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Barbaroi
versão impressa ISSN 0104-6578
Barbaroi no.33 Santa Cruz do Sul dez. 2010
Delinquência juvenil na produção científica nacional: distâncias entre achados científicos e intervenções concretas
Juvenile delinquency in national scientific production: distances between scientific findings and practical assistance
Jana Gonçalves ZappeI; Ana Cristina Garcia DiasII
I Universidade Federal de Santa Maria - UFSM - Brasil
II Universidade Federal de Santa Maria - UFSM - Brasil
RESUMO
Neste trabalho, apresenta-se um levantamento bibliográfico a respeito da delinquência juvenil. Objetivando investigar a produção científica nacional da última década, foram selecionados para este estudo 35 artigos publicados nos periódicos das bases de dados de Ciências da Saúde em geral. São também apresentados os aspectos teóricos e metodológicos dos estudos, e os principais aspectos abordados nos trabalhos: instituições de controle social, aspectos sociopsicológicos e individuais, valores humanos, políticas públicas e propostas de intervenção. Em conclusão, destaca-se a necessidade de desenvolvimento de mais trabalhos que abordem o enfrentamento da delinquência juvenil e a interdisciplinaridade como enfoque teórico-prático para lidar com esse fenômeno.
Palavras-chave: delinquência juvenil, institucionalização; adolescência.
ABSTRACT
This paper presents a literature review about juvenile delinquency. Aiming to investigate the national scientific production of the last decade, we have selected for this study 35 articles, published in journals of health sciences databases, in general. We present the theoretical and methodological aspects of such studies, as well as the key issues addressed by them: institutions of social control, social psychological and individual values, human values, public policies and intervention proposals. In conclusion, we highlight the need to develop further work to address the issue of coping with juvenile delinquency and the interdisciplinary approach to theory and practice to deal with this phenomenon.
Keywords: juvenile delinquency, institutionalization; adolescence
Introdução
A violência, sério problema de saúde pública, atualmente atinge a juventude de modo particularmente preocupante: é entre os jovens que se encontram as mais altas estatísticas de mortalidade por agressões, assim como são os jovens os mais apontados como autores de agressões, tanto no país quanto na América Latina (KRUG et al., 2002). Os resultados dessa associação - juventude e violência - são graves e abrangentes. Alguns autores apontam que "a dialética letal do matar e morrer abrevia a expectativa de vida, reduz o potencial produtivo da população, representa custos (diretos e indiretos) consideráveis para as famílias e para o sistema de saúde e compromete qualquer projeto de qualidade de vida" (ASSIS; DESLANDES; SANTOS, 2005, p.80). Assim, é um tema que deve ser privilegiado na produção científica, pois o conhecimento acadêmico é necessário para a construção de propostas concretas de enfrentamento desta complexa situação.
A literatura aponta que a realidade dos jovens que são vítimas de violência não difere da realidade dos jovens que se tornam autores de violência. Atualmente, adolescentes são vítimas de violência estrutural e de significativas formas de violência familiar, escolar, comunitária e social (ASSIS; DESLANDES; SANTOS, 2005). A mortalidade juvenil é um aspecto revelador desta situação, tendo em vista que a proporção de mortes por homicídios na população jovem é muito superior à da população não jovem. Segundo Waiselfisz (2004), a morte por causas externas (acidentes de trânsito, homicídios e suicídios) na população jovem é de 72%, e, dessas, 39,9% referem-se a homicídios praticados contra jovens. Já em relação à população não jovem, a taxa de óbitos por causas externas é de 9,8%, e, desses, os homicídios representam apenas 3,3%. Neste contexto, destacam-se os casos de adolescentes que se encontram em conflito com a lei, cuja realidade não é diferente da realidade dos demais adolescentes, conforme dito anteriormente, pois sujeitos aos mesmos riscos e às mesmas vulnerabilidades. Levantamento realizado em 2004 pelo Ministério da Justiça revelou que existiam 39.578 adolescentes no sistema socioeducativo em função de terem cometido algum ato infracional (BRASIL, 2006a), o que representa uma parcela significativa da juventude brasileira e justifica a necessidade de estudos específicos. Nosso artigo direciona o interesse para os casos de adolescentes que cometem atos infracionais.
No Brasil, a denominação utilizada na legislação pertinente é adolescente em conflito com a lei (BRASIL, 1990), enquanto o termo delinquência juvenil tem sido internacionalmente utilizado para se referir a esses casos. É importante destacar a inexistência de concordância quanto à nomenclatura mais adequada a ser utilizada. Volpi (1997) discute essa questão, salientando que o aspecto principal a ser considerado é que se trata de adolescentes, ou seja, sujeitos em especial condição de desenvolvimento, devendo-se evitar expressões como adolescente infrator, ou, o que seria pior, menor infrator, pois estas são terminologias com forte conotação ideológica. O termo delinquência juvenil, por sua vez, remete a uma entidade, uma síndrome, ou seja, um quadro relativamente estável, o que também contraria o caráter de provisoriedade da adolescência como um momento peculiar do desenvolvimento. O risco que se corre ao utilizar essas terminologias corresponde à redução da vida e da identidade do adolescente ao ato infracional cometido, aspecto amplamente discutido por Foucault (1997) e que se considera muito pertinente. Apesar disso, o termo delinquência juvenil corresponde ao descritor encontrado nas bases de dados que foram consultadas, de forma que seu uso facilita a busca de textos científicos afins e a própria divulgação do trabalho, sendo então um termo útil do ponto de vista da investigação proposta.
