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Barbaroi

 ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.36 Santa Cruz do Sul jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Potências no campo da saúde: o cuidado como experiência ética, política e estética

 

Potencies in the health field: care as na ethical, political, esthetical experience

 

 

Anita Guazelli Bernardes

Universidade Católica Dom Bosco - Mato Grosso do Sul - Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo coloca em análise o cuidado como forma de trabalho na saúde. Essa reflexão considera os contornos que o campo da saúde assume na articulação com práticas de cuidado. Para esse exercício cartográfico, traçam-se três linhas de discussão: as práticas de cuidado de si na experiência greco-romana; as biopolíticas na Modernidade; e os enfrentamentos contemporâneos das práticas de cuidado no Brasil a partir da Reforma Sanitária. As ferramentas de análise apoiam-se nas considerações foucaultianas sobre política, jogos de verdade e tecnologias de si. Essas ferramentas auxiliam a circunscrever considerações sobre a necessidade de posicionar o cuidado no campo da ética, como experiência estética e política.

Palavras-chave: Cuidado. Biopolítica. Saúde. Ética.


ABSTRACT

This paper analyzes care as a form of health work. This reflection considers the contours the health field has taken in the articulation with care practices. For this cartographic exercise, three lines of discussion have been drawn: practices of self-care in the Greek-Roman experience; bio-politics in Modernity; and contemporary challenges of care practices in Brazil after the Health Reform. The analysis tools have been supported by Foucaultian ideas about politics, games of truth and technologies of the self. These tools have helped us to circumscribe considerations about the need for positioning care in the field of ethics, as an esthetic, political experience.

Keywords: Care. Bio-politics. Health. Ethics.


 

 

Introdução

A temática sobre o cuidado torna-se um campo necessário de análise pelo que provoca a refletir sobre os contornos que o campo da saúde toma quando o cuidado passa a ser um conceito organizador das formas de trabalho na saúde. Nesse sentido, opta-se por um caminho de discussão que se inicia nas formas de construção da relação entre cuidado e saúde, nas modificações que essas práticas e conceitos sofrem de acordo com alguns marcadores temporais, para, então, se encaminhar a reflexão sobre os enfrentamentos contemporâneos das práticas em saúde.

A linha inicial de reflexão volta-se para a necessidade de situar a saúde não como um objeto natural da ciência, e sim como um acontecimento que a torna tanto legível quanto real no que tange às práticas de cuidado e às políticas públicas. Isso significa contornar sua evidência histórica e analisar contextos teóricos e práticos aos quais se associa, ou seja, percorrer um solo de instauração de um conjunto de regras/normas que se apoiam em instituições religiosas, jurídicas, pedagógicas, psicológicas e médicas e que, portanto, traçam possibilidades de práticas de cuidado em saúde. Isso significa considerar a correlação em uma cultura entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade. Colocar em análise o cuidado mediante sua articulação com a saúde ampara-se na consideração de uma relação agonística entre esses objetos. Agonística, na medida em que se trata de jogos, de formas de governo de si e do outro (FOUCAULT, 2008). Agonística porque se refere aos modos como distintos objetos passam a ser articulados a partir de relações de força. Não se trata de uma forma de submissão de um objeto ao outro, e sim de uma conexão de heterogeneidades. Essa conexão de heterogeneidades torna-se autoexplicativa e autoevidente, borrando os contornos do que outrora marcava uma diferença em termos de fronteiras. Esse borramento de fronteiras acaba por tornar a relação entre os objetos naturais e, portanto, sem história.

Dessa forma, parte-se da saúde como uma experiência ético-política na Antiguidade Clássica; salta-se para a Modernidade, que a objetiva como foco de investimentos biopolíticos; e chega-se na contemporaneidade, em que encontramos os enfrentamentos no sistema de saúde entre uma lógica normativa/técnica e uma lógica ética/estética

 

