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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

TEMÁTICOS

 

A analista grávida e o paradoxo da transferência

 

The pregnant psychoanalyst and the transference paradox

 

La psicoanalista embarazada y la paradoja de la transferencia

 

La psychanalyste enceinte et le paradoxe du transfert

 

 

Olívia Lucchini

Membro efetivo do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (ISS). São Paulo / olivia.lucchini@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir de duas vinhetas clínicas que remontam a atendimentos feitos quando estava grávida, a autora trata do paradoxo da transferência: a exigência do uso do inconsciente do analista e a necessidade de manutenção de sua posição abstinente. Seria a positivação de seu corpo um entrave ao setting ou, pelo contrário, abriria espaço para pensar a potência desse encontro como um ato vivo e pulsional? A autora trabalha com a hipótese de que essa experiência, a partir da situação de um analista impedido de "tirar o corpo fora", revela a possibilidade de este funcionar como resto diurno para o sonhar do paciente em sessão.

Palavras-chave: analista grávida, transferência, corpo do analista, abstinência


ABSTRACT

Based on two clinical reports that go back to the time when the analyst was pregnant, this article deals with the paradox of transference: the requirement to use the analyst's unconscious and the need to maintain her abstinent position. Would the presence of her body be an obstacle to the setting or, on the contrary, would it open space to think about it as a live and creative act? Our hypothesis is that this experience reveals that the analyst, unable to walk away, could function as day´s residues for the patient's dream in session.

Keywords: pregnant analyst, transference, analyst's body, abstinence


RESUMEN

A partir de dos fragmentos clínicos que se remontan a consultas realizadas por la analista durante el embarazo, este artículo aborda la paradoja de la transferencia: la exigencia de utilizar el inconsciente del analista y la necesidad de mantener su posición abstinente. ¿La positivización de tu cuerpo sería un obstáculo para el setting o, por el contrario, abriría un espacio para pensar en la potencia de este encuentro como un acto vivo y creativo? Trabajamos con la hipótesis de que esta experiencia revela la posibilidad de que el analista funcione como un resto diurno para el sueño del paciente en sesión.

Palabras clave: analista embarazada, transferencia, cuerpo de analista, abstinencia


RÉSUMÉ

À partir de deux fragments cliniques qui remontent aux consultations faites par l'analyste pendant sa grossesse, cet article traite du paradoxe du transfert : l'exigence de l'utilisation de l'inconscient de l'analyste et le besoin de maintenir sa posture de s'abstenir. La positivisation du corps de l'analyste serait-elle un obstacle au cadre ou, au contraire, ouvrirait-elle un espace pour réfléchir à la puissance de cette rencontre comme acte vivant et pulsionnel ? Nous partons de l'hypothèse que cette expérience, à partir d'un analyste qui est empêché de « se laver les mains », révèle la possibilité qu'il fonctionne comme le reste diurne du rêve du patient en séance.

Mots-clés: analyste enceinte, transfert, corps de l'analyste, abstinence


 

 

Uma mulher grávida, simplesmente por assim estar, provoca: ninguém fica indiferente na presença da barriga que carrega um bebê. Ela nos relembra que temos corpo, sexualidade, desejo, finitude, e com isso nos faz a todos - conhecidos ou desconhecidos - testemunhas disso. Ocupa espaço, captura o olhar, desnuda nossas fantasias mais obscuras. Verdadeiros estranhos se aproximam e começam a contar sobre os filhos que tiveram, os que perderam, os que escolheram não ter, os que foram diferentes daquilo que supunham ser. Enchem-na de perguntas pragmáticas sobre a gestação, compartilham os mais diversos conselhos (poucas vezes requisitados), despejam as mais variadas histórias, normalmente aquelas onde algo (ou tudo) deu errado. Relatam suas relações com os pais, com os filhos, com os irmãos, enquanto pais ou enquanto filhos. Na rua, na vida cotidiana, a barriga se faz presente e abre um vasto campo para o reencontro com a história do outro e de cada um de nós. Afinal, todos fomos bebês um dia, e no contexto atual de laços sociais tão esgarçados, esse lembrete é algo que nos une na nossa própria origem.

Na gestação, sexualidade e morte - esse par tão caro à psicanálise - andam acintosamente juntas, denunciando o desagradável paradoxo de que todo nascimento não deixa de conter em si a sua própria finitude. Sobre essa presença implacável que a mulher grávida exerce em seu entorno, Helena Rosenfeld recorre à antropologia para pensar aquilo que vai nomear estado ritual, gerador de veneração ou temor:

[Na Samatra], a mulher grávida está em "perigo ritual": pensa-se que ela está exposta a perigos por se encontrar num estado intermediário - ainda não é mãe e já não é virgem. ... Enquanto passa por essa crise transitória de identidade, ela também constitui uma ameaça para as outras pessoas. ... O bebê que ainda não nasceu também está em perigo ritual, não tem lugar na sociedade. Nem sequer se sabe qual virá a ser o seu sexo, como será ou se irá sobreviver. ... Por este motivo é também considerado como sendo vagamente ameaçador. ... As futuras mães Lele da África Central evitam aproximar-se de pessoas doentes, que poderiam ser afetadas pelo bebê e piorar. Entre os Nyakyusa, uma mulher grávida não deve se aproximar do trigo que cresce nos campos, dado que o bebê pode apropriar-se dele e fazer com que a colheita seja magra. (1994, p. 62)