Os casos de adolescentes que cometem atos infracionais têm sido abordados a partir de três níveis de conceitualização: o nível estrutural, o sociopsicológico e o individual, conforme sistematização proposta por Shoemaker (1996). O nível estrutural incorpora as condições sociais, enfatizando a influência da organização social na constituição do sujeito que comete atos infracionais. Nesse nível, leva-se em consideração a associação entre delinquência e pobreza ou desigualdade social, o que é mais acentuado nas classes populares.
O nível sociopsicológico refere-se às instituições de controle social, como a família e a escola, além de aspectos como autoestima e influência de grupos de pares no comportamento delinquente juvenil. Nesse nível, considera-se a delinquência como resultado de problemas na vinculação social do jovem com instituições como a família e a escola, entre outras, as quais seriam representantes das normas sociais. Nesse sentido, considera-se como fundamental o maior ou menor controle que essas instituições exercem sobre o jovem. Outro aspecto abordado neste nível refere-se à relação entre a autoestima do jovem e a delinquência, considerando-se que esses fatores são inversamente proporcionais, ou seja, a delinquência está relacionada com uma baixa autoestima. No nível sociopsicológico também se considera a relação entre delinquência e a associação de jovens em grupos, entendendo-se que a influência dos pares sobre o jovem e as inter-relações estabelecidas nos grupos são fatores importantes de serem considerados na gênese da delinquência (SHOEMAKER, 1996).
Por fim, o nível individual inclui aspectos biológicos e psicológicos, privilegiando os mecanismos internos do indivíduo como determinantes para a delinquência. Nesse nível, considera-se que os aspectos biológicos hereditários e as características de personalidade, como a inteligência, podem predispor o indivíduo para a criminalidade. A personalidade pode ser considerada como fundamental para o entendimento da delinquência, pois resulta justamente da interação entre as influências do meio e a bagagem genética individual. Alguns dos atributos de personalidade frequentemente relacionados com a delinquência são: impulsividade, inabilidade em lidar com o outro e de aprender com a própria experiência de vida, ausência de culpa ou remorso por seus atos, insensibilidade à dor de outrem e transgressões (SHOEMAKER, 1996).
Nenhum desses fatores é suficiente de modo isolado para explicar a delinquência, que é considerada um fenômeno complexo, resultado da interação entre os diversos fatores organizados segundo os níveis estrutural, sociopsicológico e individual, descritos anteriormente. Assim, um conhecimento abrangente acerca da delinquência juvenil deve considerar uma análise destes três níveis integradamente (ASSIS; SOUZA, 1999).
As atuais políticas públicas que visam ao enfrentamento desse problema enfatizam a necessidade do trabalho de diferentes áreas do conhecimento e especialidades, através da atuação de equipes técnicas multidisciplinares (BRASIL, 2006a), o que é compatível com a consideração da delinquência juvenil como um problema complexo e multifatorial. Dessa forma, torna-se relevante investigar o que as diferentes áreas do conhecimento têm produzido acerca da delinquência juvenil: como compreendem o fenômeno da delinquência? Que metodologias de pesquisa utilizam? Quais os resultados que encontram? Quais os métodos de trabalho/intervenção que adotam? Como encaram a necessidade de trabalho em equipe?
Procurando responder a essas questões, realizou-se um levantamento bibliográfico a respeito da produção científica da área da saúde sobre a delinquência juvenil. A partir deste levantamento, obtém-se uma visão geral da produção científica sobre este tema, sendo possível identificar quais aspectos têm sido privilegiados nos estudos, e quais aspectos têm sido pouco abordados, o que é relevante para a formulação de novos trabalhos com o propósito de acrescentar contribuições à produção existente. Este trabalho de levantamento bibliográfico se constitui, portanto, como uma abordagem inicial desta temática, a qual será importante para a definição de abordagens futuras, através de pesquisas de outra natureza.
Método
Objetivando investigar a produção científica nacional da última década (1999 a 2009) a respeito da delinquência juvenil, foram consultados os artigos publicados nos periódicos das bases de dados de Ciências da Saúde em Geral (LILACS, IBECS, MEDLINE e SCIELO). A palavra-chave utilizada para a busca dos textos foi o próprio descritor delinquência juvenil. Foram encontrados 122 trabalhos, 40 deles com texto completo disponível on-line, sendo 35 deles artigos, os quais foram selecionados para este estudo. Foram selecionados apenas os trabalhos disponibilizados on-line em função da facilidade de acesso, e descartados os trabalhos que não eram artigos científicos, pois estes são textos de maior circulação e costumam chegar a um maior número de leitores.
A leitura dos trabalhos seguiu a metodologia proposta por Gil (1999), composta por quatro etapas: leitura exploratória, seletiva, analítica e interpretativa. Na primeira etapa, procura-se entrar em contato com os textos em sua totalidade, para após realizar uma leitura aprofundada das partes que interessam ao trabalho (leitura seletiva). O próximo passo consiste em ordenar e sumariar as informações encontradas, identificando-se as ideias-chave dos textos e construindo sínteses (leitura analítica). Na última etapa, a leitura interpretativa, procura-se estabelecer relações entre o conteúdo dos textos pesquisados, agrupando-os e assim conferindo um alcance mais amplo aos resultados obtidos com a leitura analítica. Assim, foram analisados os artigos segundo a área das revistas onde os artigos foram publicados, os objetivos e a metodologia dos estudos apresentados. Por fim, foram analisados quais aspectos têm sido privilegiados nos estudos, quais os principais resultados e as principais conclusões apontadas.
