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Barbaroi
versão impressa ISSN 0104-6578
Barbaroi no.33 Santa Cruz do Sul dez. 2010
Avaliação da ocorrência de transtornos mentais comuns entre a população de rua de Belo Horizonte
Occurrence of common mental disorders among the homeless population in Belo Horizonte
Nadja Cristiane Lapppann BottiI; Carolina Guimarães CastroII; Ana Karla SilvaIII; Monica Ferreira SilvaIV; Ludmila Cristina OliveiraV; Ana Carolina Henriques Oliveira Amaral CastroVI; Leonardo Leão Kahey FonsecaVII
I Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ - Brasil
II Pontifícia Universidade Católica - PUC/Minas - Brasil
III Pontifícia Universidade Católica - PUC/Minas - Brasil
IV Pontifícia Universidade Católica - PUC/Minas - Brasil
V Pontifícia Universidade Católica - PUC/Minas - Brasil
VI Pontifícia Universidade Católica - PUC/Minas - Brasil
VII Pontifícia Universidade Católica - PUC/Minas - Brasil
RESUMO
OBJETIVO: avaliar a prevalência de transtornos mentais comuns entre a população de rua.
MÉTODOS: Estudo transversal com 245 moradores de rua em Belo Horizonte. Os transtornos mentais comuns e as categorias de sintomas foram avaliados pelo Self Reporting Questionnaire (SRQ-20).
RESULTADOS: 49,48% da população tem problemas mentais. Na distribuição dos sintomas há prevalência de depressão e ansiedade, seguida por sintomas somáticos, decréscimo de energia vital e pensamentos depressivos.
CONCLUSÃO: A prevalência de transtornos mentais comuns encontradas em homens adultos que vivem nas ruas de Belo Horizonte pode ser o resultado da vulnerabilidade deste grupo social.
Palavras-chave: Transtornos Mentais, Saúde Mental, População de Rua.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To assess the prevalence of common mental disorders among the homeless population.
METHODS: Cross sectional study with 245 homeless men in Belo Horizonte. Common mental disorders and the categories of symptoms were evaluated by the Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20).
RESULTS: 49.48% of the population has mental disorders. In the distribution of symptoms there is prevalence of depressed mood and anxiety, followed by somatic symptoms, decrease of vital energy and depressive thoughts.
CONCLUSION: The prevalence of common mental disorders found in adult males living on the streets of Belo Horizonte can be the result of the vulnerability of this social group.
Keywords: Mental Disorders, Mental Health, Homeless Population.
Introdução
Há um número crescente de pessoas que são excluídas das estruturas convencionais da sociedade, como emprego, moradia e privacidade, vivendo na linha da indigência ou pobreza absoluta. São pessoas que possuem menos do que o necessário para atender às necessidades vitais humana. É nesse cenário que encontramos os moradores de rua (ROSA; CAVICCHIOLI; BRÊTAS, 2005). No Brasil são milhares de pessoas que vivem na e da rua, e, visando caracterizar o princípio da transitoriedade desse processo de absoluta exclusão social, são em geral denominadas "pessoas em situação de rua" (ROCHA, 2003).
A população de rua apresenta-se como um grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta, vínculos interrompidos ou fragilizados e inexistência de moradia convencional regular, sendo compelido a utilizarem as vias públicas como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de forma permanente (BRASIL, 2006). Por isso esta população apresenta demandas a diferentes setores da área social, como: assistência social, saúde, habitação e segurança pública (CARNEIRO JUNIOR; NOGUEIRA; LANFERINI; ALI; MARTINELLI, 1998). Reconhecendo as particularidades desta população e a necessidade de desenhar e implementar políticas públicas foi promovido no país, em 2005, o I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua (BRASIL, 2006).
Como o censo realizado pelo IBGE não reconhece a existência do morador de rua das cidades brasileira, uma vez que conta o número de habitantes a partir do domicílio, não se tem no país este levantamento. Deste modo foi realizada em 2008, uma pesquisa nacional em 71 cidades brasileiras identificando um contingente de 31.922 adultos em situação de rua nestes municípios (BRASIL, 2008). Em Belo Horizonte, estudos censitários, realizados em 1998 e 2005, apresentou estimativa do número dos moradores de rua. O 1º censo estimou 1120 pessoas (BELO HORIZONTE, 1998) e o 2º censo, uma população de 1239 pessoas vivendo nas ruas da capital mineira (BRASIL, 2006).