Quando o cuidado torna-se uma afirmação de liberdade

A reflexão sobre o cuidado parte da análise que Foucault (1984, 1985) faz sobre certa arte da existência que se delineia na experiência greco-romana da Antiguidade Clássica. O autor não se ocupou em perscrutar uma estrutura do cuidado, uma ontologia do cuidado, mas voltou-se para ele como uma raridade, como um acontecimento que se produz de acordo com determinados "jogos de verdade". Estes acabam por conformar certo tipo de experiência que não é óbvia, tampouco evidente, mas que se torna tão comum aos olhos que não é mais possível percebê-la como descontinuidade (VEYNE, 2008). O percurso que Foucault (1984, 1985) faz torna importante, na medida em que aponta a relação que se estabelece entre cuidado de si e estética, cuidado de si e substância ética, ou seja, como certas práticas de si tornam-se um vetor mediante o qual "o ser se constitui historicamente como experiência" (FOUCAULT, 1984, p. 13). Trata-se de mirar os procedimentos que tornaram o cuidado de si uma prática necessária para a constituição de si mesmo. A aproximação dos cuidados de si com a saúde dá-se como parte dessas estratégias. Neste caso, ao apresentar a conformação de práticas de cuidado relativas ao corpo, aos prazeres, Foucault (1985) indica que, fundamentalmente, se tratavam de "práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo" (FOUCAULT, 1985, p.18).

É importante considerar que essas ideias do autor percorrem um solo de distintas práticas produzidas na Antiguidade Clássica, durante o período de IV A.C. até IV D.C. Tais ações, que Foucault (2010) nomeou de tecnologias do eu, aparecem de formas diferentes na experiência grega e romana. Na primeira, as formas de relação consigo organizavam-se como uma arte, como uma estética da existência, e não se encontra, nos textos analisados pelo autor, referência à saúde especificamente, e sim à vida. A vida como uma forma apolínea do viver, a busca por uma perfeição do ser. Já na experiência romana, emerge uma forma de relação consigo que Foucault (1985) considera como uma cultura dos cuidados de si. Esta cultura de cuidados, como um conjunto de práticas de relação consigo (que envolviam dietéticas e regimes), apontava uma relação com a saúde, na medida em que o sujeito deveria se tornar um médico de si mesmo como modo de prolongamento da vida.

Esse deslocamento de uma estética da existência para um cuidado da existência, entretanto, tem pontos em comum que se preservam nesses primeiros séculos: o princípio de que se ocupar de si antecede o conhecimento de si, ou seja, é preciso um trabalho exaustivo sobre si, sobre o corpo, para então conhecer a si mesmo; o governo ético de si mesmo é prerrogativa para o governo do outro. A ética aqui se apresenta como uma forma de conduzir a própria conduta frente a um conjunto de códigos morais. Essa forma de condução não se restringe a uma submissão ao código, mas a uma relação de negociação, de agonismo. Nesta análise, toma-se como subsídio para a discussão a emergência, na experiência romana, de uma cultura do cuidado produzida por uma ética da existência e de formas de governo de si e do outro.

A agonística entre cuidado e saúde conformadas por uma experiência ética acaba por configurar um campo visível e enunciável de relação do sujeito consigo mesmo. Esse campo de visibilidade e enunciabilidade estabelece uma articulação entre a saúde e o corpo mediante um conjunto de tecnologias do eu (FOUCAULT, 2010). A articulação entre saúde e corpo deveria ser estabelecida a todo momento como um regime da vida, atentando-se para aquilo que circunda o corpo tanto nos seus efeitos positivos quanto nos negativos. Cada componente constitutivo dessa relação encontrava-se "afetado por um valor dietético ou terapêutico" (FOUCAULT, 1985, p. 107). Esse ocupar-se de si, por meio da aprendizagem de formas de cuidados de si, era uma estratégia para o sujeito tornar-se um conselheiro de si mesmo no que tange à saúde e aos regimes da vida.

Nesse caso, saúde como um conjunto de práticas de si, de cuidados de si, objetivava que se tentasse afirmar a própria liberdade do sujeito frente aos códigos morais e que esse sujeito desse à própria vida uma forma tal em que poderia reconhecer a si mesmo e ser reconhecido em uma determinada comunidade. Isso significava, para o mundo grego-romano, uma forma de relação consigo baseada em princípios éticos. O trabalho ético nessa experiência voltava-se para a determinação de uma substância ética, a qual o sujeito deveria tornar matéria principal de sua conduta; para tanto, era necessário um trabalho contínuo sobre si mesmo, bem como uma finalidade para suas ações - "a ética como prática racional da liberdade girou em torno desse imperativo fundamental: cuida-te de ti mesmo" (FOUCAULT, 2004, p. 268).

Essas formas de ocupar-se de si tinham como efeito a interrogação permanente sobre o que se faz e como se faz, no que tange aos modos como isso incide sobre outras ações possíveis, bem como um espaço de reconhecimento de si e do outro, como prática política. Com isso, as práticas de saúde não se encontravam propriamente em ações que um outro imprimia sobre o corpo do próprio sujeito, mas em ações que o sujeito estabelecia na relação consigo mesmo para melhor relacionar-se e governar o outro. Essas ações não tinham como campo de justificativas um domínio biológico; tratava-se muito mais da ordem de uma filosofia da existência, ao correlacionarem práticas de cuidados alimentares e exercícios físicos com práticas de reflexão (FOUCAULT, 1985).

