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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo jan./abr. 2021
https://doi.org/10.38034/nps.v30i69.616
ARTIGO
Conversações com a morte: experiências em terapia colaborativa dialógica para situações de perda e luto
Conversation with death: experiences in collaborative dialogical therapy for situations of death and grief
Conversaciones con la muerte: experiencias en terapia colaborativa dialógica para situaciones de pérdida y luto
Terapeuta colaborativo dialógico, coordenador do programa de treinamento em práticas colaborativas e dialógicas do Instituto Movimento, associado honorário aos Taos Institute. Florianópolis, Brasil. E-mail: brunoplenzi@gmail.com
RESUMO
Neste artigo apresento um recurso terapêutico para diálogo com pessoas que vivem o desconforto de uma perda significativa em suas vidas. Ao longo do texto será explorada uma articulação teórico-prática sobre os caminhos para o uso deste recurso por meio da teoria da terapia colaborativa dialógica e relatos de casos atendidos na clínica privada. A descoberta e construção conjunta das possibilidades para o relacionamento do cliente com o outro ausente me impulsionaram à reflexão sobre esse recurso e compartilhamento neste artigo.
Palavras-chave: Construcionismo social, luto, morte, terapia colaborativa dialógica, terapia narrativa.
ABSTRACT
This article presents a therapeutic resource for dialogue with people living the discomfort of a significant loss in their lives. Throughout the text, we will explore a theoretical and practical articulation use within this resource. Using the collaborative dialogical theory, and case reports from my private practice. The conjoint building and discovery of the possibilities for the relationship between the client with the absent one compelled me to the reflection on this resource and share it in this article.
Keywords: collaborative dialogical therapy; death; grief; narrative therapy; social constructionism.
RESUMEN
En este artículo se presenta un recurso terapéutico para el diálogo con las personas que viven la incomodidad de una pérdida importante en sus vidas. A lo largo del texto, exploraremos un uso de la articulación teórica y práctica dentro de este recurso. Utilizando la teoría dialógica colaborativa e informes de casos de mi práctica privada. La construcción conjunta y el descubrimiento de las posibilidades de la relación entre cliente y el ausente me impulsaron a reflexionar sobre este recurso y compartirlo en este artículo.
Palabras-clave: Construcionismo social, luto, muerte, terapia colaborativa dialógica, terapia narrativa.
A terapia familiar e a psicologia têm desenvolvido recursos, conceitos e mapas para conversações em processos de enlutamento por anos (Kovács, 1992; Kümbler-Ross, 1996; Walsh & McGoldrick, 1998). Com White (2007), fomos apresentados ao mapa de conversação de re-associação, que inspirou o desenvolvimento das conversações com a morte em minha prática colaborativa dialógica com pessoas que viveram situações de perda, seja pela morte, seja por mudanças na vida, fins de relacionamentos, fins de ciclos, e outros. Essas práticas eram, inicialmente, exercícios do mapa de conversações de re-associação, que eu coloquei em interação com as sensibilidades filosóficas colaborativas, distanciando-me dos aspectos mais orientativos da terapia narrativa para corporificar a incerteza, a espontaneidade e a expertise do cliente, convidados pelos diálogos sócio-construcionistas. Outra característica importante do recurso que venho desenvolvendo é sua diferenciação dos conhecimentos tradicionais para processos e estágios do luto tanatológico. O desenvolvimento do conhecimento que será apresentado ocorreu dentro de relações em que o cliente orientava a linguagem para descrição da dor e o terapeuta participava com a investigação que expandia o conhecimento que o cliente tinha de si, para alcançar a criatividade para novas respostas e resultados úteis à sua realidade. Conversações com a morte não propõem a extinção de conhecimentos prévios para enlutamento, mas convidam à interação alinhada com as sensibilidades colaborativo dialógicas em conversas com participantes cuja demanda à terapia é a dor da perda e a busca por formas alternativas de relacionamento, por meio da investigação da linguagem local com perguntas, reflexões e avaliação pelas pessoas engajadas na conversa.
Nas próximas páginas apresentarei reflexões teóricas de autores que inspiraram esta sensibilidade à conversação. Inicio com o conceito sócio-construcionista de self e o mapa de conversação de re-associação da terapia narrativa; posteriormente, desenvolvo minhas sensibilidades para a prática colaborativa dialógica com autores desta comunidade.
SELF RELACIONAL
Começamos a construir a fundamentação da prática com a compreensão de self relacional (McNamee & Gergen, 1999) e personagens internos (Lenzi, 2013) do construcionismo social. Este conhecimento faz referência aos processos sócio-históricos que nos tornaram quem somos; os relacionamentos mais relevantes da nossa experiência criam roteiros, itinerários, por onde nos entendemos e oferecemos nossas respostas. Desta forma, ao nos relacionarmos, nos remetemos a itinerários historicamente suplementados, que nos ocorrem como coerentes a esta relação no presente. Respondemos de forma semelhante a interações que nos fazem sentir como outros relacionamentos já vividos. Estas trocas, vividas ao longo do tempo, muitas vezes são avaliadas como úteis àquelas interações e se tornam responsividade espontânea às pessoas no diálogo (Shotter, 2017b). Mas a repetição das respostas historicamente fortalecidas pode levar a interações pouco qualitativas, ou já desatualizadas, para determinados momentos. Em terapia, escuto atentamente por vozes, ou respostas, alternativas às mais espontâneas, que o cliente tem disponível em seu self, e busco entender a multiplicidade de alternativas imaginárias às suas expressões. Quando percebemos formas diferentes de ser e responder a interações, podemos iniciar perguntas que buscam entender aquelas personagens performadas pelo outro, caracterizando-as em vozes internas, ou personagens internos. Quando complexificamos o self podemos experimentar maior reflexividade, um diálogo interno, que constrói respostas com mais conhecimento do que uma situação pede, e quais os resultados preferenciais para aquela interação. Polivocalidade é trazer muitas vozes ao processo de compreensão dos relacionamentos que constroem determinada realidade. Também o faço pelo convite a outros participantes presencialmente nas nossas conversas. Quando um cliente me conta sua história e um outro participante aparece e tem relevância naquela interação eu pergunto se ele gostaria de convidar esta pessoa, ou estas pessoas, para uma conversa conosco, quando poderemos entender suas descrições daquela realidade, suas semelhanças e diferenças agregadoras. O cliente é quem define se estes outros participantes são úteis ao processo ou não.