No Brasil, entre os principais motivos pelos quais as pessoas passam a viver e morar na rua se refere aos problemas de alcoolismo e/ou drogas; desemprego e desavenças com pai/mãe/irmãos (BRASIL, 2008). Na literatura americana identificam-se os fatores associados à condição de morador de rua divididos em três níveis de variáveis: 1) as variáveis estruturais ou macro que compreende a extrema pobreza, desemprego, falta de moradia, aumento das tendências migratórias, desastres naturais e a desospitalização psiquiátrica; 2) as variáveis que incluem família e suporte social; 3) as variáveis individuais ou micro sendo representado pela faixa etária de 30 a 40 anos, sexo masculino, solteiro ou separado, nível baixo de escolaridade, situações de violências na infância e doenças debilitantes físicas e mentais (SUSSER; MOORE; LINK, 1993). Entende-se que os fatores de riscos individuais para a condição de moradores de rua só podem ser entendidos dentro de um processo social maior, ou seja, os fatores macro.
Estudos colocam que os transtornos mentais comuns (TMC) estão diretamente relacionados a fatores socioeconômicos e inversamente relacionados à densidade da rede de apoio social. Deste modo quanto mais baixo o nível socioeconômico de uma população, mais altas as taxas de prevalência de TMC; assim como, quanto mais densa a rede de apoio social, menor o risco de TMC (COUTINHO; ALMEIDA FILHO; MARI, 1999; LUDEMIR; MELO FILHO, 2002; COSTA; LUDEMIR, 2005; MARAGNO; GOLDBAUM; GIANINI; NOVAES; CÉSAR, 2006). Portanto as características de desvantagem econômica e social da população em situação de rua apontam a vulnerabilidade das condições de saúde mental deste grupo.
Estudos americanos e ingleses apontam que distúrbios mentais menores e as reações psicológicas anormais apresentam grande prevalência nos grupos transitórios e situacionais de moradores de rua. Também se encontra grande prevalência de alcoolismo na população de moradores de rua, em comparação à população em geral, o que os torna mais vulneráveis a acidentes, a problemas físicos e mentais relacionados ao abuso/dependência de álcool (SHANKS, 1983; SCOTT, 1993). As condições adversas de sobrevivência dos moradores de rua podem, também, desencadear problemas mentais orgânicos. Esses indivíduos podem manifestar distúrbios psicóticos agudos e também sintomas como apatia, retardo psicomotor e déficit de memória, decorrentes da adversidade a que estão submetidos (LOVISI, 2000).
Os distúrbios mentais maiores aparecem com maior prevalência no grupo de moradores de rua solteiros. Em comparação a outros subgrupos, esse grupo tem um maior período de vivência nas ruas, aumentando o risco de agravamento de doença física e mental. Na maioria dos estudos, é apresentado que nesses indivíduos os distúrbios mentais maiores antecedem à condição de se morar nas ruas. A condição precária de existência nas ruas pode exacerbar os seus sintomas anteriores, assim como favorecer o aparecimento de outros distúrbios, levando a uma alta prevalência de co-morbidade nesses indivíduos, tornando os casos ainda mais graves (LOVISI; LIMA; MORGADO, 2001).
Pesquisas realizadas no Brasil revelam que a taxa de distúrbios mentais nos moradores de albergues públicos é maior do que a taxa encontrada na população adulta em geral (LOVISI, 2000). Destaca-se achados que colocam que os diagnósticos do grupo das psicoses esquizofrênicas constituem um subgrupo específico entre os moradores de rua, com características demográficas, biográficas e comportamentais próprias (HECKERT; SILVA, 2002). Assim estudos confirmam a alta prevalência de transtornos mentais entre os moradores de rua (HECKERT; AMARAL; CUNHA; RASO; SILVA, 2001).
Considerando o momento brasileiro de reestruturação da atenção pública em saúde mental, e a escassez de informação epidemiológica em relação à saúde mental da população de rua, o presente estudo se propõe a avaliar a prevalência de transtornos mentais comuns da população masculina adulta em situação de rua de Belo Horizonte.