A grávida, iluminada ou perigosa, é portadora de um mistério encarnado no próprio corpo, um lugar intermediário aludido pela dupla negativa não-mãe/não-virgem. Sabemos que na nossa cultura, ainda hoje, o imaginário sobre a maternidade relaciona-se com um estado de completa entrega e abnegação, suposta ausência de conflito, e plenitude que flerta com a santificação. Ao mesmo tempo, para que tenha se tornado mãe, o sexo teve que ser praticado. Nesse sentido, não é mais virgem, mas também ainda não é mãe santificada. Nesse hiato cresce a barriga que ostenta aquilo que segue fonte de fascínio e receio: a sexualidade feminina, reveladora desse duplo vida-morte.

Se a gravidez desperta na vida cotidiana tamanho impacto, como pensá-la numa relação tão particular como a do par analítico, ainda mais quando é a própria analista quem engravida? Curiosamente, esse é um tema muito pouco estudado, apesar de ser um fenômeno recorrente. A barriga que cresce com o passar dos meses introduz na relação transferencial novos tons e promove mudanças inquestionáveis no setting, nos convidando a pensar sobre questões pertinentes à técnica psicanalítica.

A psicanálise sempre reafirmou a importância da abstinência do analista no processo terapêutico. Freud, em seus artigos sobre técnica (1911-1915), diz que a preservação da figura pessoal do analista é condição fundamental para que sua escuta tão particular tenha espaço para acontecer. O conteúdo a ser explorado nas sessões deve vir do inconsciente do paciente, próprio da sua subjetividade e dos seus conflitos, para que o analista possa trabalhar com um material que não lhe é próprio, evitando assim que novas resistências se imponham no processo. Eis que então uma barriga impõe-se implacavelmente nesse contexto tão particular, ocupando o espaço oferecido ao paciente e fazendo-se presente como um novo elemento na relação; algo de uma intromissão, uma chegada não discutida e não consentida naquele encontro. Uma dupla intromissão, na verdade, pois também a vida pessoal da analista acaba sendo compartilhada com seus pacientes, quer ela queira, quer não. A regra da abstinência, que serve também para proteger a pessoa do analista, agora se depara com um limite. Será?

Sabemos que, no decorrer de uma análise longa, outras interferências também são, sem dúvida, vividas no setting. Desde menores - se é que podemos assim classificá-las, já que os impactos são sempre particulares -, como mudanças de consultório, da cor da parede ou do corte de cabelo do analista, até maiores, como doenças ou acidentes que podem ocorrer com o profissional e que ficam visíveis, impactando o encontro. Tudo isso, porém, parece ser mais palatável no cotidiano da relação analítica e permeia discussões de caso e produções teóricas com relativa fluidez. O que há, então, de particular na gravidez da analista que faz com que o tema seja ainda tão pouco trabalhado?

A restrita produção teórica sobre o tema pode ser entendida como indício da sua complexidade: a gravidez da analista abre campo para uma série de questões relacionadas ao que há de mais primitivo em nós. O paciente é convocado, pela presença da barriga, a reviver suas próprias relações edípicas, suas identificações, seu acesso à feminilidade - a reviver um verdadeiro retorno às suas origens. A gravidez oferece algo da realidade à fantasia e catalisa vivências transferenciais muito particulares da história de cada paciente. Ainda assim, de maneira geral, pode-se dizer que se faz presente a sexualidade da analista-mulher, mulher essa que vive outras relações frutíferas para além daquela e que está/estará ocupada de outras questões e de outro sujeito que não aquele, culminando num inevitável afastamento, fruto da licença-maternidade.

Na minha experiência como analista grávida, não consigo pensar em um paciente que tenha passado à margem dessa situação, como não consigo tampouco pensar em repercussões que não tenham sido absolutamente singulares, que não tenham remontado à maneira como cada um deles vivenciava a feminilidade, fosse ela própria (em homens ou mulheres), fosse ela relativa a seu primeiro objeto de amor, a mãe, ou aos demais personagens da cena edípica. Durante minha gestação acompanhei um paciente se tornar pai novamente após mais de 10 anos; uma paciente que tentava engravidar sem sucesso há anos iniciar um processo de investigação sobre as causas da infertilidade; um paciente homossexual dar entrada no processo de adoção; uma paciente que não pôde perceber minha gravidez mesmo quando em estado avançado; um paciente que se envergonhava em trazer assuntos sexuais como nunca tinha ocorrido antes.

