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Interações

 ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.20 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Considerações gerais e orientações práticas acerca do emprego de estudos de caso na pesquisa científica em psicologia

 

General considerations and practical orientations regarding the use of case studies in scientific research in psychology

 

 

Rodrigo Sanches Peres1; Manoel Antônio dos Santos2

Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os estudos de caso vêm sendo cada vez mais empregados como estratégia metodológica na pesquisa em Psicologia e, em um sentido mais amplo, nas ciências humanas e sociais em geral. Paradoxalmente, contudo, a maioria dos manuais de metodologia científica especializados dedica maior atenção a outras estratégias de pesquisa. Assim sendo, elaborou-se o presente artigo com dois objetivos básicos, a saber: a) apresentar considerações gerais acerca da utilização de estudos de caso em trabalhos científicos; e b) delinear algumas orientações práticas para o planejamento e a execução de estudos de caso em Psicologia.

Palavras-chave: Estudo de caso, Metodologia científica, Pesquisa científica, Psicologia, Abordagens qualitativas.


ABSTRACT

Case studies have more and more been used as methodological strategy in research on psychology, and in the humanities and social sciences in general. However, most scientific methodology handbooks devote more attention to other research strategies. This paper a) presents general considerations regarding the use of case studies in scientific research, and b) delineates some practical orientations for planning and execution of case studies in psychology.

Keywords: Case studies, Scientific methodology, Scientific research, Psychology, Qualitative approach.


 

 

1. Estudos de caso: histórico, atualidade e características

Nos últimos anos, os estudos de caso têm sido cada vez mais empregados em pesquisas científicas das mais variadas disciplinas, de modo que, como assinala Stake (2000), atualmente podem ser apontados como uma das estratégias metodológicas mais freqüentes. Cumpre assinalar, no entanto, que a utilização de estudos de caso em trabalhos voltados à produção do conhecimento não é um fenômeno recente, mas sim uma antiga tradição metodológica, uma vez que as reflexões empreendidas pelos pensadores do período clássico usualmente seguiam os mesmos parâmetros básicos que norteiam as pesquisas científicas desenvolvidas nos dias de hoje, mediante a aplicação da estratégia metodológica em questão (Boulanger-Balleyguier, 1971).

A Medicina pode ser considerada, de acordo com Becker (1993), a primeira disciplina a utilizar estudos de caso em larga escala na atividade científica. Dessa forma, inicialmente as pesquisas que adotavam essa estratégia metodológica apresentavam um enfoque prioritariamente diagnóstico e visavam basicamente à análise de um sujeito específico ou de determinados grupos clínicos. Recentemente, contudo, as ciências humanas e sociais passaram a empregar estudos de caso com maior regularidade. Como resultado desse processo, as pesquisas conduzidas a partir da aplicação dessa estratégia possuem atualmente os mais diversificados enfoques e analisam uma ampla gama de objetos.

As pesquisas médicas pioneiras na utilização de estudos de caso usualmente visavam à identificação e à compreensão dos fatores associados à gênese e à evolução de doenças. Em função disso, privilegiavam, na maioria das vezes, a abordagem qualitativa. Como ressalta Triviños (1992), possivelmente por isso alguns autores consideram que a estratégia metodológica em pauta presta-se essencialmente a análises qualitativas. Não obstante, é preciso salientar que os estudos de caso também podem ser empregados em pesquisas quantitativas, uma vez que em determinadas áreas do conhecimento a quantificação de dados é imprescindível para a análise em profundidade do objeto (Lüdke e André, 1986; Bruyne, Herman e Schoutheete, 1991; Stake, 2000).

Mas o que caracteriza um estudo de caso? Antes de abordar diretamente essa questão, faz-se necessário discutir o que caracteriza um caso. Segundo Stake (2000), somente pode ser considerado um caso passível de análise científica um sistema delimitado, integrado, unitário e multidimensional, ou seja, um todo composto por distintas facetas. Conseqüentemente, presume-se que nem todos os objetos podem ser estudados cientificamente mediante o emprego da estratégia metodológica em questão. Em contrapartida, evidencia-se também que um caso pode ser um grupo de sujeitos, uma comunidade, um hospital, uma empresa ou uma sala de aula, por exemplo, e não apenas um único indivíduo, ao contrário do que se poderia pensar a princípio.

