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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021
TEMÁTICOS
Setting interno em revisão: configurações analíticas no trabalho com adolescentes
Internal setting under review: analytical configurations while working with adolescents
Setting interno en revisión: configuraciones analíticas en el trabajo con adolescentes
Le cadre interne à l'étude: configurations analytiques dans le travail avec les adolescents
Alessandra Paula Teobaldo Stocche
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP). Ribeirão Preto / ateobaldo@gmail.com
RESUMO
O artigo centra-se no trabalho analítico com adolescentes, em busca da constituição do setting interno da dupla, em dois momentos: no consultório e no encontro online. Diante dos modelos relativos a espaços, a autora insere a questão do público e do privado, avaliados em graus, e dos impasses para criar, simbolicamente, limites nesse contexto. As reflexões abrem caminho para os próximos passos.
Palavras-chave: espaço físico, setting interno, adolescentes, simbolização
ABSTRACT
This article focuses on the analytical work with adolescents, in search of the constitution of the duo's internal setting, in two moments: in the office and in the online meeting. In the presence of models related to spaces, the issue of public and private, evaluated in degrees, and the issue of impasses to symbolically create limits in this context are inserted. The reflections pave the way for the next steps.
Keywords: physical space, internal setting, adolescents, symbolization
RESUMEN
El artículo se centra en el trabajo analítico con adolescentes, en busca de la constitución del setting interno del dúo, en dos momentos, en la oficina y en la reunión online (modelo virtual). En vista de los modelos relacionados con los espacios, se incluye el tema de lo público y lo privado, evaluados en grados, y los obstáculos para crear, simbólicamente, límites en este contexto. Las reflexiones allanan el camino para los próximos pasos.
Palabras clave: espacio físico, setting interno, adolescentes, simbolización
RÉSUMÉ
Cet article est centré sur le travail analytique auprès des adolescents, recherchant la constitution du cadre interne de deux personnes, à deux moments, dans le cabinet ou en ligne. En face des modèles relatifs aux espaces, on pose la question de ce qui est public et ce qui est privé, évalués à différents degrés, et celle des impasses pour créer symboliquement les limites dans ce contexte. Les réflexions ouvrent la voie aux prochains pas.
Mots-clés: espace physique, cadre interne, adolescents, symbolisation
O sentido para o qual tende exclusivamente meu trabalho é o realismo: eu persigo a realidade interior, a realidade escondida, o próprio ser das coisas em sua própria realidade que é sua única realidade fundamental e que somente interessa ao processo da minha obra. ... Nesse sentido, mais do que inscrever o humano na matéria, procuro como que extrair da matéria o humano que aí dorme.
CONSTANTIN BRANCUSI
Ao longo da tradição da psicanálise, desde Freud (1914/2006), quando considerou "as alterações de grandes consequências que a técnica psicanalítica sofreu desde os primórdios", instaurou-se um modelo de interação entre analista e analisando, em um espaço físico definido em termos de consultório. A configuração do setting compreendia um deslocamento do paciente, ajustando-se às normas estabelecidas, previamente apresentadas pelo profissional.
No capítulo 27 de Fundamentos psicanalíticos, sobre o setting (enquadre), David E. Zimerman faz as seguintes considerações, que permearão o desenvolvimento do tema:
1. O setting, comumente traduzido em nosso idioma como enquadre, pode ser conceituado como a soma de todos os procedimentos que organizam, normatizam e possibilitam o processo psicanalítico. Assim, ele resulta de uma conjunção de regras, atitudes e combinações, tanto as contidas no "contrato analítico" como também aquelas que vão se definindo durante a evolução da análise.
2. Tudo isso se constitui como sendo "as regras do jogo", mas não o jogo propriamente dito. Contudo, isso não quer dizer que o setting se comporte como uma situação meramente passiva e formal. Pelo contrário, ele tem uma função bastante ativa e determinante na evolução da análise.
3. Na psicanálise contemporânea, é impossível separar setting da noção de campo analítico, para empregar a terminologia do casal Baranger, que acentua a vincularidade emocional que está sempre presente entre o par analítico. (1999, p. 301)
Entre as funções do setting, encontram-se as listadas a seguir.