De forma semelhante, quando outros participantes não podem estar conosco presencialmente, uso de cartas para conhecê-los, ou quando mesmo isso se torna inacessível, convido a voz internalizada deste no meu cliente, para entender uma possível descrição alternativa, "você fala dessa pessoa como alguém íntimo e bastante relevante na história. Se ela estivesse aqui, conosco, o que ela teria a contar? Como ela responderia à escuta da sua narrativa?". O convite à polivocalidade é chave para criatividade, uma vez que uma nova resposta exige diálogo interno e suplementação externa para ganhar significação e espaço no self. Isso significa que novas respostas precisam ser testadas e confirmadas socialmente para adquirirem o significado de úteis e se corporificarem na responsividade espontânea da pessoa.
RE-ASSOCIAÇÃO E DIZENDO OLÁ
Este é um mapa de conversação da terapia narrativa para conversações quando em situação de perda, luto, ou fins (White, 2007). Pela metáfora da associação, ou clube, da vida, composta por pessoas, identidades e vozes de relevância, mesmo que essas sejam ficcionais, como explorado em outro texto (Lenzi, 2017), essa compreensão dá coerência para a presença de um desses membros no self da pessoa. Enquanto estamos interessados na história de um participante na vida do cliente, nós estamos, de modo inerente, atualizando este relacionamento no self.
White (2007) relata a história de uma cliente cuja única esperança de continuar vivendo foi construída no relacionamento com uma vizinha. O terapeuta investigou a história de como uma deixou marcas na vida da outra. Ao conduzir a entrevista, ele experienciou o fortalecimento do compromisso com a vida por parte da cliente. Essa experiência de re-associação favoreceu a transformação pela renovação da conexão com uma pessoa que ainda vivia, mas estava distante do self da cliente. Este exemplo é relevante para o texto, uma vez que, tanto o mapa de conversação proposto pelo autor, quanto o recurso deste texto, podem ser utilizados quando o conteúdo da terapia do cliente é a ausência de um outro significativo em sua rotina. Este outro não precisa estar morto, apenas em um lugar diferente do usual ocupado anteriormente na vida do cliente.
Dizer olá é um desenvolvimento baseado na re-associação, para a terapia de casos entendidos socialmente como de luto patológico. Esta possibilidade de narrativa foi questionada pelo autor, cético aos discursos patologizantes das experiências das pessoas, para favorecer narrativas mais empoderadoras de seus clientes (White, 2007). O autor percebeu que as pessoas não haviam apenas perdido um ente querido, mas também parte de sua identidade. Enquanto as pessoas eram estimuladas a dizerem adeus e reconstruírem suas vidas sem a participação do falecido, elas experimentam dor e sofrimento e podem fracassar no processo de reestruturar seus selves. Cético às proibições sociais em manter um relacionamento com uma pessoa falecida, o autor propôs reincorporar esses entes queridos por meio de uma metáfora alternativa, o "dizer olá" (White, 2007, p. 151). Com perguntas legitimadoras da história e participação da pessoa ausente na vida do cliente, essas conversas geraram a dissolução do desespero. Ele acreditava que essas conversas contribuiriam para desafiar o entendimento ocidental de self encapsulado, essencialista e imutável, ao convidar pessoas para investigarem os relacionamentos que compunham suas identidades.
RELACIONAMENTOS COLABORATIVOS E CONVERSAÇÕES DIALÓGICAS
Minha prática é comprometida com uma postura cética ao fazer tradicional de tratamento psicológico. Antes de me remeter às pesquisas e ciência de cura dos problemas que afligem meus clientes, busco compreender, a partir do saber deles, aquilo que vivem. Isto é, produzir um saber de dentro da experiência, que legitima o conhecimento do cliente e o coloca em posição privilegiada de entendimento daquilo que vive (Anderson, 2009; Shotter, 1993). A terapia colaborativa dialógica, ao valorizar o saber dos clientes, coloca o terapeuta em uma posição improvisacional. Enquanto treinamos para ouvir e entender, começamos a abrir mão do planejamento antecipado das conversas. Desapegamos da necessidade de certeza, para acolher a incerteza, confiantes no conteúdo que as pessoas escolherão trazer para o diálogo e confiantes na nossa curiosidade para aprender mais com elas. Para aprender mais, nós gentilmente desafiamos nosso cliente a desenvolver mais e mais conhecimento para nos explicar sua realidade (Anderson, 2009). Deste conhecimento surge criatividade para a construção de novas respostas às vicissitudes dos relacionamentos das pessoas.
Trabalhar com a linguagem das pessoas significa estar comprometido com as descrições e conhecimentos disponíveis ao cliente e participar por meio de sua expansão via perguntas e reflexões que desafiam, exploram e investigam o saber de si por parte do cliente. Todos os relacionamentos vêm de relacionamentos prévios, todo enunciado é resposta a um enunciado anterior, num continuum relacionalmente responsivo (Shotter & Kaz, 1999). Estou sempre atento a quaisquer experiências passadas que são evocadas pela interação, em mim. Quando elas ocorrem, me engajo em diálogo interno para refletir se é algo que merece ser compartilhado com o cliente, se essa experiência anterior vai promover criatividade, ou se vai alienar o protagonismo da pessoa e me colocar no lugar de saber da sua vida; esse é um posicionamento de expertise relacional, que pode ser mais estudado com Doricci, Crovador e Martins (2017). Se eu sinto o risco de entrar numa posição de detentor do saber, quebrando com o diálogo simétrico em favor de uma posição em que eu ensino e o cliente aprende, eu escolho ficar com o conhecimento do cliente e desenvolver a minha própria criatividade com melhor entendimento da expertise local da realidade vivida pelo outro.
