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Revista Brasileira de Psicanálise

 ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

RESENHAS

 

Finding the Piggle: reconsidering D. W. Winnicott's most famous child case1

 

 

Alexandre Socha

Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / alexandre.socha@gmail.com

 

 

Editora: Corinne Masur
Editora: Phoenix Publishing House, 2021, 259 p.
Resenhado por: Alexandre Socha

 

 

É costume de toda boa mãe, à noite, depois que seus filhos dormem,
remexer em suas cabeças e deixar tudo organizado para a manhã
seguinte, recolocando nos devidos lugares as muitas coisas que se desencaixaram ao longo do dia. Se você conseguisse ficar acordado (mas claro que não consegue), poderia ver como sua mãe faz a mesma coisa com você, e acharia muito interessante observar o modo como ela opera.
É muito parecido com uma arrumação de gavetas. Você veria sua mãe
de joelhos, imagino, achando graça por algum tempo
de algumas das coisas que encontra dentro
da sua cabeça, e se perguntando em que
parte desse mundo você pode ter encontrado aquilo, fazendo
algumas descobertas deliciosas e outras nem tanto.

J. M. BARRIE, Peter e Wendy

É possível imaginar, a partir da primeira carta enviada a Winnicott, a preocupação da mãe de Gabrielle com as descobertas que vinha fazendo na filha. A própria menina chamava pelos pais madrugada afora, pedindo que lhe explicassem aquilo que encontrava dentro de si. Havia, afirmava ela, um papai preto e também uma mamãe preta que a perseguia à noite e reclamava onde estavam os seus "mamás". Com frequência o papai preto e a mamãe preta estavam juntos no babacar, por vezes acompanhados também de uma Piggle2 preta. Segundo a mãe, Gabrielle havia perdido interesse nos brinquedos e deixado de ser ela mesma após o nascimento da irmã mais nova. Ao despertar de terrores noturnos, insistia para que lhe falassem do babacar, "tudo sobre o babacar". Percebendo a necessidade de ajuda para arrumar-lhe as gavetas, a mãe respondeu que havia escrito para um tal Dr. Winnicott, alguém que entendia de babacars e de mamães pretas, o que fez Gabrielle, a partir desse dia, reformular seu pedido para "Mamãe, me leva ao Dr. Winnicott".

Assim teve início a análise da menina de 2 anos e 4 meses com o psicanalista inglês perto dos seus 68 anos. A transcrição verbatim dos 16 encontros, incluindo comentários a cada um deles e a correspondência com os pais nos entremeios, foi publicada postumamente em The Piggle: relato do tratamento psicanalítico de uma menina (1977), livro preparado por Winnicott em seus últimos anos de vida e de grande importância para uma compreensão mais profunda de sua obra. No entanto, diferente de outras publicações suas, The Piggle está longe de ser um livro de leitura acessível. Era sua intenção manter esse texto com numerosas lacunas, criando um espaço aberto para a discussão, em vez de um material didático para psicanálise de crianças. Por conta disso, é exigido do leitor um considerável conhecimento prévio da teoria winnicottiana para evitar confusões e equívocos quanto ao seu manejo clínico.

O volume recém-editado por Corinne Masur, Finding the Piggle: reconsidering D. W. Winnicott's most famous child case, aceita o convite original de Winnicott para tomar a análise de Gabrielle em discussão. Distante de qualquer teor panegírico, o livro realiza uma revisitação crítica, debruçando-se em aspectos pouco explorados por Winnicott na sua apresentação do caso. Os sete capítulos partem de vértices diferentes, tanto de autores íntimos ao seu pensamento quanto de colegas mais afinados aos aportes de Anna Freud, Bowlby ou Lacan. A tônica é dada pelo primeiro capítulo, que, segundo Masur, serviu-lhe de inspiração para a edição do conjunto. Trata-se da versão ampliada de um artigo de Deborah Luepnitz publicado pelo International Journal of Psychoanalysis em 2017, "The name of the Piggle: reconsidering Winnicott's classic case in light of some conversations with the adult Gabrielle".3 O trabalho traz reflexões da autora a partir de suas conversas com Gabrielle, agora uma mulher de quase 60 anos, que se tornou ela mesma psicoterapeuta. A antiga paciente de Winnicott tece comentários sobre sua infância, suas lembranças da análise e sua leitura do relato clínico.