Tendo em vista o que precede é possível definir o que caracteriza um estudo de caso. Obviamente tal conceitualização pode variar de acordo com o enfoque metodológico e o referencial teórico utilizado. Todavia, a maioria dos autores especializados defende que a análise em profundidade do objeto e a preocupação com seu aspecto unitário são as características principais de um estudo de caso (Goode e Hatt, 1979; André, 1984; Lüdke e André, 1986; Triviños, 1992; Yin, 1994; Chizotti, 2000; Stake, 2000). Essa definição sugere que a estratégia metodológica em pauta destaca-se como um valioso recurso não apenas para a execução de pesquisas científicas, mas também para o desenvolvimento de práticas – sejam elas clínicas, organizacionais, educacionais ou de qualquer outra ordem – em Psicologia.

Porém, muitos psicólogos encontram dificuldades para conduzir adequadamente um estudo de caso. Possivelmente isso ocorra porque a maioria dos manuais de metodologia científica não dedica a devida atenção ao assunto e, assim, não fornece os elementos teóricos necessários para tanto. Levando-se em consideração tal problemática, o presente artigo foi elaborado com dois objetivos básicos, a saber: a) apresentar considerações gerais acerca da utilização de estudos de caso como estratégia metodológica de pesquisas científicas; e b) delinear algumas orientações práticas para o planejamento e a execução de estudos de caso em Psicologia.

 

2. Considerações gerais acerca da utilização de estudos de caso

Optou-se por dividir esta seção em quatro tópicos principais. No primeiro serão discutidas sucintamente as finalidades norteadoras da aplicação de estudos de caso em pesquisas científicas. O delineamento dos principais pressupostos epistemológicos aos quais a referida estratégia metodológica encontra-se associada será o tema do segundo tópico. Já no terceiro será apresentada uma breve categorização dos diversos tipos de estudos de caso descritos pela literatura especializada. Por fim, serão abordadas, no quarto tópico, suas vantagens e desvantagens mais importantes.

2.1. Finalidades norteadoras da execução de estudos de caso

O que deve nortear a execução de um estudo de caso em uma pesquisa científica: a preocupação com a elaboração de “leis universais” ou o interesse na compreensão de um objeto “específico”? Tal questão não admite respostas unívocas, uma vez que os teóricos especializados se prestam mais a divergências do que a convergências no que diz respeito à discussão deste assunto. Diversos autores – dentre os quais destacam-se Campbell e Stanley (1970), Kerlinger (1980) e Almeida e Freire (1997), por exemplo – defendem que os trabalhos que visam apenas à análise aprofundada de um caso em particular possuem um valor científico limitado, pois não possibilitam generalizações capazes de subsidiar a compreensão de objetos de outras pesquisas.

Em contrapartida, certos teóricos discordam dessa visão positivista e acreditam que investigações voltadas exclusivamente à compreensão de um caso “específico” são tão válidas do ponto de vista científico quanto pesquisas que visam essencialmente à obtenção de “leis universais”. Nesse sentido, Selltiz, Jahoda, Deutsch e Cook (1965) afirmam que o estudo de um objeto em particular é perfeitamente justificável, uma vez que, além de tornar possível a produção de um novo conhecimento, pode fornecer – ainda que indiretamente – elementos profícuos para pesquisas posteriores, contribuindo para a compreensão de outros objetos.

Alguns autores também defendem a investigação de casos “específicos”, mas adotam uma postura ainda mais flexível. De acordo com eles, o objeto a ser analisado mediante o emprego de um estudo de caso deve ser tomado como uma instância única, e considerado em sua particularidade (André, 1984; Lüdke e André, 1986; Yin, 1994; André, 2003). Seguindo esse raciocínio, é possível propor que o pesquisador que adota a estratégia metodológica em questão deve executar um retrato do idiossincrático e não se preocupar com o desenvolvimento de generalizações, de modo que a preocupação com a elaboração de “leis universais” torna-se improcedente.