A seguir apresento duas vinhetas clínicas como provocações para uma reflexão acerca dos impactos da gravidez da analista na relação transferencial. Seria esse estado um impasse ao setting, tão meticulosamente pensado e cuidado, a fim de evitar atravessamentos que prejudiquem o caminhar da análise? Ou, pelo contrário, abriria espaço para pensar a potência do encontro analítico como um ato vivo e pulsional, a partir de um analista que, impedido de "tirar o corpo fora", poderia funcionar como presença sensível, resto diurno para o sonhar do paciente?

 

Vinhetas clínicas: entre bebês e pedras

Apresentarei duas vinhetas clínicas de pacientes cujo trabalho comigo já foi encerrado. A meu ver, esses casos são especialmente preciosos na medida em que não apenas o meu corpo, mas também o das pacientes passaram por importantes transformações de acordo com sua própria trajetória e com a singularidade de cada encontro.

Caso Alice

Alice chegou ao consultório de maneira inusitada, a partir de uma busca na internet, e portanto sem saber que naquela época eu já estava com 25 semanas de gestação e que dentro de poucos meses sairia de licença-maternidade. Na primeira entrevista se apresentou falante, moderna, articulada e com ótimo senso de humor, apesar de um olhar evasivo, por vezes desconcertado, e da angústia frente a qualquer possibilidade de silêncio. Anunciou como demanda de análise um desejo vago de se conhecer melhor e na ocasião não mencionou nada sobre a minha barriga, já bastante visível. Eu também escolhi deixar o tema em suspenso para ver de que modo apareceria no decorrer das entrevistas.

No segundo encontro, Alice pouco lembrava aquela mulher que eu havia conhecido, chorava copiosamente. Revelou - num tom que se aproximava de uma confissão - que nos últimos seis meses tinha vivenciado três episódios muito difíceis relacionados a gestações que não seguiram adiante. Justificou-se dizendo que não havia falado sobre isso porque tinha "medo de contaminar" com suas histórias, que elas pudessem me "fazer mal". Havia passado por uma gravidez ectópica, com perda de uma das trompas, seguida de um cisto no ovário que exigiu remoção de parte dele e por fim um aborto espontâneo. Os médicos diziam que os episódios não estavam correlacionados, o que a deixava ainda mais preocupada, como se essa série de "acasos e coincidências" anunciasse, numa espécie de profecia, a impossibilidade de levar uma gestação ao fim.

Alice descrevia seu aparelho reprodutivo referindo-se a pedaços desconexos, desencontrados entre si. Como havia perdido uma trompa e quase todo um ovário, o que restou ficava "flutuando e se mexendo" dentro dela. Seria justamente por essa razão que, segundo os médicos, uma gravidez tornava-se possível, apesar de difícil, já que as partes poderiam ligar-se e funcionar como um sistema fechado novamente. Esse prognóstico gerava nela um misto de ceticismo e esperança, terror e fascínio. A cicatriz que resultou das cirurgias se assemelhava à de uma cesárea, mas parecia ainda não cicatrizada, concreta e simbolicamente. Queixava-se da sensibilidade daquela pele, que a fazia lembrar o tempo todo sua história. Surpreendia-se com a própria fragilidade, coisa que dizia não entender e, acima de tudo, não aceitar. Deu-se um período de seis meses para viver esse luto e, passado o prazo, sentia-se "inválida no corpo e incompetente na alma" por não ter conseguido se recuperar plenamente daqueles acontecimentos.

Alice chegou fragmentada pelo traumático. Não eram apenas seus órgãos que estavam interrompidos e que funcionavam como corpos estranhos, flutuando, mas também a sua capacidade de integrar esses eventos em sua história. A maternidade se tornara algo tão temido quanto desejado, ou talvez tão temido porque tão desejado. Seu relato era permeado de ambivalência, e a forma como lidava com a pílula anticoncepcional era um sintoma disso, esquecendo-se de tomá-la com frequência. Quando a menstruação descia, chorava, num misto de alívio e tristeza.

Ao final da segunda entrevista perguntei como seria para ela cuidar de todas essas dores com uma analista grávida, ao que ela me retrucou num tom jocoso: "Ué, faz parte. Todo mundo que tem um útero está sujeito a isso". Foi com essa afirmação, carregada de medo, desejo, raiva, inveja e esperança, que iniciamos uma travessia juntas, rumo à revisita de sua própria história, Alice agora acompanhada, "por coincidência", de uma mulher grávida. Coincidência em realidade apenas no primeiro encontro "às cegas", mas escolha - de ambas as partes - a partir de então. Não é raro o relato de pessoas que, ao se depararem com a gravidez da analista, decidem não iniciar o tratamento. A iminente interrupção devido à licença costuma ser o motivo - manifesto, ao menos - para tal. O mesmo com relação a analistas já em gravidez avançada que optam por não tomar casos novos, em um momento em que, normalmente, estão bastante ocupadas de seu estado, ainda mais quando esses casos remetem a vivências traumáticas relacionadas ao tema. Não foi o que aconteceu no meu encontro com Alice: pude perceber que aquela agressividade encobria muita dor, à qual eu estava bastante empática no momento. Do outro lado do par que se formava, ela foi capaz de, mais do que simplesmente suportar, acreditar que o trabalho com uma analista grávida pudesse levá-la a caminhos interessantes, ainda que naquele início obscuros. Afinal, quem contaminaria a quem e com o quê?

