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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.68 São Paulo set./dez. 2020

 

ESTANTE DE LIVROS

 

Mamãe & Eu & Mamãe, de Maya Angelou

 

 

Leonora Corsini

Instituto Noos, São Paulo/SP, Brasil

 

 

Angelou, Maya (2018) Mamãe & Eu & Mamãe. 2ª edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos

“Um pássaro não canta porque tem a resposta, ele canta porque tem uma música.”
Joan Walsh Anglund

Maya Angelou, nascida Margerite Ann Johnson (1928-2014), foi atriz, bailarina, cantora, diretora de cinema, intelectual e ativista negra norte-americana, uma mulher de múltiplos talentos. Como lemos na apresentação de Mamãe & Eu & Mamãe, livro que escreveu em 2013, aos 85 anos de idade, Maya Angelou foi uma mulher que percorreu muitos caminhos, que nada tiveram de lineares ou convencionais. Bastante conhecida por seu livro Eu sei por que o pássaro canta fora da gaiola, bem como o poema Still I rise (Ainda assim eu me levanto), Maya se dedicou a construir sua vida como tarefa política de superação em um contexto de violenta segregação racial, racismo e abuso contra mulheres nos Estados Unidos da famigerada lei Jim Crow. Acredito que sua narrativa, entrecortada por momentos de dor, superação e libertação, se mantém atual e também politicamente necessária, em um momento em que o valor da vida – sobretudo das vidas negras – ainda parece ficar em segundo plano, em que mais uma vez precisamos erguer a nossa voz para afirmar, em pleno século XXI, que “Vidas negras importam!”.

Maya era filha de Vivian Baxter, que nasceu numa época (primeiros anos do século XX) nada boa para se nascer negra, pobre e mulher em St. Louis, Missouri e de Bailey Johnson Sr., que havia sido porteiro e cozinheiro de navio. Após a separação dos pais, que eram, nas suas palavras, como “fósforo e gasolina” e brigaram muito até para decidir como iriam se separar, Maya passou os primeiros anos da sua vida junto com o irmão mais velho, Bailey Jr., sob os cuidados da avó paterna, Annie Henderson, em Arkansas, estado do sul segregado dos Estados Unidos. Foi se distanciando e se perdendo da mãe, ao mesmo tempo em que construía e fortalecia laços afetivos com a sua família de então: a avó, seu irmão Bailey Jr. e tio Willie, irmão de seu pai.

Quando tinha oito anos foi com o irmão visitar a mãe, que então vivia em St. Louis com um novo companheiro. Esta acabou sendo uma experiência trágica e brutal para Maya, que foi estuprada pelo “padrasto”, companheiro de Vivian. A menina teve que contar o que tinha acontecido, o que fez com que o padrasto fosse preso e acabasse morto ao sair da prisão. Após este terrível episódio, Maya e Bailey Jr. foram mandados de volta para a casa da avó. A experiência traumática do estupro a deixou sem mãe e sem voz: por cinco anos Maya emudeceu: tinha medo de sua voz “ser tão poderosa que podia matar as pessoas”.

Mamãe & Eu, primeira parte da narrativa, marca um ponto de inflexão, quando os dois irmãos, então com 14 e 12 anos, precisam voltar para a companhia de Vivian, agora vivendo em Oakland, California, depois de ter se tornado uma bem-sucedida empresária. Os dois, Maya e Bailey, tinham atingido uma idade perigosa para se viver naquele ambiente tão segregado do Sul, onde “qualquer garoto negro daquela idade que simplesmente olhasse para meninas brancas corria o risco de ser espancado, ferido ou linchado pela Ku Klux Klan”. Este momento é o ponto de virada na vida de Maya que, a partir de então, precisou reconstruir a relação interrompida com Vivian, a quem, inicialmente, não conseguia sequer chamar de mãe; na primeira vez em que, finalmente, conseguiu se dirigir a ela, chamou-a “Lady”, porque, como explicou, ela era muito linda e não parecia uma mãe. E quando Vivian lhe pergunta se “Lady” era o nome de alguém de quem gostava, ela responde: “Lady é o nome de alguém que posso aprender a gostar”. É este o ponto da narrativa que mais me comove e me toca, enquanto mulher, enquanto mãe, enquanto pessoa engajada nas lutas antirracistas, enquanto alguém que cuida, como terapeuta, das relações familiares e da construção de novas narrativas e sentidos a partir das relações. Uma série de perguntas e inquietações me veio: o que significa ser uma mãe? Quando nos tornamos mãe de alguém? Isto acontece mais de uma vez com cada filho/filha? E quando nos tornamos filha ou filho de alguém? E, a pergunta mais inquietante, o que significa uma relação mãe-filha em um contexto de racismo e violência em que cada dia é uma luta, em que é preciso se levantar para continuar existindo?