O cuidado com o corpo era uma forma de cuidado de si. Cuidados de si como modo de intensificação de uma relação consigo e com o outro, um tipo de experiência tanto privada quanto cívica/política: "o corpo era submetido a uma dietética que tinha por objetivo a sua superação e sua transcendência como prova de habilitação para a vida pública [...] o corpo possuía sempre um valor simbólico [...] legitimava-se para a vida política" (ORTEGA, 2008, p. 43). O cuidado de si adquiria uma dimensão em que o indivíduo tomava a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, ou seja, ter cuidados consigo tratava-se de uma arte da existência que fundamentava a própria necessidade do cuidado, assim como direcionava o próprio desenvolvimento individual e coletivo que almejado: "um desafio aos modos de existência prescritos, uma forma de resistência cultural, uma vontade de demarcação, de singularização, de alteridade" (ORTEGA, 2008, p.20).

O cuidado de si na Antiguidade Clássica torna-se um imperativo que toma forma de atitude, de maneira de comportar-se, impregnando formas de viver diante de procedimentos, práticas, receitas refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas, mas sempre como uma condição para uma prática ética/política, "o cuidado de si é em si mesmo ético; porém, implica relações complexas com os outros, uma vez que esse êthos da liberdade é também uma maneira de cuidar dos outros" (FOUCAULT, 2004, p. 270). Isso pode ser correlacionado ao que escreve Arendt (1989) sobre a importância da esfera pública, de um espaço comum de trocas onde os sujeitos se dão a conhecer no espaço da política. Nas palavras dessa pensadora,

para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação objetiva com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisa, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida [...] o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse (p. 68).

 

Quando o cuidado se torna um mecanismo de controle

Das práticas em saúde como forma de cuidado de si voltada para uma condição ética/política de existência na esfera pública, migra-se para as condições que transformam a saúde em ausência de doença, constituída como um domínio de governo das populações mediante estratégias médicas. De uma ética da existência na Antiguidade Clássica, salta-se para uma ética normativa na Modernidade. "Foi no momento em que o Estado começava a praticar seus maiores massacres que ele começou a se preocupar com a saúde física e mental dos indivíduos" (FOUCAULT, 2003, p. 318).

Essa ruptura na discussão de quase dez séculos dá-se em razão da necessidade de marcar uma descontinuidade que aponta para a não-evidência da relação entre cuidado e saúde e das modificações que afastam a saúde de uma experiência ética. É importante frisar que esse afastamento, em certa medida, é tributário daquilo que o cristianismo produz como hermenêutica do sujeito, porém com novas conexões. A hermenêutica de si inaugurada pelo cristianismo cria uma racionalidade em que o conhecimento de si irá anteceder o ocupar-se de si (FOUCAULT, 1987). Esse tipo de procedimento afasta a experiência de si da relação com a política e da relação com a ética. Ocorre uma intensificação da relação consigo descolada da relação com o outro, uma tecnologia de interiorização em que o outro se torna um guia, um agente regulador da conduta do sujeito. Essa intensificação da relação consigo potencializa os códigos morais, as prescrições de conduta, portanto, acentua a necessidade do conhecimento de si, da decifração de si para melhor controlar a própria conduta. O corpo agora é a morada do pecado, o corpo é colocado em relação com a moral, portanto, objeto que não deve ser privilegiado. A ética é separada da política e a relação do sujeito consigo mesmo se basear-se-á em uma lógica de subserviência ao dogma.

Essa herança de interiorização, de individualização, de separação entre alma e corpo e de subserviência encontrará na Modernidade outra forma de expressão e produção de subjetividades. A questão colocada agora é considerar não mais o humano como um "ser político", mas o humano como "ser" sobre o qual a política recai. Isso significa pensar nos procedimentos e técnicas que migram a saúde de uma relação consigo (cuidados de si) para uma relação entre Estado e indivíduos (controle das populações), encontrando no discurso médico uma oferta de serviços (FOUCAULT, 2008).

