 

 

1 A origem etimológica dos conceitos apresentados é a mesma, re-afirmando a conexão religiosa ligada à saúde, assim como o hospital recebeu inicialmente o nome de hospedaria de Deus.

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