35A linguagem do espaço físico na educação infantilTeoría social clásica y postpositivismo 
Home Page  


Barbaroi

 ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.35 Santa Cruz do Sul dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Observações clínicas sobre o valor das reminiscências no processo de envelhecimento

 

Clinic notes on the value of reminiscences in the aging process

 

 

Sueli Sousa dos SantosI; Sergio Antonio CarlosII

IUniversidade do Estado do Rio Grande do Sul - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

 

 


RESUMO

As expressões de interesse e práticas sexuais na velhice, que eram toleradas há anos atrás com certo estranhamento, passam a ser consideradas nos últimos anos um dos elementos determinantes para a saúde física e emocional das pessoas em processo de envelhecimento. A psicossexualidade torna o humano diferente das outras espécies; não está a serviço apenas da procriação e preservação da espécie, posto que tem como fator propulsor a realização de desejo e a busca do prazer. O trabalho na clínica psicanalítica tem possibilitado observar o valor das reminiscências da vida sexual no processo de envelhecimento. Este artigo faz parte de uma investigação sobre os efeitos das reminiscências na clínica com idosos. Apresentamos um recorte clínico no qual se evidenciam os efeitos emocionais que se produziram em uma mulher de 89 anos, quando as reminiscências de sua história passada rompem algumas barreiras do recalcamento, desencadeando crises de angústia. A partir de sessões de psicanálise, conclui-se que o trabalho com as reminiscências, em pacientes idosos, pode produzir uma reconstituição histórica, considerando que as lembranças nos velhos estão a serviço também de uma revalidação das experiências vividas, rompendo o sofrimento de culpas passadas.

Palavras-chave: Reminiscências. Envelhecimento. Sexualidade. Recalcamento.


ABSTRACT

The expressions of interest and sexual practices in the old age, which, until some years ago, were tolerate with a certain strangeness, have become a determinant element in the emotional and physical health of aging people. The Psycho-sexuality that makes the human being different from other species is not only working for procreation and preservation of the species, since it has as a propulsive factor the desire's realization and the seek for pleasure. The work in the psychoanalytic clinic shows the importance of the reminiscences of sexual life in the aging process. This paper is part of a research about the effects reminiscences in the elderly clinic. We present a clinical studying where the emotional effects produced on an 89 years old woman are clear as the reminiscences of her past life break some of the repression barriers, triggering anxiety crises. Based on psychoanaly therapy, it is conclued the work with elders' reminiscences can produce an historical reconstitution considering that in the elder people the reminiscences serve both to reconstruct the history and to validate the lived experiences breaking the suffering of past guilts.

Keywords: Reminiscences. Aging. Sexuality. Repression.


 

 

Introdução

Algumas considerações sobre o inconsciente e o tempo na velhice

Tomando a tese do estatuto do sujeito, que, para Freud e Lacan, está circunscrita à ideia de inconsciente, se evidencia que o envelhecer, assim como a morte, não se inscrevem enquanto representação. Sendo assim, fica clara a dificuldade em formalizar um conceito de velhice, assim como estabelecer uma clínica sobre o envelhecimento do ponto de vista da psicanálise. Dizendo de outro modo, não há uma clínica da velhice.

Além do que, o que exatamente define a velhice? Afinal, quando entramos na velhice? O que determina que somente aos 60, 70, 80 anos ou mais, uma pessoa possa ser considerada velha? O que se diz sobre a velhice está determinado por protocolos de desenvolvimentos biológicos, fisiológicos, funcionais, informando um padrão de classificação estatística. Portanto, preestabelecido para controle de doenças e previsões de suas perdas devido ao desgaste orgânico, e fisiológico, que é decorrente do processo natural de desenvolvimento do organismo humano.

Essas classificações podem ter interesse como elemento de análise para o estabelecimento de políticas públicas do segmento econômico, investimentos e controle social. No que diz respeito às questões emocionais, parece haver uma primazia de juízos de valores seguindo padrões de conduta afetiva e comportamental, forjadas muitas vezes por preconceitos sociais que ditam o que é aceitável ou não nas relações dos velhos com seu meio familiar, afetivo e social. Há uma desconsideração quanto às inscrições psicossexuais, que, do ponto de vista da teoria psicanalítica, desde os primeiros estudos de Freud (1905), determinam como o sujeito constitui sua sexualidade. Esse processo é formador do aparelho psíquico a partir das primeiras relações de objetos amorosos atribuídos às relações com as figuras parentais.