- Estabelecer o aporte da realidade exterior, com suas inevitáveis privações e frustrações.
- Ajudar a definir a predominância do princípio da realidade sobre o do prazer.
- Auxiliar, a partir daí, a obtenção das capacidades de diferenciação, separação e individuação.
- Definir a noção dos limites e das limitações, que provavelmente estão algo borrados pela influência da onipotência e onisciência, próprias da "parte psicótica da personalidade" (Bion).
- Reconhecer que é unicamente sofrendo as inevitáveis frustrações impostas pelo setting, desde que essas não sejam exageradamente excessivas ou escassas, que o analisando (tal como a criança no passado) pode desenvolver a capacidade para simbolizar e pensar.1 (p. 302)
Por meio dessa sustentação teórica, objetiva-se desenvolver a experiência clínica, valendo-se desse suporte científico e de outras contribuições que serão apresentadas ao longo deste trabalho. Além disso, sem perder de vista a tradição que se fundamenta nos parâmetros selecionados, abre-se a discussão para os novos tempos do fazer analítico.
Em um momento desafiador, mais especificamente a partir de 2020, em função das novas exigências, outros vértices vêm se estruturando. O mundo virtual precisou se adequar para constituir o setting interno da dupla, em contínua revisão.
A nova forma de interação, em dois espaços (um do analista e o outro do paciente), tem exigido medidas consensuais, de ordem física, com vistas à busca de condições internas adequadas ao trabalho analítico. Entende-se haver a necessidade de um enquadramento fundamental para não perder o essencial do modelo anterior, isto é, um recorte para construir a intimidade e a privacidade em um ambiente geralmente frequentado por mais pessoas. No que diz respeito ao atendimento de adolescentes, a casa em que eles moram é partilhada pelos familiares, que não podem estar presentes no momento de análise, no encontro da dupla, em um enquadre a ser estabelecido desde então. Não cabe abertura nem circulação de pessoas, o que revela ser preciso educar não só o adolescente, mas também a família, para que a exigência de privacidade seja atendida.
Como se vive em movimento, à maneira de Hegel, filósofo do século XIX, cujo modelo vale para esta discussão, parte-se da ideia de que a tese (o consultório) e a antítese (o mundo virtual) devem caminhar para uma síntese em termos de adequação ao vir-a-ser. Neste momento, busca-se refletir sobre como se valer desse aprendizado para um ajustamento em que caiba, sem perder a experiência dos dois modelos anteriores, encontrar caminhos para passos seguintes. Em suma, diante da perspectiva de volta a uma certa "normalidade", pretende-se considerar os dois modelos citados e trazê-los ao presente, com indicadores que poderão fundamentar a discussão sobre setting físico e setting interno na interação analítica.
Tese
Ulisses, em travessia, é modelo de transformação. Da arrogância como herói, percorreu um longo caminho para entender, enfim, diante das sereias, que o humano pode viver de encantamento, mas precisa ser contido para não ser tragado pelas seduções. Lição do equilíbrio entre fruição e medida. Aprender com a experiência é essencial para todos nós.
Interpretação livre da Odisseia de Homero
No modelo convencional, o início do atendimento com adolescentes já pressupunha especificidades: eram os pais (geralmente a mãe) ou o responsável quem trazia o paciente ao consultório. Assim, muitas vezes acontecia uma apresentação prévia, e já se manifestavam o desejo e/ou a angústia dos adultos sobre as questões que apontavam nos adolescentes. Desse modo, não só na apresentação, mas ao longo dos atendimentos, havia tentativas de intervir no processo analítico - mensagens ao profissional, com perguntas a respeito da situação do jovem; presença na sala de espera, com a mesma intenção; telefonemas; questionamentos destinados diretamente ao jovem sobre o que ocorreu na sessão -, cabendo ao analista conter os impulsos invasivos dos adultos, a fim de preservar a privacidade da dupla. Enfim, o problema se materializava entre gerações. Lidar com esse conjunto de intervenções requeria uma condição emocional do analista de pôr limites para melhor conduzir o processo, sem interferências exteriores. Embora houvesse riscos de contaminação da intimidade em construção da dupla, ainda havia certo controle nas mãos do profissional, que era, até então, o agente nesse processo. A sala de análise (setting terapêutico) pressupunha a mobilidade do paciente, que, não tendo autonomia para o deslocamento até o espaço físico, já vivia, em princípio, o modelo típico da psicanálise presencial.
