Revista Brasileira de Psicanálise
ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021
CARTA-CONVITE
Carta-convite
Claudio Castelo FilhoI; Elsa Vera Kunze Post SusemihlII
IEditor
IIEditora associada
Supervisão
Propor um número da rbp com foco na supervisão nos pareceu pertinente porque, apesar de ser algo intrínseco à formação de um psicanalista, raramente é abordado em trabalhos científicos. Essa atividade, no entanto, está no cerne do desenvolvimento de todo analista praticante, seja quando se submete a ela, seja quando a exerce como supervisor.
Na formação do psicanalista, a supervisão surgiu de maneira informal quando os discípulos de Freud passaram a procurá-lo para se orientarem em seus atendimentos. É possível pensar igualmente que as cartas de Freud a Fliess poderiam ser a busca de uma segunda opinião a respeito do trabalho que desenvolvia, já que lhe faltavam interlocutores. As primeiras reuniões das quartas-feiras, em que havia trocas entre os primeiros associados de Freud, podem ser vistas como algo que tenderia para o que, na década de 1920, seria denominado supervisão no Instituto de Berlim, com Abraham e Eitingon, a fim de que o candidato desenvolvesse o manejo da técnica analítica.
Há muita controvérsia quanto ao trabalho de supervisão. Nas suas origens, na Hungria, considerou-se que o próprio analista didata de um candidato deveria fazer a supervisão dos atendimentos do seu analisando (esse modelo permanece em vigor naquele país e é secretamente praticado em outros lugares). Na França, Lacan considerou que o fundamental seria a análise do próprio analista e que as supervisões constituiriam uma espécie de resistência ao trabalho analítico; assim, o próprio analista é quem deveria se autorizar como tal. Todavia, permanece a necessidade de validação pelo grupo. A grande maioria dos analistas franceses, em vez de utilizar o termo supervisão, refere-se a esse processo como análise de controle ou simplesmente controle. O nome controle, contudo, costuma implicar uma atividade superegoica, paradoxalmente contrária à proposta de uma autoautorização. Por lá nem sempre o controle é exercido por um único analista; também existem grupos de controle da prática de um analista em formação. A despeito da proposta de Lacan, os analistas que não se submetem ao controle costumam ser vistos com menosprezo, tanto por parte dos que o aceitaram quanto por parte das instituições a que pertencem.
Para que um candidato1 a analista se qualifique na maioria das Sociedades e Institutos ligados à IPA, é necessário que faça análise pessoal com um analista didata e submeta-se a longas horas de supervisão. Na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), que segue o modelo estabelecido por Eitingon, o membro filiado necessita submeter-se a uma análise didática que deve durar no mínimo cinco anos, com quatro sessões semanais de análise com um analista didata e mais duas supervisões oficiais com dois analistas didatas diferentes, de 80 horas cada, a partir das quais deverá produzir dois diferentes relatórios de atendimento, que terão de ser apresentados a bancas para que ele possa ser aprovado, o que também depende da conclusão de todos os créditos requisitados. Pode-se argumentar que isso implicaria uma situação de poder dos didatas sobre os membros filiados, que teriam de se submeter às opiniões de seus analistas e supervisores. Já há algum tempo a SBPSP tem um grande número de didatas de diversas correntes teóricas, e um membro filiado que não se sinta confortável pode trocar seu analista ou supervisor. Como atividade correlata às supervisões, o membro filiado também deverá fazer pelo menos oito seminários clínicos com oito diferentes analistas didatas, de escolha livre, o que pode auxiliá-lo no encontro de diferentes maneiras de abordar a clínica com base em diferentes vieses teóricos. Porém, pode ser que essa situação não seja encontrada em grupos ou Sociedades menores, em que o candidato se vê diante de um corpo de didatas reduzido.
Questões transferenciais podem se manifestar na escolha do analista ou do supervisor, levando à formação de "seitas" ou "igrejas" dentro de grupos de analistas, sejam eles pertencentes à IPA ou não. Eventualmente, surge desconforto e zonas de conflito quando o supervisor não parece confluir com o pensamento do analista do supervisionando, mesmo quando aparentemente estão afiliados a uma única corrente de pensamento ou escola.
O supervisor pode impor seu pensamento ao supervisionando? Em mesa do último Congresso Internacional de Psicanálise da IPA, um analista francês descreveu a necessidade de mentir para seu supervisor-controlador quanto ao que se passava no atendimento de um paciente específico, em razão dos modos extremamente violentos e autoritários daquele. Em contrapartida, o supervisionando pode se pôr numa situação de dependência idealizada do supervisor, ou ainda de sistemática afronta ao supervisor, o qual deveria corroborar seus pontos de vista e jamais questionar aquilo que já pensa.