Assim, não definimos o que é um velho em sua complexidade biopsicossocial. Apenas elencamos algumas características que se evidenciam marcando o real do corpo. Não levando em conta consequentemente cada momento do que foi vivido, não consideramos as circunstâncias das perdas ao longo da vida e que resultam em como o velho viveu, experimentou, aprendeu, desfrutou de seu processo de envelhecimento. A maneira como foi vivida sua sexualidade e afetividade, durante toda a vida, terá suas repercussões na vida da velhice.

A demanda de uma escuta analítica sobre os conflitos relativos a esses aspectos, que talvez tenham sido negligenciados ou recalcados, podem emergir na velhice em forma de sintomas físicos ou emocionais, como em qualquer outro período da vida, produzindo sofrimentos em busca de algum sentido. E aí nos questionamos: Qual é o limite dessa escuta? Há um limite para a escuta das manifestações do inconsciente?

O pouco investimento que se tem demonstrado na investigação da clínica de pessoas idosas, em psicanálise, talvez ainda traga marcas do entendimento freudiano, a partir de sua reflexão em "A sexualidade na etiologia das neuroses" [FREUD, 1898]. Nesse momento de seu desenvolvimento teórico, Freud acreditava que, na velhice, as defesas estariam de tal forma estruturadas que não haveria possibilidade de uma reconstituição histórica que viabilizasse mudanças subjetivas.

No entanto, o próprio Freud propõe que fora da regra fundamental da psicanálise, ou seja, da associação livre, cada caso só poderia ser tratado em sua singularidade, tomando cada história em seu particular, independente da idade cronológica daquele que sofre. Tomando essa última reflexão, cabe-nos interrogar: Será que na velhice o inconsciente perde as possibilidades de seguir tecendo as tramas entre o real, o imaginário e o simbólico?

A longevidade na contemporaneidade, como um fenômeno decorrente das mudanças de vida, e dos avanços da ciência com relação aos cuidados com a saúde, leva-nos a reconsiderar o fato de que o envelhecimento, assim como o inconsciente, não cessa de se inscrever. Assim, o inconsciente dos velhos, segue registrando sua história, para além do tempo cronológico, num jogo de esconde-esconde, entre lembranças passadas com o recordar, no presente, e pela não resolução ou elaboração de pontos obscuros que insistem em produzir sintoma, em decorrência de culpas ainda ativas, pela força do recalcamento.

Não há tempo marcado que delimite ou impeça o retorno do recalcado. Não esqueçamos que, para Freud [1905], a sexualidade adulta é infantil. A partir de Merleau-Ponty (1992) e Lacan (1973) afirma-se que o sujeito se vê pelo olhar do Outro como velho, ou seja, é o olhar do Outro que aponta para esse processo de mudança, posto que o sujeito não se reconhece como tal. Por vezes, o que se impõe como real, inscrito pulsionalmente, retorna como rememoração, trazendo intensidades de angústia e sofrimento que buscam uma saída, via palavras.

Dizendo de outra forma, não podemos dizer que a velhice seja um tipo clínico, por isso a afirmativa que a análise possível é do sujeito do inconsciente. A problemática que possa advir da velhice pode ser pensada desde o ponto de vista da temporalidade do inconsciente, enquanto suas marcas originárias indestrutíveis, o que corresponde ao recalque originário.

Além disso, o inconsciente deixa em aberto a re-significação que possa ser reinscrita pela cadeia significante. Não podemos negligenciar a ideia de que há ainda um inconsciente que surge pelas formações do inconsciente, ou seja, sintomas, sonhos, atos falhos, esquecimentos que marcam o real do corpo em suas perdas e mudanças funcionais com o passar do tempo, ou da idade (LACAN, 1999).

Vamos nos deparar na clínica com um outro tempo, que retroage para re-significar, atualizando o passado no presente. Operamos na clínica com esses três tempos formalizados por Lacan (1998). Por ação do tempo lógico, como efeito de uma nova ação psíquica produzindo, recordações que emergem, possibilitando a elaboração de um passado que insiste em produzir sofrimento incidindo sobre o presente.