O analista abria e fechava a porta da sala de atendimento e recortava, dentro do consultório, o subespaço da prática analítica. O recado aos pais ou responsáveis era dado de forma direta: "Este é um espaço privado e, para que se estabeleça um vínculo de confiança, a comunicação acontecerá somente entre duas pessoas: analista e paciente. Pode-se dialogar com os pais ou responsáveis, com a anuência do paciente ou se houver necessidade".
Antítese
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
Até que, tantos livres o amedrontado,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO, "Fábula de um arquiteto"
No momento em que foi preciso instaurar encontros virtuais para enfrentar a exigência do isolamento físico, novas configurações se fizeram necessárias, com progressivo ajustamento de ambas as partes. A partir de então, passou a haver dois espaços físicos, o do analista e o do paciente, e este precisou entender que, no ambiente de circulação da casa, ele deveria "criar" um espaço reservado para garantir sua privacidade. São desafios para o jovem e para a família que não têm claros os conceitos de público e privado, a exemplo da definição dada por Hannah Arendt em A condição humana (1958/2005): público refere-se ao que pode ser visto; privado, ao que deve ser ocultado em termos de intimidade. Em um contexto contemporâneo, em que a visibilidade e o voyeurismo ganham cada vez mais espaço, reduzindo a esfera do privado, esse comportamento também precisa ser avaliado em graus dentro da própria casa. Onde o jovem buscará a intimidade para o trabalho analítico? Ele não sabe fazê-lo, nem a família o sabe. O analista terá que apresentar ao adolescente a necessidade de transcender as aparentes portas e janelas da casa para a necessária configuração interna do setting analítico, um recorte imaterial a ser construído pela dupla.
Além disso, quem mais domina a tecnologia e as estratégias para fazer uso dela é o jovem, que por essa competência, muitas vezes, assume o papel de pseudoagente na comunicação com o analista. Muitos deles se sentem com a chave para uma autonomia que não pode estar em suas mãos. E ainda vai levar um tempo para organizar com o profissional qual é o recorte para a intimidade - fundamental, mas não completa - na interação. Esses impasses de organização interna serão apresentados em sequência no encontro da analista como narradora, transformando as vinhetas clínicas em modelos que compõem diferentes situações vividas pela dupla, a fim de construir o setting analítico e enfrentar os desafios nesse percurso.
Evidencia-se um permanente exercício de busca de um local físico que se constitua como espaço interno da dupla. Isso instaura um desafio para o adolescente, em que cabe a ele realizar a seleção do lugar propício ao encontro proposto. Essa adequação faz parte da iniciação à análise, pois se trata de condições que garantam um ambiente capaz de conter os interlocutores - analista e analisando - em uma "intimidade", permitindo as associações livres, o fluxo da consciência, do inconsciente, cujas latências afloram na captação de estruturas mais profundas, em termos de uma "narrativa", a constituir o terceiro analítico.2
Fragmentos
A capacidade de o terapeuta enfrentar situações emergentes em análise depende de seu conhecimento teórico, de sua experiência e de sua cultura, mas também de sua isenção a respeito de paradigmas, fórmulas mais ou menos estereotipadas de interpretação e comportamento.IZELINDA MARIA NAVARRO GARCIA DE BARROS
Primeiro caso
A paciente a quem nomeio Alice faz a seguinte declaração quando abrimos a câmera e eu a questiono por estar na sala, lugar de trânsito familiar, já que mora com pais e irmãos: "Aqui todo mundo é íntimo. Podemos falar, pois entre nós não há segredos!".
