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Barbaroi

versão impressa ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.36 Santa Cruz do Sul jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Insensatos afetos: homossexualidade e homofobia na telenovela brasileira

 

Foolish affects: homosexuality and homophobia in brazilian soap opera

 

 

Fabio Scorsolini-CominI; Manoel Antônio dos SantosII

IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro - Minas Gerais - Brasil
IIUniversidade de São Paulo - São Paulo - Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo investiga o modo como a temática homossexual tem sido retratada na telenovela brasileira Insensato Coração, veiculada em 2011. Por meio de um núcleo constituído por personagens gays, os autores da trama descrevem a diversidade das questões homoafetivas, desde o processo de reconhecimento da homossexualidade pelo sujeito, a "saída do armário", passando pelo preconceito, pela homofobia e busca do reconhecimento dos direitos civis. Fato inédito na teledramaturgia brasileira, os personagens com orientação divergente da heteronormatividade não apenas são destaques na arquitetura da trama, como os seus dramas acabam sendo expressos de modo a explicitar uma visibilidade anteriormente negligenciada ou interdita. Para além desse movimento diferenciado de inclusão da temática homoafetiva na telenovela, destacam-se os efeitos formadores de opinião pública da televisão, como mecanismo de comunicação de massa. Embora alguns personagens ainda retratem movimentos que em nada contribuam efetivamente para a mudança de posicionamentos, favorecendo visões unívocas dos homossexuais como pessoas libertinas e em risco psicossocial, identificamos outros movimentos, que trazem para o domínio familiar dramas anteriormente escamoteados pela teledramaturgia.

Palavras-chave: Telenovela. Homossexualidade. Preconceito. Homoafetividade.


ABSTRACT

This study investigates how the theme of homosexuality has been portrayed in the Brazilian soap opera Foolish Heart, aired in 2011. Through a core made up of gay characters, the authors describe the plot homosexual the diversity of issues, from the recognition process by the subject of homosexuality, the "coming out", through prejudice, homophobia and demanding the recognition of rights civilians. Unprecedented in Brazilian soap operas, the characters with divergent orientation of heteronormativity, are not only highlights the architecture of the plot, as his plays end up being expressed in order to explain a previously neglected or forbidden visibility. In addition to this movement for the inclusion of different thematic homosexual in the soap opera, the highlights are the shapers of public opinion effects of television, as a means of mass communication. While some characters will portray movements at all contribute effectively to the changing positions, favoring unambiguous views of homosexuals as people libertine and psychosocial risk, identify other movements they bring to the area earlier family dramas unsuccessful.

Keywords: Soap opera. Homosexuality. Prejudice. Homoaffection.


 

 

Trans(formar) é preciso

Oh! insensato coração
Por que me fizeste sofrer
Por que de amor para entender
É preciso amar
(Dorival Caymmi, Só louco)

 

Introdução

A família brasileira vem passando por transformações. Ao que parece, leigos e pesquisadores poderiam concordar com esta afirmação. Um exame detalhado dessa frase pode nos indicar outros movimentos igualmente importantes na compreensão do período histórico pelo qual temos passado e ao qual temos reagido em forma de resistência, mas também de aceitação das mudanças. Mas essas transformações não são tão novas quanto imaginamos, nem tão revolucionárias como gostaríamos, mas transições no modo de ser, de pensar, de se vestir, de incorporar costumes, de abdicar de certas normas de conduta e de expressar a afetividade de maneira menos contida ou velada, permissível apenas dentro do universo da intimidade doméstica.

Ao destacarem que não existe um sentido unívoco acerca do que é família, Amazonas e Braga (2006) referem-se a uma trans-historicidade do laço familiar, conceito que traz uma ideia do movimento e dos processos de constante reconstrução da família, em oposição a uma noção cristalizada de família como algo eterno. Entre os fatores que têm contribuído para essas transformações, podemos elencar as transições de ordem cultural, econômica, política e social, que têm mobilizado reflexões contemporâneas em torno do parentesco, dos diferentes arranjos familiares, bem como das rupturas e das redefinições dos papéis parentais e de gênero (CICCO; PAIVA; GOMES, 2005; DESSEN; BRAZ, 2005; FÉRES-CARNEIRO, 2003; MELLO, 2005; NEDER, 2011; OTUKA; SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2012; ROGOFF, 2005; SCORSOLINI-COMIN, 2012; SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2011a; 2011b; TREVISAN, 2010).

