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Interações

 ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.20 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Notas sobre o discurso perverso1

 

Notes about the perverse discourse

 

 

Ana Maria RudgeI

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Entre as diversas faces da perversão, escolhe-se privilegiar a perversão como discurso e não como categoria diagnóstica que qualificaria o analisando. Uma vez que a perversão para a psicanálise é algo a ser delimitado a partir da própria situação psicanalítica e do que se produz dentro de um campo transferencial, o objetivo do artigo é buscar circunscrever algumas características das formações discursivas que se poderiam qualificar como perversas.

Palavras-chave: Perversão, Discurso, Angústia, Transferência, Cisão.


ABSTRACT

Among the different facets of perversion, we decided to choose perversion as a discourse as the topic of this paper. Given that in psychoanalysis perversion is delimitated within the psycoanalytic situation in relation to the transferential field, the goal of this article is to circumscribe some of the discursive formations that could be characterized as perverse.

Keywords: Perversion, Discourse, Anxiety, Transference, Splitting.


 

 

O uso da categoria perversão na psicanálise é frequentemente impreciso, permanecendo vagas suas fronteiras. Esta afirmativa leva em conta duas questões: 1) o giro subversivo que Freud fez operar sobre a noção de perversão como patologia do comportamento sexual, como desvio em relação a uma norma, que determinou o fundamento do campo da sexualidade infantil como sexualidade polimorfa perversa; 2) o abandono sistemático desta posição por parte de alguns analistas, que desconhecem os caminhos que levaram a psicanálise a transformar a perversão em algo tão paradoxal como uma “perversão normal”.

Freud contribuiu com a psiquiatria na delimitação de alguns quadros psicopatológicos, como a neurose obsessiva. Entretanto, a expressão “psicopatologia psicanalítica” não deixa de requerer sempre as aspas, já que não se pode abstrair da estrutura da situação psicanalítica e do campo transferencial nela instaurado como fundamento de sua prática e da construção de ferramentas teóricas que permitam operar nessa prática.

O princípio classificatório que presidiu a constituição do campo psiquiátrico, como lembra Pereira (2000), atende à prescrição aristotélica de que as disciplinas científicas devem se fundar na descrição precisa dos fenômenos, no agrupamento sistematizado das entidades formalmente delimitadas segundo suas semelhanças e diferenças constantes. Ao definir a psiquiatria como uma especialidade médica independente, Pinel inaugurou uma forma de abordagem sistemática de descrição e classificação dos fenômenos, traços e comportamentos, metodologia bastante diferenciada daquela do campo psicanalítico.

A concepção psiquiátrica de perversão continua a contaminar as elaborações psicanalíticas sobre a perversão em vários âmbitos. Encontramos ressonâncias do âmbito médico-legal em que se inseria a perversão no final do século XIX, designando os assassinos, necrófilos, sádicos e delinqüentes, atravessando as elaborações sobre a perversão, em que o substantivo “perversidade” freqüentemente se insere, junto com a idéia de uma vocação para a destruição e para a exploração do outro.

Além disso, a herança da abordagem psiquiátrica reflete-se na tentação de se definir a perversão como algo da ordem do comportamento sexual insólito ou bizarro que permanece na psicanálise, sem que se atente para o fato de que essa definição é solidária da metodologia descritiva e classificatória, em um certo sentido behaviorista, ao invés de dinâmica.

A abordagem que delimita as estruturas clínicas neurótica, perversa e psicótica, como articuladas por operadores bem distintos e definidos como seriam, respectivamente, recalque, recusa e rejeição (ou foraclusão), às vezes leva os analistas a deslizarem insensivelmente para uma espécie de diagnóstico do analisando, que não contempla a especificidade epistemológica da psicanálise em oposição à da psiquiatria. Não há continuidade entre as concepções da psiquiatria e a psicanalítica, se o campo da psicanálise se especifica por se erigir em torno de uma experiência que é a da clínica sob transferência, e cuja teoria é a teoria desta prática.

A influência do discurso psiquiátrico na psicanálise, que contamina a noção de perversão como uma estrutura clínica, já foi criticada por vários autores – Barande (1980), Calligaris (1993), Frota (2005), Peixoto (1999). A tendência a tomar a perversão como estrutura, escolhendo como seu operador a recusa e como paradigma o fetichismo, pensado de acordo com o texto freudiano de 1927, encontrou seus expoentes em outros autores, como Serge André (1995) ou Joel Dor (1991).