Passados pouco mais de dois meses de análise, Alice me contou, atônita, que estava grávida. Ela havia decidido não mais tomar anticoncepcional, pois gostaria de engravidar: tínhamos conversado sobre como interromper deliberadamente seu uso seria uma forma de implicar-se na sua história, sair do lugar de sujeitar-se a uma gravidez para tornar-se então sujeito desse desejo. Sujeitar-se remete a submeter-se, subordinar-se, render-se passivamente a algo que nos acomete, que foge de nosso controle ou do universo do desejo. Estamos sujeitos a imprevistos e acidentes, por exemplo. Nesse sentido, a fala de Alice na segunda entrevista é muito simbólica: nela quem engravida é o útero, e não a mulher. Tornar-se sujeito desejante implicaria poder acessar o desejo da maternidade, marcado e movido pela falta, e lidar com os riscos inerentes que, no caso dela, remetiam ao traumático, às perdas sofridas e ao trabalho de luto ainda em andamento.

Entre a descoberta da gravidez de Alice e a minha entrada em licença-maternidade tivemos pouco mais de um mês. No tempo do calendário, foram poucas sessões, mas é muito curioso como ficou para mim o registro desses encontros: pareceram muitos, talvez tamanha a sua intensidade. E foi nesse tão breve tempo que a gravidez se tornou uma experiência real e compartilhada para nós duas. Podia sentir o medo de Alice de perder o bebê ou de que algo desse errado na sua gestação; os exames de rotina a deixavam sempre muito temerosa. Ao mesmo tempo, ela não conseguia deixar de fazer carinho na barriga e de me contar detalhadamente o que estava vivenciando no corpo e como o bebê se mexia durante as sessões.

Chegada a hora de minha licença-maternidade, ela se despediu com muita ternura. Não tive notícias suas durante esse tempo e, quando retomamos na data combinada, ela estava com aproximadamente o mesmo número de semanas de quando comecei a atendê-la. Disse ser estranho me ver sem a barriga e mostrou-me, orgulhosa, a sua já bem crescida. Brincamos sobre uma "transferência de barrigas". Tivemos então somente mais três meses de trabalho juntas. Nesse período, Alice já estava mais confiante de que chegaria ao final da gravidez e podia se ocupar do seu plano de parto e de outros preparativos para a chegada do bebê. Já podia sonhar com nomes. Ela deu à luz uma menina muito saudável e, passado pouco mais de um mês, entrou em contato comigo dizendo que gostaria de retomar a análise, mas que ainda não conseguia separar-se da filha. Perguntou-me se poderia trazê-la e assim combinamos: passou a sessão embalando a criança nos braços, e essa foi a última vez que a vi. Escreveu-me logo depois dizendo que ainda estava se adaptando à nova rotina e ao novo papel, e que não conseguia, naquele momento, retomar as sessões. Agradeceu-me por tê-la "encorajado" a experimentar tudo aquilo.

Caso Júlia

A segunda vinheta se mostra, em alguma medida, como um contraponto ao caso anterior. Seu desenrolar foi muito menos harmonioso do que o vivido com Alice e talvez por isso tenha achado interessante apresentá-los em par, numa tentativa de problematizar os impasses gerados pela gravidez da analista enquanto potência, mas também enquanto fortes turbulências na relação transferencial.

Júlia tinha sido minha paciente numa clínica social, e seu atendimento fora gratuito, seguindo as diretrizes da instituição. Passado um tempo do encerramento desse trabalho, entrou em contato pedindo uma sessão no consultório particular, pois sua filha - ainda uma criança - dava sinais de estar sendo abusada sexualmente pelo pai. Ela havia se separado dele muitos anos antes, com grande dificuldade. Tratava-se de um relacionamento abusivo, marcado por bastante violência psicológica, o que parecia ser uma repetição da relação de Júlia com sua mãe, sádica e invejosa. Eram várias as lembranças de ridicularização e competitividade, de ameaças de abandono e de violência física, bem como de um episódio de abuso sexual cometido pela mãe, que por sua vez também havia sido vítima de abusos cometidos pela avó de Júlia. Essa história de violência destinada às mulheres e repetida por gerações causou enorme impacto: na infância, o comportamento amedrontado e aéreo de Júlia, além de seu grande isolamento social, chegou a levantar suspeitas de algum tipo de autismo; na vida adulta, algumas repetições me faziam pensar na criança severamente traumatizada. Apesar de ser muito inteligente, perspicaz e bonita, estava sempre mergulhada na mais absoluta precariedade: dívidas cujo montante não sabia precisar, nome sujo que a impedia de morar em um lugar decente, enorme dificuldade de ganhar dinheiro ou de levar adiante qualquer projeto, dos mais cotidianos aos mais elaborados, recaindo no lugar da menina que nunca poderia ter nada.