É possível que nos tenhamos acostumado com a ideia de que as crianças nascem porque existem amor e desejo que elas nasçam ou que uma mãe ama incondicionalmente seus filhos e estes, “naturalmente”, têm isto como certo e garantido. Uma garantia prévia, “passaporte” para a existência. Mas o que fui aprendendo com a estória de Maya é que o significado deste amor, a realidade desta relação, de todas as relações é, por fim, resultado de construções, em que as relações vão se entretecendo e conferindo materialidade e atribuindo significados possíveis a ter uma mãe, um pai, ser uma filha, ser irmã, ser neta, ser mãe... Significados que vão também se alterando e se transformando ao longo do caminho, sentidos que vão e vêm, que são e vêm a ser (Anderson, 2019).

Maya precisou fazer muitas viagens, percorrer muitos caminhos, em cenários muitas vezes difíceis e desafiadores, e precisou, para isto, se valer de muita coragem, força e determinação, bem como de muita criatividade e capacidade de se inventar e reinventar, a cada dia. Mamãe & Eu conta a história desta primeira viagem, em direção a uma mãe a quem vai aprendendo a entender, encontrar, descobrir e gostar, tornando-se filha de uma mulher igualmente forte e poderosa, mas tão diferente de si mesma. Aí podemos ouvir a voz de uma filha que encontra, vai conhecendo e aprendendo a se re-conhecer em sua mãe.

Com 15 anos, ao voltar de uma visita não muito bem-sucedida ao pai, Maya resolveu que queria trabalhar por um tempo antes de voltar às aulas; e o emprego que escolheu ter era o de condutora de bonde. Mesmo na San Francisco mais liberal e progressista daquele momento, Maya precisou lutar muito para se tornar a primeira pessoa negra americana a trabalhar dirigindo bondes. Durante todos aqueles meses a rotina foi a mesma todos os dias: acordar muito cedo (Maya trabalhava nos bondes de quatro às oito da manhã e depois de uma às cinco da tarde), sendo levada e trazida de volta para casa de carro por sua mãe, que foi durante todo o tempo uma espécie de “guarda-costas”.

“O que você aprendeu com essa experiência?”, pergunta Vivian.

“Aprendi que você provavelmente é a maior proteção que eu terei na minha vida”.

“E o que você aprendeu sobre si mesma?”

“Aprendi que não tenho medo de trabalhar”. E Vivian completa:

“Não, você aprendeu que tem poder – poder e determinação. Eu te amo e tenho orgulho de você. E com essas duas coisas, você pode ir a qualquer lugar”.

Esta passagem me evoca os ensinamentos de Mikhail Bakhtin sobre responsividade como o pressuposto de toda pergunta, de todo enunciado, de estar dirigido a alguém e poder antecipar e gerar uma resposta: “só é possível me conhecer a mim mesmo me enxergando através dos olhos do outro” (Bakhtin, 1990).

Maya engravidou de seu filho Guy na mesma época, depois de um breve relacionamento com um homem violento e abusivo que chegou a agredi-la fisicamente. Quando seu filho era um bebê de apenas dois meses, decidiu que era hora de partir e começar a construir sua vida, fora da asa protetora de Vivian. “Mãe, eu vou me mudar”, diz, comunicando sua decisão. E ouve de volta: “Certo, pode ir, mas não se esqueça: depois que sair pela minha porta, pode se considerar criada. Com o que aprendeu de sua avó Henderson no Arkansas e o que aprendeu comigo, você sabe a diferença entre o certo e o errado. Faça o certo e não deixe ninguém destruir a sua educação. E lembre-se: você sempre pode voltar para casa”. Aquela foi a primeira vez que Maya chamou “Lady” Vivian Baxter de mãe.