Stake e Trumbull (1982), por sua vez, propõem uma resolução a esse impasse teórico, apoiando-se no conceito de “generalização naturalística”. Em sua opinião, qualquer estudo de caso, independentemente de privilegiar a compreensão de um objeto “específico” ou a formulação de “leis universais”, oferece ao leitor a possibilidade de estabelecer generalizações naturalísticas, ou seja, associar dados oriundos de suas experiências prévias às análises elaboradas pelo pesquisador acerca do caso por ele investigado. A despeito de subjetivo, esse processo permite ao leitor identificar quais das interpretações formuladas pelo pesquisador são efetivamente pertinentes a seu objeto.

Por fim, faz-se necessário esclarecer que outros teóricos acreditam, assim como Valles (1997), que os estudos de caso podem se prestar, na realidade, tanto à compreensão de um objeto “específico” quanto à formulação de generalizações. Todavia, o pesquisador deve, como ressaltam Bogdan e Biklen (1997), definir com clareza o objetivo principal da investigação e adotar os procedimentos metodológicos apropriados para desenvolvê-la. Assim sendo, se a finalidade básica for estabelecer “leis universais”, o pesquisador deverá analisar casos considerados “típicos”, ou seja, empiricamente representativos do objeto em questão. Por outro lado, se o pesquisador estiver mais interessado em compreender a fundo um objeto “específico”, deverá se dedicar a um caso “atípico”, isto é, que merece ser analisado por ser completamente distinto de outros já estudados.

2.2. Pressupostos epistemológicos inerentes à execução de estudos de caso

A literatura especializada aponta que devem ser levados em consideração três pressupostos epistemológicos básicos para que se possa executar adequadamente um estudo de caso. Em primeiro lugar, faz-se necessário partir do princípio de que o conhecimento afigura-se como algo em constante (re)construção. Desse modo, o pesquisador interessado em empregar essa estratégia metodológica deverá utilizar seu referencial teórico não como um conjunto de proposições inquestionáveis, mas sim como o ponto de partida para o desenvolvimento de novas idéias no decorrer de seu trabalho. Nesse sentido, deverá manter-se constantemente atento a dimensões adicionais de seu objeto que poderão se mostrar relevantes após o início da pesquisa (Lüdke e André, 1986).

Em segundo lugar, é preciso se ter em mente que o caso é um todo complexo, e não a mera soma de suas partes constituintes. Assim sendo, deve-se analisar uma ampla gama de aspectos do objeto para que seja possível compreender seu caráter unitário e evitar interpretações reducionistas. O pesquisador, portanto, eventualmente ver-se-á frente à necessidade de integrar dados de diferentes ordens – sejam eles sociais, biológicos, psicológicos, culturais, econômicos ou de qualquer outro tipo –, com o intuito de não perder de vista a multidimensionalidade de seu caso. Em função disso, não raro deverá utilizar – como será discutido de modo mais detalhado adiante – diferentes fontes de informação e técnicas de coleta de dados complementares.

Em terceiro lugar, para que se possa executar adequadamente um estudo de caso é imprescindível admitir que a realidade pode ser compreendida a partir de diversas óticas. Portanto, a apresentação no relato da pesquisa de diferentes – e até mesmo conflitantes – possibilidades de se analisar o objeto destaca-se como um procedimento de extrema pertinência (André, 2003). Conseqüentemente, o pesquisador que executa um estudo de caso não deve – como geralmente muitos fazem visando a garantir o status de cientificidade de seus trabalhos – tentar convencer o leitor de que suas análises são as mais adequadas, mas fornecer os elementos necessários para que ele possa chegar às suas próprias conclusões. Em contrapartida, o pesquisador também não deve ser negligente no que se refere à apresentação de suas opiniões, de maneira que deve explicitar suas posições com clareza (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1991).

2.3. Categorização dos estudos de caso

Optou-se por agrupar os diferentes tipos de estudos de caso em função de três critérios distintos, a saber: a finalidade da investigação, o objeto de pesquisa e a técnica de coleta de dados. Vale destacar, contudo, que categorizações distintas podem ser elaboradas a partir da utilização de outros parâmetros. Além disso, é preciso salientar que serão focalizados apenas os tipos mais comuns de estudos de caso, tendo em vista que o presente trabalho não possui como objetivo principal se aprofundar nesta questão.