Em uma análise das recentes configurações familiares, Passos (2003) refere que o modo de apreender o que é a família tem sido atravessado pelos discursos psicanalítico, institucional e da efemeridade das transformações observadas. Esses discursos põem em foco três aspectos ou dificuldades: (a) a tendência dos estudos psicanalíticos de se voltarem para os fenômenos intrapsíquicos do indivíduo, desconsiderando outras questões; (b) a tendência a ser analisada exclusivamente pelo seu viés social, em termos do contexto; (c) a velocidade das transformações dos arranjos familiares, abrindo a possibilidade de equívocos conceituais que não sustentem análises mais aprofundadas. Nesse sentido, é fundamental que as descrições de família estejam abertas à constante redefinição, haja vista que as noções circulantes na atualidade se mostrem provisórias e, muitas vezes, acabam não contemplando os movimentos inovadores, tais como as reivindicações dos pares homossexuais pelo reconhecimento legal de suas uniões e a constituição de novas configurações familiares a partir da homoparentalidade.

Concebida por muito tempo como uma patologia, só recentemente a homossexualidade foi retirada da categoria de doença dos manuais de classificação de doenças. Algumas definições levaram à cristalização desse equívoco, como no caso da Organização Mundial da Saúde (OMS), que considerava a homossexualidade egodistônica como categoria diagnóstica segundo a classificação dos transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria, ou seja, quando o próprio indivíduo se encontra desconfortável com sua orientação sexual, o que o induz a buscar tratamento (DUNKER; KYRILLOS NETO, 2010).

Mesmo que o modelo inspirador da sociedade ocidental - a família nuclear - esteja se tornando cada vez mais uma experiência minoritária (MELLO, 2005; UZIEL et al., 2006), dado o aparecimento de arranjos familiares distintos, a ideia tradicional de famílias formadas pelo casamento heterossexual, monogâmico e procriador, figura como norma instalada no imaginário coletivo, sendo as demais configurações familiares classificadas a partir deste padrão-ouro. Essa configuração de família tende a ser vista como imutável, inequívoca e natural, descaracterizando a família como instituição social e historicamente construída. Isso de modo análogo ao que ocorre com a heterossexualidade, considerada natural, de acordo com as leis divinas, o que justificaria o preconceito contra a homossexualidade.

Nessa discussão, o Brasil vem sendo palco de recentes embates e redefinições acerca das temáticas LGBT, o que não vem sendo acompanhado pelo incremento em sua produção científica, quando comparada com o contexto internacional. Segundo uma ampla revisão dos últimos 30 anos, Vecho e Schneider (2005) destacaram que a maior parte dos estudos sobre a temática provém dos Estados Unidos, seguido pelo Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, França e Canadá. O Brasil não é mencionado nesse corpo de literatura analisado, o que implica na necessidade de que mais estudos sejam conduzidos pelos grupos de pesquisa brasileiros, a exemplo do que pode ser vislumbrado em outros países. No contexto não acadêmico, entram em cena aspectos como o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, pelo Supremo Tribunal Federal, no início de 2011, bem como a publicização das decisões judiciais que favorecem a adoção por casais homoafetivos em vários pontos do país (FUTINO; MARTINS, 2006; RODRIGUEZ; PAIVA, 2009; SCORSOLINI-COMIN; CECÍLIO, 2012).

Na esteira dessas redefinições, o Conselho Federal de Psicologia - CFP (2011) publicou uma cartilha que pretende "ampliar o posicionamento crítico da categoria acerca da promoção dos direitos das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). Os direitos das pessoas LGBT são uma das pautas que orientam as ações relacionadas aos direitos humanos e à consolidação das políticas públicas. O mesmo CFP lançou em 2008 uma cartilha intitulada "Adoção, um direito de todos e todas", em que apresenta argumentos que contribuem para fortalecer a luta pelos direitos LGBT, relacionados ao conhecimento do desenvolvimento da criança e do adolescente em lares de pessoas homossexuais ou casais homoafetivos.