Métodos
Estudo de prevalência de corte transversal realizado no Centro de Referência da População de Rua (CRPR) de Belo Horizonte, órgão público municipal vinculado à Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social do município, realizado no período de março a julho de 2009 com 245 homens adultos em situação de rua de Belo Horizonte. Foram considerados critérios de inclusão: idade de 18 anos ou mais, capacidade física e mental para responder o questionário e aceitação concedida voluntariamente após explicação do objetivo deste estudo, do sigilo do resultado e da segurança do anonimato. No ano de 2008 foi atendido, pelo CRPR, o total de 928 homens em idade adulta. Assim, a amostra corresponde a 26,4% dos homens em situação de rua de Belo Horizonte freqüentadores do CRPR.
O CRPR tem por objetivo resgatar a autoestima e a identidade, além de fomentar estratégias para a superação do processo de ruptura e exclusão social do morador de rua. É um serviço diurno aberto à população de rua, funcionando como local para lavagem de roupas, banho, guarda de pertences pessoais e convivência.
Foram utilizados dois questionários para coleta de dados: ficha epidemiológica e o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20). A ficha epidemiológica era composta por itens referentes às características sociodemográficas: idade, estado civil, escolaridade e tempo de moradia na rua. O SRQ-20 é um instrumento desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e utilizado para suspeição diagnóstica de transtornos mentais comuns. Esses transtornos caracterizam-se por sintomas não psicóticos, tais como: queixas somáticas inespecíficas, irritabilidade, insônia, nervosismo, dores de cabeça, fadiga, esquecimento, falta de concentração (GOLDBERG; HUXLEY, 1992); assim como uma infinidade de manifestações que poderiam se caracterizar como sintomas depressivos, ansiosos ou somatoformes (FONSECA; GUIMARÃES; VASCONCELOS, 2008).
O SRQ foi traduzido e validado no Brasil com sensibilidade de 85% e especificidade de 80%. As 20 questões que compõem o questionário têm duas possibilidades de resposta (sim/não) e foram desenhadas para abordar sintomas emocionais e físicos associados a quadros psiquiátricos. O ponto de corte definido para classificação de TMC foi de oito ou mais respostas positivas (MARI; WILLIAMS, 1986). Os sintomas foram agrupados em quatro categorias: humor depressivo/ansioso, sintomas somáticos, decréscimo de energia vital e pensamentos depressivos (IACOPONI; MARI, 1988).
Os dados foram sistematizados em planilha do Programa Microsoft Excel segundo frequência absoluta (n) e percentual (%). Após o processamento dos dados, procedeu-se à análise estatística descritiva.
O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) (CAAE - 0212.0.213.000-07) e autorizado pela gerência do Centro de Referência da População de Rua e pela Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social de Belo Horizonte. Todos os participantes consentiram em participar preenchendo um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A amostra estudada foi constituída por homens em situação de rua com idade média geral de 35,5±10,2 anos, sendo a maioria de idade madura (31 aos 45 anos) (42,9%), solteiro (66,0%) e com ensino fundamental incompleto (39,5%). A maior parte vive em situação de rua num período inferior a um ano (41,7%). As características da população adulta masculina em situação de rua, constituída na amostra, estão descritas na Tabela 1.
A partir da aplicação do questionário SRQ-20, detectou-se que 121 homens adultos em situação de rua (49,4%) apresentaram rastreamento positivo para TMC. Dentre os sintomas agrupados em categorias evidenciou-se predominância do grupo do humor depressivo/ansioso (29,8%) seguido dos sintomas somáticos (27,5%), decréscimo de energia vital (26,3%) e pensamentos depressivos (16,5%). A prevalência do TMC e sintomas psíquicos da população adulta masculina em situação de rua encontram-se na Tabela 2.
Em relação à saúde mental da população adulta masculina em situação de rua de Belo Horizonte, verifica-se que 49,4% apresentam TMC; e como principal sintoma do humor depressivo/ansioso encontram-se o nervosismo, a tensão ou a preocupação (74,7%), seguida do sentimento de tristeza (70,6%). Em relação aos sintomas somáticos destacam-se a frequência de dormir mal (56,3%) e os tremores nas mãos (37,1%). Nos sintomas de decréscimo de energia vital, identificam-se as dificuldades para realizar com satisfação as atividades diárias (40,8%), seguida da dificuldade em tomar decisão (37,6%). A perda de interesse pelas coisas (36,7%) e a dificuldade em sentir-se útil ou importante (35,1%) foram os principais sintomas encontrados na categoria do pensamento depressivo. Na Tabela 3, verifica-se a distribuição dos sintomas dos TMC.
