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Nova Perspectiva Sistêmica

 ISSN 0104-7841 ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo jan./abr. 2021

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

A humanidade em Istambul

 

 

Cecília Cruz VillaresI

IInstituto Noos, São Paulo/SP, Brasil

 

 

Fora de série, algo diferente e singular são traduções possíveis para a expressão “Bir Baskadir”, título original da série turca concebida e dirigida por Berkun Oya e produzida pela Netflix em 2020. No Brasil, recebeu o nome de 8 em Istambul, suposta referência aos oito personagens cujas vidas se cruzam por acaso ou circunstância ao longo da trama – em oito capítulos – ambientada em Istambul. Esta explicação para o título da série em português é um tanto equivocada, já que são ao menos 10 os personagens protagonistas desta trama singular. A eleição do título Ethos para a versão em língua inglesa convida muito mais ao que a história nos apresenta, como veremos.

Tanto por seus méritos cinematográficos quanto pelo roteiro e edição bem costurados e trabalho primoroso dos atores principais, 8 em Istambul vem recebendo numerosas e calorosas resenhas e críticas. Há beleza e maestria nos enquadramentos de uma câmera sensível que entrelaça planos abertos, fechados e detalhes que vão construindo uma narrativa em mosaico. Nela, olhares, gestos e silêncios marcam os diálogos entre os personagens ao longo da trama, que se desenvolve num tempo lento, como que convidando à introspecção e a sentir a tristeza do adoecimento coletivo de uma nação dividida, mas também a acompanhar com esperança a jornada singular de autoconhecimento de cada protagonista em seus desafios de vida. É uma composição polifônica bem orquestrada e um convite a pensar as possibilidades de encontro e diálogo num mundo dividido e polarizado.

Neste texto de apreciação, minha perspectiva é a de uma espectadora que foi tocada pela sensibilidade de 8 em Istambul em apresentar conflitos e tensões da Turquia contemporânea por meio da história de pessoas tão diversas quanto comuns. Esta perspectiva narrativa me convidou a refletir sobre a coexistência entre solidão e opressão como sintomas de um mundo adoecido, e a contínua, singular e universal busca humana por conexão, amor, respeito e liberdade. A série me levou também a revisitar alguns dos desafios de construir diálogos que abram possibilidades de reflexão sobre as nossas crenças e preconceitos, um tema ao qual me dedico há mais de 20 anos de trabalho como terapeuta, formadora e ativista em saúde mental.

Para deixar espaço à curiosidade a quem ainda não assistiu, apresento aqui apenas alguns dos personagens e seus dramas iniciais. Na primeira cena, em longa sequência sem diálogo, acompanhamos o trajeto de Meryem desde a periferia de aspecto rural onde vive, até o centro de Istambul, onde trabalha como empregada doméstica no moderno apartamento de um jovem playboy de classe alta que, descobriremos ao longo da trama, só consegue manter relações eventuais com mulheres e parece infeliz numa vida solitária e vazia de sentido. Dele, saberemos pouco mais até o final, pois a série não amarra nem resolve todas as histórias apresentadas e esse é um elemento também interessante da maneira como se desenvolve a narrativa: sobram perguntas, lembrando que há sempre mais nas vivências do outro do que podemos ver e compreender.

Sobre Meryem – jovem muçulmana, pobre e solteira – sabemos inicialmente que vem sofrendo desmaios repentinos de aparente fundo emocional, e por essa razão é encaminhada pelo neurologista a uma psicoterapia com a psiquiatra Peri, profissional educada fora do país e típica representante da elite econômica e intelectual de uma Turquia secular e identificada com o Ocidente.

A primeira consulta de Meryem com Peri evidencia o choque de culturas que se traduz na dificuldade da terapeuta de sustentar um diálogo com sua paciente. Somos introduzidos a uma sequência sem cortes de 15 minutos de conversação como se estivéssemos também dentro da sala de terapia, e a sensação de acompanhar a conversa como espectadores vai provocando um incômodo com a percepção da evidente distância dos mundos de onde as duas provêm. O efeito que produzirá em cada um (Peri, Meryem e espectador) esse primeiro encontro difícil, além de criar um bom clima emocional para a trama, é em si um convite a refletir como nos posicionamos diante destes temas e situações em nossas práticas. Do meu lugar de terapeuta atenta à violência que certos enquadres terapêuticos produzem nos pacientes, vi o esforço de Peri para conquistar a confiança de Meryem com um misto de empatia e rechaço. Senti vontade de dizer à terapeuta que escutasse a pergunta da paciente sobre como conseguiria sair da consulta a tempo de buscar a sobrinha na escola! Ao ignorar sua preocupação, Peri não pôde acolher nem explorar algo que indicava um aspecto relevante da vida daquela pessoa que se apresentava a ela. O que isso revela sobre a hierarquia e os níveis de poder nas distintas perspectivas dentro de um encontro terapêutico? Quanto contribui para reproduzir a discriminação diária a que são submetidos cidadãos de segunda classe em qualquer lugar do planeta?