Em Eu & Mamãe, a segunda parte do livro, como que se colocando num espelho, Maya abre espaço para a voz da mãe, a voz da mãe da maneira como ela vai se fazendo ouvir em sua vida. É um delicado movimento de deslocamento da filha-autora em que Lady ganha a cena como uma mulher extraordinária que luta de formas nada convencionais para colocar em prática o amor aos dois filhos. Também esta caminhada é pontuada por aproximações e distanciamentos, sempre permeados pelo apoio emocional e recíproco que vai, cada vez mais, unindo uma e outra. Apesar de Vivian ter, àquela altura, uma vida confortável e sem problemas de dinheiro trabalhando no ramo do entretenimento, resolveu, em certo momento, singrar outros mares e tentar a sorte como trabalhadora na indústria naval, tornando-se também ela a primeira negra a conquistar o direito de trabalhar num ofício vedado a mulheres, de todas as cores e origens:

“Você foi uma trabalhadora incansável”, diz Maya em sua homenagem, “graças a você mulheres brancas, negras e latinas zarpam do porto de São Francisco. Você foi funileira naval, enfermeira, agente imobiliária e até barbeira. Nunca existiu pessoa mais grandiosa do que você”.

Mas mesmo com a certeza do apoio incondicional de sua mãe, a vida de Maya Angelou (nome que herdou do músico grego Josh Angelos, com quem foi casada) foi atravessada por momentos de dor, angústia e desespero, sobretudo por medo do que o futuro reservaria a seu único filho, Guy. Ela já fazia sucesso como atriz e dançarina, escalada no elenco do musical Porgy and Bess, o que a levou a viajar para vários países, quando entrou numa grande crise de depressão: estava convencida de que seria difícil, senão impossível, criar um menino negro feliz em uma sociedade racista. Pensamentos suicidas a invadiam, pensava em se atirar com Guy da janela de um edifício bem alto. Achava que estava ficando louca. Louca a ponto de pensar em se matar e matar o filho junto. Quem a resgatou naquele momento foi o seu professor de canto, que a ajudou a se reconectar com todas as coisas que tinha conquistado e conseguira fazer até então. Reconhecer e agradecer por, apesar de tudo, ainda estar viva.

Maya Angelou conclui seu livro autobiográfico com uma homenagem e um agradecimento a todos os pais e mães que ousam criar seus filhos e filhas com amor, risos e orações. Que tropeçam e caem, e ainda assim se levantam para serem mães e pais bem-sucedidos.

Este livro é, para mim, fonte de muitos ensinamentos e inspiração e, também, parafraseando Giovana Xavier, coordenadora do Grupo Intelectuais Negras que faz a apresentação da segunda edição, uma leitura imprescindível que nos toca a tod@s, especialmente no Brasil, país de maioria negra e feminina, em que o ato político de amar é empreendido cotidianamente por mulheres negras que escalam todos os dias “alturas impossíveis”.

 

REFERÊNCIAS

Anderson, Harlene (2019) Prática Colaborativo-Dialógica: uma orientação para maneiras de ser e vir a ser com outros convidando o potencial para generatividade e transformação. In: Marilene Grandesso (org.) Construcionismo Social e Práticas Colaborativo-Dialógicas: contextos e ações transformadoras. Curitiba: Editora CRV.         [ Links ]

Angelou, Maya (2018) Eu sei porque o pássaro canta na gaiola. 3ª edição, tradução Regiane Winarski. Bauru: Astral Cultural.         [ Links ]

Angelou, Maya (2018) Mamãe & Eu & Mamãe. 2ª edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.         [ Links ]

Bakhtin, Mikhail (1990) “Art and Answerability”. In: Michael Holquist e Vadim Liapunov (Eds.). Art and answerability. Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Austin: University of Texas Press.

 

 

LEONORA CORSINI
É associada ao Instituto Noos, onde coordena a clínica de famílias e integra o Conselho Gestor. Além dos atendimentos e supervisões de atendimento a famílias e casais, é coordenadora e docente no curso Aportes Filosóficos e Conceituais para uma Prática Dialógica que, em sua nova edição, vem discutindo o racismo, as lutas antirracistas e as relações étnico-raciais em interseção com a abordagem colaborativo-dialógica. Psicóloga e terapeuta de família, é mestre em Psicologia Social e doutora em Serviço Social, com ênfase na questão migratória e nos direitos humanos.
https://orcid.org/0000-0002-7192-0432
E-mail: corsinileonora@gmail.com

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