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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.68 São Paulo set./dez. 2020

 

FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO

 

O desassossego bem-vindo

 

 

Alexandra R. MoreiraI; Paula AyubII

IUniversidade Católica de Lisboa, Portugal.
IICentro de Convivência Movimento, São Paulo/SP, Brasi
l.

 

 


 

 

De uma conversa muito interessante com a psicóloga Paula Ayub, trazemos aos leitores um passeio pelo trabalho de uma profissional que gosta de desassossego. Conheceremos também como ela tem lidado com este momento da pandemia e de como os novos desafios têm trazido ainda mais movimento para a sua vida. Além destes assuntos, também conversamos um pouco sobre o curso que ela está ministrando, voltado ao Atendimento Domiciliar. Um bate-papo com reflexões bastante úteis sobre uma postura de vida e profissional mais dialógica.

Alexandra: Paula, li num artigo seu (Ayub, 2012) o conceito da autora Lorna Wing, que você mencionava como uma ideia que auxiliava na descrição das pessoas com quem você trabalhava: pessoas com prejuízo na imaginação, socialização e comunicação. Hoje, este conceito permanece? Quem é a profissional Paula, para quem você trabalha e como entende hoje o que você faz?

Paula: Hoje, posso dizer que eu aderi ao conceito de neurodiversidade (o termo foi trazido para a comunidade autista e científica pela socióloga e asperger australiana, Judy Singer, em 1999). Hoje eu não falo mais em prejuízo, mas modo de funcionamento. Eu trabalho hoje com pessoas que possuem um modo de funcionamento atípico. Quando falamos em prejuízo, precisamos de algo para equiparar: esta pessoa está devendo e eu preciso trabalhar para ela dever menos. Quando eu trabalho para ela dever menos, eu estou dizendo que ela precisa melhorar. Então estou lidando com uma situação hierárquica, com uma relação de bom ou ruim. Uma espécie de “capacitismo”, que não aceito mais. O capacitismo é uma violação de direitos. Todo meu trabalho, ao longo desses anos, é uma forma de luta contra este conceito.

Cada vez que falamos: “ele não consegue fazer”, estamos falando do que ele deveria conseguir, e não daquilo que deixamos de compreender. Li um texto muito colaborativo do Tom Strong – Collaborative Influence (2000), em que ele rebate a ideia da psicoterapia como um espaço de colonização do outro, em que o terapeuta sabe o que é melhor para o seu paciente. E a ideia da relação dialógica que ele traz me leva muito para o lugar do fazer, independentemente do contexto do meu paciente. Acho que o mais difícil para mim é a construção do terapeuta, de não sermos colonizadores. Precisamos saber modificar, personalizar nossos atendimentos. Eu acho que sou uma terapeuta multifacetada. O desassossego é entender que não existe um eixo, um caminho único que nos leve ao bem-estar da pessoa que estamos atendendo: se é autista, por exemplo, fazemos do modo “X” e está “tudo resolvido”. Se eu entender isto, este desassossego não me gera ansiedade, ele promove movimento, porque este deveria ser o estado natural das coisas: movimento. Nós somos nossa principal ferramenta de trabalho; nos vejo como sendo nossos próprios settings. Quando estamos na casa do outro, precisamos ser o setting. E se entendemos isto, qualquer lugar é lugar para atender. Eu aprendi com os meus pacientes a explicar muitas coisas que acontecem de acordo com o meu jeito típico de funcionar. Isso foi desde sempre. Desde que o Centro de Convivência* nasceu, há 28 anos, atendemos pessoas não oralizadas e trabalho incessantemente na construção dos significados: “assim é para mim, e como é para você?”. O Centro do Convivência Movimento foi inaugurado em 1992 e, na época, tinha como objetivo primordial atender crianças com autismo não oral, em um modelo de uma típica casa classe média brasileira, ou seja, atender em um modelo de casa que tivesse cômodos separados para dormir, comer, estar, brincar. O trabalho se voltava a atividades de vida diária (banho, alimentação, escovação de dentes), entretenimento, independência e atividades ocupacionais. Tom Andersen, quando nos visitou lá em 2000, disse uma expressão que até hoje é lembrada: “put words into meanings”, que seria dar significado a tudo para que a criança não oralizada pudesse aumentar o seu repertório, compreender as palavras ditas por outros, cujo significado aparentemente não reconheciam  e que conseguisse construir significados: um repertório compartilhado com ela mesma, outras pessoas – adultos e crianças. Hoje, eu acrescentaria: “colocar movimento às palavras”, além dos significados.

