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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.7 n.14 São Paulo dez. 2002

 

ARTIGOS

 

Da comunicação do afetoao afeto da comunicação: as cartas de fãs de telenovelas

 

From the expression of affection to the affection of expression: soap opera fans’ letters

 

 

Gisela Gorrese1; Bernardo Jablonski*2

*Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Analisamos o conteúdo de 70 cartas endereçadas ao ator protagonista de recente telenovela. Nossa pesquisa procurou estudar as estratégias utilizadas pelos fãs e suas tentativas de singularização entre os milhares de fãs que enviam esse tipo de correspondência. Nossa investigação – que utilizou um referencial teórico per­tencente a diferentes campos, tais como a sociologia, a teoria da comunicação de massa e a filosofia, além da psicologia social – mostrou a presença forte da mani­festação do amor romântico, cujas características de idealização – a certeza de que este é o ideal supremo a ser conquistado e vivido por cada sujeito – emergiu “entre as linhas” do discurso da fã. A carta funciona como uma possibilidade de elabora­ção afetiva e de exercício de subjetividade.

Palavraschave: Cartas, Meios de comunicação de massa, Novelas, Amor ro­mântico, Subjetividade.


ABSTRACT

We analyzed the contents of 70 letters mailed to a leading actor of a recent soap opera. Our research intended to study the strategies used by those fans in their attempt of being unique among others millions fans that send this kind of correspondence. Our investigation – that used as a theorethical frame the contributions from different areas as sociology, mass communication studies, philosophy, beyond social psychology – showed a strong manifestation of the ideal of romantic love and its components of idealization – the conviction that this is the supreme ideal that has to be conquered and lived by each one – emerging in the speech of those fans. The letter works as a possibility to elaborate their feelings and an exercise of their self.

Keywords: Letters, Mass media, Soap operas, Romantic love, Subjectivity.


 

 

Introdução

Esses milhões de cartas que circulam todos os dias, em
todos os países, como um gigantesco zunzun silencioso,
como formidável e imperceptível murmúrio, todos os
pequeninos riachos de papel e tinta, que formam como
que um mar, que arrastam nossos segredos, nossas confi­
dências, nossas lágrimas, e tudo o que é preciso para isso,
organização, trabalho, humanidade inteligente e fiel (o que
mais simples do que uma carta?).
ComteSponville (1997)

O volume de correspondências que mensalmente chega às emis­soras de televisão endereçadas aos artistas é indicativo de um fenôme­no complexo, que envolve os meios de comunicação de massa com seus produtos, e as aspirações de indivíduos receptores dessas imagens e mensagens a eles dirigidas indistintamente.

Embora o fenômeno de envio de cartas aos ídolos da cultura de massa possa ser estudado e abordado sob diversas óticas, privilegia­mos aqui, como resultado de uma pesquisa de cunho exploratório, investigar o que dizem essas cartas, o que demandam essas fãs e o que endereçam aos seus ídolos. Com estas perguntas procuramos encontrar nas correspondências certas “pistas”, ou certos sinais, da singularidade na recepção das imagens produzidas pelos meios de comunicação para um público heterogêneo.

A telenovela, especificamente, é um programa diário que mantém o telespectador ligado seis vezes por semana, durante um período em torno de cinco meses. Ela faz parte da rotina e do cotidiano dos indiví­duos e a mobilização que provoca ultrapassa o acompanhar passivo e distanciado de uma história fictícia: ela invade os espaços públicos dos jornais e revistas com o desenrolar das tramas, provoca uma rede de comentários entre as pessoas que vibram, torcem, aprovando ou não seus personagens, e desperta sentimentos de indignação e ternura, levando inclusive a agressões ou manifestações de apreço aos atores.

Em estudo realizado com crianças e jovens a respeito da recepção das informações captadas pela televisão (Fischer, 1984), muitos entre­vistados responderam que pensam a novela como reflexo da vida, com os atores reagindo e sentindo como eles, os telespectadores. A teleno­vela seria vista como um reflexo da realidade (da vida como ela é), mas também traria a faceta “da vida como gostaríamos que fosse”. Essas histórias povoam o imaginário com suas possibilidades de realização na vida, em um jogo entre identificações com as situações apresenta­das e as projeções dos desejos e dos sonhos nessas narrativas.

O encontro amoroso é o eixo das telenovelas e isso é retribuído pelo fã: o amor aparece nas cartas, nas entrelinhas do discurso desses ilustres desconhecidos, em um processo de elaboração dos sentimentos des­pertados em cada um. Observamos, igualmente, que a expressão indi­vidualizada do sentimento amoroso é um reflexo de uma forma apre­endida (e devidamente compartilhada) culturalmente, e nomeada como amor romântico.

São cartas de amor, de um tipo de amor marcado pela idealização, mas que desejam um destino diferente. Entendemos esse gesto da escri­ta de uma carta como uma tentativa dos telespectadores de se fazerem ouvir, de dialogar, quer com personagens, quer com os atores desse mundo distante do seu cotidiano e de sua realidade, mas contraditoriamente próximo, ao alcance dos olhos e – por que não – do coração.

A relação entre o fã e seu ídolo caracterizase por ser uma rela­ção assimétrica, e esta é parte substancial de sua complexidade. O fã conhece seu ídolo, pode vêlo através da TV; acompanha sua vida pe­las notícias veiculadas por revistas, jornais e programas de televisão; mas é invisível e anônimo para esses personagens/atores que desfilam na tela. O fã pode aproximarse via tela, em sua própria casa, em uma relação de quase intimidade com essas imagens, mas dificilmente a pro­ximidade física/real pode se dar de fato.

No presente trabalho analisamos o conteúdo de setenta cartas ende­reçadas ao ator de uma telenovela. Entendemos a carta como uma manifestação espontânea desses sujeitos que escolheram “dialogar” com o ator e endereçar seus segredos, seus desejos e intimidades. Já que a televisão se tornou uma instituição socializadora tão importante quanto a família e a escola, debruçamonos sobre esse diálogo possível traçado nas correspondências, recorrendo a autores de campos diver­sos da psicologia, bem como da sociologia, da antropologia e da co­municação social, com suas contribuições distintas, porém igualmente importantes para a compreensão global do fenômeno em questão.