A relação entre o que se produziu como uma hermenêutica de si na experiência cristã e o "ser" sobre o qual uma política recai, engendrado posteriormente na Modernidade, é possível quando, aos olhos do poder político, o indivíduo se torna aquilo que pode e deve ser pensado. Da intensificação da interioridade, utiliza-se a individualização da experiência como elemento a ser governado. A emergência do indivíduo é tributária de um conjunto de lutas políticas que tornam a sociedade moderna uma sociedade do direito, o direito dos indivíduos. Essa entrada do indivíduo nos jogos de verdade é possível quando o direito passa a conformar uma sociedade da norma na modernidade.

Essa conformação de uma sociedade da norma encontra no mecanismo político de um Estado de Segurança sua possibilidade de controle. Da garantia do território, migra-se para a garantia de segurança: segurança do imprevisto, do risco, do acidente. "O Estado que garante a segurança é um Estado obrigado a intervir em todos os casos em que a trama da vida cotidiana é rompida por um acontecimento singular, excepcional" (FOUCAULT, 2010a, p. 172). Para garantir a segurança, foi necessária a introdução de procedimentos de diferenciação dos indivíduos. Desse modo, os jogos políticos passam a operar em dois níveis: no individual e na população. O indivíduo, essa forma intensificada anteriormente, passa a ser localizado no conjunto da população.

A relação entre indivíduo e população se estabelecerá mediante mecanismos de corte, de separação, de taxionomias que conformam a população. A população torna-se estatisticamente normatizada pelos processos de categorização individuais: família, criança, mulher, idoso, trabalhador, doente, desempregado. Essas figuras serão tomadas e investidas de acordo com o modo como se relacionam com um Estado de Segurança, ou seja, a cada uma dessas categorias sociais, se estabelecerá um conjunto particular de estratégias de governo. Essas estratégias de governo, que articulam uma relação entre indivíduo e população, encontram nas formas de investimento no viver ou no deixar morrer uma razão de Estado. A razão de Estado como justificativa de um poder que se exerce no nível das formas de viver, um biopoder, é possível, pois coloca a segurança em conexão com a norma. É na justificativa da defesa e segurança para o viver que uma sociedade da norma se torna operacionalizável.

Essa normalização da sociedade tem como forma de articulação um fenômeno que Foucault (2010b) considerou como "medicalização geral da existência" (p.160). A medicalização da existência retoma o que, na emergência da hermenêutica do eu, foi investido: o conhecer. O conhecer assume uma configuração de vontade de saber não mais específico e restrito à interioridade do indivíduo, mas estendido para a relação entre os indivíduos, entre os indivíduos e as coisas. Essa vontade de saber conforma-se de modo medicalizante quando, das diferenciações entre o lícito e o ilícito do discurso do direito, passa a se organizar um pensamento do normal e do anormal. A norma não reside exclusivamente no jurídico; a norma torna-se norma justamente porque, mediante os jogos de verdade do normal e do anormal, passa a articular-se com o jurídico. Não se trata mais de um mecanismo punitivo do ilícito, mas um procedimento de correção, de transformação do indivíduo. Essa relação entre a norma e o direito em um Estado de Segurança conforma o que foi supracitado como uma razão de Estado que se exerce sobre o fazer viver ou o deixar morrer.

Neste caso, a emergência da figura do Estado dá-se mediante a irrupção de um conjunto de práticas políticas diferentes - jurídicas, médicas, policiais - que se projetam em direção da objetivação do Estado. A razão de Estado conforma-se pela zona de vizinhança que essas distintas práticas começam a estabelecer entre si e que acabam por densificar, atualizar um campo de justificativas, teorias, gramáticas, objetivos que tomam como foco o problema das populações. Nesse arranjo, emerge tanto a forma de objetivação da população quanto aquilo mesmo que a objetiva: o próprio problema.

As justificativas para o fazer viver - correção, transformação -, bem como as justificativas para o deixar morrer - estado de exceção -, encontram na saúde um dos elementos de governo. A saúde, então, deixa de ser um procedimento ético/estético de constituição de si para tornar-se uma estratégia de governo de um Estado de Segurança por meio de um discurso medicalizante/normatizante: "o que o Estado propõe como pacto com a população é: Vocês estarão seguros [...] Vocês estão doentes? Terão a seguridade social. Não têm trabalho? Terão um seguro-desemprego! Há um vagalhão? Criaremos um fundo de solidariedade! Há delinquentes? Vamos assegurar-lhes a sua correção, uma boa vigilância policial!" (FOUCAULT, 2010a, p. 172).

A articulação entre Estado e Medicina acaba por aproximar a saúde de um campo de políticas de governo e afastá-la da articulação com o cuidado. A agonística agora será entre razão de Estado, população e saúde. A saúde entra nesses jogos de verdade definidos por um discurso médico.