A partir dessa análise, foram classificados os trabalhos segundo os aspectos teóricos e metodológicos apresentados, sendo agrupados os resultados encontrados em quatro categorias temáticas, com a finalidade de sistematizar os tópicos mais abordados nos artigos: instituições de controle social; aspectos sociopsicológicos e individuais; valores humanos e políticas públicas; propostas de intervenção; conforme apresentados a seguir. Para este agrupamento em quatro categorias, considerou-se o principal tópico abordado em cada um dos artigos, sendo cada artigo incluído em apenas uma das categorias.
Resultados
Aspectos teóricos e metodológicos dos estudos
A maioria dos artigos foi publicada em revistas de psicologia e psicanálise (54%), e os demais foram publicados em revistas de saúde pública e coletiva (26%), psiquiatria (14%) e enfermagem (6%). Nesse sentido, pode-se supor que o maior interesse na abordagem da delinquência juvenil como objeto de estudo, é encontrado entre profissionais e pesquisadores da área psi. Por um lado, este predomínio pode ser favorável no sentido do desenvolvimento da ciência e da técnica psicológica, por outro, há que se considerar que o reduzido número de artigos das demais áreas pode significar pouco interesse ou dificuldades tanto na compreensão quanto no manejo desses casos. Assim, esse dado pode significar dificuldades para a abordagem interdisciplinar da delinquência juvenil, tanto em termos de compreensão quanto de enfrentamento do problema.
Quanto aos objetivos, a maioria dos artigos constitui-se de estudos que visam compreender a delinquência juvenil (71%), tendo os demais (29%) abordado as formas de enfrentamento deste problema, tanto em termos preventivos quanto em termos das técnicas de trabalho com adolescentes delinquentes. Com relação a esse resultado, percebe-se que há uma defasagem de trabalhos que abordam a atuação prática com relação aos que propõem uma compreensão do fenômeno.
Quanto à metodologia utilizada, os estudos que visam compreender a delinquência juvenil utilizam estudos empíricos (60%), reflexão teórica (24%), revisão de literatura (8%) e estudo de caso (8%). Esse dado é interessante na medida em que mostra que os pesquisadores encontram-se interessados em oferecer uma compreensão do fenômeno a partir de diferentes perspectivas teórico-metodológicas, o que é favorável no sentido de possibilitar entendimentos abrangentes que favorecem uma abordagem de maior amplitude.
As pesquisas empíricas sobre a compreensão da delinquência juvenil utilizaram diferentes técnicas de coleta de dados. Entrevistas semiestruturadas foram bastante utilizadas, tanto como técnica única quanto associada com outras técnicas (nos estudos de ASSIS; SOUZA, 1999; DELL'AGLIO; SANTOS; BORGES, 2004; FEIJÓ; ASSIS, 2004; DELL'AGLIO et al., 2005; PINHO et al., 2006, entre outros). Também foram adotados questionários (estudos realizados por MENIN, 2003; FORMIGA; GOUVEIA, 2005; PINHO et al., 2006; MARTINS; PILLON, 2008; SENA; COLARES, 2008), inventários (nas pesquisas de CARVALHO; GOMIDE, 2005; DELL'AGIO et. al., 2005), escalas (estudos de FORMIGA; GOUVEIA, 2005; SCHIMITT et al., 2006; BRANCO; WAGNER; DEMARCHI, 2008), técnica de história de vida (estudo de ASSIS; SOUZA, 1999) e Mapa da Rede Social (estudo de BRANCO; WAGNER; DEMARCHI, 2008).
Os trabalhos que abordaram a temática do enfrentamento da delinquência juvenil apresentaram discussões sobre as técnicas de trabalho com crianças e adolescentes em situações de risco e vulnerabilidade ou institucionalizados. Essas são situações que exigem um manejo técnico específico, que se diferencia das técnicas de trabalho mais tradicionais. Guirado (2006), por exemplo, discute o exercício da técnica psicanalítica numa instituição que atende a adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas e indica a necessidade de repensar a clínica psicanalítica quando ela se exerce num contexto institucional. Nesse sentido, a autora defende a necessidade de ajustes tanto na técnica quanto na própria teoria, discutindo principalmente os conceitos de transferência e de contexto institucional. Em suma, discute-se a necessidade de se considerar que a transferência que conta como fundamental é aquela feita com a instituição, e não com o profissional que realiza o atendimento, o que é determinante dos sentidos que se constroem para a relação terapêutica.
Delinquência juvenil e instituições de controle social
Nesta categoria, agrupamos os trabalhos que associam delinquência juvenil e instituições de controle social, como a família e a escola. Nesses trabalhos, considera-se a delinquência como resultado de problemas na vinculação social do jovem com as instituições representantes das normas sociais, sendo fundamental o maior ou menor controle que estas instituições exercem sobre o jovem.
A família enquanto uma instituição de controle social, foi um foco privilegiado nos estudos, que enfatizaram principalmente a existência de fragilidades nas composições familiares de adolescentes que cometem atos infracionais. Esse aspecto será abordado mais detalhadamente a seguir, pois são apresentados resumidamente alguns dos trabalhos que foram agrupados nesta categoria.
Oliveira e Assis (1999), em um estudo exploratório composto por uma abordagem mista, realizado em três instituições responsáveis pela custódia judicial de adolescentes infratores, demonstraram os efeitos danosos da vida imposta a estes jovens, seja pela família, pela sociedade, pelo judiciário e/ou pelas próprias instituições de custódia. Entre esses efeitos danosos, cita-se o distanciamento do adolescente de sua família, provocado ou intensificado pela institucionalização; o flagrante afastamento do ambiente escolar e o preocupante índice de analfabetismo apresentado pelos internos; as remotas possibilidades de inserção no mercado de trabalho; a precariedade dos recursos humanos institucionais, que reduz a qualidade do atendimento e reproduz uma relação marcada pelo distanciamento, o que eles já vivenciam com relação à família. As instituições de custódia não encaravam o atendimento aos jovens como uma prioridade, funcionando superlotadas, inapropriadas para a socialização, desumanas e descumprindo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação pertinente a esses casos (BRASIL, 1990). Assim, acabavam acrescentando ainda mais danos à trajetória desses jovens.