Faremos inicialmente uma pequena menção ao uso da carta ao longo da história e as diversas funções que esta desempenha, tais como as de nutrir laços sociais (Ferreira, 1999), como fonte de registro de fatos históricos e do cotidiano (Amaral, 2000; Leite, 1988), ou como aperfeiçoamento de estilo e de autotransformação do remetente (Foucault, 1969; Figueiredo, 1969), entre outros. Em seguida, após breve exposição de algumas questões que dizem respeito às mudanças implementadas pela televisão e pela telenovela nos valores e nos costu­mes dos sujeitos (Sodré, 1987; Hamburguer, 1998), apresentamos a análise e a discussão do conteúdo das setenta cartas utilizadas.

 

A carta

A partir do momento que eu percebi a diferença que
uma prosaica carta, uma pequena carta pode fazer na
virada para o século XXI, na era da computação e do
trânsito virtual das imagens, fiquei me perguntando o
que aconteceria se uma carta não cumprisse o seu papel
de carta. Neste momento surgiu a história de Central do
Brasil. (...) Uma tentativa de aproximação com o que
Antônio Nóbrega chama de país real.
Walter Salles (1998)

O “país real” referido pelo ator e autor nordestino Antônio Nóbrega, citado por Salles, é aquele Brasil empobrecido, com poucos recursos tecnológicos e com altos índices de analfabetismo, localizado acima do eixo sul/sudeste, e com uma parcela considerável de brasileiros que ainda utilizam a carta como principal meio de comunicação. O país real parece ser composto pelas regiões norte e nordeste do Brasil, com todas as mazelas sócioeconômicas retratadas no filme Central do Brasil, contrastantes com as regiões mais desenvolvidas e com fácil acesso aos meios de comunicação e as altas tecnologias.

Podemos atestar a importância da carta pelo volume delas que a cada mês chegam aos atores de televisão, provenientes de regiões desconheci­das dos habitantes dos centros urbanos. Interessante observar que a maio­ria dos fãs que mensalmente envia esse tipo de correspondência às emisso­ras de televisão ou produtoras, pouco acredita de fato que suas cartas cumpram seu destino último: ser lida pelo destinatário. Raramente o ator toma conhecimento dessas correspondências ou de seus conteúdos, mas o número avassalador de cartas enviadas insiste em negar tal evidência.

Considerado como um dos mais antigos meios de comunicação, a carta ainda hoje persiste, resistindo aos avanços tecnológicos da era comunicacional. Segundo dados da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, o número de cartas enviadas – apesar da concorrência tecnológica – vem crescendo, tendo em 2001 passado para sete bilhões, um aumento em torno dos 133%, em comparação ao ano anterior (Jor­nal do Brasil, 23/06/2002). Para Mindlin (2000) e ComteSponville (1997), as conversas por telefone são efêmeras, perdemse facilmente ao térmi­no do diálogo e são rápidas como os E-mails, nos quais há o predomínio das correspondências curtas. Para Galvão (1998), o fax propiciou fôlego ao manuscrito, uma vez que podemos enviar um texto digitado ou de próprio punho, com desenhos por exemplo, mas com a rapidez exigida pelos tempos modernos que o correio tradicional ainda não acompanha; já o computador ampliou sua dimensão para a simultaneidade das trocas que a escrita linear não permitiu.

ComteSponville (1997) chama a atenção para determinadas carac­terísticas da correspondência, que ultrapassam sua função puramente informativa e, por isso, os avanços tecnológicos, a importância do tempo e da velocidade da informação não conseguiram superála. Assim, o ato da escrita demanda um tempo de solidão e de introspecção que a fala não permite: exige pensar no outro em sua ausência, e nesse momento atingimos o outro ficando mais próximos de nós. Além disso, ao rece­ber uma carta podemos escolher o momento em que desejamos “ouvir” esse remetente, diferente do “tempo real” do telefone, da Internet ou do encontro faceaface. Deste modo, a carta permite a eternização do presente, dos ditos e trocas pessoais, muitas vezes de assuntos banais, e que podem ser relidos alguns anos depois.

Quanto à sua importância como nutridora dos laços intersubjetivos, Ferreira (1999) aponta, em seu estudo sobre o migrante, que o ato de escrever cartas tornase um recurso importante de elaboração da expe­riência daqueles que deixam seu país ou sua cidade de origem rumo ao desconhecido. O ato de escrever permite o estreitamento e manuten­ção dos vínculos com seu passado, assim como o restabelecimento do fluxo temporal e cultural interrompidos quando de sua partida. Desta forma, as cartas funcionam como a possibilidade de acolhida e de troca por meio desse compartilhar de experiências, na luta para sobrepujar as angústias e a solidão nas grandes cidades.

Para Foucault (1969), a escrita pessoal da missiva faz coincidir o olhar do outro com a volta do olhar sobre si mesmo. O autor, citando Sêneca em seu estudo sobre a escrita de si na Antigüidade, afirma que o exercício de escrever sobre si mesmo, endereçado a um outro opera uma transformação no remetente – por meio do gesto de escrever – e no destinatário, quando da leitura e releitura do texto:

De cada vez que me chega uma carta tua, eisme de imediato junto. Se ficamos felizes por possuir retratos dos nossos amigos ausentes... quanto mais nos não alegra uma carta, pois traz vivas marcas do ausente (...). O traço de uma mão amiga, impressa nas páginas, proporciona o que há de mais doce na presença: reconhecer (Sêneca apud Foucault, 1969, p. 150).

Um dos mais antigos registros da história da epistolografia oci­dental pode ser encontrado entre os filósofos da Antigüidade, dentre os quais Platão, Epicuro e Sócrates. Sob forma de cartas, muitos textos eram destinados ao ensino; outras, na forma de cartas públicas, com temas de interesse coletivo, eram endereçadas a indivíduos com posi­ções sociais significativas; e mesmo as cartas de caráter reservado não perderam sua relevância histórica, política ou filosófica (Miranda, 2000). As cartas prestavamse ainda a descrições de viagens, considerações sobre o regime político em vigor, ou como exercício intelectual, tornan­dose material de reflexão.