Em outras palavras, em análise, a escuta a ser feita deve incidir sobre o sujeito do inconsciente e esse não envelhece. Portanto, o trabalho do analista é sobre a inscrição da realidade psíquica, não havendo, segundo Lacan (1998), a diferença entre um fato passado ou atual. Em verdade, os sintomas atualizam o passado, o que podemos constatar no fragmento clínico que passamos a apresentar para nossa reflexão sobre o tema, a partir de uma pequena síntese da história de sofrimento de uma mulher com quase 90 anos.

Em determinado momento, mesmo com essa idade, ela se sente convocada e ameaçada em ter de revelar seus segredos, guardados por toda a vida. Esta interpelação por parte dos filhos faz eclodir com toda a fúria as culpas que ela escondeu, recalcou por forças de um supereu estruturado por valores religiosos, morais e familiares, que tinham por princípio a proibição relativa a experiências sexuais fora do casamento, na tentativa de preservar sua imagem como mulher de respeito.

Por não ter anteriormente a possibilidade de trabalhar e/ou elaborar as situações conflitivas, a ameaça sentida pela interpelação dos filhos desencadeia uma crise nervosa. Reinstalou-se, reeditou-se a situação traumática. O retorno do recalcado, em qualquer momento da vida, pode cobrar sentido, via sintomas, até encontrar palavras que criem novos sentidos e, quem sabe, resolução do conflito (FREUD, 1937). Por isso é importante que se possa direcionar a escuta analítica pelo que se apresenta, e não pela idade daquele que demanda análise.

 

Recorte clínico

Madalenai liga marcando um horário depois de um apagãoii que sofreu, segundo ela, durante uma comemoração familiar. O atendimento é feito em um residencial onde tem um apartamento individual e vive acompanhada de uma atendente. Conta que em uma festa familiar, a família começa a recordar o passado e parece haver muitos fatos incompreensíveis para os filhos sobre a morte do pai e a vida de Madalena, após sua viuvez.

No momento em que os filhos pedem que ela fale um pouco sobre essa situação, ela diz que tem um apagão. Como se tudo que passou a vida toda, a partir da morte do marido, tenha explodido à sua frente. Todo o sofrimento, tudo o que enfrentou para poder seguir sua vida adiante não podia ser contado, lembrado, desenterrado agora.

Como ela reagiu a essa pressão? Ficou furiosa, começou a gritar com todos, disse que não queria mais ficar ali, que não tinha que falar sobre nada, ficou louca. Os familiares a acalmaram, até porque ela não podia se locomover sem ajuda, dizendo que tinha que procurar se tranquilizar e quem sabe, se sofria tanto com essas histórias, deveria buscar um espaço para poder falar com alguém, sem prejudicar sua saúde. Depois de se recuperar da crise de raiva e depois de chorar muito, concorda em telefonar marcando uma hora para contar o ocorrido e procurar entender o que lhe aconteceu naquela festa.

A alteração dos afetos e comportamento tem uma história que a desencadeia, mesmo quando haja um comprometimento neurológico, que, finalmente, deteriorará definitivamente as possibilidades de ligações emocionais. No entanto, em ausência de uma doença orgânica e funcional degenerativa, as formas como os velhos mostram-se nas relações intersubjetivas devem ser pensadas, como em qualquer idade, por um diagnóstico transferencial.

O que ocorreu na festa não foi o motivo do surgimento dos seus sintomas, mas as questões que lhe colocaram fez emergir conflitos recalcados em sua juventude. Mas algumas perguntas, curiosidades sobre uma história a que a todos havia afetado, ganharam voz e puderam ser formuladas. Contudo, parece que apenas agora, tanto tempo passado, os filhos, todos reunidos, conseguiam a coragem de interpelar aquela figura idealizada, quem sabe amada e odiada, da mãe que deteve o poder sobre o destino que os filhos deram às suas vidas. Os filhos, também com mais de 50 anos, buscam entender esse amor pela mãe, a perda do pai, a tragédia que os acometeu e afetou a todos, mãe e filhos.

A analista escuta Madalena em seu apartamento, durante dois meses, duas vezes por semana, ou quando necessitasse fora dos horários estabelecidos. Esta necessidade ocorreu em alguns momentos de intensa angústia, quando a paciente sofria alterações de pressão produzida por fatores puramente emocionais, pela rememorações ou novos encontros familiares em que se sentia pressionada a falar sobre os acontecimentos da vida que levou com os filhos depois de sua viuvez.

