Journal of Human Growth and Development
ISSN 0104-1282
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.20 no.1 São Paulo abr. 2010
PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH
Saúde mental, democracia e responsabilidade
Mental health, democracy and responsability
Alberto Olavo Advíncula Reis
Docente do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da USP. Coordenador do grupo de pesquisa CNPq Laboratório de Saúde Mental Coletiva - LASAMEC. Orientador do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, área de concentração Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da FSP/USP
RESUMO
No presente artigo se abordam as relações entre saúde mental e as tarefas atuais da democracia no Brasil e, nesse contexto, os desafios que os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico representam para o campo da saúde mental. Considera-se que os Manicômios Judiciários, sua lógica, sua população constituem uma das últimas fronteiras relativamente resistentes ao avanço do movimento antimanicomial. Com sua especificidade e ambiguidade, entre o crime e a loucura, eles produzem e reproduzem de maneira prática o mito da periculosidade. Nesse contexto, o artigo examina, especificamente, a questão da responsabilidade do louco infrator.
Palavras-chave: saúde mental; democracia; manicômios judiciários, responsabilidade.
ABSTRACT
In this article the relationships between mental health and the tasks of the democracy in Brazil are focused. In such context, the challenges that the Custody and Psychiatric Treatment Hospitals present to the mental health field are studied. The Judiciaries Asylum, their logic and their population are considered as the last resistant border against the anti-asylum movement. Such institutions, placed between madness and crime, produce and reproduce, specifically and ambiguously, the myth of the danger/aggressiveness. Particularly in this context, the article analyzes the question of the responsibility of the author of infractions due to mental disorder.
Key words: mental health, democracy, asylum judiciary, responsibility.
INTRODUÇÃO
O I Simpósio Internacional sobre Manicômios Judiciários e Saúde Mental foi inaugurado sob a inspiração de dois termos, que têm guiado historicamente o movimento que transformou o quadro institucional e a cultura no interior dos quais a loucura tem se assentado: Saúde Mental e Democracia.
Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) ou mais propriamente os Manicômios Judiciários constituem uma das últimas fronteiras que se mantém em grande parte selvagem e inóspita a uma compreensão mais humana dos fenômenos que nela se encerram. E não é sem razão que Correia, Lima e Alves1 afirmam que "a Reforma Psiquiátrica não tem contemplado a reorientação das práticas assistenciais desenvolvidas no âmbito dos HCTP". (p.10).
Dessa forma não foi por mero acaso que no fechar da primeira década do século XXI, as mais diversas autoridades, Secretário de Estado, Juízes, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, Gestores, Psicólogos, Médicos, Professores e Pesquisadores brasileiros e estrangeiros, profissionais e estudantes das diversas áreas que confluem e bordejam esse turbulento e majestoso rio da saúde mental se encontraram na Faculdade de Saúde Pública da USP para debater e refletir sobre o tema Manicômios Judiciários e Saúde.
Sabe-se que os antigos gregos, que nos legaram alguns costumes e uma certa maneira de se pensar, ensinam que a expressão Simpósio designa a segunda parte de um banquete; na verdade de um quase banquete. Um simpósio refere-se ao costume que tinham os antigos gregos de se sentarem em volta de uma mesa para beber e conversar. Quando se bebe se conversa muito e livremente. A bebida permite que se fale facilmente e dá paciência e tempo para que se escutem os outros.
Nesses três dias em que tantas pessoas se encontraram reunidas, se conversou, se trocaram idéias e se bebeu nas fontes mais diversas. Na introdução ao Simpósio foi dito que seu intento era debater pontos de vista diferenciados, expor entendimentos diversificados e refletir de maneira ampla a respeito dessa realidade que se constitui no espaço sombrio onde se encontram e se abraçam o crime e a loucura, as marginalizações duplicadas, as desumanidades desdobradas.