Se é verdade que Freud, como já se disse anteriormente, rompeu com a concepção de perversão como desvio da norma, fica difícil encontrarmos apoio para tais idéias. A idéia de uma sexualidade infantil polimorfa e perversa só foi possível justamente porque o pensamento freudiano se fez em torno de algo que sobrepuja a noção de instinto como algo da ordem da natureza e introduz a indeterminação da pulsão no destino do sujeito.

Nos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud (1905) considera que as fantasias perversas são recalcadas nas neuroses, enquanto nos perversos são conscientes e/ou agidas. Daí a conhecida fórmula freudiana da neurose como negativo da perversão. Nesse momento, a perversão poderia ser compreendida como representando a permanência da sexualidade em moldes infantis, uma mera expressão direta das pulsões, que em razão da ausência ou deficiência das defesas ou do recalque não seria transformada em sintoma neurótico. Ora, como uma mera expressão das pulsões, a perversão só poderia se apresentar, para o tratamento analítico, como impasse.

O fato é que logo depois de 1905, como assinalou Gillespie (1956), começa-se a perceber que as perversões deveriam ser tomadas como formações defensivas, e não como aspectos da sexualidade infantil que driblaram as defesas, algo que já se pode encontrar insinuado no texto sobre Leonardo da Vinci, mas que se torna totalmente explícito em Bate-se numa criança (1919), no qual as várias etapas ou manobras envolvidas na fantasia são pertinentes ao complexo edípico.

No texto tomado como paradigmático para a delimitação de uma estrutura perversa, o fetichismo é apresentado como uma manobra para evadir a angústia de castração (Freud, 1927), que determina uma vicissitude da escolha de objeto. O operador dessa escolha, uma das formas de lidar com a angústia de castração, é batizado de Verleugnung – recusa – operação que induz uma cisão do eu. Colocando esse operador em oposição ao recalque e à rejeição, operadores das estruturas neurótica e psicótica, os autores franceses citados desfizeram as ambigüidades e continuidades que freqüentavam a obra freudiana, situando de vez a perversão como quadro psicopatológico.

É importante assinalar que Freud chega a caracterizar a recusa e a cisão do eu como mecanismos que ocorrem sempre na infância, e que podem ter lugar tanto na neurose quanto na psicose (Freud, 1940). Em sua posição de recusar-se, coerentemente, a estabelecer fronteiras rígidas entre normal e patológico, Freud fornece uma contrapartida para essa defesa contra a angústia na psicopatologia da vida cotidiana. Na contramão de uma leitura que define em cores muito contrastantes uma estrutura perversa, em contraposição às estruturas neurótica e psicótica, Freud está lidando com a idéia de uma manobra2 de que se pode lançar mão na tentativa de evitar a angústia3, e que coexiste com o recalque.

Lacan também evita essa separação tão nítida quando estabelece, em seu seminário 4, uma articulação entre a fobia e o fetichismo, em uma tradição que remonta a um trabalho de Hanns Sachs (1923). Este mostrou a presença tanto de uma fobia neurótica à exposição como de uma atuação exibicionista em um mesmo caso clínico, como dois recursos que se alternaram em diferentes momentos de uma análise em torno do mesmo impulso, o exibicionista. Toma, assim, as fronteiras entre os sintomas neurótico e perverso como bastante fluidas.

O que significa tomar a perversão como uma estrutura de discurso e não como uma estrutura clínica? Quando Lacan, no seminário XVII, introduz seus discursos, formas de laço social, não menciona um discurso perverso. Isso permite a interpretação de que só a histeria, entre os “tipos clínicos”, faz laço social (Quinet, 2002, p. 196), já que o autor afirma que “só o discurso histérico é certo e transmissível” (Lacan, 1973, p. 15). Sem dúvida a capacidade de transmissão do discurso histérico se provou por sua eficácia no próprio advento da psicanálise. Entretanto, fica a dúvida entre algumas alternativas: se Lacan sugere que a histeria é o único discurso que pôde transmitir a psicanálise; se é o único discurso que se pode transmitir, já que ele elaborou seu matema; ou, ainda, se ele considerou que outros discursos poderiam ser eventualmente formalizáveis, no porvir do saber analítico.