No entanto, sua relação atual ia, até certo ponto, na contramão dessa repetição. Seu companheiro era um homem muito gentil e carinhoso - tanto com ela quanto com a filha -, e estavam casados havia alguns anos. Tinham relações sexuais desprotegidas, e mesmo assim ela nunca engravidou. Em determinado momento, pensando sobre a possibilidade de terem um filho, foram investigar a causa e descobriram que ele era infértil, algo que gerou frustração e alívio ao mesmo tempo. Por um lado, gostaria de viver uma nova gestação, agora mais velha e com um companheiro amoroso e dedicado; por outro, havia finalmente ingressado na faculdade, algo que trabalhamos bastante em sua análise como uma das possibilidades de sair do lugar de eterno desamparo que ocupava. Vislumbrar uma carreira da qual ela de fato gostasse fazia brilhar seus olhos, mas sustentar o curso tornou-se algo bastante complexo, levando a seu trancamento por diversas vezes e à contração de ainda mais dívidas.

O enfrentamento do caso de suspeita de abuso sexual também a ocupava muito à época: sentia-se sozinha com tamanha responsabilidade e às vezes temia "estar louca", misturando sua história com a de sua filha. Na infância e na adolescência, precisava manter-se impotente, frágil e menina para não atiçar a ira da invejosa mãe, e sentia-se despreparada para ocupar, agora ela, o lugar de mãe. Contava sua história com culpa. Era como se a recente descoberta do abuso de sua filha comprovasse uma espécie de "maldição" que acometia as mulheres da família, a qual ela não havia conseguido impedir.

Foi nesse contexto bastante conturbado e também pouco depois da notícia de que Júlia e o marido não poderiam ter filhos que minha gravidez aconteceu. Percebi sua demora para notar minha barriga, porém os reflexos dela se faziam presentes de maneira acintosa. Inicialmente, ficou muito doente, com febre e acamada, sem saber do que se tratava. Com forte dor nos seios, ao consultar um médico, descobriu que estava com mastite, uma infecção do tecido mamário que se apresenta comumente em mulheres que amamentam e que raras vezes ocorre fora do puerpério. Sentia-se estranha, com muito sono, falta de energia e mal-estar, e começou a engordar sem motivo aparente, algo que nunca havia acontecido antes. Por conta dessas transformações em seu corpo, foi ao ginecologista e descobriu num ultrassom a presença de quatro grandes miomas uterinos - um deles com 10 centímetros -, tumores benignos que normalmente passam despercebidos por serem majoritariamente assintomáticos. O tamanho de sua barriga era equivalente ao de um sexto mês de gestação. Apesar dos sintomas próprios de um início de gravidez, no lugar de um bebê ela estava "gestando" pedras, o que me fazia pensar na aridez de sua vida, a aridez de sua mãe.

Quando retornei da licença-maternidade, Júlia estava às voltas com seu tratamento de saúde em outra cidade, o que a fez interromper a análise. No entanto, não foi somente uma questão de geografia: a dívida, tão presente em sua vida, também se acumulou comigo, pois havia meses que não me pagava as sessões, e cobrá-la tinha se tornado muito difícil para mim. Passado o tempo da minha gestação, fui me dando conta de questões transferenciais: envolta no meu próprio narcisismo, acabei ocupando o lugar daquela que supostamente tinha todos os recursos (que era fértil, com a barriga contendo um bebê de verdade) em detrimento de Júlia, petrificada no lugar da menina desamparada, que não podia sequer arcar com os custos da análise. Mais atenta a essas questões, quando Júlia demandou a retomada do tratamento, propus um acordo que levava em conta suas restritas possibilidades financeiras, o que funcionou não mais do que alguns meses. Foi preciso interromper novamente a análise. Hoje recebo notícias suas de tempos em tempos, quando me conta de seu reingresso na faculdade, o que a enche de esperanças. Ela sempre me reafirma que não se esqueceu de sua dívida e que está buscando meios de pagá-la.

 

O paradoxo da transferência

Combinamos com os pacientes, nas primeiras entrevistas, como funcionarão os encontros. Abordamos temas como férias, faltas, horários, frequência e honorários. Apresentamos nosso espaço de trabalho, com o dispositivo do divã, e convidamos para a regra da associação livre. Tudo com o intuito de estabelecer os contornos que darão início ao trabalho analítico e que visam oferecer um ambiente propício para que ambos os inconscientes se apresentem da melhor maneira. Sabemos que tais combinados estão longe de ser meras formalidades contratuais que serão seguidas à risca ao longo do tratamento, e não se circunscrevem apenas à época das entrevistas preliminares. A maneira como cada paciente irá lidar com aquilo que acordou será material de suma importância ao longo do processo, revelando no aqui e agora do encontro a posição subjetiva daquele que nos procura. Ainda assim, tais acordos revelam uma tentativa de manter alguma previsibilidade nesse ambiente, para evitar ao máximo "interferências externas" que poderiam impactar negativamente o curso do tratamento. Quando dizemos "ambiente", nos referimos tanto ao espaço físico do consultório quanto ao espaço do encontro intersubjetivo. O analista é também o lugar onde se passa uma análise, não apenas no sentido de sua corporeidade, um tom de voz, um jeito de olhar, uma maneira de falar, gesticular, sentar e intervir, que são esperados como parte desse ambiente; lugar também no sentido do seu inconsciente, que precisa se abrir para hospedar psiquicamente o paciente durante a sessão.