Entendeu-se que essa realidade, desafiadora e complexa, recusa soluções simples e necessita encontrar respostas de que muitas vezes sequer se imagina o feitio. Respostas genuínas raramente são respostas prontas. O que possibilitou a congregação das pessoas foi o fato de que alguma coisa comum as interessava. Queriam elaborar perguntas e produzir respostas. Essas pessoas estavam movidas pela crença de que as respostas às questões do mundo - às vezes tão belo e que outras vezes se mostra com suas assustadoras infelicidades - só têm chance de surgirem nas trocas de relatos de experiências, na compreensão acerca dos significados e das conseqüências das transgressões sociais que se dão a partir do sujeito mergulhado na loucura, na maneira como as sociedades têm excluído ou acolhido os loucos de todos os gêneros.
Acreditavam que a chance para que tais intercâmbios fossem frutíferos tinha por condição a existência de um ambiente democrático, tolerante e sincero. Afinal, como se pode combater a intolerância sendo intolerante com o contraditório? Como ser determinado se não se é sincero? Como combater a alienação se não se defende aquilo em que se acredita?
Tolerância e convicção foram os princípios que se desejou que guiassem os trabalhos e os debates nos três dias que durou o Simpósio.
Desejou-se que o Simpósio fosse um exercício muito particular de democracia. Na verdade, um exercício duplo. De um lado, um exercício democrático no ouvir e no falar, no contrapor e no retorquir e, de outro lado, uma intenção que se consubstanciasse numa participação democrática de se fazer avançar ações no interior da sociedade e que fossem capazes de contribuir para o resgate da dignidade daqueles que dela se viram privados. Tratava-se de definir as possibilidades de uma ação restauradora da responsabilidade do alienado, isto é, da possibilidade de responder de si e por si daqueles que no processo contínuo de alienação se viram dela destituídos.
A loucura, a alienação mental, mas não exclusivamente ela, é um fenômeno essencialmente ético quaisquer que sejam os ângulos que sobre ela incida o olhar.2 A loucura é um fenômeno decorrente da patologia da ética na medida em que se entende por ética a assumpção da responsabilidade existente no comércio que os homens estabelecem entre si. A loucura é a estratégia de elisão da necessidade de se responder de si. Ora, responder de si é fundamento conseqüente da subjetividade! E, é precisamente na elisão da responsabilidade, no refúgio na ignorância, na afirmação do desconhecimento, na vontade ativa de ignorar, no conforto da inocência adâmica que o homem se perde como sujeito e põe a construir laços relacionais deteriorados e desprovidos de autenticidade. Freud mostrou que é no delírio paranóico3 que o sujeito encontra meio para não reconhecer seu desejo; é na divisão da consciência que o perverso encontra a possibilidade de se divorciar de seu conhecimento.
É nesse sentido que Ferraz4 afirma que "muitos autores - em particular os lacanianos - vêem a verdadeira essência da perversão formulada no artigo Fetichismo de 1927, quando a figura da recusa de castração ganha a cena, associando-se à conseqüente noção de clivagem do ego". (p.24).
Restaurar onde quer que se localize a humanidade deteriorada é o termo principal do exercício e do avanço democrático que se impõem como tarefa nos dias de hoje uma vez que já se encontram consolidados os termos institucionais e estatutários pelos quais se bateu boa parte do povo brasileiro.
A tarefa democrática que se oferece ao campo da saúde mental é a cerdidura dos fios da cidadania, sobretudo daqueles para os quais eles se apresentam finos, desgastados ou rompidos como é o caso dos que jazem nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e que, se insiste, não sem razão, em denominá-los manicômios judiciários, numa clara afirmação de que as transformações a serem operadas num país democrático não podem e não devem ser apenas nominais.
Essa tessitura tem sido, felizmente, trabalho de muitos e é conseqüência de um curso da história que tem sua raiz no movimento de luta antimanicomial, na Lei de Reforma Psiquiátrica, nas iniciativas que culminaram com a constituição do PAI-PJ em Minas Gerais e do PAI-LI em Goiás, nos movimentos atualmente em curso em São Paulo. São iniciativas que tem propiciado a transformação, mesmo que incipiente, do quadro desolador da realidade dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico em São Paulo.