Rosa (1999) também demonstra como um processo de desqualificação e desvalorização social da família desses jovens propicia rompimentos e leva os indivíduos à rua. Nessas situações, o discurso social, em substituição ao discurso dos pais, é um discurso que evidencia a carência, oferecendo a estes meninos um lugar despido de valor fálico, o que é evidenciado na própria forma como eles eram nomeados: menor abandonado, menor carente. A delinquência, nesse contexto, pode ser entendida como uma tentativa de resgate de algum valor fálico, constituindo-se como única possibilidade de nomeação e de identidade em muitos casos.
Feijó e Assis (2004), ao pesquisarem o núcleo familiar de jovens que cometeram atos infracionais graves, constataram a fragilidade da maioria das famílias, que experimentam uma condição de pobreza e exclusão social; essas famílias encontram-se isoladas do amparo social. Neste estudo, as autoras identificaram que a maioria dos adolescentes é proveniente de famílias divididas, em que os pais se separaram e muitas vezes abandonaram os filhos ou morreram. São famílias em que a infra-estrutura é prejudicada seja em termos financeiros, emocionais ou domiciliares. Entre algumas das vulnerabilidades identificadas nessas famílias, cita-se a desqualificação para o trabalho, o desemprego, o baixo nível de escolaridade, o analfabetismo, a ausência de algum dos genitores, a violência física e psicológica, e problemas de relações interpessoais e de comunicação. Priuli e Moraes (2007) encontraram dados semelhantes. Eles identificaram situações de vulnerabilidade pessoal e familiar em adolescentes institucionalizados pela prática de ato infracional que, assim, são considerados autores e também vítimas de violência. Foi detectado que a maioria dos jovens residia em uma área cuja precariedade social é revelada pela existência de poucos equipamentos sociais, caracterizando-se por uma maioria populacional de menor poder aquisitivo e baixo nível de escolaridade, e ainda pelo alto coeficiente de mortalidade infantil.
O trabalho de Carvalho e Gomide (2005) também vai nesse sentido. Essas autoras consideram que a família do adolescente em conflito com a lei tem uma forte influência tanto na aquisição e manutenção dos comportamentos infratores quanto na extinção destes comportamentos, de forma que as práticas educativas parentais constituem uma forma de se analisar a aquisição e manutenção desses comportamentos. Assim, as autoras investigaram as práticas educativas parentais em uma amostra de adolescentes em conflito com a lei e seus respectivos pais, e concluíram que se trata de famílias de risco, cujas práticas parentais não favorecem um desenvolvimento saudável. Diante disso, aponta-se a importância da identificação dos estilos parentais exercidos nessas famílias para elaboração de programas de orientação e treinamento de pais.
Além disso, Benhaim (2008) faz uma análise, de cunho mais teórico, da delinquência utilizando a teoria psicanalítica, especialmente enfocando os conceitos de função materna, ilusão e desamparo. É levantada a hipótese de que a problemática delinquente repousa sobre uma falta de ilusão, de forma que o desamparo infantil se transforma em desespero juvenil.
Olhando as instituições de controle social, a partir de um ponto de vista amplo, Branco, Wagner e Demarchi (2008) identificaram as características da rede social dos internos de uma instituição socioeducativa e de suas famílias. A rede social tem um importante papel na compreensão, prevenção e tratamento de jovens delinquentes, sendo a família um aspecto bastante considerado. Entre os resultados, as autoras indicaram que estas redes sociais são falhas, principalmente com relação à escola e ao trabalho. Assim, sugere-se a implantação de medidas educativas e laborais mais significativas para internos de instituições socioeducativas, bem como o desenvolvimento de atividades comunitárias, com vistas a superar essas falhas.
Dell'aglio et al. (2005) também indicam que condições familiares e uma rede social precárias estão associadas à ocorrência de atos infracionais. Esses autores identificaram eventos em diferentes domínios (como maus-tratos, abuso sexual, uso de drogas, repetência escolar, desemprego e morte dos pais) que se constituem em fatores de risco. A hipótese central destaca que há um ciclo de violência presente na trajetória das adolescentes que antecede a prática do ato infracional.
Dados semelhantes são encontrados ainda por Dell'aglio, Santos e Borges (2004). Ao investigarem a trajetória de vida de adolescentes do sexo feminino que cumpriam medida socioeducativa, encontraram a presença de repetidas rupturas nas relações dessas jovens com seus cuidadores, além de situações de violência intra e extrafamiliar. Assim, as autoras deste estudo concluíram que a falta de estabilidade e a fragilidade dos vínculos estabelecidos durante diferentes fases do desenvolvimento, assim como eventos estressores vivenciados, podem estar associados à manifestação dos comportamentos desadaptativos pelas adolescentes, sendo facilitadores para a entrada na vida infracional.
Delinqüência juvenil e aspectos sociopsicológicos e individuais
Analisando os trabalhos publicados, podemos observar que alguns construíram sua compreensão teórica do fenômeno levando em conta tanto aspectos sociopsicológicos quanto fatores individuais envolvidos no mesmo, os quais foram agrupados nesta categoria. Quanto aos aspectos sociopsicológicos, consideram-se fatores como autoestima e influência de grupos de pares no comportamento delinquente juvenil e, quanto aos aspectos individuais, consideram-se os fatores biológicos e psicológicos, privilegiando os mecanismos internos do indivíduo como determinantes para a delinquência.