Há na família muitos silêncios e segredos na relação dos filhos com ela e uma total incompreensão do que aconteceu com o pai, que morreu de repente, deixando a todos, Madalena e os cinco filhos - na época -muito pequenos, totalmente desamparados, contando apenas com o apoio do avô materno que também faleceu logo em seguida. Ela fala de momentos de profunda depressão e desestruturação em que queria se matar e, nos quais, chegou a tentar.

Madalena não sabia o que fazer com tantos filhos, nem como sobreviver apenas com seu trabalho de professora e a pensão deixada pelo marido. Era proibido falar sobre a morte do marido, como se ela não houvesse ocorrido.

O que conduziu a escuta analítica era sustentado pela forma como o sujeito se colocava frente à falta do Outro em suas relações com o desejo. Dizendo de outra forma, a forma como Madalena produzia seu discurso em análise, repetindo suas culpas em relação às proibições de expressão de seus desejos, ia reconstituindo uma história marcadamente advinda da relação com os elementos de censura incorporados por sua história familiar.

À medida que recuperava os fios de sua história, Madalena ia refazendo as pegadas das forças pulsionais que haviam agido na sua constituição estrutural enquanto uma neurose, independente de sua idade. Como sabemos, os traços marcados não se perdem ao longo da historia ou do tempo, posto que incidem sobre o sujeito do inconsciente e não sobre o indivíduo. Seguindo a Freud (1937, p. 242):

Todos os recalques se efetuam na primeira infância; são medidas primitivas de defesa, tomadas pelo ego imaturo, débil. Nos anos posteriores, não são levados a cabo novos recalques, mas os antigos persistem, e seus serviços continuam a ser utilizados pelo ego para o domínio das pulsões. Livramo-nos de novo conflitos através daquilo que chamamos de "recalque ulterior".

Ao retomar os fatos de sua historia, Madalena vai recuperando as lembranças mais remotas, desde a infância. Dá a impressão que ela contava para si mesma essa história há muito tempo, como decorrência de culpas de um amor edípico que a religião e os seus confessores não conseguiam dirimir. Ela fala de uma mulher frágil e que, ao mesmo tempo, criou uma máscara de poder, na tentativa de suportar sua solidão, sua dor por sentir-se tão carente em nível material e afetivo para orientar a própria vida e dos filhos.

Tornou-se fria, uma máquina de trabalhar, embora amasse os filhos. Sempre se conflitou muito com eles, pois não admitia que falhassem, ou se perdessem dos valores morais que ela transmitira e aprendera com seu pai, pois se assim fosse, ela teria falhado. Ela fala com orgulho que encaminhou a todos e, de certa forma, todos estão bem de vida graças a sua ação e vigilância.

O que não poderia vir nunca à tona eram suas questões de ordem sexual as quais ela considera como seu deslize frente à situação de mãe de família e de pessoa criada dentro dos princípios religiosos. Na medida em que Madalena vai recuperando a memória de sua história, falando de suas culpas em relação aos princípios que havia transgredido para seguir vivendo com seus filhos, vai resgatando sua imagem de mãe desvelada que dedicou toda a vida a eles, e sempre teve o controle da situação.

Ela teme que os filhos venham, a saber, que antes de casar, pela segunda vez, com um senhor 12 anos mais velho que ela, teve outro namorado. Madalena passara a vida escondendo de todos uma vida dupla em que toda sua aprendizagem religiosa de pureza e mulher imaculada mantida até o casamento, com a morte do marido e em seguida de seu pai, perdeu sua sustentação.

A busca de satisfação sexual passa a ser sentida como pecaminosa e toma um caráter de ritual sacrificial. A paciente sente-se em pecado, refugia-se na religião, se confessa para buscar o perdão do Deus Pai. Na tentativa de justificar seu pecado, busca a sustentação de um supereu paterno, familiar, como garantia do perdão divino um retorno aos valores em que foi criada. Assim, sente-se na religião protegida e fortalecida. Pecar era se permitir ter desejo e buscar satisfazê-lo, como recurso para poder sustentar a sua vida precária com os filhos e ampará-los.

Agora, na velhice, quando questionada pela justificada curiosidade dos filhos em entender o que acontecera em suas vidas, posto que Madalena jamais pôde falar sobre suas dificuldades e demonstrar amor em relação aos filhos, sente como se eles a estivessem desafiando, desnudando ou a destituindo do lugar poderoso e de mártir em que ela se colocou para sobreviver à dor de todas as suas perdas. Era como se tivesse que contar aos filhos sobre as experiências amorosas que havia vivido e das quais se culpava e envergonhava.