Discussão
A maioria da amostra foi composta por homens solteiros (66,0%), na faixa etária de 31 a 45 anos (42,9%) e com ensino fundamental incompleto (39,5%) (Tabela 1). Identificou-se que 41,7% dos homens vivem na rua num período inferior a doze meses. Esse percentual encontrado é preocupante, pois importante variável no que se refere à população em situação de rua, diz respeito ao tempo em que essas pessoas encontram-se nessa condição. Em grande medida, o tempo acaba por determinar as chances de um sujeito sair da situação de rua: quanto menor o tempo de rua, normalmente, maiores as probabilidades e, inversamente, quanto maior o tempo, menores as possibilidades de sair dessa situação (FERREIRA; MACHADO, 2007).
Importante frisar que a utilização do conceito de transtornos mentais comuns não se propõe a uma psiquiatrização e medicalização da vida da população em situação de rua. Ao contrário dessa perspectiva, empregamos tal conceito como um instrumento para apreender determinada manifestação de sofrimento e suas raízes psicossociais. No presente estudo, o rastreamento para transtornos mentais comuns detectou uma prevalência de 49,4%, uma taxa considerada bastante elevada revelando a fragilização da saúde dos homens moradores de rua de Belo Horizonte.
Essa prevalência pode ser explicada quando se reconhece que os TMC estão diretamente relacionados a fatores socioeconômicos e inversamente relacionados à densidade da rede de apoio social; portanto, quanto mais baixo o nível socioeconômico de uma população, mais altas as taxas de prevalência de TMC; assim como, quanto mais densa a rede de apoio social, menor o risco de TMC (COUTINHO; ALMEIDA FILHO; MARI, 1999; LUDEMIR; MELO FILHO, 2002; COSTA; LUDEMIR, 2005; MARAGNO; GOLDBAUM; GIANINI; NOVAES; CÉSAR, 2006). No contexto tão adverso da situação de permanência na rua, são relatados inúmeros fatores que comprometem a estrutura individual agravando as capacidades mentais e físicas, extremamente presentes na vida dos moradores de rua: a miséria, a violência, o consumo abusivo de drogas, o rompimento com a família e as situações de violência doméstica, sexual e moral (CANÔNICO; TANAKA; MAZZA; SOUZA; BERNAT; JUNQUEIRA, 2007). Nesse sentido, essa população torna-se altamente vulnerável a múltiplos fatores de riscos para a saúde, os quais estão associados à sua condição extrema de pobreza e fragilidade dos laços familiares e sociais. Portanto, tal resultado aponta para a vulnerabilidade das condições de saúde mental das populações em situação de desvantagem econômica e social: a população de rua revela o aspecto grave da extrema pobreza ao representar a linha final da cronificação do empobrecimento. Por outro lado, estudos epidemiológicos também apresentam condições que diminuem a vulnerabilidade aos transtornos mentais comuns, entre essas condições: redes de apoio social, acesso à educação, ao lazer e ao mercado de trabalho, condições às quais em geral, a população de rua encontrase sem acesso.
A alta taxa de prevalência (49,4%) de TMC nos moradores de rua justifica os resultados encontrados no 1º e 2º censos realizados na capital mineira, que apresentam o problema psíquico/saúde mental como principal problema de saúde pública encontrado em homens e mulheres nas ruas (BELO HORIZONTE, 1998; BRASIL, 2006. A situação precária de vida, a que essa população está sujeita, pressupõe um pensar saúde-doença de forma diferenciada, entendimento importante para a formulação de ações pelos serviços de saúde (CARNEIRO JUNIOR; NOGUEIRA; LANFERINI; ALI; MARTINELLI, 1998). A sobrevivência da população de rua depende de sua energia física para se locomover: o "trabalho" aparece em forma de ganhos esporádicos. A violência urbana quotidianamente vivenciada, a perda de vínculos familiares, entre outros, são fatores de grande importância na concepção do adoecer, no cuidado, e, consequentemente, como fator de sofrimento mental.
Estudos apresentam um modelo circular de relação entre pobreza e transtornos mentais comuns, em que a pobreza se desdobra em reações psicológicas, essas em consequências funcionais que retornam novamente à pobreza (FONSECA; GUIMARÃES; VASCONCELOS, 2008). Nessa ótica o empobrecimento populacional brasileiro exerce influências significativas na qualidade de saúde dos indivíduos, uma vez que a saúde individual não se limita à sua dimensão biológica e psicológica; ao contrário, está diretamente relacionada às condições de vida dos seres humanos e sofre influência das políticas sociais e econômicas adotadas pelos países (ROSA; SECCO; BRÊTAS, 2006).