Nas correspondências de um modo geral encontramos os relatos do cotidiano com suas banalidades, misturados a fatos históricos de interesse coletivo. As cerca de 1155 cartas da Marquesa de Sèvigne, na França do século XVII, por sua riqueza, serviram como fonte para manuais escola­res, pelas descrições históricas dos fatos da época (como o reinado de Luis XIV), com a peculiaridade de misturar os fatos de caráter público com os episódios da vida privada, tais como intrigas, casamentos e prisões. O retrato exposto de fatos de seu tempo é acrescido da individualidade da autora nessas correspondências, nas quais expõe seu amor apaixonado pela filha, sua saudade, suas reflexões a respeito da guerra, e que sugerem um diálogo travado com o outro, mesmo na sua ausência (Amaral, 2000).

O fenômeno de envio de cartas aos autores de produções culturais já existia desde meados do século XIX, referente aos folhetins impressos, e mais tarde ao cinema e ao rádio. O romance folhetim impresso do século XIX exercia a magia do arrebatamento das massas e, de forma seme­lhante, identificamos o mesmo fenômeno nas telenovelas atuais. Em 1842, o maior ficcionista popular da França, Eugène Sue, publicou Os mistérios de Paris no Journal des Dèbats, que fez estrondoso sucesso, vendendo três mil exemplares. O autor moldava os destinos dos personagens conforme as solicitações dos seus leitores. Ele recebia cartas das leitoras a propósito de, por exemplo, qual destino dar a uma criança abandonada e sua desnaturada mãe, e muitas vezes as leitoras revelavam o desejo de verem suas histórias pessoais narradas nos próximos folhetins (Bosi, 1972). Esse tipo de literatura, dita popular, era considerado “econômi­co” por seu baixo custo e vendas significativas, apesar de seu estilo “repetitivo”, vocabulário limitado, com interpolações freqüentes e frases feitas, semelhantes às fotonovelas brasileiras (Brechon apud Bosi, 1972).

As cartas de leitores na contemporaneidade são consideradas como os termômetros dos meios de comunicação para a avaliação de sua programação – podese medir o impacto de um tema, o desempenho de um ator, pelas respostas diretas aos estímulos lançados por uma revista, um jornal, televisão ou rádio. Na era da “nova televisão” – a televisão interativa/participativa – segundo Sarlo (1997b), a proximi­dade com o telespectador é a tônica das novas programações. As emis­soras têm apostado em um modelo mais participativo, com a presença do público, com a intenção de criar uma ilusão de proximidade. Pode­mos citar o programa Você decide, da Rede Globo, como um dos pionei­ros nesse tipo de interlocução, que deixava a cargo do público decidir o final da história. E. Bosi (1972), B. Sarlo (1997a) e A. Habert (1974) chamam atenção para o destaque dos temas sentimentais e amorosos nas publicações impressas – revistas femininas e de fotonovelas –, no cinema hollywoodiano e nas telenovelas. O ideal do amor romântico – o sonho da completude no outro, o arrebatamento, a razão de viver e promessa de felicidade – é o grande filão dos temas dessas produções e não poderia estar ausente nas correspondências dos fãs. Citese Morin (1962), quando ressalta que a cultura de massa é obcecada pelo tema amoroso, considerado o centro da felicidade moderna.

 

A televisão e a telenovela

A televisão potencializou a idéia de proximidade do espectador e seu acesso às produções artísticas e culturais, intensificando o processo de espetacularização das experiências cotidianas e transformando a pró­pria vida em uma forma de entretenimento: a cobertura da morte da Princesa Diana, por exemplo, tragédias, relações amorosas, a vida priva­da de atores, tudo é transformado em entretenimento (Gabler, 1999).

Miranda (1999) afirma que o caráter ritualístico de admiração de uma obra única e original foi substituído pelo culto às celebridades, pelos artistas “endeusados” e consumidos pelas mídias eletrônicas e im­pressas. A fabricação de ídolos pela TV para serem cultuados no espaço doméstico, assim como as vedetes no noticiário cotidiano – pessoas que se tornam personalidades momentâneas pelo sensacionalismo, pelo inu­sitado ou pelo trágico – está fundamentada estruturalmente na indústria cultural, especificamente na necessidade de renovação sistemática de bens culturais, de notícias ou de ídolos para manter um mesmo nível de consumo seguro (Adorno, 1982; Morin, 1962).

As novelas são narrativas que contam histórias no estilo dos roman­ces de folhetim do século XIX, com sua temática sentimental e com a presença do ideal do amor romântico como primeiro plano e, secundaria­mente, a introdução de temas políticos e sociais relevantes de cada época. Como nos folhetins, o motor das tramas é o mito do amor romântico, que tem sua origem na Idade Média, com o amor cortês, que “instaurou uma forma desejante que é a préhistória de um controle do imaginário exercido hoje com toda a força pelas telenovelas” (Costa, 2000, p. 15).

Para Morin (1962), após um século de colonização política e geo­gráfica, as potências industrializadas passaram a colonizar “a grande reserva que é a alma humana”. Debruçaramse sobre as necessidades, desejos e sentimentos humanos, padronizandoos sob os grandes temas das intrigas amorosas, do mito do amor romântico, do happy end, presentes nos filmes de Hollywood e nas telenovelas. Para esse autor, a cultura de massa promove e difunde uma série de mitos, estimulando a identificação do telespectador, tais como o “sem amor nada sou”, o amor vencedor de todos os obstáculos é autojustificado, a valoriza­ção extrema da juventude e da beleza, entre outros.