2.3.1. Tipos de estudo de caso em função da finalidade da investigação

Bruyne, Herman e Schoutheete (1991) sugerem que, tomando-se como parâmetro de classificação a finalidade da investigação, os estudos de caso podem ser agrupados em três categorias básicas. Os “estudos de caso exploratórios” têm como meta a descoberta de novas áreas de pesquisa ou o delineamento de novas abordagens para objetos pouco conhecidos. Já os “estudos de caso descritivos” visam exclusivamente à compreensão de uma instância específica e privilegiam um enfoque indutivo (Yin, 1994). Por fim, os “estudos de caso diagnósticos” focalizam a obtenção de subsídios para futuras intervenções a serem desenvolvidas junto ao objeto.

Stake (2000), em contrapartida, defende que os estudos de caso podem ser subdividos em dois grupos básicos. Os chamados “estudos de caso de interesse intrínseco” não visam à formulação de “leis universais”, mas a compreensão do caráter multifacetado de um objeto “específico”. Por outro lado, os “estudos de caso instrumentais” atribuem ao objeto propriamente dito um interesse secundário e concentram-se basicamente na elaboração de generalizações. Cumpre assinalar, porém, que o referido autor aponta a existência de um denominador comum aos “estudos de caso de interesse intrínseco” e aos “estudos de caso instrumentais”, propondo que, em última análise, ambos visam a fornecer, ainda que indiretamente, subsídios para ações transformadoras.

2.3.2. Tipos de estudo de caso em função do objeto de investigação

Os chamados “estudos de caso únicos” indubitavelmente destacam-se como os mais comuns em Psicologia. Tais estudos visam, como sua própria nomenclatura indica, à análise aprofundada de apenas uma instância específica. Nos dias de hoje, entretanto, outros tipos de estudo de caso têm conquistado espaço no meio científico. Os “estudos de caso múltiplos” – isto é, as investigações que envolvem a análise de diversos objetos – vêm sendo cada vez mais utilizados. Da mesma forma, os “estudos de caso comparativos” – ou seja, as pesquisas que focalizam comparações entre instâncias distintas – também têm se tornado freqüentes (Triviños, 1992).

A despeito de serem menos usuais, outras modalidades merecem ser mencionadas. Os “estudos de caso comunitários”, por exemplo, possuem como objeto de pesquisa bairros, vilarejos ou comunidades e são dedicados à investigação de fenômenos comuns a todos aos habitantes do local. Os “estudos de caso situacionais”, em contrapartida, privilegiam a análise de um acontecimento específico a partir da avaliação das opiniões dos sujeitos envolvidos (Bogdan e Biklen, 1997). Já os “estudos de caso etnográficos” têm como interesse principal uma faceta específica de uma determinada cultura – tais como suas crenças, seus valores ou seus hábitos (André, 2003).

2.3.3. Tipos de estudo de caso em função da técnica de coleta de dados

O pesquisador interessado em executar um estudo de caso eventualmente lança mão de diversas técnicas de coleta de dados com o intuito de coligir o material necessário para que possa compreender em profundidade seu objeto. No entanto, na maioria das vezes costumase privilegiar um procedimento em particular e delegar aos outros recursos um valor complementar. Assim sendo, é possível categorizar os estudos de caso em função da técnica de investigação à qual o pesquisador atribui maior importância. Tendo em vista os objetivos do presente artigo, serão comentados sucintamente apenas os estudos de caso que utilizam as três técnicas de coleta de dados, que segundo Bogdan e Biklen (1997), são mais comuns nas pesquisas que adotam a estratégia metodológica em questão.

Os “estudos de caso observacionais” utilizam a observação como técnica de coleta de dados principal e permitem ao pesquisador um contato próximo com o ambiente no qual seu objeto encontra-se inserido. Os “estudos de caso documentais”, por outro lado, mostramse especialmente úteis quando o intuito do pesquisador é analisar objetos que não podem mais ser alcançados de forma direta, pois são desenvolvidos mediante a análise de todo e qualquer registro – fotografias, diários e correspondências, dentre outros – capaz de servir como fonte de informação (Triviños, 1992). Já os “estudos de caso de história de vida” são conduzidos a partir da realização de entrevistas exaustivas com um sujeito em particular, e usualmente visam a coligir uma narrativa em primeira pessoa (Yin, 1994).