O enquadre terapêutico de Peri evidencia a violência que se produz inadvertidamente quando, mesmo diante das melhores intenções, não se valida de onde vem o outro. O encontro vira confronto e não há espaço para negociar as condições mínimas de uma conversa terapêutica, começando por um acordo sobre o que é terapia. Sentimos a hesitação e a tensão que vão crescendo com a insistência de Peri em abordar algo sobre o que a sua interlocutora não quer falar, que culmina com o pedido da terapeuta para que Meryem não comente com o líder espiritual (Hodja) sobre o que será conversado em terapia, ao que a paciente responde, encerrando a conversa: – Vim aqui para melhorar, não para fofocar.

Esta densa sequência inicialmente dá a impressão de que a trama seguirá centrada no processo terapêutico, mas essa não é a única história que nos apresentará a série. Se prestamos atenção, Meryem nos introduz ali as pessoas importantes de sua vida e que, em seguida, aparecerão também como protagonistas nesta trama multifacetada. Essa complexidade é cativante, porque convida a sair da armadilha da polarização para propor um caminho de maior profundidade para conflitos que se apresentam inicialmente.

Nesse sentido, logo a seguir à cena da frustrante primeira sessão de terapia, vemos Peri angustiada em seu encontro de supervisão com Gülbin, consciente de seu preconceito, de sua raiva e impotência diante de uma cliente que representa, para ela, o conservadorismo e o retrocesso que vêm ganhando espaço em seu país.

– Ela é muito esperta, e fica falando de coisas insignificantes – diz à supervisora.
(Que preconceitos a levam a escutar as falas de Meryem como defendidas, superficiais, insignificantes?)
- O que vamos fazer? – Pergunta atormentada à sua supervisora.
(Silêncio).

A trama prossegue aprofundando a história da relação entre Meryem e Peri e desta com Gülbin, a supervisora. Agrega em camadas narrativas os conflitos e dramas dos núcleos familiares destas três protagonistas e também do núcleo familiar de Hodja, líder espiritual de Meryem. Em cada uma das histórias, há um convite para vermos além dos estereótipos, por exemplo, de Meryem como mulher muçulmana-submissa e reprimida, da cunhada Ruhiye como desequilibrada e subjugada, do marido Yasin como macho dominador e violento, da terapeuta Peri como mulher segura e independente. A cada aproximação, uma camada a mais de humanidade e complexidade, que finalmente nos surpreende com Hilmi – assistente de Hodja, ao surgir na história conversando com amigos numa mesa de bar sobre suas reflexões a partir das ideias do psicanalista austríaco Carl Jung. Porém, deste personagem encantador só direi que, mais uma vez, desafiará os preconceitos do espectador e os de Meryem também.

Cidade singular, situada em dois continentes, Istambul tanto une como separa dois mundos que colidem em um país em crescente divisão política e religiosa. O pano de fundo político, cultural e social da série está presente ao longo da trama, mas o convite da série é para que olhemos além de uma Turquia dividida entre seculares e religiosos. Quem sabe para que, ao encontrarmos e afrontarmos a solidão e as barreiras para dialogar com representantes de comunidades antagônicas, possamos nos apoiar numa consciência mais ampla e escutá-los como seres com conflitos, medos e traumas humanos.

O movimento de Meryem de abrir-se à psicoterapia é um evento singular e fora de série em sua vida porque a leva a confrontar mandatos e crenças para superar um problema. As outras histórias que irão se agregar ao longo da trama vão apresentar caminhos diversos e igualmente válidos para a resolução de conflitos e sofrimentos decorrentes de histórias de violência, trauma e luto. Esta é também uma provocação importante da série, porque embora apresente a psicoterapia de base analítica como caminho de autoconhecimento, não propõe que seja o único nem o melhor para as pessoas em sua jornada de superação de sofrimentos e traumas ou de resolução de conflitos para seguir a vida. 8 em Istambul acolhe a válida singularidade de cada um e nos convida a ultrapassar os limites impostos por discursos políticos, culturais e sociais que empobrecem nossas interpretações e reduzem as compreensões dos problemas em formulações do tipo “nós x eles”.

Concluo retomando o título em inglês para a série: Ethos é uma palavra de origem grega cujo significado remete às crenças e ao conjunto de valores que orientam o modo de ser de uma cultura. Mas para além deste sentido, Ethos é também um conceito empregado em teoria do discurso, que remete a “como somos quando estamos em relação com o outro num discurso”, quando desejamos ser reconhecidos em nossa autoridade. Em outras palavras, Ethos diz respeito ao jeito de cada um, único e ao mesmo tempo alicerçado em valores social e historicamente construído em cada cultura, portanto, ao singular, mas compartilhável. A dimensão Ethos em 8 em Istambul apela e toca a todos nós, humanos em qualquer parte do mundo, em nossa busca diária de (co)existir com o outro.

 

 

CECÍLIA CRUZ VILLARES

É terapeuta ocupacional pela FMUSP/SP; mestre em Saúde Mental pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp. Associada efetiva e formadora do Instituto NOOS, São Paulo; Sócia- fundadora da ABRE – Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia, São Paulo/SP.
https://orcid.org/0000-0002-1828-5767
E-mail: civillares@gmail.com

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