Por exemplo, Assis e Souza (1999), estudando jovens que cometeram infrações e seus irmãos que não cometeram infrações, indicaram que esses jovens diferem sob diversos aspectos. No que tange aos aspectos familiares, as autoras demonstram que os adolescentes que cometeram atos infracionais mantêm imagens mais idealizadas de suas famílias e possuem maiores dificuldades para lidar com perdas familiares e estabelecer um vínculo afetivo mais forte, quando comparados aos seus irmãos que não cometeram infrações. As autoras identificaram também que uma falta de controle familiar estava presente no caso dos adolescentes que cometeram infrações; esses jovens eram, em sua maioria, os caçulas e vistos como os preferidos da família. No que se refere às questões sociopsicológicas, identificaram diferenças tanto na escolha das amizades como em relação às oportunidades de vida, sendo percebidas também diferenças individuais importantes. Entre essas, cita-se, por exemplo, diferenças quanto à autoimagem: enquanto os não infratores se reconheciam como pessoas calmas, tranquilas e conformadas com relação à realidade social, os infratores se reconheciam como arrojados, valentes e rebeldes com relação às dificuldades da vida.
O trabalho de Menin (2003) aborda a temática da delinquência juvenil a partir da teoria de representação social. A autora pesquisou atitudes de adolescentes frente à delinquência, e evidenciou que a forma de avaliação das infrações está relacionada com o gênero e a classe social à qual os jovens pertencem. As meninas e os adolescentes de classes mais baixas tendem a atribuir notas mais altas às infrações que os meninos e os adolescentes de classes mais altas, ou seja, meninas e adolescentes de classes mais baixas tendem a ser mais severos ao julgar a gravidade de uma infração, enquanto meninos e adolescentes de classes mais altas tendem a ser mais tolerantes. Dessa forma, a autora concluiu que as diferenças de avaliação das infrações estão relacionadas com o gênero e a origem social dos sujeitos da pesquisa.
Sena e Colares (2008), ao investigaram as condutas de saúde entre adolescentes em conflito com a lei, concluíram que esses jovens apresentam maiores índices de comportamentos de risco em relação à saúde quando comparados a jovens que não cometem atos infracionais, principalmente relacionados ao uso de substâncias psicoativas e ao exercício da sexualidade. Essas autoras identificaram diversos comportamentos de risco, tais como porte de armas, envolvimento em briga, uso de álcool e tabaco, uso experimental de inalantes e maconha, relação sexual desprotegida e em geral com mais de um parceiro.
O estudo de Facundo e Pedrão (2008), por sua vez, analisou os efeitos dos fatores de risco pessoais e interpessoais sobre o consumo de drogas em adolescentes de bandos juvenis, constatando a importância dos mesmos. Os fatores pessoais de risco que mais contribuíram para o consumo de drogas foram o sexo, a idade e os problemas de saúde mental. Quanto ao sexo, os homens mostraram maior probabilidade para o consumo de drogas. Quanto à idade, identificou-se que, à medida que aumenta a idade, maior é a probabilidade de consumo de drogas e, ainda, que quanto mais precoce for o início do uso de drogas, maior será o consumo e a dependência. Quanto aos problemas de saúde mental, indica-se que quanto maior são os problemas de saúde mental, maior é a probabilidade do consumo de drogas. Quanto aos fatores de risco interpessoais, identificou-se que quanto maior é a relação com amigos sob condutas desajustadas, maior é a probabilidade para o consumo de drogas.
Heim e Andrade (2008) demonstram que o uso de álcool e drogas ilícitas entre indivíduos que estão em situação de risco é alto e precoce em relação a adolescentes que não estão em situação de risco, demonstrando que esta questão é uma parte do problema da delinquência. O estudo sugere a existência de uma relação estreita entre uso e abuso de álcool e drogas ilícitas e delinquência, indicando a necessidade de mais estudos sobre esta relação, os quais poderiam esclarecer se é o uso e/ou abuso de álcool e drogas ilícitas que induzem ao comportamento delinquente ou o contrário.
Martins e Pillon (2008) buscaram analisar a relação entre a primeira experiência de uso de drogas e o primeiro ato infracional cometido por adolescentes em conflito com a lei. Nesse estudo, os resultados apontaram que os índices do primeiro uso do álcool, cigarro e maconha são elevados e ocorrem concomitantemente com idade média de 12 anos. Com relação aos delitos, os mais praticados são roubo, tráfico de drogas e furto e ocorrem com idade média de 13 anos. Os autores demonstraram que existe uma correlação significativa entre o uso do álcool e da maconha com os atos infracionais, exceto o homicídio, e também que o uso de drogas precede a prática infracional.
A relação entre delinquência e psicopatologia psiquiátrica foi abordada em alguns trabalhos, como no estudo de Pinho et al. (2006). Estes pesquisadores encontraram que 75,2% dos adolescentes que realizaram algum ato infracional preenchem critérios para um ou mais transtornos psiquiátricos. Em quase metade dos casos foi identificada a presença de transtornos em comorbidade, sendo a associação de patologia mais prevalente entre transtornos de conduta e transtornos por uso nocivo de substância psicoativa. Assim, trata-se de mais um estudo que aborda a associação entre uso de substâncias psicoativas e delinquência, neste caso sob a ótica da psicopatologia psiquiátrica.