A prática psicanalítica permite-nos um ouvido para o discurso perverso, desde que não se defina a perversão como impasse absoluto na clínica psicanalítica. Em vez de tomá-lo como desafio à lei social que regula a sexualidade, critério behaviorista, a prática analítica levou com que alguns analistas enfatizassem o ataque à moldura analítica, como uma dificuldade no tratamento, o que seria uma atualização de uma atitude de transgressão às leis de forma geral. O próprio termo moldura está caindo em desuso, porque evoca um momento em que a psicanálise convivia com parâmetros um tanto rígidos de como se deveria organizar o tratamento em termos de número de sessões por semana, horários etc. Com maior propriedade, isso poderia ser caracterizado como desafio à lei que o desejo do outro representa, já que essa é a lei que confronta a castração, e tomará formas variáveis e inéditas no campo transferencial.

A cisão do eu, noção metapsicológica, dá conta de duas atitudes opostas que não entram em contradição. Não surgem conflitos e uma formação de compromisso, como o que articula o sintoma neurótico. As duas atitudes independentes e opostas apresentam a peculiaridade de não exigir um trabalho simbólico, visando a resolução dessa contradição. Na prática clínica pode-se operacionalizar a noção de cisão do eu na abordagem de certos fenômenos que ilustram a idéia de um discurso perverso. A cisão fundamenta uma labilidade argumentativa, em que o sujeito pode dizer e desdizer, talvez sem mentir, qualquer coisa que lhe poupe angústia na situação em que estiver envolvido, sem compromisso com o que enunciou.

O discurso perverso, se economiza angústia, não economiza trabalho. A recusa à castração gera um resultado instável, em que só precariamente a angústia pode ser evitada. Lacan (1962-1963) observou o importante papel da teatralização, da vocação para a cena, presente nos mecanismos perversos. A recusa à castração tem como instrumento um arranjo ou encenação onde outras pessoas fazem parte integrante. Elas devem cumprir, nesse teatro, a parte que o sujeito espera delas, ou sua angústia sobrevirá. Para obter esse efeito o sujeito tem um enorme trabalho, e sua atividade em prol da recusa – surgindo nas formas de sedução, controle, imposição etc – é freqüentemente interpretada como efeito de um compromisso com o desejo. Como um diretor de atores, ele exige uma encenação perfeita em que tudo saia como previsto.

O discurso perverso é comprometido com a busca incessante de colocar os coadjuvantes nos papéis requeridos, e portanto, é afeito ao modo imperativo e à sedução como maneiras alternativas de submeter os outros. Será exatamente na falha da colaboração dos que são chamados para integrantes da encenação dirigida pelo sujeito que o esforço defensivo da recusa poderá desmoronar e a angústia de castração se fará presente. Essa angústia, geralmente de ordem depressiva, muitas vezes é o que encaminha para a psicanálise. Mas a cisão do eu permite ao sujeito a coexistência das contradições sem registrá-las. Assim, se após um episódio de angústia a encenação protetora puder ser restaurada, a vitória sobre a castração irá se restabelecer, cicatrizando-se de imediato a ferida narcísica, o que ameaça a continuidade do processo psicanalítico.

A atuação que caracteriza o discurso perverso busca montar um jogo determinado pelas próprias regras, o que lhe confere um acento tirânico. Lacan traz uma contribuição valiosa para delinear um discurso perverso quando define a posição em que o sujeito busca se situar, como sendo a de a, objeto causa do desejo, ao mesmo tempo em que visa colocar o outro na posição de sujeito dividido, evocando sua angústia (Lacan, 1962-1963; 1963). Este movimento, a unilateralização da castração, é o que lhe permite evitar a angústia. Mas não se trata, para Lacan, de uma relação dual. Existe sempre um Outro, o espectador da cena, a quem o sujeito fantasia estar, como instrumento, completando ou satisfazendo com sua atuação.