2.4. Vantagens e desvantagens inerentes à utilização de estudos de caso

Bogdan e Biklen (1997) sugerem que o pesquisador menos experiente deve dar preferência aos estudos de caso no desenvolvimento de suas investigações, uma vez que consideram que essa estratégia metodológica geralmente oferece menos dificuldades práticas em comparação com as demais. Cumpre assinalar, no entanto, que tal orientação não deve ser generalizada indiscriminadamente, pois como assinala Triviños (1992), a complexidade de um estudo de caso encontrase inextricavelmente relacionada à finalidade da investigação, às particularidades do objeto e aos suportes teórico-metodológicos adotados pelo pesquisador. Além disso, os estudos de caso, assim como as demais estratégias metodológicas de pesquisa, possuem vantagens e desvantagens específicas.

O pesquisador que executa um estudo de caso geralmente sentese capaz de responder a uma quantidade muito maior de perguntas do que aquela que os dados coletados efetivamente permitem. Goode e Hatt (1979) destacam que possivelmente isso ocorra porque o pesquisador organiza mentalmente uma síntese do material obtido e o organiza de modo um tanto arbitrário, com o intuito de facilitar a compreensão do caráter unitário do objeto. O caso torna-se, então, demasiadamente “familiar”, o que pode levar o pesquisador a subestimá-lo, e assim desrespeitar os princípios norteadores da execução de qualquer trabalho científico. Talvez essa possa ser considerada a maior desvantagem – ou o maior “perigo”, do ponto de vista metodológico – inerente à aplicação de estudos de caso em pesquisas científicas.

Todavia, outras ressalvas devem ser mencionadas. Os estudos de caso muitas vezes dependem de um contato próximo do pesquisador com seu objeto. Usualmente, porém, o pesquisador encontra dificuldades para executar um trabalho de campo adequado em virtude da necessidade de desenvolver concomitantemente diversas atividades profissionais para garantir sua subsistência financeira, de modo que a proximidade com o caso pode ser prejudicada (André, 1984). Ademais, é preciso salientar que o pesquisador interessado em conduzir um estudo de caso invariavelmente irá se deparar com inúmeras incertezas na tentativa de retratar com precisão a multidimensionalidade de seu objeto. Conseqüentemente, deve se preparar para isso – tanto no âmbito emocional quanto no intelectual (André, 2003).

Em contrapartida, os estudos de caso possuem uma vantagem em relação às demais estratégias metodológicas, pois possibilitam ao pesquisador executar uma análise extremamente pormenorizada de seu objeto. Tal análise permite ao pesquisador obter resultados que não seriam acessíveis de outra forma, e conseqüentemente favorece a efetiva compreensão das diversas facetas do caso em pauta (André, 1984). Além disso, a análise em profundidade do objeto pode contribuir para o amadurecimento do pesquisador, pois ao entrar em contato direto com experiências diversificadas, ele tem a oportunidade de “viver muitas vidas” (Goode e Hatt, 1979).

Por fim, é preciso destacar que a inegável propriedade heurística – isto é, a capacidade de fomentar descobertas e criações – que caracteriza os estudos de caso também se afigura como uma de suas mais importantes vantagens (André, 2003). Isso ocorre porque o pesquisador que opta por lançar mão dessa estratégia encontra ampla liberdade para desenvolver novas idéias sem se limitar pelos pressupostos estabelecidos pelo referencial teórico que adota. Nesse sentido, os estudos de caso mostram-se especialmente atrativos para o pesquisador que tem apreço por desafios e que se sente à vontade para expor e debater seu próprio ponto de vista.