O espaço em aberto já indicava, nos novos tempos, a necessidade de um novo contrato, que se estenderia à família. Todos deveriam "compreender" que, em casa, um novo "consultório" teria de ser desenhado, à maneira do trabalho presencial.
Inicialmente, alguns jovens tiveram dificuldade de inaugurar, em termos de limite, o setting físico - de partida, primordial. Alice, por exemplo, abria o ambiente para a escuta da família (e até de funcionários). Não havia a percepção de que era preciso continuar o modelo convencional, agora "simbolicamente" reinventado no seu entorno. Cabia a mim, analista, em encontros sucessivos, organizar com ela um espaço físico interno, privacidade essencial, para daí chegarmos à instauração do setting analítico. Em um dos primeiros encontros, por não ter tido tempo de se organizar antes, ela me levou até a cozinha da casa, a fim de preparar um lanche que saborearia durante a sessão. Impunham-se contratos, acordos, para eliminar os ruídos, vindos de diferentes formas; para limpar o terreno, tão suscetível a desvios e interferências.
Neste artigo, há um forte empenho em mostrar os desafios, a sensação de impasse diante das situações que se apresentaram em função da urgência do momento. Alguns analistas, porque ainda não tinham vivido a prática do encontro virtual, também se tornaram seres em construção em face dessa experiência. Embora o analista pudesse contar com mais recursos, fundamentado pelo arcabouço teórico de sua formação, o fato é que, diante de uma situação nova, que exigia movimento, revisão e criatividade, ele teve que se adaptar, pois era, a partir de então, um iniciante no reino do trabalho virtual. Longe de assumir a nostalgia dos tempos presenciais, ele precisava elaborar, internamente, os novos passos e buscar estratégias para continuar agente do contorno necessário à privacidade, mesmo diante do espaço aberto.
No tempo/espaço de uma sessão, era preciso trabalhar com sutileza o "imprevisto" e levá-lo para compor a história do paciente, que ainda não sabia, ainda não tinha experiência para lidar com essas abstrações. A simbolização que o espaço privado exige é também um desafio para o jovem. Nesse contexto, analista e analisando vivem o exercício para a afinação necessária, constituindo-se a duras penas.
Segundo caso
Em outra casa, desde o princípio, o ambiente esteve muito tenso. As relações entre mãe e filha já eram bastante comprometidas, tanto que, em uma situação anterior ao encontro que apresento, a filha, que nomeio Hermione, já trancara, à chave, a mãe para fora do apartamento. Ela não suportava a invasão de privacidade. A mãe, através de mensagem, já me informara que, "sem querer", ouvira nossa conversa e que gostaria de falar comigo. Certo dia, ao iniciar o nosso encontro, notei que o espaço escolhido por Hermione era o carro da mãe, estacionado na garagem de sua casa. Ela estava sem a chave e com os vidros fechados. O horário da sessão era no meio da tarde. Ela não tinha como acionar o ar-condicionado e estava com as portas fechadas para evitar que a ouvissem, em especial a mãe. Iniciamos a sessão e, em dado momento, passei a não ouvir a voz de Hermione, como se uma letargia estivesse tomando conta dela. Chamei-a repetidas vezes e, diante do mutismo, liguei em seu celular, com o intuito de ajudá-la a sair de sua síncope. Ela praticamente perdera os sentidos. Pedi-lhe que abrisse as portas do carro, a fim de respirar melhor, enquanto buscava outras providências.
Essa experiência insólita se somou a várias outras que se materializavam em análise com adolescentes. A jovem, nesse caso específico, buscava seu espaço para o encontro analítico, mas era invadida por uma mãe que não respeitava nem seu tempo, nem seu espaço. Não éramos uma dupla em trabalho analítico. Éramos dois seres que viviam em um carro fechado, sem ar, para uma sessão em que a paciente queria livrar-se da insistência de invasão materna, as duas (mãe e filha) em crise, partilhando o espaço emocional em turbulência.