O Ministério da Educação, em parceria com a UNESCO, lançou em 2009 um documento para a discussão da homofobia nas escolas de todo o país. Segundo esse texto, que contou com a participação de importantes pesquisadores da temática no cenário nacional, a escola pode se configurar como um espaço de opressão, discriminação e preconceitos, no "qual e em torno do qual existe um preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos LGBT - muitos/as dos/as quais vivem, de maneiras distintas, situações delicadas e vulneradoras de internalização da homofobia, negação, autoculpabilização, autoaversão" (JUNQUEIRA, 2009, p. 13). Esse movimento de discriminação em um cenário de intolerância e potencial violência, segundo o mesmo autor, ocorre com a participação ou omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e do Estado.

É nesse sentido que se coloca a questão dos direitos das pessoas LGBT em ambientes de socialização como a família e a escola, para além de questões que visem a reduzir a discussão ao universo da intimidade dessas pessoas (LOURO, 2009; MELLO, 2005; MOSCHETA, 2011; MOSCHETA; SANTOS, 2006; SCORSOLINI-COMIN; CECÍLIO, 2012; TOLEDO, 2008). Mais do que uma orientação ou de uma "escolha" homoerótica, um dos entraves para a conquista do respeito aos direitos humanos no Brasil refere-se à compreensão de que a expressão homossexualidade deveria se restringir ao espaço privado. Vislumbrando uma discussão que visa a formar pessoas, a plenitude de suas potencialidades, a escola torna-se um espaço privilegiado de informação e de formação de cidadania.

Tal mobilização e reconhecimento da temática homoafetiva no domínio da Psicologia e da Educação tem acontecido ao mesmo tempo em que diferentes setores da sociedade têm levantado essas discussões. Conforme destacado por Rogoff (2005), há que se compreender que as diferentes práticas sociais e culturais permeiam não apenas as atividades desenvolvidas em uma dada comunidade, os instrumentos por ela utilizados, mas também os modos como ocorrem a comunicação e o diálogo nessa cultura. É nesse sentido que as telenovelas compõem um texto que, para além de seu caráter de entretenimento, buscam recuperar fragmentos da comunicação cultural que não é isenta de intencionalidade, mas endereçada a um determinado público (audiência). A mensagem transmitida por uma telenovela, os costumes, as crenças e os diálogos priorizados na narrativa de uma história ficcional possuem um aporte no real, na medida em que são produtos desse contexto. Amparados no referencial de Rogoff (2005) acerca do desenvolvimento humano como marca cultural, priorizaremos um dos espaços midiáticos que tem se destacado na contemporaneidade, as telenovelas brasileiras, uma vez que essas produções acabam por retratar também a realidade em dado momento histórico.

Para situar essa discussão em meio a outros estudos, notadamente da área de artes e comunicação, apresentaremos uma abordagem acerca dos estudos que elencam a telenovela como objeto de investigação.

 

A telenovela brasileira em cena

A telenovela no Brasil teve seu início na década de 1950, juntamente com o advento da televisão, que marcou e tem marcado o modo como as pessoas têm lidado com a informação, o conhecimento e também com os seus comportamentos. Para além de seu valor como obra artística ligada à dramaturgia, tal como o teatro, o cinema e outras manifestações, a telenovela constitui uma ferramenta de criação e de transmissão de crenças e costumes, de normas, de modos de ser e de viver, de um ethos, portanto. Moldada pela visão de mundo da classe média, a telenovela é responsável por trazer novidades às casas dos telespectadores que não possuem acesso a outras formas de comunicação e entretenimento, além de ser um retrato - nem sempre fiel - de nossa sociedade, fortemente influenciada pela cultura de massa. Para Marques (2008), a telenovela seria mais do que um produto de massa, de entretenimento ou de passatempo. "A telenovela como texto comunica, carrega elementos significativos que indiciam o contexto em que foram produzidos e carregam mensagens, por isso pode ser considerada como um texto da cultura" (p. 18). Nessa acepção, a cultura de um país poderia ser não apenas contada, mas também retratada a partir das telenovelas, conservando características da realidade em um jogo ficcional que teria uma intenção e seria datado, ou seja, os enredos não se dariam unicamente em função de uma trama, mas sim pelo modo como essa temática poderia repercutir em um dado momento histórico e tendo em vista um maior ou menor apelo emocional para conquistar a audiência da aldeia global. Tal como um produto altamente consumido em nosso país, a telenovela tem o poder de nos comunicar sobre os diferentes movimentos da sociedade e aquilo que mais a alimenta naquele momento.