Amparada pelas associações de Gabrielle, Luepnitz reitera aquilo que entende como negligência de Winnicott ao histórico familiar e sua incidência nas origens do adoecimento da menina. Curiosamente, o nome real de Gabrielle não foi alterado na versão publicada; o nome que ficou oculto foi aquele vinculado ao trauma transgeracional:

A família de minha mãe era de refugiados tchecos de língua alemã. ... Eu fui a primeira criança pós-Holocausto da minha geração. Gabrielle é meu segundo nome. Esther - meu primeiro nome - guarda a história e o trauma judaico da família. (p. 10)

Entre os familiares assassinados em campos de concentração, estavam a bisavó e a tia-avó de Gabrielle, Greta Esther, de quem herdou o nome em homenagem (como observa Luepnitz, Esther é também o nome da rainha bíblica que precisou esconder seu judaísmo).

A autora defende a tese de que, somado a outros eventos biográficos, haveria um fator traumático, ligado às muitas rupturas vividas pela família materna e paterna, sendo transmitido via inconsciente parental e configurando a sintomatologia de Gabrielle. Conforme a noção de transmissão transgeracional, a tarefa do trabalho de luto não realizada pelos pais é designada como um fardo para a geração seguinte. Assim como Winnicott defendia veementemente "não existir um bebê" - apenas uma dupla mãe-bebê, matriz do nascimento psíquico -, também essa dupla não poderia existir dissociada do ambiente de sua história social e familiar.

Um exemplo disso é dado pela ressignificação do babacar, que tanto apavorava a criança. Assumido por Winnicott como uma adaptação de baby car (carrinho de bebê) e relacionado, dentro de um contexto edipiano, ao lugar no interior materno que lhe fora tomado pela irmã mais nova, o babacar ressurge, segundo indicação de Gabrielle adulta, como uma referência à figura mítica que teria conhecido na mesma época, Baba Yaga, feiticeira ambígua pertencente ao folclore eslavo, capaz de ajudar ou de destruir. Aqui, o interior representado pelo babacar se expande do útero para o rescaldo cultural que constitui o psiquismo materno.

Já no capítulo seguinte, "'The Piggle Papers': an archival investigation, 1961-1977", Brett Kahr examina historicamente a análise de Gabrielle sob outra perspectiva. Com seu habitual tom hagiográfico (que, aliás, destoa do resto do volume), Kahr reconstrói a cena dos encontros apresentando todos os personagens envolvidos, como estariam vestidos na primeira sessão, quais haviam sido suas atividades nos dias antecedentes e qual a provável disposição física e de humor de cada um, criando assim uma narrativa que se aproxima do romance histórico. Sustentado pelas décadas de pesquisa realizada nos arquivos de Winnicott e pelo trabalho com os documentos e cartas de família concedidos por Gabrielle, Kahr contemporiza a crítica de negligência aos antecedentes e revela que Winnicott não apenas mantinha uma relação prévia de amizade com a mãe da menina - colega analista, formada pela Clínica Tavistock e supervisionanda de Melanie Klein - como também manteve uma interessante troca de correspondência com a avó materna de Gabrielle, em que discutiram o caso de um menino cujos pais morreram no Holocausto. É provável, portanto, que Winnicott não desconhecesse de todo a experiência familiar relatada por Gabrielle adulta e, embora a concepção de trauma transgeracional estivesse longe do sentido atual, certamente era sensível aos fatores ambientais no sofrimento de seus pacientes.