Pacheco et al. (2005) realizam uma discussão acerca do conceito de comportamento antissocial, que pode ser tomado como um indicador para transtornos mentais específicos e para algumas categorias de problemas comportamentais, sendo então um conceito importante para a compreensão da delinquência. Os autores apontam que o padrão de comportamento antissocial é adquirido na infância, através da interação da criança com a família e o grupo de pares. A delinquência seria, então, um agravamento desse padrão que inicia na infância e, normalmente, persiste na adolescência e vida adulta. Assim, esses autores indicam a necessidade de se identificar como alguns fatores contribuem para a estabilidade de comportamentos ou problemas antissociais na transição da infância para a adolescência.
Schmitt et al. (2006) compararam adolescentes infratores que cometeram crimes graves (homicídio, estupro e latrocínio) com outros adolescentes infratores, buscando identificar diferenças quanto a psicopatia, reincidência criminal e história de maus-tratos. Esses pesquisadores encontraram maior prevalência de psicopatia e de reincidência criminal entre os adolescentes que cometeram crimes graves, e encontraram alta prevalência de história de maus-tratos, mas não houve diferença significativa entre os adolescentes que cometeram crimes graves e os demais, nesse aspecto. Este estudo levanta a possibilidade de existência de dois grupos distintos de adolescentes infratores: com e sem psicopatia, hipótese que precisa ser mais investigada.
Formiga, Aguiar e Omar (2008), por sua vez, buscaram explicar a delinquência juvenil através do construto busca de sensações. Esses autores encontraram uma relação direta entre a busca de intensidade e de novidades com condutas antissociais e delitivas. Em outro estudo, Formiga et al. (2007) identificaram uma relação positiva entre a busca de sensações de intensidades e novidades e comportamento agressivo físico e verbal, raiva e hostilidade. Esses estudos mostram que traços de personalidade, ou seja, características individuais permitem explicar a conduta juvenil.
Assis e Constantino (2005) apresentaram uma revisão das teorias referentes à prevenção da violência cometida por adolescentes, discutindo como os fatores de risco devem direcionar estratégias de prevenção nos níveis primário, secundário e terciário. Essas autoras abordaram tanto características individuais como sociais envolvidas no fenômeno, mostrando a complexidade do fenômeno. As autoras criticam o direcionamento dos gastos públicos que vão apenas para o policiamento das cidades e a manutenção da segurança nas prisões; essas atitudes, na opinião das autoras, revelam uma crença corrente de que a repressão à violência é a solução para os problemas sociais. No entanto, os autores enfatizam a necessidade de aumentar a preocupação com a prevenção da violência, tema que tem ocupado reduzida parcela de atenção. Os principais fatores de risco para que os jovens envolvam-se com atos violentos são: ser jovem do sexo masculino, apresentar algumas características biológicas e psicológicas, tais como danos neurológicos sutis, impulsividade, hiperatividade, precário controle diante de frustrações, deficiência de atenção e incapacidade de planejamento e fixação de metas, baixos níveis de inteligência, elevada vulnerabilidade e tendência à exclusão social gerada por negligência, abandono, pobreza, criminalidade e violência na família, na escola, na comunidade e na sociedade em geral. Além disso, o fato de pertencer a uma família com laços frágeis seja por precária situação socioeconômica, deficiente supervisão por separação dos pais, ausência da mãe do lar devido ao trabalho ou ao distanciamento da figura paterna, presença de mortes e doenças rotineiras na família tornam o jovem mais vulnerável. Nesse sentido, como indicado na categoria anterior, essas autoras reconhecem que os relacionamentos familiares marcados por agressões físicas e emocionais, precário diálogo intrafamiliar e dificuldades em impor disciplina estão associados à delinquência juvenil. Essas autoras apontam que o jovem pode ainda apresentar problemas escolares (poucos anos de estudo, abandono escolar, desentendimento com professores e colegas, reprovações repetidas) e utilizar drogas, geralmente associado à convivência no grupo de pares. Nesse sentido, este estudo indica como fatores individuais e sociais acabam se entrelaçando na produção do ato infracional.
Delinquência juvenil, valores humanos e políticas públicas
Nesta categoria, agrupamos os trabalhos que abordaram a questão da delinquência juvenil a partir de um ponto de vista amplo, considerando aspectos de ordem estrutural. Nesse sentido, são descritos trabalhos que enfatizam a influência da organização social na constituição do sujeito delinquente.
Entre esses estudos, citamos o trabalho de Formiga e Gouveia (2005) que propõem a utilização dos valores humanos como um construto que pode contribuir para a predição da violência entre os jovens. Esses autores apontam que o investimento em valores individualistas fomenta maior frequência das condutas desviantes entre os jovens, enquanto o estímulo de comportamentos baseados em normas coletivistas contribuiria para a diminuição das condutas antissociais e delitivas. Nesse sentido, os autores discutem sobre a tendência atual ao individualismo, enfocando valores que priorizam o interesse individual, o que potencializa condutas que se desviam das normas sociais. Assim, chamam atenção para a dimensão social do fenômeno da delinquência.
As políticas públicas voltadas para a infância e adolescência também foram objeto de estudo. Cruz, Hillesheim e Guareschi (2005) problematizam a inserção da Psicologia nessas políticas através do estabelecimento de padrões de normalidade e anormalidade e circunscrição de etapas evolutivas, o que não levaria em consideração as concepções de infância e adolescência como construções sociais, ou seja, datadas geográfica e historicamente. Este estudo critica a posição do psicólogo como especialista perito, na medida em que sua atuação desloca o foco de questões sociais para consideração de aspectos individuais. Nesse sentido, as autoras defendem que o campo das intervenções deve ser assumido como um território político, onde as lutas são cotidianas.