Deparamo-nos com outras questões: que uso se faz de uma supervisão? Supervisiona-se o atendimento que é feito? A preocupação é com o paciente do supervisionando? Ou o intuito é o desenvolvimento de um pensamento clínico? Nessa perspectiva o atendimento apresentado é visto como eventos supostamente ocorridos que servem para exercitar o olhar clínico e a intuição, que não implicam propriamente um paciente específico, mas que podem impactar todo o modo de trabalho do supervisionando a partir da expansão do seu escopo. Ainda, o foco da supervisão está no paciente ou no supervisionando? Ou na experiência emocional? Ou na observação daquilo que é apresentado durante a supervisão, seja nos relatos em si, seja na forma e na razão de fazê-los durante a supervisão?
Há analistas didatas que se contrapõem à necessidade de que as supervisões oficiais sejam feitas com o mesmo analista-supervisor em toda a sua duração, pois acreditam que isso poderia constituir uma doutrinação do supervisionando. Em contrapartida, há supervisonandos que consideram a experiência com um supervisor tão útil e gratificante que permanecem em supervisão por muito mais tempo que as horas demandadas.
Analistas experientes também se veem na necessidade de conversar com outros colegas ou de se submeter a supervisões diante de situações nas quais se encontram perplexos ou sem instrumentos. Seria o caso de mais supervisão ou de retomada de uma análise pessoal?
Glen Gabbard, no último congresso da IPA, que deveria ter ocorrido em Vancouver, mas foi realizado online, comentou sobre a dificuldade dos analistas de hoje em pedir ajuda a seus pares, dando a impressão de que têm medo de solicitá-la. Ele sublinha nessa fala a importância de todo analista, ao longo da sua atividade, procurar alguém para conversar e se consultar sobre - talvez para supervisionar -os seus atendimentos, ressaltando a necessidade de um terceiro para olhar, ver e refletir. Super-visão seria esse terceiro, que pode oferecer sua visão e sua escuta sobre o trabalho da dupla?
Há Sociedades que propõem a abolição da função de didata, pois ela seria algo de natureza autoritária e antidemocrática. Todavia, para muitos, essa função é essencial, visto que o didata deve ser alguém que a instituição reconheça ter notório conhecimento da psicanálise, que distinga com clareza essa prática de outras atividades terapêuticas e cuja atividade seja propriamente a de psicanálise, e não outra coisa que a ela se assemelhe (às vezes, totalmente discrepante, como o uso de florais de Bach e a doutrinação moral ou religiosa), para a preservação dessa função e de sua transmissão.
Por sua vez, conflitos institucionais podem respingar no trabalho de supervisão e análise pessoal. O que pensar a respeito disso?
A supervisão é uma conversa horizontal dentro de uma relação assimétrica (visto que o supervisor em princípio deve ser alguém com maior experiência que o supervisionando) ou ela é vertical e pode criar polos de conhecimento/não conhecimento, eventualmente intoleráveis para os envolvidos?
Como acontece em qualquer atividade e em qualquer instituição, toda função pode se desviar de seus propósitos e ser distorcida e pervertida. Mas será possível escapar dessa possibilidade, tendo em vista a natureza humana? E o que fazer para restringir ao máximo essa possibilidade? Além da própria análise pessoal, a supervisão poderia auxiliar nesse dilema?
A supervisão evoca a situação de análise, mas não é análise, e também mobiliza emocional, transferencial e contratransferencialmente situações infantis ligadas à aprendizagem. Assim, podem surgir emoções intensas ligadas a dependência, medo, perseguição, onipotência, impotência, demandas etc. Que reflexões derivam dessas questões?
Quais as diferenças entre supervisão oficial institucional e não institucional? O que isso implica para o trabalho?
Esperamos que este breve estímulo sirva para que trabalhos significativos, com uma ampla conversa, nos sejam encaminhados, tanto por parte dos que estão em supervisão quanto por parte dos supervisores e pensadores de nossa prática em geral.
Referências
Kovács, V. (1936). Training and control-analysis. The International Journal of Psychoanalysis, 17,346-354. [ Links ]
Rezze, C. J. (2012). Como formar o psicanalista ou como ser ou tornar-se psicanalista. In Dimensões: psicanálise: Brasil: São Paulo (pp. 269-279). SBPSP. [ Links ]
Szönyi, G. (2014). The vicissitudes of the Budapest model of supervision: can we learn from it today? Psychoanalytic Inquiry, 34(6),606-618. [ Links ]
1 Ou analista em formação, ou membro filiado, conforme o Instituto e a Sociedade a que pertence.