Cliente e terapeuta são parceiros conversacionais, trabalhando um com o outro. Com é a palavra-chave. Explorar com, entender com, saber com. Withness é o conceito que convida esse relacionamento para um tipo de intimidade onde as pessoas sentem que não estão sozinhas. O terapeuta não está sozinho em pensar intervenções para resolver os problemas, enquanto clientes não estão sozinhos em sentir suas preocupações e alarmes. Nos permitimos ser tocados um pelo outro (Anderson & Gehart, 2007), de uma forma que exploramos mutuamente o conhecimento dos clientes desde suas vidas. Faço referência a Shotter (1993) em sua noção de conhecimento desde a experiência. Esse é o tipo de saber que é construído na linguagem da pessoa; nos afastamos de teorias e formas externas de entendimento para prestar atenção cuidadosa às singularidades da narrativa em expressão. Dessa exploração, terapeutas e clientes podem desenvolver uma conversação que é simultaneamente familiar e inovadora, que respeita a historicidade das pessoas, enquanto investiga o ainda não dito, de maneira a atingir novas formas de descrição e interação com as situações dadas. O diálogo não precisa ter o foco no resultado desejado de ajudar o cliente; enquanto nos engajamos em aprender com ele, desde sua experiência, o novo e a transformação são inerentes. Essa reflexão faz referência aos conceitos de não saber e expertise relacional do terapeuta colaborativo dialógico. Enquanto entendemos que não sabemos da realidade do outro, nos treinamos para sermos cada vez mais habilidosos em formas de convidar relacionamentos que estimulem as pessoas a se interessarem por seus próprios recursos e criatividade para a resolução de problemas (Anderson & Gehart, 2007; Anderson, 2009).
SENSIBILIDADES À PRÁTICA COLABORATIVA
Semelhante ao entendimento de humildade na prática terapêutica proposto por Anderson (2009), entendo humildade como um exercício do meu ser terapeuta. Significa encontrar o cliente (e para além do contexto profissional, qualquer parceiro conversacional) e ter interesse em conhecê-lo em sua complexidade. Sua experiência é infinitamente mais rica do que qualquer teoria pode explicar. Antes de priorizar a pressa em entender, busco investir tempo de qualidade em aprender com o outro sobre sua experiência. Me coloco em uma posição de aprendiz, ávido por conhecimento. Este movimento envolve reconhecer meu não saber sobre a história de vida e a linguagem de quem se apresenta para mim. Envolve aceitar a vulnerabilidade de perguntar para ser informado. A intencionalidade, aqui, é aprender e deixar o relacionamento se desenvolver.
SUPLEMENTAÇÃO
Entendo suplementação como aquilo que dá sentido a um significado. Todo significado ao qual nos remetemos foi historicamente suplementado por comunidades de inteligibilidade (pessoas significativas, entendimentos grupais e culturas) e continua sendo suplementado cada vez que, em uma interação, oferecemos um determinado itinerário de respostas, ao qual nossos interlocutores respondem de forma a suplementar nossa resposta, conferindo significado por meio desta ação. Nas palavras de Gergen: "nenhuma das palavras contidas em nosso vocabulário tem significado em si mesmas. Elas ganham a capacidade de significar em virtude do modo como elas são coordenadas com outras palavras e ações" (Gergen, 2017, p. 124). De outra forma, nada possui significado até ser suplementado por um interlocutor. Até mesmo em nossas conversas internas, quando falamos e escutamos a nós mesmos, muitas vezes nos surpreendemos com o tom com o qual enunciamos e suplementamos a nós mesmos de formas variadas.
Pensando que não há ação em si, que todo enunciado depende de um interlocutor para ser significado, entendemos as comunidades de inteligibilidade como os limites linguísticos que circunscrevem nossos enunciados de forma a facilitar o entendimento e a suplementação. Se nos retiramos dessa fronteira, estamos encerrando a interação. Um terapeuta está atento a essas comunidades, suas tradições, sua linguagem, para respeitar os limites locais, em ordem a participar da produção de significados locais, úteis aos envolvidos nas futuras suplementações daquilo que aparece no processo. Uma participação não sugestiva evita riscos de reflexões em que o cliente não tem autoria sobre, que surjam de uma linguagem externa à apresentada pelo cliente e sua inteligibilidade relacional. A prática colaborativa visa justamente legitimar a multiplicidade de saberes locais e sociais para que os resultados respeitem a todos os envolvidos e gerem compromisso com as construções, sobre as quais todos sentem autoria e participação.
CONVERSANDO COM A MORTE
Para facilitar diálogo em situações de perda e luto, não me limito à morte biológica, mas compreendo os fins, as distâncias, as transformações nas vidas dos envolvidos em que algo ou alguém de relevância não está mais no seu lugar costumeiro. Esta conversação é um processo que visa legitimar, por meio do diálogo, a história do relacionamento entre o cliente e um participante ausente. Estou interessado em conhecer meu cliente desde suas vozes internas, interações externas e entornos do relacionamento. Este engajamento no conhecimento promove coerência à história, honra o relacionamento e presentifica o legado, as aprendizagens que ficarão para o futuro e próximas interações. O significado relatado pelos clientes que experimentaram estas conversas é de paz, onde antes havia angústia, com o relacionamento; de compromisso com o presente e futuro na multiplicação das aprendizagens frutos da relação; de responsabilidade relacional, dissolvendo sentimentos de culpa, solidão e egoísmo, ao voltar o olhar para a complexidade dos relacionamentos, coerência das ações e participação social no desenvolvimento da história.