A analista, nesse caso, não vinha preparada para o desafio, embora já tivesse conhecimento do caos familiar pelas informações trazidas anteriormente, mas atuou de imediato, pedindo que a jovem abrisse as portas do carro para voltar a respirar. Evidentemente, o setting físico precisa ser favorável ao trabalho psicanalítico, aberto às interações, que serão saudáveis se houver espaço para a fertilidade do encontro. Enfim, a psicanálise com adolescentes tem de se valer da condição do analista de buscar, no insólito das situações, a fresta por onde o trabalho possa acontecer.
Terceiro caso
Ao nomear os personagens deste artigo de Alice, Hermione e, agora, Peter, há um desejo manifesto de abordar o universo da adolescência em referência à ficção. As invariantes3 desses primeiros casos se mantêm, no conjunto de outros atendimentos, em graus de complexidade que sustentam o exercício da psicanálise em tempos não presenciais, não sendo exclusivos do mundo virtual.
A referência público/privado, acompanhando Hannah Arendt (1958/2005), pressupõe a necessidade de desdobrar o entendimento desses termos. Segundo a autora, há que considerar os graus entre o que pode ser visto e o que deve ser escondido. Isso implica a habilidade de viver em um mundo de extrema exposição e saber filtrar o que se entende por intimidade. Nesse sentido, a sessão de análise, embora com fechamento para o mundo privado - duas pessoas em atuação -, também compreende um grau da esfera pública. Entre limites e limiares, é preciso haver um ajustamento para que coexistam o público e o privado. Ainda que este seja partilhado pelo par analítico, isso não significa total privacidade. Nessa percepção de filigranas, há também um desafio ao psicanalista: o paciente tem de entender que, em um contrato social, sua maior intimidade não cabe na sessão analítica.
O terceiro caso, com o paciente Peter, trouxe à tona uma cena em que ele, no banheiro de sua casa, considerou válido dividir esse momento - segundo ele, cabível no trabalho analítico. Mesmo que escondesse da analista o espaço em que mantinha o contato com ela, a profissional captou que ele a levara em companhia para suas necessidades corporais. Peter realmente não tinha discernimento para entender que a sessão de análise, em tempos virtuais, acontecendo no espaço de sua casa, exigia restrições à extrema exposição pessoal.
Sempre consideramos que um trabalho analítico consistente mobiliza recursos para o paciente viver, de forma mais integrada, os futuros passos de sua vida. Que ele aprenda, neste tempo de isolamento, que há espaços com limites simbólicos a preservar o que se entende por privacidade, em distintas configurações.
Quarto caso
Até aqui, foram apresentados, por meio de personagens recriados nesta narrativa, três modelos envolvendo o espaço físico do analista e as diferentes formas de o adolescente viver a espacialidade em sua casa. O quarto caso traz Dafne e uma nova experiência: a casa em movimento.
Neste quarto exemplo, a analista a postos, ao entrar em contato com a jovem, percebeu que ela estava em movimento - ou melhor, sentada, ela se deslocava de um espaço a outro, em trânsito. O inusitado dessa experiência é que, dentro do carro circulando, estava a motorista, a mãe de Dafne, ao volante, e ela, confortável, como se batesse um papo, imaginando que se tratava de uma sessão de análise. Era uma cena que desorganizava as exigências fundamentais contratualmente assumidas por ambas as partes. Quando se pensa que as normas já se apresentaram, eis que um novo desafio se instaura, exigindo uma decisão da analista. Falhavam mãe e filha ao considerar viável essa intimidade em movimento, partilhada a três, mais os ruídos vindos de fora.
Ao tomar a decisão de estabelecer outro momento para o encontro, levamos várias sessões para afinar nossa discussão sobre contratos, compromissos, ajustamentos de ambas as partes. Muitas vezes, o aparente fim é o recomeço: ao fechar minha tela, impedindo a sessão em movimento e exigindo a estabilidade do recorte do setting físico, creio que, juntas, afinamos um acordo sobre a atmosfera essencial para constituição do setting analítico, mais depurado a partir de então.