Nesse sentido, as telenovelas têm constituído um importante material para os estudos das Ciências Sociais. No domínio da Psicologia, embora não seja uma temática muito investigada, é reconhecida como um campo aberto para a compreensão do modo como as subjetividades são construídas e apresentadas ao telespectador. De maneira semelhante, interessa à Psicologia a questão dos contextos desenvolvimentais e da cultura como circunscritora de momentos e percursos possíveis (ROGOFF, 2005). Apesar dos conteúdos ficcionais, os enredos acabam sendo circunscritos em torno daquilo que é possível ser retratado, daquilo que pode ser comunicado em um dado momento e para determinado público.

De acordo com Jakubaszko (2010, p. 15),

(...) o processo de aceitação da telenovela enquanto objeto de estudo científico se fez de modo bastante lento e repleto de desafios, conflitos e controvérsias. Romper com o pensamento predominante de que ela seria um produto de pouca importância, menor em termos artísticos, e quase sempre descrito com o alienante, foi a tarefa de muitos estudos a ela dedicados. (...) Pode-se dizer, hoje, que já existe no meio acadêmico um consenso sobre a relevância e a necessidade de empreender, das mais diversas formas, investigações acerca da produção, circulação, recepção e consumo de telenovela. Não é mais possível negar a influência e a penetração desse produto na vida cotidiana dos brasileiros.

Considerando esses pressupostos, compreendemos o objeto de estudo (telenovela) como campo de investigações das representações das manifestações discursivas do espaço social brasileiro (JAKUBASZKO, 2010). Tal como produto de uma determinada cultura e que reflete valores, práticas e concepções que circulam no meio social (ROGOFF, 2005), a telenovela pode ser compreendida como um instrumento a partir do qual podemos fazer reflexões sobre o desenvolvimento humano em um contexto específico. Esse contexto é o da sociedade brasileira, notadamente de uma parcela significativa que acessa diariamente a telenovela como meio de entretenimento, informação e cultura.

A partir dessas considerações, este estudo teve como objetivo investigar o universo homoerótico presente em uma telenovela brasileira - Insensato Coração - que obteve bons níveis de audiência no ano de 2011.

 

Da insensatez do afeto

A telenovela Insensato Coração, escrita por Gilberto Braga e Ricardo Linhares, e exibida no horário nobre da Rede Globo de Televisão, tornou-se alvo de discussões em torno das temáticas abordadas. Uma delas, e a que mais se distancia do que era tido como usual nas telenovelas até então, é a constituição de um núcleo de personagens homossexuais declaradamente "assumidos". Uma das primeiras aparições de casais homossexuais em telenovelas da Rede Globo aconteceu na novela Torre de Babel, escrita por Silvio de Abreu, Alcides Nogueira e Bosco Brasil no final da década de 1990. Na trama, duas personagens lésbicas, de camada social elevada, foram rechaçadas pela audiência, o que induziu os autores a darem um fim à história dessas personagens apaixonadas, com o auxílio da explosão criminosa de um shopping center. Tratava-se de uma tentativa de silenciar o discurso polêmico instaurado na época, de forma a agradar o público, que julgava ser uma temática muito forte para ser tratada em uma novela.

Alguns anos antes, na novela A próxima vítima, também assinada por Silvio de Abreu, dois jovens homossexuais do popular bairro da Mooca, em São Paulo, eram declaradamente namorados. Por vezes identificados com características bizarras e com um tom de humor, os personagens gays estavam sempre relacionados ao universo do feminino e da "afetação" popularmente reconhecida como um sinal da homossexualidade. Desde então, muitos outros personagens homossexuais surgiram nas telenovelas, em diferentes horários e também em outras emissoras, como no SBT, que veiculou o primeiro beijo de um casal de lésbicas em sua novela Amor e Revolução, no início de 2011.