 

3. Orientações práticas para o planejamento e a execução de estudos de caso

Alguns autores especializados assinalam que o emprego de estudos de caso em pesquisas científicas que não seguem uma tradição médica usualmente é feito de forma intuitiva e pouco sistemática. Obviamente tal generalização deve ser vista com reservas. Não obstante, é preciso reconhecer que, como apontam Goode e Hatt (1979), os pioneiros na utilização dos estudos de caso em ciências humanas e sociais cometeram alguns deslizes metodológicos que comprometeram a validade e a fidedignidade de suas investigações. Se conduzidos de acordo com os procedimentos científicos adequados, porém, os estudos de caso destacam-se como uma estratégia metodológica tão válida e fidedigna quanto as demais. Em função disso, serão delineados a seguir alguns desses procedimentos, tomando-se como base as recomendações técnicas de autores especializados.

Segundo Yin (1994), cinco componentes são especialmente importantes para o adequado desenvolvimento de um estudo de caso, a saber: 1) uma questão de estudo pertinente; 2) um objetivo preciso; 3) um caso relevante; 4) uma vinculação lógica entre os dados apresentados e o propósito do estudo; e 5) critérios objetivos para a interpretação do material coletado. O mesmo autor destaca que a seleção dos três primeiros componentes exige do pesquisador reflexões acerca do objeto a ser estudado e das estratégias de coleta dos dados a serem empregadas, ao passo que a definição dos dois últimos depende de considerações sobre os procedimentos de análise a serem adotados. Evidencia-se, portanto, que a despeito de serem didaticamente distintos uns dos outros, os cinco componentes devem ser vistos pelo pesquisador como partes indissociáveis de um todo para que seja possível a compreensão das múltiplas facetas do objeto.

Partindo do pressuposto de que os estudos de caso possuem como principal meta a produção do conhecimento, o pesquisador deve tomar como ponto de partida uma questão inicial pouco específica e definir o objetivo de sua investigação com mais clareza no decorrer do próprio trabalho. Essa questão inicial pode ser baseada nos achados da literatura científica especializada, nas experiências ou observações do próprio pesquisador ou em qualquer outra fonte de informações. Assim sendo, a questão inicial do estudo não raro será aprofundada, reformulada ou até mesmo abandonada, na medida em que se mostrar, no desenvolvimento da investigação, de maior ou menor relevância para a compreensão do caso (Lüdke e André, 1986).

Mesmo após ter delimitado o caso, o pesquisador deve manter-se constantemente atento a novos elementos que poderão, em um segundo momento, ser incluídos no estudo. Uma estratégia profícua é avaliar seqüencialmente o material obtido, em vez de concentrar as análises após o término da coleta (Becker, 1993). Esse procedimento pode ajudar o pesquisador a visualizar seu objeto como ele realmente é, e não como seria desejável que fosse. Além disso, ele poderá, a partir da análise seqüencial, identificar e corrigir eventuais falhas metodológicas do procedimento de coleta de dados, o que indubitavelmente fornecerá subsídios para a obtenção de uma compreensão mais abrangente do caso.

O pesquisador interessado em realizar um estudo de caso deve cumprir as exigências éticas gerais inerentes a qualquer atividade científica e atender aos requisitos específicos de sua área de atuação. Para tanto, faz-se necessário dedicar atenção especial às resoluções federais, que estabelecem as diretrizes para pesquisas que envolvem seres humanos, e aos códigos de ética profissionais. Assim sendo, caberá ao pesquisador, antes de dar início à coleta de dados, submeter um projeto inicial de sua pesquisa à avaliação de um comitê de ética autônomo, com o intuito de obter uma apreciação formal da adequação de sua investigação (Severino, 2002).

Yin (1994) destaca que o pesquisador que pretende executar um estudo de caso deve apresentar seis capacidades básicas: a) elaborar boas perguntas; b) ouvir com atenção o relato dos participantes da investigação; c) não se deixar influenciar por seus próprios preconceitos e ideologias; d) adaptar-se às situações que não estavam previstas no plano de trabalho inicial; e) confrontar dados divergentes; e f) contornar vieses que podem contaminar a validade da pesquisa. Cumpre assinalar, porém, que tais capacidades podem ser adquiridas ou aperfeiçoadas à medida que o pesquisador evolui profissionalmente, de modo que a ausência de uma ou mais delas não deve ser vista como um empecilho intransponível para a realização de um estudo de caso.