O autoritarismo disciplinar e moral com o qual educara seus filhos havia tido a função de mordaça sobre os fatos proibidos de sua vida fora do lar e do trabalho. Investida de um supereu rigoroso e retaliador, não havia espaço para seu carinho e intimidade em relação aos filhos, criando uma distância que não possibilitaria a revelação de nenhum indício de sua história secreta.

A cada sessão, abriam-se brechas na censura, possibilitando uma revisão progressiva da imagem imaculada que se havia quebrado imaginariamente, por ela mesma, quando questionada pelos filhos. Afinal eles só reivindicavam algumas informações sobre a história da morte do pai, que lhes fora confiscada pela lei do silêncio imposta pro Madalena. Eles não tinham a intenção de destituí-la de sua imagem de mãe zelosa, como ela fantasiara.

Escutar idosos em análise implica respeitar o reordenamento dos traços, que o analisante faz no resgate do realiii , dado pelo discurso do sujeito. É preciso que possamos trabalhar com os derivados dos traços do recalque originário. Dizendo de outra forma, em análise, ao criar um espaço de fala para o sujeito há a possibilidade para que o analisante experimente os efeitos dos significantes sobre si mesmo.

Muitas vezes, Madalena esperava a chegada da analista com ansiedade, dizendo que tinha muito que contar, lembrara mais coisas. Na medida em que ela ia recontando com muitos detalhes os acontecimentos do passado, por vezes sentia-se mal, chorava muito, dizia que havia perdido a vontade de viver, que perdera tudo.

Madalena temia sucumbir à pressão dos filhos. Sentia-se obrigada a ter de falar para os filhos, que cobravam um resgate histórico e faziam acusações que nunca antes tiveram coragem de declarar, como a falta de intimidade com ela, não poder demonstrar carinho por parte dela em relação a eles. Madalena precisava manter os filhos distantes dela, com medo, para que não tivesse de revelar o que julgava proibido.

Em alguns momentos, Madalena tinha intensas crises de angústia marcadas por alterações de pressão, crises de choro e alguma desordem do pensamento. Ela repetia os mesmos fatos que desencadearam sua angústia: a situação da festa em que começou a ser interpelada pelos filhos, sentindo como se eles tivessem perdido o respeito por ela, como se tudo que sofreu para sustentá-los e sustentar seu lugar de mãe poderosa e imaculada tivesse sido em vão.

Por duas vezes, sua acompanhante telefona à analista contando que Madalena não queria sair da cama ou se alimentar e pedia que a profissional fosse até ela. Nessas ocasiões os filhos estavam presentes, assustados com o que estava acontecendo com a mãe. Ela buscava na presença da psicóloga um escudo protetor contra as pressões as quais ela temia sucumbir. Esses momentos de muita dramaticidade a deixavam a descoberto e evidenciavam o quanto realmente sofria e estava fragilizada.

Nessas ocasiões era preciso que a analista falasse com os familiares, recolocando a prioridade de preservar a privacidade de Madalena nesse momento de sua vida. Ela dizia aos filhos, que talvez fosse importante que as questões de suas dificuldades em relação à mãe devessem ser buscadas de outra forma sem interpelação direta. Como diz Mucida (2006, p.196):

A análise deve ser um dispositivo que permita ao idoso se implicar e se responsabilizar por aquilo que deseja, mesmo estando na dependência do Outro. Nesta direção, em alguns casos fazem-se necessárias intervenções junto àquele que cuida do idoso -semelhante à clínica com crianças e adolescentes-para que a análise não seja interrompida exatamente quando seus efeitos começam a se impor.

Por ter tido uma formação familiar calcada na religiosidade e temente a Deus, o sexo no casamento tornara-se lícito e cumpria os princípios da religião, haja vista que teve cinco filhos. A perda do marido bem mais velho, quando ela ainda era jovem, deixou-a à descoberta de seus desejos.

Ela dedicou-se a partir daí aos filhos e a seu pai que, segundo ela, sempre a consideroulhe como a favorita entre todos os filhos. Quando seu pai morreu também, sentiu-se como se tivesse sido abandonada duas vezes, pelo marido e pelo pai. Entra em profunda depressão. Sem as referências familiares que norteavam sua vida sexual, tenta refúgio na religião como forma de controlar o incontrolável: seus desejos.