Interessante observar que em nosso mundo globalizado às vezes o país mais fraco e colonizado culturalmente é capaz de “responder à altu­ra”, invertendo os papéis e exportando produtos culturais impregnados dos mesmos valores e visões de mundo vigentes, como é o caso das tele­novelas brasileiras, vendidas pela TV Globo para um incontável número de países. A telenovela nacional é capaz de mobilizar milhões de pessoas durante o horário nobre, reunindoas em frente ao aparelho eletrônico, para acompanhar diariamente o desenrolar da narrativa. As tramas, como toda e qualquer história bem contada, emocionam e provocam a expres­são de sentimentos profundos como amor, alegria, raiva ou terror.

O mito do amor romântico encontrase presente nessas narrati­vas, que tratam basicamente do encontro e desencontro amoroso, cujos ideais são a entrega total ao objeto amoroso, o encontro com o “prín­cipe encantado” e a eternidade desse vínculo, presentes nos folhetins impressos já no século passado.

Para Sarlo (1997a), o sucesso dos folhetins reside na presença e manutenção de uma tensão até o desfecho final. A autora nomeia como “teoria dos obstáculos institucionais e morais” os empecilhos que separam os amantes durante a narrativa: são as diferenças de classes sociais ou religiosas, por exemplo, ou o que for considerado obstáculo para a união de um casal de amantes em um determinado contexto histórico. Mas a manutenção dessa tensão deverá ser acom­panhada pela crença de que a felicidade é possível – o happy end – e que, ao final, haverá a solução para os conflitos, nem sempre de acordo com as expectativas.

De início, as tramas privilegiavam os temas épicos, retratando ter­ras e culturas distantes como a Arábia Saudita, pois se acreditava que o Brasil era “pouco romântico” para o desenvolvimento dessas narrati­vas. Com o passar dos anos, as telenovelas começaram a retratar o eixo sudeste do país, difundindo o universo glamouroso das elites e suas inovações técnicas e culturais, veiculando uma idéia do que é ser mo­derno. A novela permitiu que certos assuntos fossem trazidos à tona para sua discussão, dando visibilidade a comportamentos, modos e estilos de ser, permitindo que o público se posicione, quer de acordo ou não, a partir do que é mostrado.

A partir dos anos 80 e 90, as telenovelas abordaram as temáticas sociais, políticas e a liberação dos costumes, ganhando cada vez mais uma função social, educativa e informativa, fundamental para as mu­danças necessárias ao país, e para a conscientização a respeito de temas como cidadania, a situação política e econômica de regiões distantes, meio ambiente e saúde, e temas polêmicos como AIDS, prostituição, drogas (O clone) e funções públicas dos governantes.

Face a essa extraordinária mobilização de milhares de sujeitos frente à televisão, em uma rede infindável de comentários, partimos para a aná­lise das cartas de fãs das telenovelas. O que escrevem e o que demandam ao ator protagonista de uma telenovela? As fãs escrevem tecendo co­mentários a respeito do personagem, da história narrada? Qual a motiva­ção para endereçar uma carta ao ator de uma telenovela?

 

Análise do conteúdo das cartas

Método

A telenovela – alvo da presente análise das correspondências dos fãs – estreou em junho de 2000 e recebe aqui o título fictício de Cristal. Os personagens e atores também têm seus nomes modificados para preservarmos minimamente suas identidades. Os protagonistas dessa telenovela são Antônio, Maria e Bela, que formam um triângulo amoroso no principal núcleo familiar da trama.

O que poderíamos destacar de importante no enredo da novela diz respeito ao fato de o personagem principal ser um jovem médico que se apaixona pela empresária Maria, 20 anos mais velha que ele, após terem se conhecido acidentalmente nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Os dois iniciam um romance enfrentando os preconceitos da diferença de idade, mas o grande obstáculo surge com a entrada em cena de Bela, filha de Maria, que também se apaixona pelo rapaz. Maria decide então abrir mão do relacionamento em prol da filha, já que considerava ambos mais compatíveis. Essa situação de rivalidade filha/ mãe mobilizou muitas fãs, que escreveram discordando do rompimento do romance entre Maria e Antônio, e que antipatizaram com a perso­nagem Bela, sentida como aquela que “roubou o namorado da mãe”. As cartas com as quais trabalhamos correspondem justamente a esse momento da novela: do rompimento do romance entre Maria e Antônio.

Cristal é o primeiro trabalho do ator que faz o personagem de Antônio. A novela trouxe uma coincidência interessante entre vida e obra, já que ele, tal qual na novela, vive um relacionamento com uma mulher madura. O relacionamento amoroso entre eles foi levado a público pelos meios de comunicação e discutido nas principais revistas nacionais durante os anos de 2000 e 2001. O fato da vida do ator estar se repetindo na ficção pode ter ajudado a reforçar o imaginário dos fãs no tocante à possibilidade de concretização das fantasias de romance que a telenovela costuma acenar.

Procedimentos

Nossa pesquisa utilizou como método a análise do conteúdo das cartas de fãs (70, o que corresponde a 10% do total de cartas recebidas durante os meses de outubro e novembro do ano de 2000), endereçadas ao ator protagonista da novela das 20h, exibida por uma das principais emissoras de televisão durante o ano de 2000. As cartas foram entre­gues fechadas pelo ator.

Optamos pelo método de análise do conteúdo (Bardin, 1977), pois entendemos que o texto produzido pelas fãs permite inferir, a partir dos indicadores dessas mensagens, conhecimentos relativos às condições de produção desses sujeitos, psicologicamente marcados e atravessados pelo fenômeno da comunicação de massa. Nosso interesse é desvelar os pe­didos subjacentes que são endereçados ao ator pelas fãs, por meio do envio de cartas, e entender as estratégias que utilizam para se destacarem da massa de outros fãs e expressarem seus afetos e sentimentos amorosos.

 

Resultados e Discussão

Após uma ampla leitura do material, para entrar em contato com o universo pesquisado de forma livre, levantamos alguns dados quantitati­vos e qualitativos que nos pareceram relevantes para a construção das categorias, como idade, sexo, procedência e, fundamentalmente, os te­mas que se repetem nas cartas. A quase totalidade de missivistas é com­posta do sexo feminino – 67 cartas de mulheres e 3 de homens. Dos cerca de 50% dos remetentes que revelam sua idade, quase 95% têm entre 10 e 20 anos. Um público de maioria absoluta de adolescentes e jovens adultos.