Como salientado anteriormente, os estudos de caso devem possibilitar a compreensão da totalidade da instância avaliada. Em contrapartida, o caso deve ser bem delimitado e possuir contornos precisos, uma vez que analisar todos os aspectos de um objeto é uma tarefa inexeqüível do ponto de vista prático. Para superar tal paradoxo faz-se necessário levar em conta que a totalidade de qualquer caso é uma construção essencialmente intelectual, pois suas variáveis constituintes encontram-se, em última instância, relacionadas entre si (Goode e Hatt, 1979). Portanto, o pesquisador deve, sempre que necessário, executar recortes e focalizar determinados aspectos que considera de maior relevância, para que não se perca em um emaranhado de informações e interpretações.

A coleta dos dados necessários à realização de um estudo de caso exige alguns cuidados fundamentais, visto que o pesquisador deve reunir informações detalhadas a ponto de possibilitar a compreensão de diversas facetas de seu objeto. Para tanto, muitas vezes é preciso executar a triangulação de métodos – ou seja, a utilização de diferentes recursos de coleta de dados e a triangulação de fontes –, isto é, a consulta a diversas bases de informação (Alves-Mazzotti e Gewandsnadjer, 2000; Chizzotti, 2000). Além disso, a avaliação dos dados não raro envolve também o emprego de procedimentos diferenciados. A triangulação de técnicas de análise, por um lado, e a triangulação de teorias, por outro, destacam-se como duas importantes alternativas (André, 1984).

Bruyne, Herman e Schoutheete (1991) afirmam que qualquer estudo de caso que se limita à mera apresentação dos dados coletados possui pouco valor científico. Em função disso, os autores em questão defendem que o pesquisador que utiliza a estratégia metodológica em pauta deve procurar estabelecer um diálogo entre os achados oriundos de seu trabalho e a teoria que utiliza como base. Não obstante, a teoria não deve ser um entrave para o desenvolvimento de novas idéias, uma vez que quando isso ocorre, o avanço do conhecimento sobre o objeto se oblitera. Nesse sentido, André (2003) salienta que cabe ao pesquisador estabelecer uma via de mão dupla entre a empiria e a teoria para que seu estudo de caso possa produzir resultados efetivamente proveitosos.

Ao executar a leitura de um estudo de caso muitas vezes tem-se a impressão de que as interpretações propostas pelo pesquisador não são compatíveis com os dados coletados. Na maioria das situações isso ocorre quando o pesquisador não articula de forma sistemática o material obtido e as análises apresentadas no relato da pesquisa. Solicitar a colaboração de outros pesquisadores na avaliação dos dados indubitavelmente afigura-se, segundo Goode e Hatt (1979), como o procedimento mais recomendável para que tais dificuldades sejam superadas. Ademais, o pesquisador deve ser criterioso ao executar recortes, articular informações e privilegiar determinadas interpretações em detrimento de outras possíveis. Por fim, cumpre assinalar que se faz necessário explicitar adequadamente os critérios utilizados nesse processo, para que leitores alheios ao objeto possam efetivamente compreendê-lo.

Lüdke e André (1986) afirmam que se deve empregar em um relato de estudo de caso uma linguagem mais acessível do que aquela geralmente utilizada em relatos de pesquisa de outros tipos, pois a redação direta e objetiva pode facilitar o trabalho do pesquisador de reunir de forma coerente um grande volume de informações. Além disso, os relatos de estudos de caso escritos de modo mais informal e narrativo podem “aproximar” o leitor do caso analisado, o que possivelmente favorecerá a compreensão do trabalho desenvolvido. Todavia, vale destacar que a despeito de priorizar a simplicidade e a objetividade no relato de sua investigação, o pesquisador não deve deixar de abordar os múltiplos aspectos de seu objeto e de explicitar os dados que fundamentam as hipóteses apresentadas.

O pesquisador que executa um estudo de caso tende a descrever no relato de sua investigação apenas os dados que estão em conformidade com suas interpretações (Becker, 1993). Usualmente tal prática ocorre de modo inconsciente. No entanto, pode comprometer a validade do relato e a confiabilidade do estudo. Com o intuito de evitar que isso ocorra, o pesquisador deve se manter atento a essa questão e adotar uma posição crítica em relação ao próprio trabalho. Ademais, deve procurar apresentar o maior número possível de dados considerados importantes sobre seu objeto – ainda que alguns sejam incongruentes com suas interpretações.