Em Insensato Coração, vários personagens homossexuais são retratados, desde o clichê do produtor cultural afetado até o sério advogado "que não dá pinta". São tipos tão diversos que suscitam nos telespectadores um olhar não tão enviesado ou estereotipado para a questão. Quem são esses homossexuais e a quais ideias eles remetem? Tais como os heterossexuais, não podemos nos reduzir a uma classificação do que é ser homossexual ou quais as características mais marcantes dessas pessoas. O discurso que busca caracterizar pode ser também aquele que tenta delimitar uma espécie de sintomatologia gay (MOSCHETA, 2011). Nesse processo, pessoas tentam se reconhecer e reconhecer no outro traços de uma identidade que, na verdade, não é única e cristalizada. Ao contrário, são os estereótipos que criam uma falsa ideia de possibilidade de controlar os significados em torno do que é e do que pode ser homoafetivo.

Outro aspecto que aparece fortemente na telenovela em apreço é o espaço de destaque outorgado à temática homoafetiva. Os personagens que sustentam seu desejo homossexual não apenas são destaques na arquitetura da trama, como os seus dramas acabam sendo expressos de modo a mostrar uma visibilidade anteriormente negligenciada ou tida como de menor importância. Segundo Junqueira (2009), o processo de invisibilização de homossexuais, bissexuais e transgêneros precisa ser desestabilizado, notadamente quando tratamos de veículos de formação e de informação, como no caso da escola e da televisão. Um exemplo dessa invisibilidade é a ausência de personagens homossexuais nas telenovelas há cerca de dez anos atrás, bem como a sua caricaturização, o que reforça um preconceito que silencia a audiência acerca dessa temática e evoca ideias marginalizadas acerca do público LGBT. Além disso, as temáticas relativas às homossexualidades, bissexualidades e transgeneridades são invisíveis também nos currículos escolares, nos livros didáticos e até mesmo nas discussões sobre direitos humanos em locais dedicados à formação de cidadãos mais conscientes, como a escola.

Essa invisibilidade a que estão submetidas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais comporta a sua exclusão enquanto tais do espaço público e, por isso, configura-se como uma das mais esmagadoras formas de opressão. É inquietante notar que alguém que não pode existir, ser visto, ouvido, conhecido, reconhecido, considerado, respeitado e tampouco amado pode ser odiado (JUNQUEIRA, 2009, p. 30).

Um exemplo disso são as crises enfrentadas por um personagem que vai, gradativamente, se reconhecendo gay ao longo do tempo. Sua trajetória segue o clássico percurso de muitos homossexuais masculinos: primeiramente há um envolvimento heterossexual frustrado, seguido de uma aproximação com pessoas do mesmo sexo, uma fase de "crise de identidade", a sua aproximação tímida e hesitante em universos tipicamente gays, os chamados guetos, passando pelo desejo de "sair do armário", a revelação da sua condição/orientação para amigos mais próximos, até chegar à conversa com os familiares mais próximos sobre sua orientação sexual. O desenvolvimento desse jovem, e não apenas dele, mas também de sua família, é revelado ao longo dos capítulos, em uma sequência que não apenas retrataria o amadurecimento do personagem, mas também dos telespectadores para a aceitação da condição de conflito e seu consequente desfecho. Em todos os momentos, aparece a dor do processo de reconstrução da identidade e do modo como o ambiente vai contribuindo ou não para que este movimento siga saudável ou transformador. Os discursos circulantes, ao mesmo tempo que incluem a temática na pauta do dia, acabam por debatê-lo por meio de aproximações sucessivas, como se a conversa com o público tivesse que ser temperada. É esse processo que temos observado com a inclusão de temáticas homoafetivas em diferentes novelas, de diferentes horários e destinadas a diferentes públicos, inclusive o de adolescentes e de pessoas mais idosas. O processo de desenvolvimento dos personagens gays, tipicamente conhecido como um sucessivo "sair do armário", pode ser compreendido, segundo o referencial proposto por Rogoff (2005), como relacionado a uma dada cultura. Nesse sentido, é essa cultura que vai possibilitar que esse processo seja mais ou menos natural, mais ou menos dramático, mais ou menos aceito pela comunidade. O percurso desenvolvimental seguiria, desse modo, aspectos presentes na cultura, como uma maior ou menor tolerância em relação à temática.