Essa exigência de disponibilização do inconsciente do analista não vem sem grande responsabilidade. É preciso estar sempre muito atento para não invadir o psiquismo do analisando com representações e afetos não advindos daquele encontro singular, algo que remete à problemática do caráter sugestivo dos tratamentos psíquicos. Freud se ocupou desse tema desde os seus primeiros escritos, justamente pela necessidade de distinguir a técnica psicanalítica da sua própria origem, o método hipnótico-sugestivo.

Na verdade, há entre a técnica sugestiva e a analítica a maior antítese possível, aquela que o grande Leonardo da Vinci resumiu, com relação às artes, nas fórmulas per via di porre e per via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida. ... a técnica de sugestão busca operar per via di porre; não se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas patológicos, mas antes deposita algo - a sugestão - que ela espera ser forte o bastante para impedir a expressão da ideia patogênica. A terapia analítica, em contrapartida, não pretende acrescentar nem introduzir algo de novo, mas antes tirar, trazer algo para fora, e para esse fim preocupa-se com a gênese dos sintomas patológicos e com a trama psíquica da ideia patogênica, cuja eliminação é sua meta. (Freud, 1905/1996b, p. 247)

Em 1912, em um dos seus textos sobre técnica, Freud retoma a discussão sobre o lugar do analista e é categórico ao dizer que "o médico deve ser opaco para o analisando e, tal como um espelho, não mostrar senão o que lhe é mostrado" (1912/2010, p. 159). No entanto, ele próprio reconhece que a sugestão influencia qualquer processo terapêutico e que exerce uma ação dupla e contraditória, podendo favorecer a cura, mas ao mesmo tempo acarretar um efeito inibidor, uma vez que dificulta o conhecimento das forças psíquicas que estruturam a neurose e o reconhecimento das resistências através das quais se desnudam as defesas do paciente. Acerca do tema, Birman (1989) propõe um recorte interessante: a regra do analista-espelho estaria circunscrita a uma tentativa de evitar o uso da sugestão para manipular a transferência. Assim, devemos lembrar que é dentro da problemática da sugestão que se insere essa célebre afirmação de Freud, muitas vezes usada em contextos distintos, assemelhando-se a uma exigência de absoluta neutralidade por parte do analista, por vezes erroneamente entendida como frieza, distanciamento, silenciamento. Essa exigência, além de utópica - já que invariavelmente o profissional sempre carrega um pouco da sua pessoa para a sala do consultório, mesmo que à sua revelia -, poria em xeque a convocação de Freud para o uso do inconsciente do médico como ferramenta de escuta em sessão.

Sabemos que o fundador da psicanálise foi muito cuidadoso ao redigir seus artigos sobre técnica. Não à toa foram poucos perto de toda a sua produção metapsicológica. Sua preocupação com a possibilidade de enrijecimento frente a colocações que poderiam virar - e que por vezes de fato viraram - regras invioláveis, verdadeiros dogmas, era nítida. No entanto, ao fim e ao cabo, o que de fato segue como regra fundamental ao tratamento remonta aos próprios primórdios da psicanálise, a associação livre por parte do paciente e sua contrapartida do lado do analista, a atenção flutuante.

Imaginemos agora que, nesse setting tão cauteloso (não sem razão) com os limites entre o eu e o outro, a analista apareça de repente grávida, numa positivação inegável do seu corpo que apresenta algo - nada insignificante - da sua pessoa. De um lado, temos o psiquismo dessa mulher a todo vapor, o narcisismo em seu ápice, a libido direcionada para a própria barriga, fantasias infindáveis a partir do fascínio e do medo por estar gerando um ser dentro de si; uma revisita à sua própria infância, sua sexualidade infantil, sua condição de filha, sua experiência como mulher. Do outro lado, o paciente, atravessado pelo próprio sintoma que o trouxe à análise, sintoma esse que, como diria Freud, invariavelmente remeterá à sua sexualidade infantil recalcada, que insiste em retornar disfarçada, às vezes envergonhada, às vezes escancarada ou atuada. É por isso que não há análise em que não se fale da infância e das relações com os objetos primários, da criança que insiste em habitar o adulto e que tem na transferência um espaço privilegiado para apresentar-se.