Muitos pesquisadores sentem-se demasiadamente seguros de seus achados depois de executar um estudo de caso. Possivelmente isso ocorra porque, como salientado anteriormente, o pesquisador que emprega a referida estratégia metodológica amiúde coleta uma grande quantidade de dados e dedica-se tão a fundo a seu objeto que se sente emocionalmente “envolvido” com suas próprias análises, a ponto de considerá-las inquestionáveis. Assim, tende a superestimar o conhecimento que construiu acerca do caso analisado e a negligenciar no relato do estudo suas eventuais incertezas em relação a determinados aspectos que não foram devidamente compreendidos. De acordo com Goode e Hatt (1979), solicitar a outros pesquisadores a leitura analítica do relato de pesquisa destaca-se como o melhor meio de evitar que esse sentimento de onipotência comprometa a confiabilidade do trabalho.

Após coletar e analisar uma série de dados, o pesquisador que executa um estudo de caso possivelmente terá em mãos elementos suficientes para delinear algumas sugestões capazes de auxiliar na resolução de eventuais problemas relacionados a seu objeto. Na opinião de André (1984), a apresentação dessas sugestões destaca-se como um procedimento de extrema relevância. Ressalte-se, no entanto, que o pesquisador deve priorizar sugestões efetivamente viáveis e potencialmente resolutivas, isto é, que estejam ao alcance dos envolvidos no caso, e que possam subsidiar futuras ações transformadoras (Becker, 1993). Além disso, o pesquisador deve preocupar-se em propor tanto providências remediativas para o objeto em questão quanto medidas preventivas que possam ser aplicáveis a casos semelhantes.

Em suma, é possível afirmar que, como postula Stake (2000), o pesquisador interessado em executar um estudo de caso possui seis responsabilidades básicas, a saber: a) definir o caso mediante a conceitualização do objeto; b) delimitar a questão a ser investigada no estudo; c) buscar referenciais teóricos capazes de auxiliar na compreensão do objeto – tomando, porém, o cuidado de não se deixar limitar pelos mesmos; d) executar a triangulação métodos, fontes, técnicas de análise e teorias – e, se possível, combiná-las no mesmo estudo; e) buscar interpretações alternativas para os dados coletados; e f) elaborar asserções – e generalizações, quando viável – sobre o caso.

 

4. Considerações finais

Tanto as considerações gerais quanto as orientações práticas discutidas ao longo deste trabalho podem contribuir para que o pesquisador interessado venha a executar com maior segurança investigações científicas em Psicologia mediante a utilização de estudos de caso. Ademais, desde que as devidas especificidades sejam observadas, algumas das orientações práticas apresentadas também podem ser úteis para pesquisadores de outras áreas do conhecimento interessados em adotar a referida estratégia metodológica. Cumpre assinalar também que o presente artigo aponta a relevância de se dedicar maior atenção aos aspectos metodológicos a serem levados em consideração no planejamento e na realização de estudos de caso. Por fim, vale destacar que se faz necessário o desenvolvimento de novos trabalhos de caráter teórico para que as questões ora introduzidas possam ser discutidas de forma mais pormenorizada.

 

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Endereço para correspondência
Rodrigo Sanches Peres
Rua Jesuíno de Arruda, 2753 – Centro
13560-060 – São Carlos/SP
Tel.: (16) 3371-7054
E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

Manoel Antônio dos Santos
FFCLRP-USP – Deptº Psicologia e Educação
Av. Bandeirantes, 3900 – Monte Alegre
14040-901 – Ribeirão Preto/SP
Tel.: (16) 3622-2794
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

recebido em 21/12/04
versão revisada recebida em 05/06/05
aprovado em 19/08/05

 

 

1 Psicólogo (UNESP/Faculdade de Ciências e Letras de Assis); Mestre e Doutorando em Psicologia (USP/FFCLRP); Pesquisador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica (NEPP).
2 Psicólogo; Mestre e Doutor em Psicologia Clínica (IPUSP); Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia (USP/FFCLRP); Coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica (NEPP).