Cada um desses termos, "hospital", "custódia", "tratamento", "psiquiatria", mereceria por si só uma ampla reflexão; demandaria que fossem todos eles confrontados com a realidade dos transgressores da lei que vivem em estado de loucura. Alguns dados parciais sobre o perfil da população dos internos do Juqueri possibilitam antever o embasamento para essas liças. As pessoas sujeitas à medida de segurança internadas nos HCTP têm em média 38 anos de idade e, desse ponto de vista, pessoas no vigor da vida. Quando se retém o tipo de delito por elas cometido, vê-se um quadro bastante interessante posto que se 37% deles se referem a atentados contra a vida, tem-se que, em quase igual proporção, 35% dos delitos dizem respeito a atentados contra o patrimônio. Consequentemente, há de se distinguir entre os delitos de "hostilidade e a violência instrumental", aos quais se refere Eglander (2006)5. Esse último tipo de delito é cometido, sobretudo pela população mais jovem. Além do horizonte da loucura, há de se pensar, nesse contexto, o fato de se ampliarem cada vez mais "as contradições que atravessam a dinâmica das novas gerações, entre a informação de que elas dispõem sobre o acesso a pautas de consumo cada vez mais sofisticadas, através dos meios de comunicação e dos shoppings, e a real impossibilidade de ter acesso a esse consumo através de canais lícitos"6 (p.199). Vislumbra-se nesses números um debate sobre a pobreza, a lei e a loucura.
Quando se tem em perspectiva as variáveis sócio-econômicas observa-se que a população dos manicômios judiciários é caracterizada por um nível de escolaridade baixo, predominando significativamente o 1º grau incompleto, por uma inserção profissional pouco qualificada, tipo servente de pedreiro, e, finalmente, por um sedentarismo marcado pela ausência de fluxo migratório e dispersão geográfica. Trata-se, na maioria dos casos, de pessoas que residem nas proximidades das localidades onde nasceram. Se se estimam os parâmetros populacionais por esses dados chegar-se-ia à conclusão apressada de que quem enlouquece e comete delito são pessoas sem estudo, com nível socioprofissional pouco qualificado o que sugere, nesses termos, que a loucura se define essencialmente como questão sócio-econômica.
Nesse caso, não se necessitaria de HCTPs, mas simplesmente de educação e trabalho qualificado. Por último, vê-se que os residentes não são loucos errantes que se mostram nas figuras de Brueghel ou Bosch, mas pessoas que permanecem em suas comunidades, sem muito se distanciarem dos lugares onde nasceram e teceram seus laços. Vê-se de imediato que os Manicômios Judiciários não são instituições exatamente equivalentes às instituições de isolamento e exclusão.
Falta-lhes, em algum nível, o que Foucault denominou como poder do "quadrilhamento" disciplinar, isto é, "as instâncias de controle individual funcional num duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal) e o da determinação coercitiva"7. (p.165). Não parece ser diferente a compreensão de Maciel8 quando ela precisa que "o conceito tecido por Erving Goffman de 'instituição total' não consegue explicar satisfatoriamente as complexidades existentes num lugar onde se podem reunir características tão peculiares: é um espaço prisional e asilar, penitenciário e hospitalar e para onde se enviam os culpados e inocentes, ao mesmo tempo, pois a prisão recebe os primeiros e o hospício, os inocentes." (p.1). A realidade institucional atual dos Manicômios Judiciários indica que sob a determinação da figura das Medidas de Segurança se amontoam pessoas que vivem num espaço real e simbólico, em que se cotejam, sem limites precisos, os mais diversos fenômenos pertencentes ao que no século XIX se denominavam o crime, a loucura e o vício.
Esses dados aproximativos por si só já permitem dizer que os manicômios judiciários e seus efeitos marcam antes de tudo um lugar de ambigüidade e instabilidade no interior da atual política de saúde mental brasileira.
Essas ambigüidades se refletem e surgem nos mais diversos níveis:
No plano jurídico e administrativo são estabelecimentos ou equipamentos voltados à saúde mental que, em grande parte dos Estados da Federação, não se ligam ao Ministério ou Secretarias de Saúde, mas estão na dependência da esfera da Justiça e, como tais, não pertencem organicamente ao SUS.