Delinquência juvenil e propostas de intervenção
Nesta categoria, agrupamos os trabalhos que abordaram intervenções relativas à problemática da delinquência juvenil. Em geral, a maioria dos trabalhos compreensivos sugere propostas de intervenção em termos de conclusão dos estudos. Porém, nessa categoria agrupamos apenas os trabalhos que apresentaram a intervenção como o principal foco do estudo. Embora em menor número, com relação aos trabalhos compreensivos, estes trabalhos mostraram-se importantes, apresentando propostas formalizadas para diferentes níveis de intervenção. A seguir discutiremos alguns desses estudos.
Alguns trabalhos abordaram a importância de intervenções de cunho preventivo. Oliveira e Assis (1999), por exemplo, consideram que as estratégias de prevenção recaem tanto no âmbito público quanto no privado, nas relações sociais interpessoais, interinstitucionais e intersetoriais, uma vez que a delinquência não é apenas fruto da patologia individual, mas também das estruturas e conjunturas socioculturais. Assim, é um problema que deve ser enfrentado pelo conjunto da sociedade, por um conjunto de ações, em diferentes níveis. Essas autoras defendem que a privação de liberdade deve ser restrita a casos extremos, e deve ser rigorosa principalmente quanto à qualidade da assistência prestada. Para isso, sugerem que o atendimento seja oferecido a grupos menores de adolescentes, e que siga uma ótica essencialmente técnica, priorizando-se a oferta de ensino regular e profissionalização. Além disso, sugerem a ênfase em trabalhos comunitários como uma forma mais eficiente de atuar sobre o problema de jovens autores de atos infracionais. Com relação a isso, citam como exemplo um programa desenvolvido na Mangueira, patrocinado pela iniciativa privada e pela própria comunidade, que abrange uma larga faixa etária e mantém em pleno funcionamento atividades pedagógicas, artísticas e esportivas da maior qualidade. Consideram que a produtividade deste programa pode ser expresso pelo ínfimo número de adolescentes desta comunidade que dão entrada em processos judiciais, e sugerem a parceria entre equipamentos do Estado, da sociedade civil e da própria comunidade como uma medida necessária a ser adotada.
Para Assis e Constantino (2005), as estratégias de prevenção devem ser estruturadas com o objetivo de evitar ou minimizar os efeitos dos fatores de risco, amplamente já identificados pela literatura sobre o tema. Assim, as autoras destacam áreas de prevenção que têm mostrado impacto significativo na redução da delinquência juvenil, tais como a intervenção durante a gravidez e infância em famílias que se encontram em situação de risco; a realização de treinamento para pais; programas de prevenção primária dos crimes e da violência realizados em escolas; e intervenções precoces destinadas a jovens infratores que promovam a reabilitação e reinserção social, profissional e familiar.
Bocco e Lazzarotto (2004), ao relatarem sua experiência de trabalho com adolescentes sob a perspectiva da análise institucional, salientam a necessidade de ampliar o olhar voltado para esses jovens. Ressaltam que esses jovens costumam ser percebidos apenas como violentos e ameaçadores. Assim, para que uma intervenção seja bem-sucedida, é preciso rever essas crenças. Elas questionam os lugares e os saberes naturalizados a respeito desses jovens, buscando pensar novas formas de fazer Psicologia e lidar com este público. As autoras defendem que estes jovens representam um paradoxo. A palavra infração, etimologicamente significa a ação de quebrar. Assim, representa tanto a ruptura com as normas sociais quanto a capacidade criativa de construir algo novo. Assim, a intervenção deve contemplar esse duplo sentido.
Costa (2005), por sua vez, ao discutir as possibilidades efetivas de ações destinadas à promoção de mudanças significativas na vida de adolescentes infratores, aponta para as dificuldades atuais do sistema socioeducativo. A autora observa que experiências bem-sucedidas identificadas no país enfatizam a necessidade de ampliação da escuta psicológica como uma alternativa à busca de condições mais favoráveis ao atendimento das reais necessidades do adolescente.
Guirado (2006) também vê a escuta como um fator importante ao atendimento do adolescente infrator. Essa autora discute a necessidade de repensar a clínica psicanalítica quando ela é feita em instituições diferentes do consultório, defendendo que ajustes devem ser realizados nesse modelo, para que o mesmo se torne efetivo. Assim, a autora discute esses ajustes através dos conceitos de transferência e contexto institucional, os quais conferem especificidade ao trabalho realizado em instituições para adolescentes autores de atos infracionais e interferem no modo como se estabelece a relação terapêutica.
A atenção psicológica como uma intervenção para acolhimento do sofrimento humano em situações de crise também é defendida por Aun, Morato, Noguchi e Nunes (2006). As autoras compreendem a transgressão numa dupla significação: como um espaço de denúncia social de situações de exclusão, e como a busca de modos de ser não instituídos. Partindo dessa compreensão, defendem uma perspectiva clínica segundo a abordagem fenomenológica existencial, voltada para que o adolescente se aproprie de sua história, projetando-se a outras possibilidades: cuidar de ser, responsabilizando-se por si.
Além de aspectos psicológicos, Ribot e Machado (2005) consideram que uma proposta pedagógica deva ser desenvolvida na atenção oferecida ao adolescente infrator. Consideram que uma ação pedagógica inovadora, que segue determinados passos e valoriza o apoio do grupo, de rituais, de valores e de adultos significativos pode auxiliar no trabalho. Esses autores partem do pressuposto de que acompanhar uma pessoa é intervir estando ao lado dela, fazer um trecho do caminho a ser percorrido com ela e apoiá-la em sua evolução, sendo então uma proposta eminentemente interativa.