Dentre os aspectos avaliados pelo SRQ-20, evidenciou-se predominância dos sintomas relacionados ao humor depressivo/ansioso, em que as diversas questões apresentaram elevados percentuais de positividade, destacando-se perguntas como "sente-se nervoso, tenso ou preocupado?" e "sente-se triste ultimamente?", com percentuais de respostas afirmativas de 74,7% e 70,6%, respectivamente. Esses resultados podem justificar os psicofármacos (43,24%) como sendo o principal medicamento usado pelos moradores adultos, masculinos em situação de rua de Belo Horizonte, entre eles os ansiolíticos, antipsicóticos, antidepressivos e anticonvulsivantes (BOTTI; CASTRO; FERREIRA; SILVA; OLIVEIRA; CASTRO; FONSECA, 2009).
Entre as categorias de sintomas de TMC avaliados pelo SRQ-20, encontrou-se como destaque, em relação aos sintomas somáticos, a frequência de dormir mal (56,3%); em relação aos sintomas de decréscimo de energia vital, as dificuldades para realizar com satisfação as atividades diárias (40,8%); e ao pensamento depressivo, a perda de interesse pelas coisas (36,7%), e isso pode ser compreendido pela inerente condição da população que vive nas ruas. Viver nas ruas em geral significa estar em risco cotidiano de ter os pertences roubados, de ser agredido, de ser vítima de violência sexual, de ser alvo de agressões da sociedade civil ou mesmo dos órgãos oficiais responsáveis pela segurança, tudo isso associado ao fato de que a miséria contribui para que os laços afetivos e culturais sejam rompidos, gerando abandono, fragmentação de relações e de identidades. A perda de laços afetivos e comunitários compromete a vida das pessoas, especialmente do ponto de vista da sua saúde mental. Tais fatores, portanto, acabam compondo o quadro geral de falta de pertencimento e desfiliação social (COSTA, 2005).
Além de inerentes à condição de morador de rua, também se pode entender os sintomas encontrados como efeitos da falta da rede de apoio social de tal população, já que existe uma associação inversa entre rede de apoio social e TMC. Os efeitos protetores da rede de apoio social sobre a saúde mental dos indivíduos são definidos pela situação conjugal (ter ou não um companheiro), número de familiares em quem se confia, participação em atividades artísticas ou esportivas e frequência em grupos religiosos onde se encontram redes de apoio social (FONSECA; GUIMARÃES; VASCONCELOS, 2008).
O sofrimento mental e as reações psicológicas anormais têm grande prevalência nos grupos transitórios e situacionais de moradores de rua (SCOTT, 1993). Esses sujeitos desenvolveriam esses sintomas como resposta a um acontecimento extremamente doloroso, que pode ser entendido como a própria situação de morador de rua. As condições adversas de sobrevivência dos moradores de rua podem, também, desencadear sofrimento mental. Esses sujeitos podem manifestar distúrbios psicóticos agudos e também outros sintomas como: apatia, retardo psicomotor e déficit de memória, decorrentes de toda a adversidade a que estão submetidos. Outro fator refere-se à condição de morar na rua como uma situação que contribui para o consumo excessivo de álcool. No entanto, também há grupo de pessoas que tiveram no alcoolismo um antecedente: à condição de morarem nas ruas, e as suas sintomatologias se agravaram em consequência desse evento. A grande prevalência de alcoolismo na população de moradores de rua, em comparação à população em geral, torna-os mais vulneráveis a outros comprometimentos, como aos problemas mentais relacionados ao abuso/dependência de álcool (LOVISI, 2000; LOVISI; LIMA; MORGADO, 2001).
O próprio sofrimento mental maior é um importante fator predisponente, que pode levar os sujeitos a se tornarem moradores de rua. Outros fatores como severidade dos sintomas, co-morbidade com dependência de álcool/drogas, não cooperação com o tratamento e falta de apoio social podem contribuir para tal condição. Muitos são os distúrbios mentais que acometem os moradores de rua. Existe, entretanto, a dificuldade na delimitação do fator temporal de causalidade, ou seja, se os distúrbios antecedem ou sucedem o fato de se morar nas ruas, fato que exige maiores investigações (LOVISI, 2000; LOVISI; LIMA; MORGADO, 2001).