A medida de segurança, que é o nome do dispositivo ao qual se encontra submetido o paciente, tem por cerne o conceito de periculosidade. "Do ponto de vista jurídico, o portador de doença mental ou comprometimento cognitivo, comprovado por perícia médica, ao cometer um crime, não é considerado autor do ato, por ser julgado inimputável, incapaz de distinguir o caráter ilícito dos próprios atos.
Nesses casos, a lei determina a absolvição com aplicação de medida de segurança (MS), com prazo indeterminado, estando sujeito à perícia médica indicatória de cessação de periculosidade." 9. É sobre a realização de tal noção que o médico psiquiatra é chamado a opinar e oficializar muito embora não se trate de um conceito psicológico, mas, no limite, de uma noção jurídica,evidentemente não calcada no principio retributivo do direito posto que a periculosidade é a mera antecipação probabilística de um evento não realizado no presente.
O efeito imediato desta ambivalência é a dissonância criada no interior da própria subjetividade do médico que é chamado a decidir psiquiatricamente sobre uma questão jurídica carregada de conseqüências que podem recair como responsabilidade ou ameaça sobre seus ombros. Sabe-se que a medida de segurança se reveste de um caráter perverso porque pode prolongar ad infinitum a "pena" do paciente, transformando-a numa prisão perpétua. Mas por outro lado, aboli-la não implicaria colocar em discussão o próprio estatuto da inimputabilidade e, neste caso, responsabilizar criminalmente o "louco" pelo delito cometido? É possível se fazer alguma distinção entre responsabilidade que marca e define a pessoa como sujeito de direito e a responsabilidade penal? Seria possível distinguir responsabilidade ética, psicológica e social de culpabilidade penal? Em que medida punir o infrator "louco" não lhe traria apenas a recompensa gozosa e masoquista propiciada pelo supereu?
Não é tarefa fácil distinguir entre as sutilezas que definem os contornos dessas idéias e noções. O I Simpósio Internacional sobre Manicômios Judiciários e Saúde Mental permitiu debater algumas dessas questões. A Faculdade de Saúde Pública, que o acolheu tem como um de seus anexos ou componentes o Centro de Saúde Escola Geraldo Paula Souza. O imóvel, para quem não sabe, foi residência de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Esse último termina seu Manifesto Antropofágico proclamando desejar ver instalada "contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud, a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama".10 (p.4). Foi sob a égide dessa utopia que foram então abertos os trabalhos desse Simpósio.
REFERÊNCIAS
1. Correia L C, Lima IMSO, Alves VS. Direitos das pessoas com transtorno mental autoras de delitos. Cad. Saúde Pública, 2007; 23(9). [ Links ]
2. Miller J A Lacan elucidado. Palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda; 1997. [ Links ]
3. Freud S The Schreber Case, NY, London: Peguin Books; 2003. [ Links ]
4. Ferraz FC Perversão, São Paulo, Casa do Psicólogo; 2006. [ Links ]
5. Eglander E. K. Understanding Violence, New Jersey: Lawrence Erlbaum ed.; 2006. [ Links ]
6. Políticas públicas de/para/com juventudes - Brasília: Unesco, 2004 [ Links ]
7. Foucault, M Vigiar e Punir: nascimento da prisão, Petrópolis: Vozes; 1987. [ Links ]
8. Maciel, LR Um lugar para aprisionar a loucura criminosa. Hist. cienc. saude-Manguinhos, 6 (2);1999. [ Links ]
9. Código Penal do Brasil. São Paulo, Brasil.: Saraiva; 2001. [ Links ]
10. Andrade, O de. Manifesto Antropófago [1928], in A Utopia Antropofágica, Obras Completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Globo; 1990. [ Links ]
Correspondência para:
albereis@usp.br
Recebido em 22 de agosto de 2009.
Modificado em 02 de janeiro de 2010.
Aceito em 30 de janeiro de 2010.
O presente artigo foi elaborado a partir dos termos do Discurso de abertura do I Simpósio Internacional de Manicômios Judiciários e Saúde Mental.