EXPERIÊNCIAS DE CONVERSAS COM A MORTE
Os próximos parágrafos tratam de relatos da experiência de conversações em situações de perda com clientes da clínica privada. Cada experiência conta com a autorização dos clientes para exploração dos seus processos na intenção de produção deste artigo. Estes relatos visam destacar as características do diálogo colaborativo em situações de perda e transformações vividas pelos clientes que participaram desses processos.
Caso 1
Uma experiência marcante dos processos em que participei de conversação com a morte ocorreu com um cliente que, com sua esposa, veio me relatar a perda de um irmão. Iniciei nossa conversa pedindo para que ele me contasse o que achava mais importante que eu soubesse sobre a história da perda de seu irmão. Na minha prática clínica, eu evito direcionar o conteúdo dos assuntos que serão conversados. O conteúdo é de responsabilidade do cliente, cabendo a mim a segurança e habilidade de conversar com qualquer conteúdo e encontrar as perguntas que me farão conhecer melhor meu cliente. Qualquer conteúdo é interessante para o processo de nos conhecermos e engrandecermos por meio do diálogo e da produção de conhecimento de si em relação. Esta habilidade é nomeada por Anderson (2009) de expertise relacional; é um compromisso com as expectativas do cliente, de nos articularmos para interagir com aquilo que eles acreditam que seja o mais importante para ser conversado em seus processos terapêuticos.
O cliente relatou que o irmão havia morrido de cirrose como consequência da dependência química. Conta o quanto ele era afetivo, da sua dor por testemunhar sua queda pelo abuso do álcool, os traumas que ele ainda carregava. Confessou que pôde entender melhor o irmão após a esposa o apresentar à dependência química como doença, oferecendo-lhe um conhecimento novo para entender e descrever o irmão. Quando o cliente finalizou seu relato eu perguntei se era um bom momento para fazer uma pergunta, ou se ele teria mais informações para contar. Ele me autorizou em minha pergunta. Naquele momento, busquei entender esta confissão do entendimento como doença e perguntei se este entendimento era algo novo. Ele confirmou, relatando que apenas no fim ele pôde entender a doença. Então perguntei qual era o entendimento anterior ao da doença. Ele respondeu que, para ele, o irmão era um bêbado, vagabundo, sem-vergonha.
Com esta pausa no relato, tornei público para ele o processo do que ouvi e meu entendimento até então. Verificando que, anteriormente, ele entendia o irmão como vagabundo, bêbado, e que após uma transformação ele passou a entendê-lo como doente. Minha pergunta pedia por entender esta mudança na compreensão do irmão - se ele pudesse voltar para o tempo em que o entendia como vagabundo, com este conhecimento de doença, o que teria sido diferente na relação deles.
Aqui é importante que o leitor entenda que minhas perguntas não têm um resultado previsto, ou um foco na resolução do problema; elas são todas baseadas na minha busca por mais conhecimento da história local, pela complexificação do saber, de se relacionar com o comum, de formas incomuns. O que uma nova forma de descrição convidaria como itinerário de resposta, de performance, ou, para simplificar, que ações diferentes o cliente teria com este saber, naquele tempo? O tipo de pergunta conversacional que visa enriquecer o entendimento do terapeuta sobre o conteúdo relatado pelo cliente, enquanto coloca o cliente na posição de especialista em sua história, investigando a si mesmo, esforçando seus conhecimentos, para o máximo proveito de sua explanação (Anderson, 2009).
Ele respondeu que este conhecimento no passado teria invocado atitudes mais drásticas. Ele poderia ter forçado o irmão a se tratar a tempo de salvá-lo. Em seguida, o participante refletiu em voz alta que isso teria exigido muito dele; que as pessoas têm responsabilidade e mérito pelo que constroem; que se ele desfrutava de uma zona de conforto, isso era graças ao seu esforço; que ter ajudado o irmão poderia ter matado a ele mesmo. Verifiquei esta última parte. O participante contou que teve um infarto que quase o matou e que mudou radicalmente sua vida após esse susto. Ele imaginava que, se tivesse assumido a responsabilidade pelo irmão, era possível que o infarto o tivesse matado.
Naquele momento tive o entendimento de duas vozes com interpretações diferentes para minha pergunta. Em minha prática colaborativa, o conceito de personagens internos só é invocado na conversa quando o cliente, como ocorreu neste exemplo, verbaliza sua complexidade e múltiplos entendimentos para esta situação. Essa multiplicidade, que também gosto de chamar de polivocalidade, atiçou minha curiosidade para entender sua interpretação para como a relação com o irmão se desenvolveu da forma como foi. Perguntei qual havia sido a coerência para ele ter agido da forma que agiu. Essa pergunta me ocorreu, por meu interesse em entender todas as circunstâncias que levaram àquela interação - com esse entendimento, novas vozes poderiam surgir para significar a história. Claramente ele já havia se transformado desde lá, não era mais o mesmo homem, portanto, buscar a coerência daquele homem poderia facilitar uma conversa entre essas vozes internas e novos entendimentos.
Ele respondeu explicando o momento familiar que estava vivendo na época. Com o nascimento do filho, ele precisava trabalhar para suprir as necessidades da família nuclear. Sua carreira também estava se desenvolvendo, demandando muita dedicação dele nestes dois contextos. Então ele mudou para um tom mais reflexivo, mais pensativo, e disse que aquele era o nó de sua história: uma disputa entre sua voz atual, com mais conhecimento do que o irmão viveu, que o cobrava de não ter feito mais, e a voz do passado, com a coerência e legitimidade do tempo, que afirmava que ele não poderia ter feito diferente sem pagar preços altos.