O problema da população emerge na Modernidade em razão de modificações no campo social: industrialização, urbanização, formação de Estados Nação, entre outros acontecimentos que acabam por criar a necessidade de uma economia política, de uma forma de governo baseada em uma lógica de Estado de Segurança. A formação de Estado depara-se com essa urgência histórica: o problema das populações em seu conjunto. O problema das populações surge em razão de taxas de natalidade, morbidade, mortalidade, habitação, pobreza, trabalho, efeitos de conjunto que acabam por pressionar políticas de Estado como forma de resposta a essas questões sociais. A racionalidade que se conforma na Modernidade é a de fazer viver ou deixar morrer, como já foi escrito. Esse fazer viver ou deixar morrer encontra na formulação de políticas públicas uma estratégia de governo. Isso significa uma forma de governo baseada no controle, na vigilância, na regulamentação, em tipos de normatividade, em um procedimento geral de medicalização da vida (FOUCAULT, 2008).

A Medicina, na Modernidade, principalmente em razão da emergência da ciência como lugar de verdade, acaba por assumir um domínio estratégico nessas formas de governo das populações. A Medicina torna-se uma oferta de serviços ao Estado, mais em sua forma de Medicina Social do que de uma Medicina Clássica (LUZ, 1988). A primeira volta-se para as questões de higiene social, e a segunda, para o corpo organismo. Porém, a marca que constituirá essas diferentes configurações médicas é um modelo biomédico, que encontra na ausência de doenças sua justificativa, bem como sua necessidade.

A ausência de doenças torna a Medicina Social não uma estratégia de construção de condições de um espaço comum de trocas, mas de vigilância, controle e regulação dos hábitos e comportamentos coletivos. Torna-se uma polícia médica que esquadrinha/divide o corpo social: aqueles em que se investiria para se viver e aqueles que se deixaria morrer. A Medicina Social não tinha como foco direcionar as ações de governo para a melhoria das condições de vida, e sim orientar formas de separação/confinamentos/segregações que evitassem a contaminação do conjunto da população. As ações sanitárias eram de cunho higienista/eugenista.

A ausência de doenças para a Medicina Clássica, por outro lado, torna-se a possibilidade de a ciência médica ocupar o lugar que antes a figura de Deus ocupava. A Medicina Clássica começa a engendrar a possibilidade e necessidade de afastamento da morte. O registro da existência passa a ser o corpo biológico em uma esfera privada e não mais um corpo simbólico em uma esfera pública. As tecnologias médicas aqui se referem não a uma dimensão do cuidado de si, mas a intervenções técnicas sobre um corpo físico. O corpo perde sua dimensão simbólica, que permitia a constituição do sujeito em uma relação consigo e com o outro, e passa a ser uma materialidade exclusivamente biológica para a qual o "eu" só existe para cuidar do corpo (ORTEGA, 2008). O biológico, na medida em que se conforma como espaço do visível, do empírico, do controlável, passa a ser a matéria de investimentos de governo. Essa materialidade permite ao discurso biomédico ascender a um status de verdade.

Os procedimentos biomédicos tanto criam um conjunto de estratégias voltadas para o indivíduo-corpo, ampliando aptidões e melhorando suas condições de utilidade, quanto forjam tecnologias voltadas para a população-espécie, controlando taxas de natalidade, mortalidade e morbidade, níveis de saúde e longevidade, ou seja, são estratégias epidemiológicas e sanitárias. A questão que desponta aqui é que nenhuma dessas formas tem como princípio uma relação ética/política, na medida em que, na primeira, é forjada a experiência de uma existência privada - o indivíduo na relação com o seu corpo-máquina - e, na segunda, a experiência é de uma existência da massa anônima, pois a população perde seu potencial de coletivo, de pluralidade e singularidades e adquire a forma estatística, taxionômica (FOUCAULT, 1999).

A saúde torna-se nesse quadro um dos focos de tecnologias políticas, uma estratégia de controle do conjunto da população, não mais como uma estética da existência, mas como norma para existência do conjunto. O discurso biomédico torna-se uma das ferramentas que contribuem para o projeto moderno de lapidar mármore bruto, ou seja, saúde como estratégia de progresso que liberta o humano de suas condições de humanidade, como a morte, por exemplo, e apresenta efeitos de hegemonia e eugenia social. Essa racionalidade biomédica apoia-se e justifica-se em exigências de regulação voltadas para a temática da espécie, da descendência, da saúde da população, da saúde da raça, e reforça-se com investimentos políticos na solidez da instituição familiar, salvação da sociedade, adestramento individual e disciplina dos comportamentos. Isso conforma o que se nomeia de um racismo biologizante: fazer viver ou deixar morrer, amparando-se na saúde como ausência de doença.