O núcleo homossexual da novela é retratado em termos dos guetos, como boates GLS e um quiosque na famosa praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, como também em locais não direcionados especificamente para esse público. Podemos observar um movimento tanto no sentido de caracterizar o público LGBT em seus guetos, como de "normalizar" sua frequência em espaços de convivência comum, como bares, domicílios de famílias heterossexuais, outros espaços. Esses redutos, segundo Rogoff (2005), funcionariam como espaços de fortalecimento de identidades, mas também de segregação e de distanciamento de outras realidades. No entanto, a delimitação de tais espaços seria importante na construção de comunidades que compartilham determinadas crenças e padrões de comportamento, fortalecendo o caráter identitário. Como ensaio de uma vida homoafetiva com dinâmicas próprias, a novela acaba por manter visões antigas ou já revisadas do que é ser homossexual, aproximando-se de concepções recentes que preferem não segregar ou padronizar quaisquer comportamentos, quer sejam homo ou heterossexuais. Mesmo assim, tais definições existem e, frequentemente, são utilizadas como estratégias de demarcação de identidades.

Acerca dos espaços frequentados ou não por homossexuais, a telenovela aborda a questão da homofobia em sua condição de crime e de violação de direitos. Em uma cena ocorrida em um bar popular, um garçom discrimina dois casais de personagens gays, o que repercute na multa que o dono do estabelecimento recebe por infração à lei. A movimentação em torno do caso não mostra apenas o lado da discriminação e do preconceito, mas também dos homossexuais como sujeitos de direito e que devem buscar as formas previstas na lei para a afirmação desses direitos. O caráter informativo e formativo remonta ao processo de reconhecer na atitude de discriminação algo que deva ser combatido, ao mesmo tempo em que empodera aqueles que se sentem alvo de preconceito a mudarem a situação, por meio da denúncia, o que é oposto ao silenciamento. O lado contrário à questão também é igualmente mostrado, a partir de uma discussão que, mais do que disparar a reflexão em torno do que é "certo ou errado", coloca os posicionamentos como passíveis de serem revistos.

Em outra passagem da novela, um personagem que frequentava o mesmo quiosque em Ipanema foi covardemente perseguido e morto por jovens homofóbicos. Gilvan (personagem interpretado pelo ator Miguel Roncato), foi assassinado à noite, quando estava no quiosque para enfeitá-lo com bandeirinhas nas cores do arco-íris. No momento em que pendurava as bandeiras, surgiu um grupo dos chamados pit boys. Ao vê-los, Gilvan perguntou o que eles queriam, ao que responderam: "Te ensinar a ser homem". Essa cena, por sua crueza e violência explícita, aliada a outras exibidas ao longo dos capítulos, escancara a irracionalidade da conduta homofóbica, chegando ao ponto extremo da execução de um jovem, que paga com sua própria vida pela ousadia de não ocultar sua condição homoafetiva. À época em que a novela foi veiculada, ainda se discutia o projeto de lei que criminaliza a homofobia em nosso país (PL 122/2006), que acabaria sendo arquivado. O PL 122/2006 propõe a criminalização dos preconceitos motivados pela orientação sexual e pela identidade de gênero.

O arquivamento do processo já sugere o efeito "silenciador" que se observa na abordagem legal da temática, negando proteção aos direitos das minorias sexuais. Esse caráter de silenciamento pode ser estendido também às telenovelas, na medida em que abordam a homossexualidade com estranhamento, novidade e surpresa, de modo que personagens homossexuais tenham que "entrar depois" na trama, "sair antes", a depender de sua aceitação pelo público, ou mesmo terem um final emblemático e arrebatador como forma de atentar o telespectador. Em uma perspectiva cultural do desenvolvimento (ROGOFF, 2005), o maior ou menor foco fixado em uma dada comunidade ou gueto podem ser deflagradores de importantes processos necessários para a construção de uma dada cultura. Isso equivale a dizer que destacar a categoria homossexual seria uma forma de compreender a temática e, de certo modo, integrá-la a outras temáticas igualmente relevantes, quer seja na trama novelística ou na vida real.