Pensando nesse conflito entre vozes, lembrei de algo que ele havia dito no começo da conversa, algo que ainda não havia ganhado o significado e a proporção que ganhou em meus pensamentos até o momento em que entendi o conflito de vozes. Ele havia comentado, no começo da conversa, sobre uma voz que tira aprendizagens de todas as experiências. Lembrei deste momento e, antes de começarmos a conversa, perguntei se ele poderia convidar essa voz para a interação entre as vozes na relação com o irmão. Como a voz das aprendizagens responde ao conflito entre as vozes do conhecimento e da coerência histórica?
Uma pergunta de self dialógico, ou personagens internos (Lenzi, 2013), que, de forma simples, busca expandir a complexidade do ser humano, suas incoerências, ambivalências e conflitos. São conteúdos que começam a instigar a variedade no relato do cliente, que já estão ali, mas perdem força pela suplementação histórica que direciona a forma como a pessoa se relaciona com sua realidade de forma espontânea. Esta espontaneidade pode ser avaliada em reflexões para oferecer ao cliente um momento de pausa para construir formas inovadoras e criativas de responder às vicissitudes nos relacionamentos (Lenzi, 2020).
Ele respondeu que o irmão teria muito o que ensinar. Explicou que ele sempre foi muito afetuoso, que tocava as pessoas com carinho, segurava suas mãos, tinha uma presença que invocava afetividade e atenção. Com essa explicação das aprendizagens convidadas pelo irmão, uma nova curiosidade se manifestou em meus pensamentos e perguntei se o participante sentia que estava fazendo bom uso das aprendizagens deixadas pelo irmão. Esse foi um momento de muita emoção. O cliente disse que poderia estar fazendo melhor uso dessa herança que o irmão havia lhe deixado. Eu fiquei em silêncio, apoiando o diálogo interno por algum tempo. O olhar do participante estava voltado ao chão, o que eu interpretei como um silêncio cheio de conversação privada. Quando ele voltou o olhar para mim, ainda em silêncio, perguntei se ele sabia o que precisava fazer para honrar a aprendizagem que teve com o irmão. Escolhi o uso da palavra aprendizagem, uma vez que ele tinha feito uso da mesma palavra e queria ter certeza de que estava colaborando com seu significado e linguagem. Novamente o cliente voltou aos seus diálogos silenciosos. Em um momento ele trocou um olhar emocionado com a esposa, que participava silenciosamente da conversa, e me respondeu que sabia o que poderia fazer, mas que gostaria de pensar mais nisso. Entendi este momento como um limite para a conversa e perguntei se seria um bom momento para finalizarmos. Ele concordou e nos despedimos desta interação com um forte abraço.
Seguem algumas reflexões desta marcante conversa com o ausente. Os processos são singulares, eles nunca se desenvolvem da mesma forma. É importante nos afastarmos de fantasias de generalização que poderiam transformar este recurso em uma técnica. Na minha prática, as conversas com o ausente acontecem das mais variadas formas, sempre na linguagem do cliente. Isso significa que não sou eu quem sugiro, ou ofereço conteúdo de fora de sua linguagem para impulsionar a conversa. Estou sensível para ouvir do outro se, de alguma maneira, ele mantém um relacionamento com um ausente. Para convidar a criatividade na hora de conhecer estas interações, algumas retóricas que me ocorrem são: quando o ausente aparece como uma voz internalizada; quando ele é presentificado externamente (em uma foto, altar, objeto simbólico, ...) e, como neste caso, quando ele ocorre por uma herança, legado, ou aprendizagem.
Nesta situação, o ausente é invocado como uma voz interna, ele se torna um personagem interno no self relacional das pessoas (Lenzi, 2013; McNamee & Gergen, 1999). Nessas situações podemos construir e convidar entendimentos das interações e contextos que invocam este outro internalizado à participação na construção de respostas do cliente. Aqui um objetivo seria entender as respostas espontâneas da pessoa e como o engajamento no diálogo interno pode oferecer conhecimento e criatividade para respostas mais qualitativas ao cotidiano da pessoa. Um movimento de legitimar todas as vozes internas em sua funcionalidade, sem reprimir aquelas mais espontâneas, mas convidando imaginariamente outras formas de ser com situações de pouca qualidade relacional. No momento em que os clientes apresentam pensamentos diferentes sobre uma situação, podemos fazer perguntas como: você trouxe uma perspectiva diferente agora sobre tal situação. O que invocou essa voz distinta? Existem contextos em que a sua resposta é diferente desta usual? Como posso conhecer melhor essa voz que traz algo diferente do usual? Quem conhece suas diferentes vozes internas? Como você é diferente em diferentes relacionamentos e contextos? Quais são suas diferentes formas de ser? Estas conversas buscam entendimentos mais complexos para nossas respostas à vida, nos levam de um lugar simplista e individualista, a um horizonte de complexidade e coletividade, também entendido como responsabilidade relacional (McNamee & Gergen, 1999).
No caso apresentado, o caminho da conversa que se apresentou a partir do conhecimento local do cliente foi a conversa com personagens internos (Lenzi, 2013), ou vozes internas, ou, ainda, outros internos (McNamee & Gergen, 1999). Quando o cliente falou de suas transformações, seus novos conhecimentos e tensões entre formas de entendimento, ele me convidou a explorar o saber sobre estes personagens, curioso para entender como suplementavam diferentes interações (Gergen, 2017). O próprio cliente havia apresentado uma voz que buscava a aprendizagem em cada situação.