Também tenho um trabalho voluntário no grupo “Eu Me Protejo”*, um projeto muito gratificante, pois esta ideia de oferecer significados em palavras foi importante para o respeito, para a aproximação física, para o toque do próprio corpo. E no trabalho no Centro de Convivência precisamos tocar corpos, bocas, e são todas partes íntimas: algo que precisamos fazer nomeando e pedindo licença ao tocarmos. O trabalho que eu desenvolvo no Centro de Convivência ajudou muito nesta ideia de aproximação, no respeito em construir significados, no movimento de pedir permissão para o outro, no como falar. Um trabalho alimenta o outro.

A: Você mencionou no início da nossa conversa que estava sentindo uma espécie de desassossego neste momento de pandemia, e que este sentimento é justamente o que te traz paz e que te leva a ficar na posição de não saber, citada pela Harlene Anderson, (2009). Poderíamos associar o desassossego à curiosidade?

P: Sim, mas acredito que temos que tentar trazer mais a fundo esta questão, senão corremos o risco de nos contentarmos com mais uma palavra comum: “claro que eu sou curioso com relação ao meu paciente”, dizemos a nós mesmos como terapeutas. Quando eu falo do desassossego, eu tento ir um pouco mais para dentro dessa curiosidade. Mergulhar um pouco mais fundo: quando eu me sentir sossegada com relação a algum paciente, tem em mim um significado de que já não tenho nada para oferecer a ele. É buscar entender, se questionar incessantemente. É mais do que curiosidade, eu diria. É entrega, é o sentimento de não conformidade. E quando eu sinto isto, eu me sinto uma profissional e uma pessoa mais inteira. E esta sensação me traz paz. Porque se nós não estamos dialogicamente com o outro, em qualquer contexto, estamos sossegados: “eu não preciso ouvir você”, “eu estou ‘pronta’”. Enquanto nos sentimos desassossegados, não estamos entendendo e, portanto, estamos buscando. E se eu estou buscando, me sinto satisfeita, porque estou onde acho que eu preciso estar, que é justamente nesse lugar de não saber, um lugar que me traz satisfação.

E acredito também que a chave de tudo é o tempo. Quando convidamos o paciente para vir junto nesta perspectiva, ele vem, ele desenvolve, e nós tentamos criar os sentidos nesta atmosfera. O tempo flui e mostra que num determinado momento vamos alcançar alguma transformação, seja ela qual for.

Eu acho que tem a ver com o que o Shotter falou sobre Tom Andersen (Shotter, 2007), quando Tom se autointitula um “worrier e um wonderer”. Isso me acompanha muito. E quando eu penso na palavra desassossego, eu acredito que ela se articula bastante com isto. E há um movimento intenso de criação também, que é um tempero muito importante neste trabalho. A grande maioria dos meus clientes passou para atendimento on-line nesta pandemia, o que tem representado um grande aprendizado.

A: E isto lhe trouxe algo de novo como terapeuta?