Esses jogos de verdade são modos de constituição histórica das diferentes formas de subjetividades. O racismo biologizante, ao produzir verdades, forja como correlato certas subjetividades. A relação consigo das práticas de cuidado de si greco-romanas, que engendrava um sujeito ético-político, transforma-se em uma relação consigo das práticas disciplinares e biopolíticas, que produzem o sujeito da norma.

 

Quando a saúde se amplia: o cuidado como tecnologia da reforma sanitária

Mas o mais característico é o momento em que a densificação se produz; não há uma tomada de forma, pelo contrário: é, antes, como que um desprender. Num momento não havia nada, a não ser uma grande coisa chata que se distinguia vagamente [...] E, então, no lugar ocupado pelo grande aquilo-que-é-óbvio, aparece um pequeno objeto de "época", estranho, raro, exótico, jamais visto (VEYNE, 2008, p. 255).

As práticas de liberdade produzem possibilidades de desterritorialização, ou seja, são movimentos centrífugos de não-escravidão, são outras formas de jogar nos próprios jogos da verdade. Isso significa considerar que só existem relações de poder onde há possibilidades de resistência. As práticas de liberdade são formas de resistência - resistência à maneira de interpelação dos jogos de verdade e das estratégias políticas. A recusa não é em relação ao jogo da verdade, mas ao modo de jogar. Entretanto, a produção de outras regras modifica o próprio jogo. O objeto raro, estranho, emerge justamente dessas novas configurações dos jogos de verdade, das práticas políticas; "se as práticas vizinhas se transformam, se os limites do vazio se deslocam", a raridade aparece (VEYNE, 2008, p. 259). O que aqui se refere como objeto raro é justamente a emergência do cuidado no próprio território da norma biomédica. O cuidado, tanto como materialidade quanto como conjunto de práticas que o fazem ser cuidado, passa a ser olhado como um movimento centrífugo no campo da saúde, como outro modo de jogar.

A partir da segunda metade do século XX, emergem, no campo da saúde, acontecimentos que começam a alargar as fronteiras do que na Modernidade se criou: taxas cada vez mais crescentes de mortalidade e morbidade, aumento das desigualdades e precariedades sociais. Esses acontecimentos, na realidade, são uma resposta aos efeitos do projeto moderno. A saúde começa a articular-se a possibilidades e condições de vida e para o viver, ampliando a noção que a constituía como ausência de doenças - Informe Lalonde, 30ª Assembleia Mundial de Saúde, Declaração de Alma-Ata, entre outros eventos organizados pelo campo da saúde (BUSS, 2003). No Brasil, na década de 1970, engendra-se um movimento nomeado de Reforma Sanitária, que acaba por traçar na década seguinte os princípios doutrinários e organizativos do Sistema Único de Saúde (SUS), que vem não apenas com o objetivo de curar doenças, mas fundamentalmente de modificar as condições sociossanitárias da população:

Art. 3º. A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País (BRASIL, Lei 8080, 2009, p. 1).

Isso se torna possível quando o sistema de saúde conforma como estratégia a diminuição das desigualdades sociais mediante práticas de cuidado voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Saúde torna-se um dispositivo não de um racismo biologizante, mas de condições de acesso à cidadania. Considerar a saúde como um dispositivo é inscrevê-la em uma rede que liga pontos e os entrecruza em uma trama. Essa trama, seguindo algumas ideias de Foucault (2009), diz respeito ao modo como o mundo se experimenta espacialmente. Um espaço definido pelas relações de vizinhança entre pontos e elementos. Um espaço experimentado e circunscrito em termos de posicionamentos na rede, na trama. "Estamos em uma época em que o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos" (FOUCAULT, 2009, p. 413). O que interessa ao autor e a esta discussão é que alguns posicionamentos têm a propriedade de estar em relação com outros, subvertendo, invertendo, neutralizando o que em princípio parece designado como relações - saúde e doença, por exemplo.