Kahr resgata ainda informações curiosas, como o motivo de haver tantos frascos de colírio entre os brinquedos de seu consultório. Na época das sessões com Gabrielle, Winnicott sofreu dois acidentes oculares que o deixaram com muito desconforto - um deles, o ataque de uma criança autista que feriu seu olho com um lápis por ter concedido demasiada atenção à sua mãe.

Seguindo a trilha aberta por Luepnitz, outros artigos do livro enfatizam as possíveis "cegueiras" de Winnicott ao que soa tão óbvio a cada um dos autores. Por exemplo, Justine Kalas Reeves, em "A child analyst looks at The Piggle in 2020", sugere ter sido a crise conjugal dos pais de Gabrielle - que de fato acabaram se separando pouco depois do término da análise - um dos fatores determinantes para o adoecimento da menina. Corinne Masur, em "The Piggle: rivalrous or bereft?", amparada pela teoria do apego de Bowlby, recupera nas primeiras sessões diversas referências da criança à angústia de separação. Propõe então que a principal origem do sofrimento de Gabrielle teria sido não tanto a inveja e a rivalidade edipianas suscitadas pelo nascimento da irmã, mas sim a ausência de sua mãe por 10 dias, durante o período pós-parto na maternidade.

Tais revisões provêm, em larga medida, de uma leitura do material publicado à luz de informações exteriores a ele, como os dados biográficos já mencionados. Ainda que não desprovidas de interesse, essas conjecturas parecem perder de vista que o relato de uma análise não se confunde com ela mesma, e que toda narrativa clínica opera invariavelmente um recorte cujo efeito produz luz e sombras, fazendo sobressair certos aspectos em detrimento de outros. Uma leitura detida do próprio material, o único relato integral de uma análise infantil escrito por Winnicott, permite, por outro lado, reconhecê-lo como um meio privilegiado para suas reflexões sobre o enquadre psicanalítico, seus limites e as modificações por vezes necessárias.

 

The Piggle como memorial formativo e legado psicanalítico

Nesse sentido, o capítulo de Christopher Reeves "Reappraising Winnicott's The Piggle: a critical commentary", publicado originalmente em 2015, se distingue por situar suas observações dentro do próprio arcabouço conceitual winnicottiano. Cotejando The Piggle com duas outras obras paradigmáticas na literatura da psicanálise de crianças - Narrativa da análise de uma criança (1961), de Melanie Klein, e Diálogo com Sammy (1960), de Joyce McDougall e Serge Lebovici - Reeves faz emergir a presença da tradição psicanalítica na formação de Winnicott, bem como a originalidade do seu modo de trabalhar e pensar a clínica. Da influência kleiniana em Winnicott, Reeves identifica no relato aquilo que denomina interpretações comocionais: a verbalização da fantasia inconsciente na primeira oportunidade possível, com a intenção de mitigar ou dissolver a ansiedade predominante. Isso produziria um efeito de confiabilidade no processo analítico e, transferencialmente, na capacidade de compreensão do analista. Da influência annafreudiana (com quem McDougall realizou formação na Clínica Hampstead e cuja presença pode ser sentida no trabalho com Sammy), Reeves assinala uma segunda categoria, de interpretações conjuntivas: alusões sutis ao conteúdo do brincar da criança ou às suas estratégias de defesa, com o intuito de que ela estabeleça as próprias relações entre seus pensamentos, ações e sentimentos.4

Em contraparte, Reeves destaca no mínimo três aspectos fundamentais que diferenciam o caso Piggle dos casos Richard e Sammy, e que constituem parte do legado dessa obra à prática clínica:

1) A apresentação de um modelo de análise "segundo a demanda", ancorado em uma concepção específica do desenvolvimento emocional, onde caberia ao analista intervir o mínimo possível, apenas o suficiente para que o processo maturacional reencontre seu caminho próprio e dê continuidade ao trabalho realizado durante o encontro analítico. É Gabrielle quem espontaneamente solicita, de modo direto ou indireto, seus encontros com Winnicott, fazendo-o a partir de suas necessidades e temporalidade pessoal. Tal modelo permitiria a uma análise ser intensiva sem necessariamente ser extensiva, no sentido de sua frequência e duração.