Interessante ressaltar que o tema da sexualidade, muito antes do conhecimento da psicanálise, já era colocada como um problema que concerne ao poder que exerce sobre as relações intersubjetivas e interinstitucionais, sendo moeda de troca no jogo entre instâncias de poder econômico e político. A questão religiosa, que sempre intermediou um e outro, valendo-se muitas vezes do discurso moral, de certa forma sustentava a imagem do poder divino representada na figura do legislador do Estado, regulando o comércio sexual.

Embora a sociedade atual tenha passado pela revolução sexual do século XX, com o advento das novas configurações do amor e dos laços sociais, ela não deixa, no entanto, de ainda estar presa a antigos padrões e valores morais. De alguma forma, a ideia de pecado, ligado ao sexual e o temor a Deus, onde subjaz um simulacro do amor edípico, parece ainda exercer um intenso fascínio e temor sobre o psiquismo humano.

Se tomarmos como sujeitos de estudo pessoas que atualmente têm entre 70 anos em diante, encontramos ainda muito marcado esse discurso do pecado associado ao prazer no sexo, mais intensamente de parte da sexualidade feminina. Isso nos leva a interrogar: o que determinou a maneira como foram vividas as experiências sexuais das mulheres que viveram este último século, apesar de todas as mudanças, informações e libertação de comportamento?

E mais, quais as consequências na história ainda em curso? Como as mulheres que atualmente têm mais de 70 anos viveram sua liberdade sexual, a partir do advento da pílula anticoncepcional, de sua entrada no mercado de trabalho, de sua independência frente às obrigações dos cuidados da casa e da família?

O tema da sexualidade, como culpa e pecado, parece vigente nas marcas que ainda se inscrevem no real do corpo das mulheres idosas que buscam uma escuta em psicanálise. Neste recorte apresentado aqui para pensar sobre o valor das reminiscências no processo de envelhecimento, evidencia-se como a ambivalência apresenta enquanto uma marca forte ainda, na reatualização do Édipo dos filhos. Tanto no discurso de Madalena com relação aos filhos como de parte desses, todos com mais de 50 anos e que ainda buscavam desvendar os segredos familiares, quando a interpelam sobre o passado, atestam a insistência do recalcado.

Sentimentos que persistem, assim como a culpabilidades sob traços edipianos, com desejos de se apoderar dos segredos e da força da mãe de forma primitiva e arcaica. Assim, como Madalena relata seu amor pelo pai, que a considerava como a filha predileta, por isso sente-se traída e abandonada pelo pai quando esse morre; sem saber que o fazer, buscou depois da sua morte um homem mais velho para segundo matrimônio.

 

Algumas considerações sobre o desfecho deste recorte clínico

Importante ressaltar que, apesar de, cronologicamente, a análise ter se estendido durante apenas dois meses, com uma frequência de duas sessões por semana, houve uma intensidade e aprofundamento do trabalho relativo ao sofrimento que motivou a busca de análise. Emergiram os conflitos, com os temas proibidos e recalcados por tanto tempo, na medida em que ganhavam, via palavra, um novo entendimento e interpretação por parte de Madalena. As crises de depressão começavam a ceder espaço a uma reconciliação consigo mesma.

Durante esse tempo em que a psicóloga a acompanhou, ela teve de enfrentar mais uma mudança. Por questões administrativas do residencial onde morava, teve de trocar de apartamento, o que produziu um outro desalojo de seu lugar de referência, reduzindo alguns móveis e objetos que ela mesma havia organizado quando se mudou para lá. Ela me diz: estou desmoralizada, não sou mais dona de nada.

Os filhos organizaram o novo apartamento, tirando as fotos que até então estavam contando sua história nas paredes ou nos porta-retratos sobre os móveis. Nova destituição de poder e identidade, um apagamento do passado, mas que ela pode aos poucos considerar como um ambiente mais limpo, leve. Começa a achar o novo apartamento mais iluminado, arejado, mais alegre.

Madalena passa a falar, a partir desta mudança, de um sentimento de conforto encontrado no novo espaço físico no residencial. Estava mais tranquila, pois, afinal, havia entendido que não tinha errado tanto na educação dos filhos e com suas escolhas de vida. Ela fez o melhor pelos filhos, por amor aos filhos, sentia-se mais tranquila e amável. Por sua vez, os filhos estavam bem mais carinhosos e ela se animava com a ideia das festas das quais participaria no final de ano. Eles não perguntaram mais nada sobre o passado.