P: Eu já estava fazendo isto com várias famílias e eu geralmente uso bastante a tecnologia. Não era um mundo novo. Aparentemente. Aprendi novamente que há sempre mais a se conhecer sobre algo. Uma coisa é você “achar” que conhece, outra coisa é você trabalhar dependendo daquilo. Foram inúmeras portas que se abriram para que a distância física pudesse ficar um pouco menos perceptível. Eu tenho paciente muito bom em tecnologia e jogamos dentro do computador um do outro. Ficamos muito próximos, é muito interessante. Os contextos são inúmeros. Ontem aconteceu algo interessante: uma mãe me procurou no início da pandemia, pois estava tendo muitas dificuldades em construir uma nova rotina com o filho (14 anos). Ele está no espectro autista. Além disso, eu diria que ela não é uma pessoa muito tecnológica e teve que aprender praticamente tudo. A escola estava cobrando resultados, pois o menino não estava estudando, indo à aula, não entregava lição de casa. Eu fui conversando muito com essa mãe e com esse filho, às vezes juntos, às vezes separados. Eu pensei: como eu poderia ajudar? Como eu poderia estar colaborativamente nesta relação? Fomos construindo um caminho de ajuda. O menino também entrou num processo de ansiedade aguda. Foi muito difícil no início. Além de estarmos trabalhando essas questões, a mãe me perguntou se eu poderia ajudar nas lições de casa e eu disse: “se ele quiser que eu o ajude, eu posso. Só não posso garantir conteúdo”. A mãe afirma que o foco seria no ato de fazer, no processo em si. Resolvi aceitar o pedido. Ele tem sessões duas vezes por semana comigo e ele vai me dizendo o que ele quer e precisa desses momentos. Há dias em que ele pede para conversar. Então eu digo a ele que podemos fazer o que ele quiser. Ontem ele me disse: “Paula, eu tenho muitos assuntos para tratar com você e tenho muitas lições”. Pergunto para ele como ele acha que poderíamos resolver. Ele responde: “eu não sei, não consigo decidir o que é mais importante. Tem muita coisa me afligindo e eu tenho que entregar essas lições”. Eu perguntei: “e o que você gostaria que acontecesse?”. Ele falou: “que eu tivesse mais tempo”. Então eu devolvo: “olha, eu tenho uma janela das 17h às 19h que eu vou usar para fazer coisas para mim, do meu trabalho. Necessariamente eu vou ficar na frente da tela. Se você quiser, eu posso te chamar nesse horário e você faz a sua lição aí e eu faço a minha aqui. Se você precisar de ajuda, pode me chamar que eu lhe ajudo, mas eu não vou ficar conversando com você porque eu também tenho que me concentrar. Você acha que isto lhe ajuda?”. Ele responde: “é tudo o que eu preciso, porque agora eu posso falar tudo o que eu quiser com você”. E conversamos muito. É um jovem encantador. A sessão toda ele vai para um lugar profundo e de conhecimento dele mesmo. Combinei com ele de passar uma mensagem às 16h50 lembrando do nosso acordo. Caso ele não quisesse dar continuidade, era só me avisar. Ele mandou um sinal de positivo e ficou sentado, em silêncio, o tempo todo, fazendo a lição. Ele lá e eu cá, mas juntos. Ele só precisava de companhia e alguém que o ajudasse, pois ele às  vezes tem dificuldade de saber como começar e como terminar uma lição. O tempo dele é outro tempo. De vez em quando ele dizia:“você está aí?”. E eu devolvia: “sim. Precisa de alguma coisa?”. Ele falava: “não, não. Era só para saber se você estava aí”.

Depois de uma hora e trinta minutos, ele diz: “acabei”. Eu brinquei: “você terminou antes do que eu!”. Fizemos alguns combinados sobre o envio da tarefa para a escola e então ele ativa o vídeo (estávamos apenas com os áudios ligados) para me mandar um beijo virtual, ou seja, uma manifestação de afeto muito importante. É esta relação que eu estou trabalhando: a relação com o tempo. Como eu posso colaborar como terapeuta? Não é só fazer a lição, neste caso. É entregar a lição, é ele conseguir parar o que ele estava fazendo para poder atender a um outro pedido vindo da escola, é a mãe poder ver esse movimento do filho, são esses professores vendo a competência dele... É a conquista deste lugar que contradiz a história dominante dele. É essa a grande questão:  colaborar é muito mais do que ajudar. Esta situação ilustra para mim um contexto que envolve o colaborativo terapêutico: escutar o que o outro de fato precisa e poder estar ali junto.

A: Você poderia nos falar um pouco sobre o seu curso voltado ao Atendimento Domiciliar?

P: Fico pensando nessa ideia de voltar ao normal. Este normal já não existe mais. E até mesmo pela demanda das crianças da clínica, eu fico pensando o quão difícil será para algumas famílias saírem de casa. Muitas pessoas estão solicitando atendimentos em domicílio, como eu costumo fazer. E isto é bem diferente do que ser um acompanhamento terapêutico. E para eu encaminhar as demandas que chegam até  mim, eu gostaria que estes profissionais trabalhassem entendendo a minha linguagem, porque muitas famílias solicitam encaminhamentos (quando eu não tenho horário disponível) com profissionais que trabalham da forma como eu trabalho. Então senti a necessidade de encontrar profissionais que entendam a proposta, que gostem e que se identifiquem com ela. Pensei que este momento fosse ideal para desenvolver o curso voltado ao Atendimento Domiciliar, pois acredito que muitas famílias irão precisar nos receber em casa. Contando com a ajuda da Helena Maffei Cruz e da Marilene Grandesso, consegui montar um grupo envolvendo psicólogos e professores. Tem sido uma experiência muita rica, pois são pessoas bem dispostas a entrar fundo nas reflexões, e estamos trabalhando de forma bastante dialógica.