Entre as limitações deste estudo, aponta-se a metodologia utilizada que não permite a generalização dos seus achados para outros grupos, pois o estudo foi realizado com uma população em situação de rua que procura o centro de referência, não tendo abordado sujeitos em situação de rua que não frequentam esse serviço. Outro fato é o de a depressão ter sido avaliada exclusivamente com o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20). Por fim, preconiza-se o desenvolvimento de outros estudos, tendo em vista tais limites.
Conclusão
A condição de morar na rua, especialmente nas grandes e médias cidades, caracteriza hoje um grupo populacional definido no âmbito das políticas sociais como população de rua. Tal grupo vive em condições de extrema pobreza, em geral com precários vínculos familiares e de trabalho e falta de acesso a bens materiais e sociais.
A população de rua deve ser entendida como um conjunto de indivíduos sociais, sem trabalho, sem casa, que utilizam a rua como espaço de sobrevivência e moradia. Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à condição de espoliação, ao enfretamento de carências, mas significa também adquirir outros referenciais de vida social, diferentes dos anteriores que eram baseados em valores associados ao trabalho, à moradia, e às relações familiares.
Reconhecendo que os transtornos mentais comuns estão relacionados a uma série de questões sociais, entre elas fraca inserção no mercado de trabalho, baixa escolaridade, baixa renda, falta de vínculo familiar, condições de moradia precárias (FONSECA; GUIMARÃES; VASCONCELOS, 2008). Essa é a realidade comum da população em situação de rua, podendo então se pensar a prevalência dos TMC na população masculina adulta em situação de rua de Belo Horizonte como fruto de uma situação de vulnerabilidade desse grupo social, isto é, a própria condição de vida da população de rua pode vulnerabilizar esse grupo social à maior prevalência de transtornos mentais comuns.
Se, por um lado, a vulnerabilidade social e econômica pode deixar os indivíduos mais expostos a estados de mal-estar, expressos através dos chamados transtornos mentais comuns, por outro, o aumento da densidade das redes de apoio social diminui o risco de TMC. A constatação de que as populações em situação de vulnerabilidade ou de pressão social estão mais sujeitas aos transtornos mentais comuns não faz e nem deve fazê-las vítimas de um destino imutável nem de uma realidade estática (FONSECA; GUIMARÃES; VASCONCELOS, 2008).
Compreender essa população, suas peculiaridades, sua vida, seus problemas de saúde não resolve o problema da desigualdade e exclusão social. No entanto, acreditamos que a pesquisa é um caminho, enquanto mecanismo de conhecimento e denúncia social, que possibilita a visibilidade dessa situação, a fim de promover ações no sentido de estabelecer políticas públicas universais.
Agradecimentos
Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento, processo nº. CDS - APQ-00016-08 e pelas bolsas de iniciação científica de Carolina G. Castro e Ana Karla Silva. Um agradecimento especial ao Centro de Referência da População de Rua (CRPR) de Belo Horizonte pelo apoio na produção científica e a todos os moradores em situação de rua, frequentadores do CRPR, pela participação na pesquisa.
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Data de recebimento: 25/08/2010.
Data de aceite: 23/12/2010.
Sobre os autores:
Nadja Cristiane Lappann Botti é Psicóloga e Enfermeira, Mestre em Fisiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutora em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo (USP); Professora do Curso de Enfermagem e Medicina da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Atua como pesquisadora do Nexos: Grupo de pesquisa Saúde Mental e Interfaces, vinculado ao CNPq. E-mail: nadjaclb@terra.com.br.
Carolina G. Castro é Enfermeira graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/Minas). E-mail: carolinagcastro@yahoo.com.br.
Mônica Ferreira é Enfermeira graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/Minas). E-mail: monicafenf@yahoo.com.br.
Ana Karla Silva é Enfermeira graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/Minas). E-mail: ana_karlasilva@yahoo.com.br.
Ludmila C. Oliveira é Enfermeira graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/Minas). E-mail: ludcristinaoliveira@yahoo.com.br.
Ana Carolina H.O. A. Castro é Enfermeira graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/Minas). E-mail: castro_anacarolina@yahoo.com.br.
Leonardo L. K.Fonseca é Enfermeiro graduado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/Minas). E-mail: leokahey@yahoo.com.br.