Caso 2
Um outro relato vem do atendimento a um jovem adulto, com 27 anos, que havia perdido a mãe em consequência de um câncer há três anos. Ele procurou a terapia com o objetivo de retomar sua vida. Exploramos juntos sua história. Percebi que ele colocava importância no processo de adoecimento da mãe e como ele teve de performar para ajudá-la. Ele experienciou uma falta de sentimentos, uma apatia, justificada pela necessidade de ser racional e assertivo com tudo o que precisava ser feito durante o tratamento. Após esses três anos de solidão, ele estava determinado a, em suas palavras, superar o luto, que ao investigarmos seu significado, estava associado a encontrar um emprego em que conseguisse trabalhar com determinação, enquanto, simultaneamente, investisse mais afeto nos relacionamentos relevantes de sua vida, inclusive amoroso.
Ele me contou, em uma de nossas sessões, que não conseguia lembrar da mãe com saúde. Sua memória mais vívida era de um momento triste, dela no hospital, inchada e fora de si, delirante, uma imagem dolorida. Eu perguntei mais sobre essa situação, do que o havia levado àquele momento e ele me relatou mais dessa lembrança de dor. Quero destacar que sinto como importante que o terapeuta consiga ter conversas difíceis, com os momentos de dor dos clientes, para que possamos entender o que eles vivem, sentir com eles essa dor. Eles já estão vivendo aquilo, acredito que seja melhor se for acompanhado. Minha esperança era que, ao me contar sobre sua dor, poderíamos nos familiarizar com essas imagens e construir mais intimidade entre nós, não queria salvá-lo daquela dor, mas compartilhá-la, como um bom companheiro, sentir com ele suas histórias de dor. Esta é uma participação sensível ao que é avaliado como importante pelo cliente; quero estar com ele nesta história, não apenas ouvindo, mas sentindo com. Permito que meu corpo responda à espontaneidade dos sentimentos que a história convida em mim, que aparecem, principalmente, no meu rosto. Isso faz referência ao conceito de withness, ou estar com, desenvolvido na clínica colaborativa dialógica (Lenzi, 2017; 2020) e como sensibilidade filosófica para uma prática dialógica (Anderson & Gehart, 2007).
Enquanto conversávamos sobre e com sua mãe, pude entender que ela era uma força motriz para autodesenvolvimento e dedicação profissional ao filho. Simultaneamente, refletimos juntos sobre sua percepção dos critérios dela para qualidade no trabalho, que poderiam ser exigentes demais, que poderiam tê-la colocado num caminho de autodestruição. Um caminho que ele poderia fazer diferente, aprendendo com as experiências da mãe. O leitor precisa entender que estas não foram sugestões minhas ao processo; elas foram reflexões do cliente, respostas às perguntas que fazia com a intenção de aprender mais sobre sua mãe. Foram perguntas como: quem ela era; como as pessoas a descreviam; o que ele gostaria de fazer como ela e o que gostaria de fazer diferente. Também estava interessado no processo de adoecimento da progenitora, com perguntas que convidam seu conhecimento e interpretações: o que aconteceu para ela adoecer; que entendimento ele construiu sobre seu adoecimento; o que ela mesma dizia sobre sua doença. Perguntas conversacionais que colocam o cliente no lugar de produção de conhecimento e reflexões sobre sua experiência (Lenzi, 2020; Luna, 2021).
O atendimento a este cliente é um exemplo de conversação com a morte que seguiu pelo caminho do fortalecimento da mãe como personagem internalizado e acolhimento da crise no self do cliente (Lenzi, 2013; Lenzi, 2020; Luna, 2021), por meio de conversas que legitimam a continuidade do relacionamento segundo as ações do filho no mundo e a honra ao legado deixado por ela. Ao suplementar este personagem interno, o cliente pôde expandir sua percepção de mãe. Nós a convidamos, por meio da imaginação, para os atendimentos. Investigamos juntos sua história e valores, o que resultou em uma descrição mais elaborada da progenitora. Tal expansão facilitou ao cliente percepções inusuais, que lhe ofereceram novos caminhos para o relacionamento com a memória da figura ausente.
Após algumas semanas, o jovem compareceu à sessão me contando, entusiasmado, que ele havia visto sua mãe em seus pensamentos e ela estava bela e saudável, numa festa, com um sorriso no rosto. Ele não sabia se era uma memória real de uma festa, ou se ele havia criado essa imagem, mas este era um novo jeito de lembrar de sua mãe e ele estava muito satisfeito com essa nova figura. Perguntei o que havia mudado depois disso. Sua resposta era de um sentimento de que tudo estava bem, que ele deveria seguir crescendo, agora inspirado pela companhia da mãe. Depois desta etapa do processo terapêutico, houve uma sessão em que ele me contou rapidamente que havia visitado o túmulo da mãe e conversado com ela, não como uma conversa séria, mas um bate-papo rotineiro. Ele a estava visitando em seu cotidiano e sua avaliação era de que isso lhe fazia bem. Nesse momento do processo, o cliente relatou uma nova forma para encontro e interação com a ausente, que segue o caminho da conversa externa, por meio da visita ao altar, no caso, no cemitério onde a mãe havia sido enterrada. O movimento de sair da rotina para este encontro físico carrega oportunidades de acesso a novas respostas e personagens internos no self (Lenzi, 2013), uma vez que entendemos que os entornos nos quais interagimos têm participação na evocação de determinadas formas de ser e responder ao interlocutor (Shotter, 2017a). A atenção aos entornos que circunscrevem os relacionamentos se faz um importante participante a investigar no intuito de gerar mais conhecimento sobre as possibilidades de ser e estar com as pessoas, mesmo que de forma imaginária.