2) O brincar assume uma função para além de seu papel comunicativo e elaborativo. Ao considerarmos a situação analítica localizada na sobreposição das áreas intermediárias de analista e analisando, torna-se imprescindível que o brincar seja em primeiro lugar uma experiência prazerosa para ambos. Mais do que expressão de conteúdo latente, é o brincar enquanto atividade - o que inclui o divertimento da dupla - aquilo que possibilita o manejo clínico das ansiedades presentes. "Como princípio, o analista sempre permite que se introduza a diversão antes de usar o conteúdo do jogo para interpretações", preconiza Winnicott (1977/1987, p. 153).

3) Por fim, a proposição nada ortodoxa de uma psicanálise compartilhada com os pais, tema também do capítulo de Laurel Silber, "Child analysis is shared: holding the child's relational context in mind". Não se trata de terapia familiar, mas sim da inclusão dos pais como auxiliares terapêuticos, providenciando um ambiente propício entre sessões e uma sustentação ao trabalho realizado pela dupla analítica. É a comunicação que se estabelece entre os pais e o analista - sem incidir em quebra na confidencialidade da análise - aquilo que permite o espaçamento dos encontros no modelo "segundo a demanda". Embora encontre ecos no trabalho de Freud com o pequeno Hans, o formato transgride a premissa do espaço analítico como privativo e exclusivo da criança, resguardado de qualquer presença parental.

Durante os encontros, enquanto Winnicott tomava notas, Gabrielle imaginava que ele estaria escrevendo sua autobiografia. Não deixa de ser significativo que essa tenha sido escolhida como sua primeira obra publicada postumamente. De fato, o conjunto de artigos reunidos em Finding the Piggle reforça a ideia desse relato como uma espécie de testamento científico, condensando décadas de um pensamento fecundo. Reforça também a sensação de que as grandes obras, psicanalíticas ou não, têm a capacidade de nos ler na mesma medida em que as lemos. Elas arrumam nossas gavetas internas e, com frequência, fazem inusitadas descobertas espalhadas pelo piso emocional dos nossos quartos. Qualquer estímulo para que isso continue a acontecer, como o livro ora editado por Masur, é certamente muito bem-vindo.

 

Referências

Klein, M. (1994). Narrativa da análise de uma criança. In M. Klein, As obras completas de Melanie Klein (C. Bacchi, Trad., Vol. 4). Imago. (Trabalho original publicado em 1961)        [ Links ]

Luepnitz, D. (2019). O nome de Piggle: novo exame do caso clássico de Winnicott à luz de algumas conversas com a Gabrielle adulta. Livro Anual de Psicanálise, 33(2),281-306. (Trabalho original publicado em 2017)        [ Links ]

McDougall, J. & Lebovici, S. (2001). Diálogo com Sammy (P. H. B. Rondon, Trad.). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). The Piggle: relato do tratamento psicanalítico de uma menina (E. P. Vieira & R. L. Martins, Trads.). Imago. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2001). Prefácio. In J. McDougall & S. Lebovici, Diálogo com Sammy (P. H. B. Rondon, Trad., pp. XI-XIII). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969)        [ Links ]

 

 

1 Procurando Piggle: reconsiderando o mais famoso caso infantil de D. W. Winnicott.
2 Piggle (porquinha, numa tradução literal), apelido de Gabrielle em sua família, é uma expressão inglesa afetuosa para crianças, sem conotação pejorativa.
3 Uma tradução para o português encontra-se disponível no Livro Anual de Psicanálise (Luepnitz, 2019).
4 Como escreveu Winnicott no prefácio ao livro de McDougall, "alguns pacientes têm a sorte de que seus analistas não compreendam demais no início. ... eles gostam de ser compreendidos, mas podem sentir-se enganados se forem compreendidos tão rapidamente que o analista pareça mágico" (1969/2001, p. XII).

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