Encontramos 89% das cartas provenientes do próprio país e cercade 11% do exterior, de países como Portugal, EUA e outros da África. As regiões sudeste (56%) e nordeste (27%) do Brasil abarcam cerca de 83% do total de correspondências, sendo 70% das cartas originárias de cidades do interior do país. Pouco mais da metade do material analisado é enviado ao ator com algum tipo de enfeite; em 15 % delas encontra­mos o que denominamos de “provas de amor” (por exemplo, incontáveis repetições da frase “eu te amo”) e em 10 % fotos pessoais dos fãs.

As cartas dessas fãs revelaram, em primeira instância, um suporte para a figura do ator/galã protagonista. Como reafirma Diogo (1997), “a cultura oferece possibilidades de figuras idealizadas: médicos, profes­sores, religiosos etc. Nesta série poderseia incluir os artistas (p. 72). O poder da mídia evidencia e fabrica esses galãs como aqueles que encarnam e realizam os ideais de sucesso, fama, beleza e juventude, e que passam a ser escolhidos como objeto de amor idealizado. A idealização é um mecanismo psíquico descrito por S. Freud (1921), por meio do qual o objeto amoroso é enaltecido em suas qualidades e elevado à per­feição. O estado de se apaixonar por alguém que mal se conhece, como no caso da fã, e supervalorizar seus atributos, é fruto desse mecanismo.

As cartas revelaram também o jogo entre os sujeitos anônimos da sociedade de massas que se crêem singulares, e como tais endereçam suas “especificidades”, sonhos e afetos aos mitos da indústria cultural – portavozes dos ideais contemporâneos de amor e de sucesso. O ato de escrever ao ídolo – alguém que não o conhece – funciona como um exercício de subjetividade de dizer quem ele é, o que espera, o que deseja ou sente, fazendo circular afetos pertinentes ao âmbito privado, e que ali permaneceriam, no mundo público. Desta forma, ao escrever a um ou­tro, escreve para si mesmo, experimentando nessa relação um leque de sentimentos até então desconhecidos e não permitidos (Gorrese, 2002).

O tema geral das cartas de fãs é a afetividade, sob a forma de amor endereçado ao ídolo, com a intenção unânime de se aproximar dele, seja pela amizade, para compartilhar experiências, seja por um romance explícito. Assim, poderíamos englobar a carta de fã entre as cartas de amor, e pensar em como esse sujeito produz e reproduz os ideais de amor da cultura nessa relação com o ídolo. Por outro viés, identificamos as estratégias que o fã utiliza para sair de sua condição anônima, quebrar a assimetria fã/ídolo, fazendo circular afetos, idéias, valores e opiniões entre sujeitos isolados e distanciados. Assim, a carta seria: a) uma tentativa, por parte da fã, de se aproximar do ídolo, esta­belecer um tipo de relação com ele, e sair de sua condição anônima e obter reciprocidade e reconhecimento; b) o discurso amoroso atestan­do a presença do amor romântico como valor e ideal a ser alcançado pelo sujeito. A idealização e a frustração decorrente da impossibilidade de sua realização pode abrir caminho para outras formas de relaciona­mentos possíveis; e c) escrever ajudaria no processo de elaboração dos sentimentos e das experiências como fonte de enriquecimento.

Construímos duas categorias que permitiram identificar as estra­tégias utilizadas pelos fãs: Anonimato e Singularidade e Discurso Amoroso. A unidade de registro que utilizamos foi a frase, considerando a im­portância do contexto e do sentido exato entre elas para demarcarmos cada categoria e, para cada uma, selecionamos alguns itens, que deno­minamos como estratégias.

Por priorizarmos a análise qualitativa dos dados, não nos restringi­mos apenas à repetição de determinadas frases e palavras como indicativos de importância, optando também por considerar a pertinência de deter­minado tema no contexto.

1. Anonimato e Singularidade. Nesta categoria encontramos as estratégias utilizadas pelos fãs para fugir da condição de anonimato e criar a proximidade com o ídolo: “sou mais um, mas sou diferente, por isto quero que você me conheça, quero me corresponder”. Aqui encontramos um pedido para ser especial, representado nas tentativas de quebra da assimetria entre ídolo/fã, que significa romper com a invisibilidade do fã e do conhecimento unilateral. O interessante é o paradoxo dessa situação, já que as estratégias de singularização utilizadas pelos fãs para se destacarem são geralmente idênticas, presentes nas inúmeras cartas de forma repetida, como mostrou Coelho (1999).

As estratégias utilizadas são: a) a apresentação de si, uma espécie de darse a conhecer por meio de características listadas ou envio de foto – quem sou eu e quem é você; “tenho algo a oferecer” (um “saber” na forma de conselho ou uma poesia, por exemplo); “eu conheço, eu sei de você” (acompanho sua vida ou seu trabalho); b) o pedido de resposta ou de uma foto autografada, para saber que a carta foi lida. Nesta categoria estão englobadas as palavras e expressões que esclareçam o significado de ser igual e ser diferente: “sou mais um, mas sou diferente”; as descrições físicas – “sou morena, idade” –, e subjetivas “gosto de música, viajar...”; “quero conhecer você pessoalmente”; conselhos e ditados populares. Entre as descrições de características subjetivas, destacamos, à guisa de exemplo, esta carta:

“(...) penso que o que há de melhor numa pessoa, é ser ela mesma a atuar por si mesma e não copiar os outros. Mas confesso que é bastante difícil de escrever a uma pessoa que a gente mal conhece e que ainda por cima é uma pessoa famosa. (...) meu nome é X, envio uma foto minha para você ter uma noção de como sou. Alguma vez já esteve naSuíça? É bonito demais! (...) quando tiver umas férias vá até lá, nem que seja por dois dias, você não se arrependerá” (sexo fem., 14 anos).