Assim como a dupla analista/analisando, a atenção flutuante/associação livre não será mais a mesma, com a escuta da analista agora acompanhada de pontapés e rodopios dentro da barriga, que parece funcionar como resto diurno, colorindo as associações enunciadas no divã, compondo o sonho na sessão. Como lidar, nessa circunstância, com o paradoxo da transferência, ou seja, com a necessidade de que o analista empreste seu inconsciente para que a atenção flutuante aconteça, mas ao mesmo tempo siga com rigor o princípio da abstinência, abrindo mão da satisfação do próprio desejo para que o desejo do analisando tenha o espaço do qual necessita? A esse respeito discorre Heissler:

Portanto, voltando para nossa equação abstinência × gravidez da analista, penso que o que possibilita que o desejo e o corpo da analista grávida continuem sendo abstinentes, mesmo com o rosto redondo e o barrigão, envolta no desejo interessante, e diante dos sonhos e expressões do analisando, é a posição que essa analista ocupará ao se deparar com esses variados e novos elementos que sua gestação provoca. Posição essa que, como afirmam Leite e Paim Filho, é aquela já esperada por quem exerce o ofício de psicanalista. Sabemos que não se trata de uma posição fácil a da renúncia, sendo ela um trabalho da análise do analista. Assim sendo, acredito que a gravidez impõe à analista uma ampliação desta árdua tarefa, já que em estado interessante ... a novidade não é apenas a chegada do bebê, mas também o surgimento de intensidades e coloridos novos a fazer ferver a transferência, bem como o narcisismo da analista. (2020, p. 72)

Apressadamente poderíamos fazer a leitura da cena como apenas um atravessamento indesejado no trabalho, como uma interferência a ser minimizada ao máximo na lógica do analista-espelho. Nesse caminho estaríamos mais próximos da noção de sugestão, da notícia da gravidez da analista se impondo per via di porre. No entanto, a rica vivência relatada brevemente nos recortes clínicos nos convida a pensar nesse impasse por outro prisma: não poderia a positivação do corpo da analista também funcionar como resto diurno, disparadora e catalisadora de aspectos primitivos do sujeito pertinentes ao trabalho de análise? Nesse sentido, nos aproximaríamos ao mesmo tempo da via di levare, possibilitando - a depender de seu manejo na transferência, claro - a extração de um material preciosíssimo do inconsciente do analisando. A esse respeito, Kupermann faz a seguinte provocação:

A força da metáfora empregada por Freud [a distinção entre a técnica da pintura e a da escultura, atribuída a Leonardo da Vinci] nos obriga a perguntar ... se trabalhamos, efetivamente, per via di levare, ou se a clínica contemporânea nos convoca ao questionamento da efetividade dos princípios balizadores da técnica freudiana - escuta flutuante, abstinência e interpretação - na lida com as formas de sofrimento psíquico manifestadas por um número cada vez mais frequente de analisandos, severamente comprometidos em sua competência simbólica e elaboradora. Ser psicanalista hoje parece exigir a necessidade de um gesto iconoclasta para com a figura do analista-escultor, quase tão radical e urgente quanto a de Laszlo Toth para com a Pietà de Michelangelo. (2017, p. 29)

Acerca do corpo na gênese da vida psíquica e da necessidade de sua reconciliação com o trabalho analítico, Ivanise Fontes apresenta um interessante trabalho nomeado Psicanálise do sensível, que a leva a retomar a existência de uma memória corporal. Remontando a Ferenczi e ao próprio Freud, afirma que o corpo guarda uma memória constituída de fragmentos de impressões sensoriais da tenra infância e que a transferência seria altamente propícia para o despertar dessa memória, numa repetição que por vezes escapa à representação.

Na transferência, o surgimento de sensações anteriormente vividas mas ainda não interpretadas pelo indivíduo está sempre latente. Um detalhe físico do analista pode, por exemplo, reativar a aparição do que chamamos "memória corporal". Na maioria dos casos, são momentos de uma inquietante estranheza que se manifestam bruscamente, por meio dos aparelhos visual, auditivo e olfativo, quase como uma alucinação, oferecendo condições para um retorno do material inconsciente, não somente recalcado, mas registrado em outra ordem - a ordem do sensorial. Na comunicação analista-analisando é necessário então admitir, como parte inerente ao tratamento, uma via sensorial. (Fontes, 2010, p. 24)

A autora fala sobre o retorno de impressões sensoriais da mais tenra infância (cheiros, sabores, impressões visuais) a partir daquilo que é experimentado na transferência. O próprio Freud, em "Construções em análise" (1937/1996a), já aponta para a presença ocasional de verdadeiras alucinações não psicóticas vividas em análise. Se estamos às voltas com o retorno do infantil, então a transferência, assim como o sonho, é um lugar privilegiado para que a regressão alucinatória se dê, para que esses registros sensoriais retornem em forma de "alucinações". Sabemos que Fontes se refere ao retorno de sensações corporais, fruto desse registro arcaico que antecede o verbal. Nos casos apresentados, relatamos verdadeiras manifestações corporais nas pacientes, quando uma engravida de bebê e outra de pedras. Podemos pensá-las da mesma maneira, como algo desse registro pré-verbal que retorna na cena analítica pela via sensorial? O que sabemos é que foram encenadas verdadeiras "conversas" entre corpos, com desfechos dissonantes, que poderiam ser pensados a partir de múltiplas interpretações clínicas e metapsicológicas. Aqui proponho duas leituras possíveis, a título de hipóteses.