Os dois tipos de propriedades apontados por Foucault (2009) dizem respeito à utopia e à heterotopia. A primeira abrange espaços fundamentalmente irreais, é o inverso de uma sociedade, uma espécie de contraposicionamento: o SUS circunscreve um espaço de utopia. Quanto ao segundo tipo - heterotopias -, o autor refere um lugar "absolutamente diferente de todos os posicionamentos que eles refletem" (FOUCAULT, 2009, p. 415), lugares que estão fora dos lugares, embora sejam localizáveis. As heterotopias são, nesse sentido, espaços diferentes, uma contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço em que a vida acontece. Neste caso, o cuidado passa a posicionar-se como um espaço de heterotopia. Isso porque, segundo alguns dos princípios que Foucault (2009) aponta, o mesmo é sempre variado, tem um funcionamento distinto, de acordo com a comunidade que o tece, tem o poder de justapor em um só lugar espaços e posições distintas, põe-se a funcionar em experiências de ruptura com o tradicional, tem um sistema de abertura e fechamento simultaneamente, tem em relação aos outros espaços e posicionamentos uma função, seja ela de denúncia ou de criação.

A Reforma Sanitária, no Brasil, constitui-se por um conjunto de práticas de negociação do agir frente aos códigos que organizavam as condutas, as prescrições, os focos, os investimentos no campo da saúde e das condições de vida. Foi uma prática inventiva e não-submissa aos jogos de verdade que se produziam no campo da saúde, um espaço de heterotopia. Se considerada como um conjunto de práticas inventivas, a Reforma Sanitária torna-se uma possibilidade de prática de liberdade e, como tal, uma condição ontológica para a ética na saúde. Aponta-se como prática inventiva, na medida em que se trata de um processo de atualização de distintas virtualidades/heterotopias, que ao se deslocarem acabam por criar novas zonas de vizinhança e, com isso, novas formas de objetivação na saúde. Essas virtualidades/heterotopias distintas começam a densificar-se nas comunidades de base eclesiais, nos movimentos sociais (negros, homoafetivos, feministas, donas de casa, indígenas) e de trabalhadores da saúde. Na convergência desses processos de territorialização, a Reforma Sanitária torna-se um movimento centrífugo no próprio campo biomédico.

A centrifugação acontece justamente pelas tecnologias que começam a despontar como qualificativos de uma reforma na saúde. Entre essas tecnologias, o cuidado passa a assumir uma centralidade, na medida em que se objetiva ações em saúde como "um agir que o afaste da referência da intervenção e o aproxime da noção de cuidado" (GUZARDI; PINHEIRO, 2006, p. 37).

Uma das marcas do SUS é justamente igualar direito à saúde com o direito à vida. Ao situar esse registro do direito, traz para o campo da saúde a figura da cidadania, e não apenas da norma, ou seja, em certo sentido, o SUS retoma aquilo que foi apontado sobre a Antiguidade Clássica - que saúde é uma condição para a cidadania, uma prática política -, ao mesmo tempo em que se conforma como estratégia biopolítica quando suas condições de possibilidade se encontram nas objetivações de um discurso jurídico - "Art. 2º. A saúde é direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis para o seu pleno exercício" (BRASIL. Lei 8080, 2009, p. 1). Essa zona de vizinhança - cidadania e norma no campo da saúde - passa a engendrar um conjunto de práticas que objetivam o cuidado como uma tecnologia na saúde. A materialização do cuidado, distintamente do que ocorria na experiência greco-romana, assume uma condição não especificamente de ocupar-se de si mesmo, mas de o Estado ocupar-se da população como correlata da cidadania. O exercício é de um Estado que provê as condições para a cidadania, e não de certa relação consigo que torna o sujeito cidadão.

O sistema de abertura e fechamento das heterotopias justamente possibilita pensar que esses novos posicionamentos - cidadania/saúde/Estado/população - tanto isolam quanto tornam penetrável o espaço da saúde. A abertura e fechamento produzem relações entre os posicionamentos em termos de obrigação: direito e dever. Porém, como é um espaço outro, ou seja, em que há uma inversão, uma subversão, a relação de cuidado irá criar outro tipo de trama, de combinações, de rede, o que não necessariamente se encontra no espaço da saúde, mas que é localizável como experiência de saúde.

A agonística agora se estabelece entre os enfrentamentos de uma biopolítica que investe no viver, segundo critérios normativos, e as tecnologias de cuidado que investem na cidadania, segundo critérios éticos. Quando disposta como objeto da biopolítica, a saúde encontra nas tecnologias de controle da população suas formas de intervenção. Quando correlata da cidadania, a saúde encontra nas tecnologias éticas suas formas cuidado. O problema reside justamente em que essas conformações se encontram no mesmo campo - saúde - e se amalgamam no cotidiano. Dizer que se encontram no mesmo campo não é renunciar a uma heterotopia; pelo contrário, é considerar que, no campo da saúde, é possível criar espécies de lugares fora dos lugares.