Caso 3
Em dezembro de 2018, uma cliente minha foi diagnosticada com a mesma doença que havia matado sua mãe décadas atrás. Foi um momento delicado do processo, a família estava investigando seus sintomas por meses, na esperança de que poderia ser uma doença diferente, até que a confirmação encerrou quaisquer dúvidas. Sua mãe foi sempre uma participante periférica nas nossas conversas, uma lembrança de dor e saudade, por ter falecido tão cedo. Sempre que comentávamos sobre ela, havia uma tensão na fala. Quando perguntei o significado, a cliente havia me dito que tinha medo de falar sobre a doença da mãe porque isso poderia enfraquecê-la na luta por outro diagnóstico. Eu entendi e respeitei. Novamente reforço o compromisso do terapeuta com a especialidade do cliente. Se ele escolhe trazer uma história de dor, ou se escolhe por não relatar uma história de dor, cabe a mim, terapeuta, entender os motivos da escolha em nome do respeito e relacionamento que construí com meu interlocutor.
Por meses investimos nossas conversas em produção de força e coragem para passar pelos exames invasivos em nome do conhecimento e tratamento de sua condição. Então, com a confirmação da doença genética, eu perguntei novamente se ela achava importante explorar a história da mãe comigo. Desta vez ela me disse que gostaria de ter essa conversa. Juntos, nós pensamos em sua mãe, uma professora dedicada, mesmo quando doente, sempre com um sorriso no rosto, poupando seus filhos da dor. Eu fiz perguntas para conhecer a mulher, quem era ela, quais eram suas atividades preferidas, como ela interagia com cada pessoa importante na sua vida. Cada pergunta deu à falecida mais e mais complexidade, memórias começaram a ocorrer à cliente com mais facilidade. Então perguntei o que sua mãe poderia nos ensinar sobre a doença, para que pudéssemos vivê-la juntos, honrando o conhecimento do passado, para uma melhor experiência no futuro. A cliente me disse que, olhando para sua mãe no passado, ela sentia que viveria os melhores momentos de sua vida após esse diagnóstico. Foi o momento das lágrimas ocuparem o espaço da sessão, logo antes de nos comprometermos com a felicidade, bem-estar e dedicação à família e à saúde.
Semelhante ao caso anterior, com esta cliente, o recurso de conversação com a morte foi utilizado para nos aproximarmos da mãe falecida por meio de sua voz internalizada. Com perguntas que visavam conhecer a ausente, sua história, seus valores, as formas como marcavam a identidade da cliente, pudemos conhecê-la e atualizar este relacionamento, desta vez em um entorno muito diferente, o da doença que acometia a ambas. O encontro com o conhecimento que a cliente tinha da mãe facilitou a responsividade reflexiva (Lenzi, 2020), em que ela pôde reencontrar com o sorriso da mãe, mesmo nos momentos difíceis da doença, e se inspirar nele. Houve um encontro e conversa com a mãe internalizada, que, de forma imaginária e historicamente amparada, a direcionou a afirmar e começar a viver seu significado de os melhores dias que viriam com a doença, quando ela poderia estar acompanhada da família, construir uma rotina para o máximo de qualidade no tempo que lhe restava.
Caso 4
Em uma outra oportunidade, conversava com uma cliente que sentia ter perdido seu pai, mesmo estando vivo, pelo distanciamento do progenitor após o divórcio com sua mãe. Depois de adulta, ela havia voltado a procurar o pai para resgatar a relação. Perguntei sobre eles, a história que eles viveram antes do distanciamento e a história da busca e do reencontro. Ela me contou sobre como, na maioria dos momentos, eram diferentes, como não se entendiam e sobre os conflitos ou afastamentos que essas diferenças facilitaram. Fui tocado pela palavra 'maioria', relatada pela cliente; por essa escolha de palavra, perguntei-lhe, então, se havia algo que era diferente da maioria - como era na minoria dos momentos? Ela pensou e me contou que era tranquilo estar com o pai quando ela tocava piano para ele. Que ele a escutava e admirava, se emocionava e a elogiava. Senti o piano como mais um participante da interação, talvez um entorno no qual ambos conseguiam acessar personagens internos diferentes para trocas mais qualitativas. Para não deixar minhas reflexões ganharem muito conteúdo apenas com meus diálogos internos, perguntei, para oferecer à cliente a oportunidade de produção de conhecimento, sobre a história do piano na relação com o pai. Ela relatou lembranças da infância, em que o pai tocava discos e eles ouviam juntos, em silêncio, mas juntos. Fiz outra pergunta, para verificar: quando ela tocava ao pai sentia que eles estavam juntos? Seu corpo começou a responder antes das palavras. Emocionada, ela confirmou que pela música eles podiam ter um relacionamento de pai e filha.
Nesta conversa senti, e a cliente expressou na linguagem, que a música era um entorno de reencontro com o pai, um caminho, por onde se encontrariam com afeto, sendo o piano um importante participante para facilitar o encontro entre eles. Minhas perguntas foram elaboradas no sentido de conhecer a história da música no relacionamento. Destas respostas veio a legitimação desta forma singular de estarem juntos. Os cenários pretendidos, principalmente de conversas entre pai e filha, perdem força para este cenário íntimo, da troca pela música. Esta conversa destaca novamente a forma como nosso self e personagens internos dependem do meio para se manifestarem (Lenzi, 2013). Simultaneamente, destaco a forma como a linguagem do cliente carrega em si todo o conteúdo necessário para a expansão do entendimento e promoção da criatividade para transformar os relacionamentos. Como terapeuta, eu não precisei sugerir caminhos de resolução; nossa investigação compartilhada (Anderson, 2009) levou a conhecimentos pouco explorados da cliente, que encontrou em si a alternativa para experimentar novas configurações do relacionamento com o pai. A cliente encontrou, no entorno musical, o convite para uma forma de ser filha e uma forma de ser pai que a nutriu de intimidade.