Perto do período do final de ano, considerando-se mais tranquila por ter entendido muita coisa de sua vida ao contar e passar a limpo sua história, concluiu que não devia explicações a ninguém e que Deus a perdoara, o que era o principal. Disse que se sentia bem e que se poderia interromper o atendimento. Assim foi feito.

Esse processo de análise, embora breve, oportunizou a reprodução de um resgate da historia dessa mulher, rompendo com o sofrimento e as culpas do passado relativas à sua vida sexual e às marcas produzidas por uma intensa relação edípica, o que nos faz reafirmar que não há tempo marcado que delimite ou impeça o retorno do recalcado. Da mesma forma, não há nenhum impedimento para que, em qualquer momento da vida, na velhice, possa-se retomar os fios de sua história, buscando sentido para conflitos decorrentes do recalcamento, quando esse insiste em se expressar de forma sintomática, produzindo sofrimento psíquico.

O resultado desta breve análise evidencia que a estrutura não se modifica; o que resulta da análise é a relação do sujeito com sua determinação. As experiências vividas oportunizam a possibilidade de construção de um novo saber, que pela palavra, busca um outro destino aliviando o corpo das dores, dos sintomas, das conversões.

Pensamos que na velhice se oportuniza um momento de trabalho analítico muito promissor, tangenciando o encontro de um saber sobre o real. É possível e oportuno um trabalho analítico independente da idade daquele que sofre e busca uma escuta analítica, na medida em que se respeite o tempo e os limites das possibilidades das rememorações que emergem na busca de sentido.

Neste recorte clínico, evidencia-se que a psicanálise enquanto um método terapêutico que privilegia como técnica a escuta do inconsciente, via associação livre, cria reais possibilidades de produzir uma reconstituição da história de vida de uma pessoa que, independentemente da idade cronológica, pode dar voz a novos sentidos para conflitos considerados até então sepultados.

 

Referências

FREUD,S. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.. Edição Stander Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. VII.         [ Links ]

______. Totem e tabu [1912]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Stander Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XIII.         [ Links ]

______. A sexualidade na etiologia das neuroses [1898]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Stander Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. II.         [ Links ]

______ . Análise terminável e interminável [1937]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Stander Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XXIII.         [ Links ]

LACAN, Jacques. Seminário 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1973.         [ Links ]

______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

______. O seminário livro V -As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.         [ Links ]

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visible e o invisível. Tradução de J. A. Gianotti. São Paulo: Perspectiva, 1992.         [ Links ]

MUCIDA, A. O sujeito na envelhece:psicanálise e velhice. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.         [ Links ]

SÁNCHEZ, C.S. Gerontologia Social. México: Publicaciones Puertorriqueñas, 1999.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 28/01/2011
Aceito em: 20/09/2011

 

 

Sobre os autores:
Sueli Souza dos Santos, é doutora em educação, atualmente coordenadora de qualificação acadêmica da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, coordenadora do Núcleo de Atendimento ao Discente da UERGS, professora e supervisora da clínica do Centro de Estudos psicanalíticos de Porto Alegre e pesquisadora participante da UFRGS. E-mail: reiapa@terra.com.br
Sergio Antonio Carlos, é Doutor em Serviço Social, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na qual é editor da revista Estudos Interdisciplinares Sobre o Envelhecimento, e coordenador da Comissão de Graduação do Curso de Serviço Social. E-mail: sacarlos@ufrgs.br

 

 

i Madalena é um nome fictício. Para a apresentação deste pequeno recorte clínico, procuramos preservar a identidade da analisante. Os dados aqui apresentados não oferecem qualquer elemento de identificação ou detalhamento da história pregressa ou atual que exponha sua privacidade, posto que, tais elementos de análise aqui oferecidos para reflexão, podem fazer parte da história de qualquer pessoa, independente de idade cronológica, nível cultural, etnia ou classe social.
ii As palavras grifadas em itálico são expressões de Madalena em seu discurso.
iii Real: Conceito formulado por Lacan, o real só poder ser definido em relação ao simbólico e ao imaginário. Definido como o impossível , o real é aquilo que não pode ser simbolizado totalmente pela palavra ou na escrita e, por consequência, não cessa de não se escrever.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License