Vários artigos são enviados para leitura (Harlene Anderson, Tom Strong, Michael White, Gergen, Shotter, entre outros, inclusive meus) e discutidos em aula. Há uma apresentação com os temas principais de cada artigo e há também exercícios e dinâmicas feitas em duplas ou trios nas salas de break out.

São profissionais ligadas às áreas de família e/ou saúde mental: professoras, pesquisadoras, psicólogos clínicos. O objetivo geral do curso é divulgar uma prática que julgo importante: “buscando contextos onde habitam os significados”.

A: Você havia mencionado anteriormente a ideia de uma terapeuta multifacetada e desassossegada. Poderia nos dar um exemplo disto na prática?

P: Eu fiquei por dois meses falando com todos os psiquiatras dos jovens que eu atendo. Longamente. Os efeitos do tempo de tela, como poderíamos lidar com a situação da pandemia. Eu fui colhendo coisas, eles me alimentaram de informações para que eu pudesse oferecer saídas. Uma das coisas foi: tenho que usar o tridimensional e sair do 100% bidimensional. Sair apenas da linguagem falada e ir também mostrando objetos reais do outro lado da tela, trazendo mais dimensão para os encontros. Eu estou fazendo boneca de pano com meus pacientes, por exemplo. Eu fico pesquisando material para poder transformar as minhas sessões on-line de acordo com a idade, com o contexto. Eu tenho que ter tempo para ver “tik tok” também, pois é o que eles veem. Eu me movimento, vou atrás para poder oferecer outras coisas. É preciso ajudar esse cérebro que está explodindo na pandemia. É preciso fazer coisas, literalmente. Este é o movimento. Este é o desassossego. Não podemos ser apenas espectadores nas telas; sinto que precisamos encontrar novas formas de interagir.

https:\\www.centrodeconvivenciamovimento.com.br

 

 

Referência

Anderson, H. (2009). Conversação, linguagem e possibilidades: um enfoque pós-moderno da terapia. Roca: São Paulo.         [ Links ]

Ayub, P. (2012). Com licença, posso entrar? Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 44 p. 49-60.         [ Links ]

Shotter, J. (2007). Not to forget Tom Andersen’s way of being Tom Andersen: the importance of what “just happens” to us. Human Systems: The Journal of Systemic Consultation & Management, 18, 8-27. Recuperado em 13 julho, 2012, de http://www.johnshotter.com/papers/Shotter%20Tom_Andersen.pdf

Strong, T. (2000). Collaborative Influence. DOI: 10.1002/j.1467-8438.2000.tb00432.x        [ Links ]

 

 

ALEXANDRA R. MOREIRA
Psicóloga clínica, terapeuta de casal/família, pedagoga, mestranda em Psicologia (Universidade Católica de Lisboa). Integra a equipe clínica e o Núcleo de Saúde Mental do Instituto Noos. É membro titular da ABRATEF e da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.
https://orcid.org/000-0002-3356-0982
E-mail: alexandramoreira.psicologa@gmail.com

PAULA AYUB
Psicóloga clínica, terapeuta de família e de casal (PUC–SP), diretora do Centro de Convivência Movimento, membro do Grupo de Trabalho em Transtorno do Espectro Autista da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e membro titular da ABRATEF. É formada pelo ICCP (Certificado Internacional de Práticas Colaborativas) e é idealizadora do projeto Jovens Solidários em parceria com o Instituto Noos e o Centro de Convivência Movimento.
https://orcid.org/0000-0003-4944-2523
E-mail: paula.ayub@gmail.com

 

 

* Eu Me Protejo – Idealizado por Patrícia Almeida e Neusa Maria, o grupo conta com mais de 50 colaboradores com o objetivo de educar para a prevenção contra a violência sexual infantil. www.eumeprotejo.com.br. O projeto recebeu, em 18 de maio, o prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos, na categoria de produção de conhecimento. O grupo elaborou uma cartilha para prevenção do abuso infantil em linguagem acessível, destinada a crianças pequenas e pessoas com deficiência. São profissionais de várias áreas e de todos os cantos do país. A cartilha já foi traduzida para o espanhol e para o inglês e lançada em sites da Argentina, Chile, Estados Unidos e outros países.

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