Este caso apresenta uma possibilidade de caminho de investigação dos entornos para a relação: explorar onde, quando e como o outro ausente se apresenta na vida do cliente: Onde se encontram? Em um local com história na relação? Como interagem? O ausente apenas escuta? Há algum tipo de resposta? Quais momentos da vida convidam para o reencontro com o ausente? Qual a coerência histórica para estas situações convidarem ao encontro e à interação com o ausente?
Caso 5
Em um processo terapêutico com um cliente cuja esposa havia falecido, conversávamos sobre o retrato da mãe que a filha mantinha no quarto. Ele me relatava como todas as noites a menina chorava de saudades da mãe, e quando o pai lhe perguntava sobre o motivo para a tristeza, ela apontava a fotografia que guardava da mãe, na cabeceira. O pai, vendo aquela dor, pensava que deveria tirar o retrato do alcance dos olhos da menina. Acolhi sua angústia com respeito e fiz perguntas sobre o relacionamento da filha com a imagem da mãe e da filha com o pai. Da mesma maneira, indaguei sobre o que ele entendia que poderia ser a melhor forma disponível a si, para expressar seu desconforto em resposta à tristeza sentida pela filha antes de ir dormir, quando encontrava a genitora. As perguntas conversacionais aqui visavam ao entendimento da resposta espontânea, enquanto convidavam a sua avaliação e reflexão sobre as alternativas imaginadas para a ação que era convidada por seus sentimentos na relação com a menina. Meu sentimento, ao ouvi-lo relatar a ideia de tirar o retrato da cabeceira, foi de surpresa, mas com respeito ao lugar de especialista em sua história, transformei minha surpresa em curiosidade por sua resposta. Investiguei com ele os cenários que viriam dessa resposta e as reações que a pequena poderia ter. Não construímos o que ele deveria fazer, encerramos a sessão com sua ação em aberto, tendo investigado as vontades inerentes ao seu sentimento e futuros presumidos.
Na sessão seguinte, ele disse que perguntou à filha se ela gostaria que ele tirasse a fotografia da mãe do quarto; ela respondeu muito irritada que não, que era a mãe dela. Então o pai perguntou se ela não gostaria de colocar o retrato em outro lugar, e explicou seus sentimentos quando via a filha chorando todas as noites. Decidiram colocar a imagem no closet. Ele continuou seu relato afirmando que a mudança do ambiente proporcionou uma mudança no relacionamento de sua família. A filha podia visitar a mãe quando quisesse e o pai teve as noites mais tranquilas. Discorreu que todos os dias ouvia a filha dando bom dia para mãe, e pedindo que ela olhasse pela menina, sem choro, durante a rotina de preparação para o início do dia.
Queria destacar, nessa história, a pequena mudança do espaço destinado ao altar de relacionamento com a pessoa falecida, que já gerou toda uma transformação nos momentos de encontro e dos efeitos que tinham na menina. Este é um convite para as pequenas e inocentes mudanças, que podem acessar momentos diferentes de quem somos no dia, facilitando outras formas de interação. Neste caso, a investigação apresentou um reencontro rotineiro com a pessoa ausente, que causava desconforto aos participantes. À medida que a investigação legitimava cada um envolvido, incluindo o retrato da mãe como participante das interações angustiantes, e estimulava a escuta e entendimento de suas realidades, os clientes desenvolveram formas para atualizar o momento de encontro com o participante ausente. De forma autônoma e criativa, construíram entornos inovadores para acessarem mais conforto na interação, por meio da atenção à rotina em que acontecia o encontro. O entendimento de alteridade situacional (Shotter, 2017a; 2017b) fundamenta as reflexões que permearam o diálogo terapêutico para este resultado.
PENSAMENTOS FINAIS
Com estas articulações entre teoria e prática, busquei apresentar a possibilidade do recurso, que chamei conversações com a morte, para terapeutas e profissionais de áreas diversas engajarem-se em interações com pessoas que vivem situações de luto, perdas e fins em relacionamentos. Esse recurso para conversa não traz um caminho à superação da dor por nossos clientes, mas uma sensibilidade para conversar com os conhecimentos e criatividade das pessoas com quem trocamos, na investigação dos caminhos plurais disponíveis para estabelecimento de relacionamentos mais úteis e confortáveis nos critérios do cliente. É um exame da linguagem dos clientes, suas histórias e descrições, que revelam rituais já corporificados, que podem ser suplementados pelo terapeuta como experimentos em direção ao novo. O foco não está no resultado, mas na expansão da reflexão aos envolvidos e consequente construção de realidades mais confortáveis. Esta alternativa é um produto da soma entre epistemologia construcionista e investigação compartilhada de clientes e terapeuta.
Minhas conversações com a morte são um afinamento da escuta e do corpo para encontrar descrições alternativas às experiências de perda no relato de meu parceiro conversacional. Como tal, só é legítima quando é invocada pelo discurso do cliente, que vai nos sinalizar de várias formas se ele mantém alguma continuidade com um outro ausente. As experiências de conversações com a morte deixam a mim e aos meus clientes o sentimento de aprendizagem e honra com os relacionamentos bastante vivos com aqueles que já não estão mais ali da forma usual.
Este é um recurso complexo. Ele demanda coragem e compromisso com as sensibilidades colaborativas, além de treinamento para construção das perguntas conversacionais sobre a realidade - como ela é vivenciada e descrita na linguagem do cliente. Simultaneamente, é uma prática simples, que já aplicamos nas nossas vidas cotidianamente, com rituais, às vezes banais, para conversar com vozes significativas que não estão mais disponíveis da mesma forma que um dia o foram. Estas formas criativas de sustentação dos relacionamentos estão a uma pergunta de distância dos terapeutas. O desafio, como foi proposto por Luna, é produzir com nossos interlocutores "as histórias que foram silenciosas ou silenciadas em outros contextos relacionais e sociais" (p. 57, 2021).
REFERÊNCIAS
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Recebido em 21/01/2020
Aprovado em 10/03/2021