Na abordagem lacaniana da perversão, a posição de objeto que causa o desejo é buscada, na medida em que é o outro quem deve sustentar o lugar de sujeito dividido, sujeito à angústia. Gerar a angústia no outro, levá-lo a fracassar, são meios de que o sujeito, assentado em um terreno basicamente imaginário, lança mão para desvencilhar-se da própria angústia. A manobra perversa evita o desejar, já que o desejo remete para a angústia de castração, da qual todo o esforço, nesse discurso, é para se evadir.

O ativismo perverso pode ser entendido exatamente como essa pressão para conseguir com que o outro se “encarregue” dos pensamentos e sentimentos que despertam a angústia. Até que ponto o analista aceita este encargo, e como maneja o que nele foi projetado é o caminho para intervir no discurso perverso em seu aspecto de defesa contra a angústia. A direção produtiva do tratamento será a busca de gradativamente superar, no tratamento, a rigidez da cisão do eu, estabelecendo-se uma certa permeabilidade entre o que Freud tomou como as duas atitudes que não se influenciam, e promovendo-se uma saída por meio da simbolização. É importante não esquecer que apesar dos recursos imaginários que proliferam no discurso perverso, ele não indica a presença de uma psicose: a marca da castração, ainda que recusada, está nele sempre presente.

A castração do Outro, que é para Freud o móvel da angústia, e sobre a qual atua a recusa, assume novas versões em Lacan. Com o francês, a angústia não se desarticula do desejo do Outro, da questão sobre o que é que o Outro deseja, e sobre o que lhe falta. O desejo do Outro coloca um enigma, que Lacan explora amplamente no seminário da angústia. O que ele quer de mim?

No discurso perverso, o desejo do outro não deve ser manifestar, nem levantar questões. Os famosos contratos perversos, para os quais tantos autores, depois do famoso artigo de Deleuze (1983) voltaram sua atenção, são apaziguadores quanto ao imprevisto que o desejo poderia introduzir na cena. Da mesma forma, a pretensão a conhecer como o outro goza (Hyldgaard, 2004), assim como a busca de domínio que visa neutralizar a aparição de qualquer desejo que não o próprio, buscando colocar os interlocutores na posição de bonecos previsíveis, são também recursos para evadir a lei do desejo do outro.

Esbocei apenas alguns aspectos do discurso perverso e breves observações de como ele se apresenta na experiência analítica; nada de muito novo, afinal. No congresso sobre “As múltiplas faces da perversão” que ocorreu em Belo Horizonte em 2004, e em que apresentei uma primeira versão do artigo, entretanto, surpreendeu-me que alguns analistas reiterassem a enumeração de todas as categorias de sexualidades exóticas classificadas por Krafft-Ebbing, sem questionar a incompatibilidade entre a psicanálise e esse critério descritivocomportamental de abordagem.

Por outro lado, em algumas apresentações de casos clínicos, a analisandos ditos “perversos” eram pespegados qualificativos que evocavam o Malleus Maleficarum, sem que o analista levantasse questões sobre a contratransferência na qual parecia assumir, desavisadamente, o lugar de juiz ou sacerdote. Talvez, pensei eu, essas reflexões não sejam assim tão redundantes. Como escreveu Freud (1966) de forma um tanto desaforada ao Pastor Pfister, com Futuro de uma ilusão visou defender a psicanálise dos sacerdotes. Há posições que são incompatíveis com a função do analista, e o termo “perversão” pode servir de guarda-chuva para algumas delas.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ana Maria Rudge
Departamento de Psicologia da PUC-RJ
Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea
22543-900 – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: arudge@psi.puc-rio.br

recebido em 01/09/04
versão revisada recebida em 10/03/05
aprovado em 06/04/05

 

 

Notas

I Professora do Departamento de Psicologia (PUC-RJ); Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; Pesquisadora do CNPq; Membro da Associação Universitária de Psicopatologia Fundamental.
1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no XIII Fórum Internacional de Psicanálise, promovido pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais em 25 de agosto de 2004, Belo Horizonte
2 Harry Stack Sullivan, que concebe o analista como observador participante, usa o termo dinamismo no mesmo sentido, como algo que envolve analisando e analista.
3 Posição que vem tomando também J.A. Miller, ao valorizar os casos “inclassificáveis” e um “último Lacan”.