A maioria das cartas inicia com a frase “sei que sou apenas uma entre os milhares de fãs, mas...”, mostrando que seus autores estão conscientes de sua condição de fã anônimo, mas que desejam escapar desse lugar. Revelam a esperança de serem escolhidos dentre milhares de outros por alguma diferenciação. Alguns fãs ainda tentam reconhecer seme­lhanças entre eles e o ídolo, procurando inverter a unilateralidade da relação de admiração e fascinação e tirar, mesmo que momentaneamente, esse privilégio do ator: “Como também sou fã de muitos outros artistas (...). Mais (sic) entre todos você é especial” (sexo fem., 16 anos).

O ator inicialmente é colocado em um conjunto entre tantos outros admirados, para depois ganhar um lugar especial. O fã repete a situa­ção que ele próprio vivencia de ser um entre outros, o de ser igual mas desejando na verdade um lugar diferente. Desta forma, parece que, ao escrever, o fã tenta provocar o ator com sua própria condição, procurando despertar a mesma idéia de homogeneização na qual se encontra. Podemos lembrar de situações de disputas familiares entre irmãos, primos e netos que desejam ser especiais para avós ou tios, e nas quais a cada um é dito de seu lugar especial, evitando assim ferir os sentimentos de ser considerado igual a tantos outros.

Outra maneira de quebrar a assimétrica relação entre fã e ídolo é colocarse na posição de poder ofertar um saber na forma de conse­lho, de ditado ou de recomendações, proporcionando ilusoriamente um deslocamento da posição original de recepção e de solicitante para outra, diametralmente oposta: “Com muita garra e talento você merece con­quistar seu espaço”. Ou: “Nunca esqueça desta frase: querer é poder e conseguir. Nunca despeje (sic) uma amizade pois um dia precisará dela”.

O pedido de uma foto, por sua vez, atesta o recebimento de sua carta e assegura a resposta por parte do ator, transformando a resposta em uma presença dele por meio da carta e da foto: “Bem como não posso ter você e nem vêlo, me contentaria em apenas ter uma foto sua...” (sexo feminino, 15 anos). Outra característica do pedido de resposta por meio de uma foto autografada é que esta é vista sob a ótica da originalidade, embora as fotos envia­das pelo ator – os santinhos – com assinatura, sejam reproduções serializadas. Mas a foto enviada funciona igualmente como a certeza de ter sido pinçada, de ter conseguido ultrapassar a condição de anonimato.

2. O Discurso Amoroso. Nesta categoria englobamos as manifes­tações de apreço e admiração ao ídolo e de todo leque de expressões afetivas em suas infinitas gradações, intensidades e gêneros, que podem ir dos elogios profissionais ou pessoais até as declarações de amor explí­citas e eloqüentes. Entendemos que as estratégias de sedução assumem formas veladas, encobertas e também abertas para o oferecimento de relacionamentos. Como subitens e estratégias de sedução encontramos: elogios; provas de amor; pedidos de amizade; declarações de amor e sexualidade.

Uma outra questão interessante diz respeito à forma das cartas. Podemos destacar que cerca de 50% delas portam enfeites – em geral desenhos ou marcas de batom – além de inúmeros recortes de fotogra­fias das principais revistas nacionais. Os ornamentos não se restringem ao interior da correspondência e podem ser vistos também nos envelo­pes. Há o predomínio dos temas infantis: figuras como o do personagem Mickey, Pato Donald, carimbos com ursinhos, formas de coração sorrindo ou chorando e papéis de cartas decorados com cachorrinhos e ursinhos são os mais comuns.

Esses envelopes parecem fazer um apelo, que poderíamos interpre­tar como uma tentativa de serem fisgados do restante das correspon­dências. Como exemplo, uma fã optou por fabricar seu envelope, mas escolheu uma página de revista com felicitações pelo dia da criança, com os dizeres: “tudo fica melhor quando as crianças crescem felizes, não acham?”. Outras utilizam adesivos com dizeres como: “urgente”, “importante”.

Ainda com relação à análise do conteúdo, percebemos na totalida­de das cartas a predominância da manifestação de um certo tipo de amor, fruto do contexto sóciocultural contemporâneo: o amor romântico. Este reina no imaginário contemporâneo como forma desejante dos sujei­tos e que encontra um reforço nos sonhos românticos presentes nas telenovelas (Costa, 2000).

O amor romântico tem uma história (Jablonski, 1998; Costa, 1989) originária da Idade Média, baseado no amor cortês, que motivou uma coleção de histórias românticas com seus heróis e heroínas lutando e sofrendo por amor, e que ainda persistem na cultura ocidental. Todo o discurso sobre o amor, as regras do jogo de sedução, os papéis de gêne­ro são ensinados e culturalmente apreendidos. Grosso modo, o amor romântico uniu a sexualidade ao sentimento, a paixão erótica ao casa­mento, à necessidade de exclusividade do parceiro, que deveria satis­fazer completamente o sujeito. A sociedade moderna exaltou o amor romântico como um ideal a ser atingido pelos sujeitos, e absolutamen­te necessário para o alcance da felicidade e realização pessoal. Para Costa (1989), o amor romântico ensinou a buscar a felicidade na com­panhia de um outro e acreditar que esse ideal era imortal, passando a ser um suporte identitário importante para fazer frente às inseguran­ças subjetivas. Esta idéia está apoiada no individualismo como valor e ideologia, que atribuiu grande importância ao indivíduo autônomo, independente e em pleno exercício de sua liberdade e autotransfor­mação. A via amorosa é uma entre outras promessas de felicidade que a cultura oferece, mas é, ao mesmo tempo, a mais enfatizada, com as relações afetivas tornandose o locus privilegiado de investimento dos sujeitos para expressar sua singularidade frente a um contexto de isola­mento e fragmentação (Diogo, 1997).