A primeira diz respeito à memória corporal de cada paciente, que cremos ser muito diferentes entre si. Alice fora um bebê desejado, contava com uma mãe muito carinhosa e um pai bastante presente. Havia tido uma infância repleta de cuidados e atenção, sendo uma criança muito esperta, ativa e inventiva. Júlia, por sua vez, teve que sobreviver aos constantes ataques de uma mãe sádica e invejosa, um pai distante, figuras com quem nunca pôde contar, sofrendo sucessivos abusos de ordem física e psicológica. É claro que não temos notícias pela via das associações verbais sobre esses tempos mais remotos, mas se aderirmos à proposta das construções em análise, as tais "ficções baseadas em fatos reais", poderemos supor a existência de memórias corporais de diferentes ordens que resultaram em diferentes manifestações no corpo a partir da "provocação" transferencial da gravidez da analista. Alice pôde ser gestada em análise, alucinar o próprio aparelho reprodutivo (lembremos as partes flutuantes que se conectaram), sonhar em sessão como forma de elaboração dos traumas vividos. Júlia, por outro lado, parece ter regredido a um estado de desamparo e de aridez que remontava à relação com a mãe, pesadelo reencenado na relação analítica. Nesse caso, minha gestação parece ter funcionado como um disparador de angústias arcaicas que habitaram a concretude do corpo e que não puderam ser propriamente elaboradas, simbolizadas, sonhadas em sessão.

O corpo do analista pode também se colocar como uma pedra, um obstáculo no meio do caminho. A pedra é uma das palavras associadas ao final da análise, ao encontro com a "rocha da castração"; mas minha ideia aqui é falar dela como um tropeço, algo que se inscreve na cena analítica. ... quando não se pode montar a cena onírica, qualquer pequena intrusão da realidade é um holofote caindo no palco. ... Os sonhos e as fantasias são ótimos em desviar pedras. Quando o palco da vida irrompe do palco dos sonhos, despertamos para a concretude de um mundo não fantasiado, nos surpreendemos com o fato de que por debaixo do figurino estamos todos nus. (Mattuella, 2020, pp. 45-48)

A segunda hipótese diz respeito à contratransferência, ou seja, aos aspectos mobilizados na analista grávida, e à possibilidade de manejo de cada caso, também marcadamente diferente.

A apreensão pelo analista da angústia arcaica corporificada, vivida pelo paciente, implica a "utilização" do seu próprio corpo. Segundo P. Fédida, o analista precisa "ressoar" a comunicação do paciente, isto é, deve produzir algum eco em seu próprio corpo, de modo que, por meio da vivência contratransferencial, possa entrar em contato também com as experiências primitivas do paciente. (Fontes, 2010, p. 29)

Nessa conversa entre corpos, acredito que pude acolher melhor as reverberações de Alice do que de Júlia. Estava muito empática à dor daquela pelas recentes e consecutivas perdas, e eu, já numa gravidez avançada, não sentia medo quando vivia os ataques proferidos por ela, normalmente seguidos de movimentos reparatórios. Sentia-me criativa, pensante, disponível e amorosa. Com Júlia, por sua vez, a vivência era de paralisia, como se estivesse assistindo a um pesadelo sem fim. Eu também fiquei, junto dela, petrificada. Hoje me dou conta de seus ataques invejosos e de como fui tomada pela culpa de carregar um bebê enquanto dentro dela havia pedras, como se a aridez de sua vida estivesse se contrapondo diretamente à fertilidade que ela atribuía à minha. Capturada, me vi paralisada para trabalhar a questão do dinheiro e da dívida, como se eu mesma não estivesse também às voltas com meu próprio desamparo, com o temor de tornar-me mãe, de parir, de despedir-me da minha vida como a conhecia até então e das outras tantas perdas e renúncias que esse processo envolve. Talvez também estivesse contagiada por sua precariedade, sentindo o peso de suas pedras, lutando para evitar o contato com o horror que remonta aos nossos primórdios, ao nosso mergulho na condição do desamparo.

A partir do impasse enunciado pela gravidez da analista, acredito que esses breves relatos nos ajudem a problematizar o paradoxo da transferência, a necessidade da "presença-ausência" do analista, que torna nosso ofício tão potente quanto inquietante. Nesse sentido, essa experiência sublinha o desafio do analista, tal como enunciado por Kupermann (2008), de comparecer ao mesmo tempo como presença sensível e alteridade radical, para então fazer da transferência um espaço de compartilhamento afetivo no qual a criação se torna possível.

 

Referências

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Kupermann, D. (2008). Presença sensível: a experiência da transferência em Freud, Ferenczi e Winnicott. In D. Kupermann, Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica (pp. 85-108). Civilização Brasileira.         [ Links ]

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Rosenfeld, H. K. (1994). A gravidez na mulher e na analista: acontecimento e temporalização. Cadernos de Subjetividade, 2(1-2),61-66.         [ Links ]

 

 

Recebido em 15/7/2021
Aceito em 5/8/2021

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