Todo caso clínico é desafio e aprendizado. Esses movimentos internos, em busca de paradas, recortes, instauração do espaço interior, sustentados com Alice, Hermione, Peter, Dafne..., permitem amadurecimento, sem nunca estarmos verdadeiramente prontos. A psicanálise e o corpus de obras e autores, contendo teorias, são a base para outros e novos desdobramentos. Somos outros, sem perder o que, intrinsecamente, nos constitui, em tempo de contínua iniciação.
Síntese
Herberto Helder inicia uma história apresentando um pintor que pintava um quadro inspirado por um peixe vermelho que ficava em seu aquário. A cor encarnada do peixe começou a se tornar negra, e o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe. Obrigado a interromper o quadro que pintava, não sabia o que fazer com a cor preta que o peixe lhe ensinava. Abriu-se um abismo na primitiva fidelidade do pintor. Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor, ele pensou que, dentro do aquário, o peixe pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo (Silva, 1995).
A experiência emocional expõe a amplitude do campo analítico tornando-o um campo não de relações de causa e efeito, de origens e explicações, mas de possiblidades interpretativas e descrições do momento, que pode sempre se alterar; ou seja, o princípio básico é que a "incerteza deve pautar todas as observações". (Chuster, 2014, p. 149)
Os modelos 1 e 2, tese e antítese, encontro presencial versus encontro virtual, couberam quando as condições exigiam um ou outro para materializar o trabalho analítico. Houve, assim, um grande aprendizado, sempre essencial para um profissional em contínuo ajustamento. Neste momento, cabe refletir sobre um novo tempo, que transcenderá a unilateralidade e dará à psicanálise a abertura para a coexistência dos dois vértices.
Será muito bem-vinda a volta ao presencial (o que esperamos): as interações de ordem sensorial, o contato mais próximo, a vivência emocional, intrínsecos ao trabalho analítico. Quanto ao modelo virtual, se os desafios vividos mundialmente também estiveram presentes no exercício da psicanálise, talvez sua maior contribuição tenha sido a disposição da dupla para ajustar-se a novos contextos, atenta à construção do setting interno, independentemente do consultório ou de espaços virtuais. O hibridismo conjuga dois modelos em que se ressalta a importância de um intenso tempo de maturação emocional, sem perder a fé que move transformações. O psicanalista, ser humano e profissional, deverá estar sempre em movimento, conjugando todos os esforços para que, diante de qualquer desafio, cuidar da alma, do mundo interno, seja a invariante que sustenta a beleza da psicanálise.
Referências
Arendt, H. (2005). A condição humana (R. Raposo, Trad.). Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1958) [ Links ]
Chuster, A. (2014). W. R. Bion: a obra complexa. Sulina. [ Links ]
Ferro, A. (1998). Na sala de análise: emoções, relatos, transformações (M. Justum, Trad.). Imago. [ Links ]
Freud, S. (2006). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12). Imago. (Trabalho original publicado em 1914). https://amzn.to/3za1WeO [ Links ]
Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise (V. Ribeiro & L. Magalhães, Trads.). Jorge Zahar. [ Links ]
Silva, I. A. (1995). Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. Unesp. [ Links ]
Zimerman, D. E. (1999). Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Artmed. [ Links ]
Zimerman, D. E. (2001). Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Artmed. [ Links ]
Recebido em 15/7/2021
Aceito em 5/8/2021
1 Cf. o verbete simbólico em Roudinesco e Plon (1998).
2 "A situação analítica passa a ser definida como um campo bipessoal em que só é possível conhecer a fantasia inconsciente da dupla, constituída pela contribuição de seus dois membros, intermediada por identificações projetivas cruzadas. ... A sessão se desenvolve como uma narrativa criada pelos seus participantes; ela não 'pertence' a nenhum dos membros; é uma entidade maior do que cada um deles" (Ferro, 1998, p. 31).
3 Zimerman ressalta que o verbete invariante, segundo Bion, diz respeito ao "fato de que, por mais profundas e aparentemente irreconhecíveis que tenham sido as transformações, sempre restam vestígios originais, imutáveis" (2001, p. 224).