Nas cartas, o elogio do amor começa pelos louvores ao profissio­nal e também à “pessoa” do ator, em uma tentativa de desvendar o sujeito psicológico atrás da persona:

“...Hoje em dia é muito raro encontrar em uma só pessoa inteligência, beleza, jovialidade e maturidade, quero que saibas que és uma jóia rara e assim toda jóia, você deve preservar seu verdadeiro caráter e sua identidade, não, não permitindo que a fama e o sucesso te transforme em apenas um rosto bonito e de cabeça vazia” (sexo fem., 18 anos).

A referência à beleza do ator e seus atributos físicos é constante­mente mencionada nessas cartas, mas em geral a autora inicia com elogios mais subjetivos atribuídos ao ator, para depois entrar na apa­rência. A questão do rostinho bonito é também um clichê muito repetido, embora tornese um jogo de negação e afirmação para muitas fãs. Parece necessário que a fã reconheça antes o “profissional talentoso” para, em seguida, autorizarse a mencionar sua admiração pela aparên­cia, pelo rostinho bonito: o negado como atributo principal aparece logo em seguida com força total.

Outro item interessante é a prova de amor, que se apresenta pelo do envio de trabalhos, presentes ou rolos de papel com frases repetidas, que teriam o objetivo de impressionar o ídolo com o esforço empreen­dido para tal tarefa. A idéia de que o amor exige sacrifícios e provações é sabidamente muito difundida na literatura. Os romances, a mitologia e os contos de fadas estão repletos de exemplos de provações pelas quais os amantes devem passar para merecer a felicidade. Os romances, os folhetins, as telenovelas e o cinema contam as histórias de heróis e heroínas em luta para fazer triunfar o verdadeiro amor. Em Romeu e Julieta e em Abelardo e Heloísa, os impedimentos partem das famílias, das posições sociais entre os amantes, que podem levar à morte ou à reclusão como prova de amor. Em nossa amostra, por exemplo, uma fã enviou esse tipo de correspondência, um rolo de papel de cinco metros apenas com a frase “eu te amo”.

A amizade é o terceiro item que gostaríamos de abordar, pois muitas fãs escrevem aparentemente demandando amizade, embora acreditemos que esse pedido mascare sua intenção real. A amizade é uma relação menos ameaçadora, e quem iria negála a priori?

“Será que você poderia guardar uma vaga no seu coração para mim? Eu acho que posso ser sua amiga mesmo você não me conhecendo” (sexo fem., 14 anos – grifo nosso).

O oferecimento de amizade parece confundirse com um velado pedido de amor, já que o imaginário também comporta diversos mo­delos de romances iniciados desta forma.

A presença diária, através da tela da televisão, cria uma proximidade com o ídolo, somada a toda uma rede de informações e notícias que sustentam a curiosidade do público por sua vida privada. Unindo os fragmentos de notícias e informações acessíveis por meio dos meios de comunicação às projeções individualizadas dos fãs, a personalidade do mito ou galã vai se moldando. Essa rede de comentários assim formada favorece o sentimento comum de partilhar dramas e histórias reais – mesmo sendo fictícias – com outras pessoas, o que, segundo Hamburguer (1998), cria um sentido de integração e pertencimento à comunidade mais ampla. O indivíduo aproveita as histórias e situações da telenovela para falar de seus engajamentos pessoais, valores, dúvidas ou proble­mas individuais, dos comportamentos desejáveis e dos reprováveis.

O relacionamento amoroso do ator nessa novela foi aprovado pela maioria dos fãs, o que nos faz pensar na fantasia destes a respeito do encontro amoroso e de uma projeção da capacidade de concretização do ideal de amor romântico. Por outro lado, é também uma forma de anteci­par a frustração da impossibilidade de viver essa situação com seu ídolo.

A televisão cria essa confusão entre vida pública e privada, entre a imagem (a aparência, o falso e enganoso) e a pessoa do ator (o profundo, o verdadeiro, “quem ele é”). Nesse jogo entre ficção e realidade as fãs lutam para identificar os aspectos “verdadeiros” do ator, estabelecendo assim um diferencial, uma espécie de sintonia com a “pessoa” dele, mos­trando que desejam aproximarse desta pessoa e não da imagem. Este é um jogo infinito de projeções, próprio da idealização do objeto amoroso.

O discurso amoroso aparece também de forma clara e explícita sob a forma de declarações de amor do tipo: “sou louca por você”, “estou hipnotizada”, “te amo, te adoro, você é tudo para mim”, até sua forma explici­tamente erotizada, como a seguir:

“Apezar (sic) de ter 18 anos eu ainda não tive a minha primeira relação sexual, mas adoraria que fosse com você. Eu ainda não tive porque ainda não chegou a hora e os namorados que tive não eram tão interessantes como você. E depois eram adolescentes como eu, e preciso ter uma experiência assim com alguém de 27 anos como você. Certo? Seria inesquecível para mim” (sexo fem., 18 anos).

As fãs que fazem esse tipo de convite direto para uma relação sexual são raras, e algumas fazem referências aos beijos e às cenas picantes das novelas, manifestando o desejo de estarem no papel da atriz que contracena com o galã. A maioria das cartas com declara­ções de amor usa o discurso amoroso para expressar seu afeto, clara­mente marcado pela idealização e fascínio, apesar de se encontrarem em inúmeras cartas apelos de fãs para a singularidade de seus senti­mentos, vistos como únicos, verdadeiros e arrebatados:

“Quero ser feliz ao seu lado, perco a noção do tempo por causa de você. Tudo o que eu quero neste mundo é você. (...) Eu queria tanto te conhecer, se alguém pudesse realizar esse encontro...” (sexo masc., 26 anos).

“Você deve me achar uma criança, mas saiba que o sentimento de uma criança é o mais puro e verdadeiro. (...) vou fazer o possível e o impossível para ir te ver e levar um ursinho marrom, lindo pra você” (sexo fem., 15 anos).