Isso não equivale a dizer que a telenovela não apresenta ideias uniformizadas acerca da homossexualidade. Pelo contrário, como obra de ficção em aberto, criada com um olho atento aos níveis de audiência de cada capítulo ao longo de extenso período, ela se propõe a retratar os conflitos dos personagens segundo determinadas regras herdadas do folhetim e do melodrama, adaptadas para a televisão. Destacamos que há um movimento positivo no sentido de favorecer que pessoas que têm acesso a essas discussões em outras instâncias, como no trabalho, na escola ou por meio de outros meios de comunicação, possam ser expostas a diferentes modelos de comportamento têm como denominador comum o desejo homossexual. O telespectador pode, assim, constituir uma audiência importante no reconhecimento de parte das diversidades sexuais e dos movimentos de ruptura e permanência observados na sociedade.

Como todo movimento que visa a promover discussões outrora obscurecidas ou interditas, devemos refletir sobre quem são os homossexuais e como queremos que eles sejam revelados, ou melhor, quais as descrições que priorizamos ao contar uma história endereçada a um determinado público, em dado horário, que convoca para a sala de televisão determinados membros da família. O exercício também deve ser empreendido no sentido de pensar as mesmas perguntas para o universo heterossexual. Tanto as imagens homossexuais quanto heterossexuais podem e devem circular em um espaço que as concebam não como normativas ou exemplares, mas como diversas e singulares. Apreender as mudanças e transições em uma telenovela de elevada audiência, produzida e veiculada pela maior emissora de televisão do país, e que congrega boa parte dos televisores de diferentes camadas sociais no chamado horário nobre, pode ser um balizador tanto de práticas que podem e devem ser revistas quanto do próprio modo como a sociedade tem absorvido as transformações sociais e se implicado nesse processo de confrontar sexualidades dissidentes do padrão imposto pela heteronormatividade compulsória (BUTLER, 1999).

Como destacado por Junqueira (2009, p. 37), a homofobia, "com sua força desumanizadora, corrói a nossa formação e compromete a construção de uma sociedade democrática e pluralista. Ao desestabilizarmos postulados heteronormativos, poderemos fazer furos na superfície dessa (ir)racionalidade que tem na homofobia uma das suas mais poderosas e cruéis expressões". Tomemos como exemplo as situações de homofobia sofridas por vários personagens da novela Insensato Coração. Cenas de perseguição por pit boys nas ruas da metrópole, agressões físicas, discriminação ostensiva ou velada devido a manifestações de troca de carícias em público foram retratadas. Além disso, a trama mostrou o processo de declarar essas agressões por meio do preenchimento do boletim de ocorrência, revelando não apenas as dificuldades desse movimento para o agredido como para os profissionais que atuam na área de segurança pública. Desse modo, precisamos ampliar os espaços de formação e de informação sobre a temática da diversidade, esclarecendo diferentes públicos acerca da necessidade de revisar noções pré-concebidas a respeito das pessoas LGBT e também polemizando em que medida o silenciamento e a invisibilidade dessas temáticas em espaços de grande penetração popular, como a televisão, por meio de um formato maciçamente consumido como é o caso da telenovela, acabam por favorecer visões deturpadas sobre a diversidade, reforçando estereótipos que podem conduzir à perpetuação da violência, da intolerância e do preconceito de gênero. O limite entre a reprodução da visão conservadora e do tratamento inovador de uma temática sensível como essa geralmente é muito tênue; o que faz diferença é a oferta de elementos que estimulem uma visão crítica acerca dos conteúdos veiculados, após a exposição dos diferentes pontos de vista que circulam nas práticas sociais.

Ao dar nomes, cores e identidades aos personagens homoafetivos em um veículo privilegiado de informação, possibilitamos uma ampliação do acesso a uma formação para a diversidade em que se privilegia não um didatismo que cerca determinadas temáticas, o denominado merchandising social muito em voga atualmente (como a inclusão de pessoas com deficiências), mas uma abertura para novas e construtivas conversas. Não se trata de ensinar ao público como se portar diante das temáticas LGBT, em um processo de inclusão forçado, mas de apresentar à parte significativa da população que acompanha telenovelas que não é mais possível mascarar a realidade e relegá-la para outro horário na TV aberta. Assim, trata-se de um movimento tanto de possibilitar acesso a informações (o que redobra a responsabilidade de autores e produtores em torno do conteúdo veiculado e de que modo), como de levantar questionamentos que incluam diferentes segmentos sociais e convoquem audiências dispostas a dar ao tema visibilidade e repercussão.