Neste caso, as práticas de saúde como um imperativo "cuida de si mesmo" são atos de reforçar uma racionalidade da saúde que contribuiu com o modo de destituir o sujeito de coisas essenciais à vida, forma pela qual o sujeito não se dá a conhecer. São ações de privação da condição de viver em um espaço comum de trocas e da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida, ou seja, é privar o sujeito da constituição de si como uma arte da existência.

O que se quer apontar com isso é que, ao tornarem a saúde um direito do cidadão e um dever do Estado, as tecnologias de relação consigo e com o outro se operacionalizam segundo princípios normativos, como é o caso, por exemplo, das práticas de prevenção. As práticas de prevenção são tecnologias despóticas (ROSE, 2001) quando regulam as formas de conduta, os hábitos da população, como contrapartida ao direito de acesso à saúde. Investem na necessidade de segurança epidemiológica. Sob uma ameaça epidemiológica, as práticas em saúde organizam as relações cotidianas e investem no nível da responsabilização. O sujeito deve tornar-se senhor de si mesmo, governar a si mesmo, não para melhor governar a polis, mas para minimizar os efeitos da vida na polis.

Em contrapartida, ao defrontarem-se com o direito, as tecnologias do eu começam por forjar outro campo de necessidades que "ampliam" as necessidades do que se toma por saúde. A experiência ordinária de saúde, produzida pelo campo da normatização da saúde, provoca desprendimentos do imperativo "cuida de ti mesmo!" para o "como cuidar de si mesmo?". Esse "como cuidar de si mesmo" é uma forma de posicionar-se frente à norma, frente ao direito. É uma modalidade inventiva de relação consigo. O inventivo reside justamente na emergência de formas de cuidado de si que escapam permanentemente aos jogos de verdade do cuidado como um imperativo da norma - são heterotopias no campo da saúde. São experiências agenciadas por combinações que não a série risco/epidemia/terapêutica/saúde.

 

Potências...

A experiência ética do cuidado de si reside na abertura para a mobilidade das relações de poder que criam potências de diferenciação, e não apenas submissão à norma. Essas potências de diferenciação são formas micropolíticas de práticas de liberdade. O cuidado de si no campo da saúde, mediante um exercício ético, estabelece uma forma singular de relação consigo que passa necessariamente pela interrogação de como certas regras de conduta implicam a relação com o outro. O cuidado de si passa a constituir-se como regra facultativa (DELEUZE, 1992) que permite ao indivíduo e/ou coletivos modificarem a si mesmo.

A própria Reforma Sanitária foi uma experiência ética; entretanto, os jogos de captura das relações de poder acabam por tornar um acontecimento uma norma, um conjunto de prescrições morais, uma biopolítica. Nesse caso, o cuidado de si assume uma condição de vetor de práticas de liberdade, ou seja, uma potência que provoca aquilo que é capturado quando não investido como imperativo. A mobilidade das relações de poder encontra no cuidado de si, como experiência ética, uma forma afirmativa da vida. A afirmação da vida é uma condição para a diferenciação. Diferenciação não no sentido de individualização, e sim de um campo de experiência de cuidados de si que se constitui na relação com o outro e para com o outro.

Ao se equalizar saúde com condições de acesso à cidadania, a possibilidades de vida, saúde torna-se um campo de cuidado não mais estritamente biomédico. As práticas de saúde tornam-se justamente práticas de cuidado sob princípios de universalidade e integralidade não redutíveis à cura de doenças. Esses dois princípios, conjuntamente com equidade e participação popular, criam a necessidade de uma rede de cuidados que não se situa apenas em práticas médicas e a partir delas. As práticas de cuidado são ações que se direcionam para sujeitos com histórias e condições de vida, e não apenas para históricos de doenças. São partilhas do comum, mas com recortes singulares. São ações que se norteiam para a vida como potência, e não apenas como indicador do estado de um organismo. Essas práticas de cuidado se estabelecem primordialmente pelo princípio de relação com o outro; são tecnologias que se contrapõem justamente ao que o modelo biomédico forjou na Modernidade.

 

Referências

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Recebido em: 04.04.2011
Aceito em: 24.04.2012

 

 

Sobre o autor
Anita Guazelli Bernardes é Psicóloga, Doutorado em Psicologia pela PUCRS, Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco. E-mail: anitabernardes@ig.com.br