Os clichês de arrebatamento circulam no imaginário social e são reforçados nas telenovelas, cujas histórias giram em torno de amores impossíveis, suas dores, e na sua importância existencial. O que os adolescentes aprendem por meio de maciça doutrinação é que um dia encontrarão um príncipe encantado (ou princesa encantadora), com todas as qualidades possíveis e imagináveis, que lhes trará felicidade ímpar para o resto de suas vidas (Jablonski, 1998). Se, segundo Morin (1962), a cultura de massa fornece os modelos para a conduta e para vida privada, e ensina que estar apaixonado é algo desejável e positivo, como recusar ou ousar escapar de apelo tão cativante?

Uma pequena fã de 10 anos apresenta um desdobramento inte­ressante e estimulante para esta experiência tão comum na adolescência – o estar apaixonado:

Sou louca por você, queria te conhecer pelo menos por um dia. Você é a primeira pessoa em que me apaixonei, mas também sou louca por um garoto da minha sala. Seu nome é *, mas ele não sabe que gosto dele, mas desconfia” (sexo feminino, 10 anos).

Mais adiante ela também solicita que ele realize o sonho de muitas garotas por intermédio de um programa chamado Dia de Princesa – no qual o ator passa um dia inteiro com uma fã escolhida por sorteio –, e também que dance a valsa de 15 anos em sua festa. Esta fã parece estar ensaiando os primeiros passos para a entrada no universo amoroso com seus pares. A paixão pelo ator e o desejo de conhecêlo são simultâneos ao sentimento nutrido por um garoto de sua idade, próximo a ela e, nesse sentido, “real”; mas ambos trazem a decepção e a frustração do nãocorrespondido, da nãoresposta a sua demanda de amor.

O discurso amoroso utilizado pelas fãs é a expressão individual dos sentimentos e, segundo Coelho (1999), uma maneira do fã com­preender seus afetos e de se tornar singular diante de seu ídolo. Além disso, a cultura valoriza e considera legítimo, e socialmente aceitável, o estado de apaixonamento. Assim, a fã crê destacarse da massa de ou­tros fãs por meio do amor – culturalmente visto como uma experiên­cia individualizada e única.

 

Considerações Finais

A análise das cartas que os fãs endereçam aos seus ídolos mostra que a maioria absoluta delas demanda por amor e por reconhecimento – desejam o reconhecimento sob a forma de um amor correspondido ou da atribuição de um lugar diferenciado junto ao ídolo, escapando assim da indiferenciação das massas.

Para tanto, ele(a) utiliza inúmeras estratégias de singularização em um esforço para se destacar dos demais. A tensão existente entre massificação e singularização perpassa o conteúdo das cartas e destaca a via amorosa como sua expressão máxima. O ideal do amor romântico aparece “entre as linhas” traçadas pela maioria absoluta dos fãs, revelando tratarse de um suporte identitário fundamental no contexto moderno. Há uma re­petição maciça de palavras, de elogios e de expectativas em relação ao ator e ao sentimento amoroso, reflexo do imaginário cultural e que apare­ce reforçado no enredo das telenovelas. O fã, ao enviar sua carta, requisita um amor de forma individualizada, além de alimentar a esperança de que o amor criado por ele venha a ser correspondido pelo ator, repetindo a própria “pedagogia amorosa”, ensinada exaustivamente pelas telenovelas.

Os meios de comunicação lançam periodicamente um novo galã em sua programação e este funciona como uma motivação a mais para a audiência. Antes mesmo do início de uma novela, outras mídias – como as revistas e os jornais – começam a promover uma campanha apresentando a nova estrela. A massificação desse rosto superexposto pela televisão revertese em uma massificação de respostas por parte do público, com milhares de jovens sonhando com o novo galã recém­fabricado pelos meios de comunicação.

Podemos propor uma analogia entre as cartas de fãs e as cartas dos migrantes do filme Central do Brasil, de Walter Salles, pois nas duas situa­ções as cartas não cumpriram seu destino: o de serem lidas. O protagonis­ta do filme, Josué, descobre que seu esforço de endereçar notícias e de restabelecer contato com o pai e irmãos é inútil, já que a “escrevinhadora” de cartas paga pelo serviço não as despacha pelo correio. A nãoresposta por parte do destinatário não é opcional, já que este nem toma conheci­mento de sua existência. Nas cartas de fãs encontramos outra situação, já que elas permanecem fechadas e invisíveis ao destinatário por escolha própria. Além disso, o volume de cartas que o ator recebe a cada mês torna inviável sua resposta individualizada. Mas o que gostaríamos de des­tacar é a função que esse endereçamento guarda: de promover uma tenta­tiva de saída da condição passiva de massificação e de elaboração subje­tiva dos sentimentos, de opiniões, de valores de cada remetente. O ato de escrever para alguém proporciona, como disseram ComteSponville (1997) e Foucault (1969), um voltarse para si mesmo em um processo de autodescoberta e autotransformação, o que torna esta experiência uma possibilidade de enriquecimento para o sujeito. Escrever para o ídolo pode ser um recurso para tecer novos significados ao que é vivenciado e que permaneceria inacessível pelo silêncio. Semelhante ao diário pes­soal, no qual o autor pode especular, duvidar e perguntar a si mesmo enquanto escreve, a carta diferenciase por abarcar e submeterse ao olhar do outro. O ator é colocado no lugar de interlocutor imaginário dessas fãs que, diante do gesto da escrita e diante da nãoresposta do ator, podem vir a desinvestir esse objeto idealizado e investir em outros objetos e outras formas de relacionamentos amorosos. Dentro dessa perspectiva, a carta de fã tornase um recurso importante na constituição da subjetividade.

 

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Endereço para correspondência
Gisela Gorrese
Rua Figueiredo de Magalhães, 934/802 – 22031010 – Copacabana – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: gisela.gorrese@uol.com.br

Bernardo Jablonski
Rua das Acácias, 101 / 404 – 22451060 – Gávea – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: bjablonski@uol.com.br

Recebido em 27/09/02
Aprovado em 10/02/03

 

 

1Mestre em Psicologia, PUC RJ; Especialista em Saúde Mental e Saúde Mental Infantil – Instituto Phillippe Pinel, RJ.
2Doutor em Psicologia Social – FGV RJ; Professor da PUCRJ; Bolsista de Produtividade do CNPq.