 

Considerações finais

Para além dos movimentos recentes de inclusão e valorização positiva das temáticas homoafetivas nos enredos das telenovelas, destacam-se os efeitos formadores de opinião pública da televisão como mecanismo poderoso de comunicação de massa. O destaque para um universo anteriormente concebido como obscuro ou mesmo invisível pode contribuir para lançar luz a essa dimensão do desejo sexual, contribuindo para a inclusão da temática de forma positiva na agenda nacional. Isso favorece com que jovens que vivenciam sua condição homossexual possam ser melhor acolhidos em suas famílias, para que pais e filhos possam conversar abertamente a respeito e se sintam à vontade para expor seus preconceitos e seus valores dentro de um ambiente permissivo, de modo a que possam também se expor a visões alternativas e contraditórias, com permeabilidade à crítica (SANTOS; BROCHADO JUNIOR; MOSCHETA, 2007). A instauração de uma nova mentalidade pode auxiliar a promover debates nas escolas e em diversas instâncias responsáveis pelas mudanças de atitudes, em favor dos valores que sustentam a democracia e o direito à liberdade de expressão. Embora alguns personagens ainda retratem movimentos que em nada contribuam efetivamente para a mudança de posicionamentos, podendo favorecer a cristalização de visões unívocas sobre a homossexualidade, como pessoas libertinas e em risco psicossocial, identificamos outros movimentos que trazem para o domínio familiar dramas anteriormente escamoteados. A pluralidade das homossexualidades esboçadas em uma trama ficcional pode ser deflagradora de um movimento que busca mais do que mapear e catalogar "tipos" e "formas de expressão" da homoafetividade, mas precisamente situar o tema como parte de nossa cultura, o que se aproxima das concepções de Rogoff (2005) acerca das comunidades e dos eventos definidores do desenvolvimento cultural.

Assim, retomando a frase de abertura desse estudo, devemos considerar sim as transformações em nossa sociedade como um continuum e não como um momento inaugural, destacando a necessidade de que temáticas anteriormente interditas possam festejar a possibilidade de se tornarem legítimas, visíveis e passíveis de reflexão por parte de toda a sociedade, ainda que pelo viés da telenovela brasileira, que possui dinâmicas próprias e atende a apelos nem sempre negociados em função dos direitos humanos e da melhor informação dos seus telespectadores. Como afirmado por Trevisan (2010, p. 54):

A dimensão política da experiência homossexual precisa coincidir com a criação de um projeto de sociedade na qual cidadãos/ãs homossexuais caibam com suas diferenças e novidades, em todos os sentidos. Aí se devem incluir fatores diversificados. Primeiro, políticas públicas que contemplem as necessidades da comunidade homossexual, no sentido de atingir os pressupostos de uma sociedade democraticamente representada.

É necessário, portanto, que o projeto de um país sem homofobia e que respeite as diversidades tenha de ser pensado por diferentes instâncias que governam e que corporificam o modo de ser de uma nação. Esse modo de ser encontra na telenovela não apenas uma forma de expressão, mas uma possibilidade de formação de uma audiência gabaritada para uma reflexão crítica e ética, em oposição à perpetuação de ideias estigmatizadas e que pouco contribuem para descrições mais adaptativas da temática em nossa sociedade. Que possamos trazer à baila essas discussões de um modo cada vez mais aberto e menos sujeito a interferências que tenham objetivos em dissonância com aqueles apregoados pelos defensores de uma sociedade mais igualitária, em termos de direitos e deveres, e mais atenta às diversidades e transformações inerentes às organizações sociais.

 

Referências

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Recebido em: 01-08-2011
Aceito em: 12-06-2012

 

 

Sobre os autores:
Fabio Scorsolini-Comin é Professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Administração Escolar e em Supervisão Educacional. Pesquisador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (CNPq). E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br
Manoel Antônio dos Santos é Professor do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (NEPPS-CNPq). Bolsista de Produtividade do CNPq, Nível 1D. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br