Costa, Guimarães, Pessina e Sudbrack (2007) descrevem uma metodologia de avaliação familiar numa perspectiva da Single Session Work. Esse trabalho é baseado numa única intervenção, que tem como potencial gerar informação, resgatar vínculos parentais, significar o ato delinquente, por ser uma intervenção crítica pontual e que reativa as potencialidades e criatividade tanto do adolescente, de sua família quanto da equipe técnica.
Kaufman (2004) e Amaro (2004) ainda discutem a questão da maioridade penal, criticando as instituições socioeducativas existentes. Esses autores consideram que as mesmas não oferecem um autêntico tratamento ao jovem infrator. Nesse sentido, observam que a mera redução da maioridade penal não resolverá uma situação tão complexa e multifatorial.
Conclusões
A análise dos trabalhos selecionados permitiu obter uma visão panorâmica da produção científica nacional a respeito da delinquência juvenil. De modo geral, pode-se dizer que esta produção é rica e abrangente no sentido de compreender os diferentes fatores que contribuem para levar os jovens a cometer infrações, conhecimento que é fundamental para o enfrentamento do problema.
As conclusões dos estudos analisados neste trabalho descrevem tanto propostas de novas pesquisas quanto de reflexões que podem possibilitar a construção de programas baseados em achados científicos. Observa-se que vários trabalhos indicam a necessidade de implementação de programas sociais que visam ao fortalecimento das redes de apoio (DELL'AGLIO et al., 2005), capazes de identificar fatores de risco e implementar estratégias preventivas às situações de violência e de vulnerabilidade da criança, do adolescente e da família (DELL'AGLIO; SANTOS; BORGES, 2004; LARANJEIRA, 2007). Esses trabalhos apontam também para a necessidade da implementação de programas de acompanhamento que possam trabalhar a longo prazo com as situações de vulnerabilidades e de riscos presentes nas famílias e nos contextos sociais dos quais o jovem e sua família fazem parte (FEIJÓ; ASSIS, 2004; BRANCO; WAGNER; DEMARCHI, 2008). Outras duas medidas consideradas importantes na busca por uma solução do problema da delinquência juvenil são: 1) a criação de espaços efetivos de educação e de trabalho aos jovens (BRANCO; WAGNER; DEMARCHI, 2008); e 2) a prevenção do uso (e abuso) de substâncias psicoativas entre adolescentes e seus familiares (MARTINS; PILLON, 2008).
No que se refere ao atendimento direto do adolescente em conflito com a lei, encontramos sugestões relativas à necessidade de se priorizar trabalhos comunitários em detrimento da internação em instituições (OLIVEIRA; ASSIS, 1999) e à necessidade de estratégias terapêuticas específicas para jovens com transtornos mentais e/ou usuários de substâncias psicoativas (SCHIMITT et al., 2006; SENA; COLARES, 2008; HEIM; ANDRADE, 2008).
Felizmente, nosso estudo demonstra que possuímos um conhecimento útil para a construção de propostas para o enfrentamento da delinquência juvenil, pois nosso levantamento identificou vários estudos que contribuem para a compreensão da problemática do adolescente autor de ato infracional. Resta saber se estamos construindo e colocando em prática intervenções racionais, ou seja, se estamos levando esses achados em consideração quando formulamos e efetivamos propostas de intervenção, sobretudo em termos de políticas públicas. Infelizmente, o distanciamento entre teoria e prática, ou entre produção científica e atuação política, é identificado e conhecido, principalmente, em países subdesenvolvidos como é o nosso caso. A atual situação das políticas públicas de atendimento a essa população não é das melhores, o que pode ser exemplificado com o fato de que não dispomos de uma Lei de Execução das Medidas Socioeducativas ou ainda com a longa espera pela aprovação do SINASE (BRASIL, 2006a). Sem a aprovação e aplicação dos princípios contidos nesses documentos legais, o atendimento ao adolescente em conflito com a lei tende a continuar apresentando as mesmas dificuldades há muito conhecidas: unidades superlotadas com instalações físicas precárias; ausência ou irregularidades de atendimento jurídico e de saúde; oferta irregular de escolarização e profissionalização, além de espancamentos e maus-tratos físicos e psicológicos (BRASIL, 2006b). Isso tudo em franca oposição ao que apontam os estudos apresentados neste levantamento. Procuramos evidenciar esta questão no próprio título deste trabalho, considerando-se esta uma problemática que necessita ser enfrentada. Assim, estudos que evidenciem essas questões devem ser estimulados.
Identificamos também a necessidade de que as demais áreas da saúde e das ciências humanas, que não apenas a Psicologia e a Psicanálise, sejam estimuladas a produzir estudos a respeito da delinquência juvenil, com vistas a contribuir com a abordagem interdisciplinar do problema. É sabido que o trabalho em equipe constitui-se mais como um desafio a ser enfrentado de que como uma prescrição a ser seguida, pois acarreta algumas dificuldades e problemas. Nesse sentido, a interdisciplinaridade como enfoque teórico e/ou prático também se constitui como questão pertinente a ser mais explorada na literatura científica nacional a respeito da delinquência juvenil.
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Data de recebimento:10/07/2010.
Data de aceite: 29/09/2010.
Sobre os autores:
Jana Gonçalves Zappe é graduada em psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em criança e adolescente em situação de risco pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Mestre em psicologia pela UFSM. Atualmente, é docente no curso de psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria (FISMA) e psicóloga da Fundação de Atendimento socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS) e da Prefeitura Municipal de Santa Maria. E-mail: janazappe@hotmail.com
Ana Cristina Garcia Dias é graduada em psicologia pela Universidade federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em terapia Cognitivo-comportamental pelo Instituto WP (WP/POA). Atualmente é professora titular do Departamento de Psicologia e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: anacristinagarciadias@gmail.com